Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

download Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

of 143

Transcript of Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    1/143

    H F III

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    2/143

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    3/143

    H F III Marco Antonio Franciotti

    Florianópolis, 2009.

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    4/143

    Catalogação na onte elaborada na DECI da Biblioteca Universitária da

    Universidade Federal de Santa Catarina.

    Copyright © 2009 Licenciaturas a Distância FILOSOFIA/EAD/UFSCNenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada sem a prévia autorização, por escrito, da Universidade Federal de Santa Catarina.

    F817h Franciotti, Marco AntonioHistória da flosofa III / Marco Antonio Franciotti.— Florianópolis :FILOSOFIA/EAD/UFSC, 2008.

    143 p.

    ISBN 978-85-61484-10-1

    1. Ciência moderna. 2. Conhecimento. 3. Relação sujeito-objeto.

    I. Título

    CDU:1(091)

    G FPresidente da República Luiz Inácio Lula da Silva Ministro de Educação Fernando HaddadSecretário de Ensino a Distância Carlos Eduardo

    Bielschowky 

    Coordenador Nacional da Universidade Aberta doBrasil Celso Costa

    U F S CReitor  Alvaro oubes PrataVice-reitor  Carlos Alberto Justo da SilvaSecretário de Educação à Distância Cícero BarbosaPró-reitora de Ensino de Graduação Yara Maria Rauh

    MullerPró-reitora de Pesquisa e Extensão Débora Peres

    Menezes

    Pró-reitor de Pós-Graduação Maria Lúcia de BarrosCamargo

    Pró-reitor de Desenvolvimento Humano e Social  LuizHenrique Vieira da Silva

    Pró-reitor de Inra-Estrutura João Batista FurtuosoPró-reitor de Assuntos Estudantis Cláudio José AmanteCentro de Ciências da Educação Wilson Schmidt

    C L F M DDiretora Unidade de Ensino Maria Juracy

    Filgueiras oneliChee do Departamento Leo Aonso StaudtCoordenador de Curso Marco Antonio Franciotti

    Coordenação Pedagógica LANEC/CEDCoordenação de Ambiente Virtual LAED/CFM

    P GCoordenação Pro. Haenz Gutierrez QuintanaEquipe Henrique Eduardo Carneiro da Cunha,

    Juliana Chuan Lu, Laís Barbosa, Ricardo Goulartredezini Straioto

    E D M

    L N T - LANTEC/CED

    Coordenação Geral  Andrea LapaCoordenação Pedagógica Roseli Zen Cerny 

    Material Impresso e HipermídiaCoordenação Laura Martins Rodrigues,

    Tiago Rocha Oliveira Adaptação do Projeto Gráfico Laura Martins Rodrigues,

    Tiago Rocha Oliveira

    Diagramação Ana Flávia Maestri, Jessé orres,

    Karina Silveira

    Ilustrações Raael Naravan, Marc Bogo

    ratamento de Imagem Raael Naravan, Laura Martins

    Rodrigues

    Revisão gramatical  Gustavo Andrade Nunes Freire,

    Marcos Eroni Pires

    Design InstrucionalCoordenação Isabella Benfica Barbosa

    Designer Instrucional  Carmelita Schulze

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    5/143

    S

    A ......................................................................

    I ..........................................................................

    D A R .........................

    1.1 O século XVI e o Advento da Ciência Moderna ................19

    1.2 Descartes Existe... ..................................................................27

    L ..............................................................R ..............................................................................

    K F T ...........................

    2.1 O Lugar da Metaísica ...........................................................49

    2.2 Juízos Sintéticos a Priori ........................................................ 53

    2.3 O Idealismo ranscendental..................................................55

    B .........................................................

    R ..............................................................................

    K B ..............................................

    3.1 Berkeley e a Percepção ...........................................................66

    3.2 Aparentes Similaridades ........................................................66

    3.3 A Aprioridade do Espaço e do empo .................................70

    3.3 Conrontos ............................................................................... 75

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    6/143

    3.4 Kant e o Fenomenalismo .......................................................83

    3.5 A Intuitividade e a Idealidade do Espaço e do empo .......853.6 Conclusão ................................................................................ 94

    B .......................................................

    R ............................................................................

    H: E .................................

    4.1 Nossa Crença nas Relações Causais ...................................109

    4.2 Nossa Crença na Existência Continuada

    dos Objetos Externos ............................................................1154.3 Resolvendo endências Conflituosas no Metanível .........119

    4.4 O Ceticismo de Hume ..........................................................131

    B .......................................................

    R ............................................................................

    R ......................................................................

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    7/143

    A

    Esta disciplina abrange a chamada “Filosofia Moderna”, um perío-

    do da História da Filosofia que vai de Descartes a Kant. emas como

    a legitimidade, o alcance e a delimitação do conhecimento empírico, o

    contrato social, a liberdade e sua relação com a concepção determinista

    da natureza, entre outros, marcam esse período da história das idéias

     filosóficas. A fim de evitar a dispersão em virtude da multiplicidade de

    áreas e correntes filosóficas, dá-se ênase aos assuntos epistemológicos.

     A disciplina de História da Filosofia III é indispensável para o

     uturo proessor de Filosofia. emas e problemas da Filosofia Moder-

    na estão presentes ainda hoje nas discussões filosóficas, servindo de

    esteio tanto ao entendimento quanto às suas tentativas de solução.

    Nesse sentido, pode-se dizer que a Filosofia Moderna alterou subs-

    tancialmente a maneira filosófica de refletir que herdamos dos gre-

     gos: questões como a do limite do conhecimento, por exemplo, eram

    apenas timidamente colocadas, pois se pressupunha que a mente hu-

    mana podia, a princípio, adquirir conhecimento de todas as coisas.

    Com o advento da modernidade, os filósoos passaram a se preocu- par com o que se podia – e o que não se podia – conhecer. Essa é uma

    atitude que os filósoos contemporâneos ainda adotam ao discutir

     problemas epistemológicos. Desse modo, pode-se afirmar que, sem a

    Filosofia Moderna, não se entende a Filosofia Contemporânea, ou a

    maneira contemporânea de azer filosofia.

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    8/143

    O objetivo da disciplina é apresentar algumas das principais

    questões filosóficas colocadas por alguns dos principais filósoos da

    época, sob a ótica epistemológica. As doutrinas de Descartes, Berke-

    ley, Hume e Kant serão expostas e seus conceitos mais importantes

    trabalhados de modo a permitir uma visão abrangente das grandes

    questões da modernidade.

     Marco Antonio Franciotti

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    9/143

    I

    A Q C FM

    O conteúdo da disciplina História da Filosofia III é constituídoda chamada Filosofia Moderna, cujo início coincide com a prou-são de idéias filosóficas, históricas, culturais e científicas do séculoXVI, e segue até o Iluminismo, ou Esclarecimento, típico do século

    XVIII. rata-se de um período de pouco mais de 200 anos, queexerceria um impacto marcante nas discussões filosóficas subse-qüentes. Filósoos desde Descartes, Monstesquieu, Locke, Berke-ley, Espinoza, Hume, até Diderot, Rousseau e Kant, entre outros,apresentaram problemas, idéias e sistemas filosóficos que até hojenos ocupam e nos ascinam. Algumas de suas idéias chegarammesmo a extravasar os limites do pensamento filosófico. Quemnão ouviu rases como “penso, logo existo” (ormulada por Des-cartes), ou “o homem é naturalmente bom; é a sociedade que o

    perverte” (ormulada por Rousseau), ou mesmo “o coração temrazões que a própria razão desconhece” (ormulada por Pascal)?Por mais distante que uma pessoa possa estar da filosofia e do dis-curso filosófico, é bem provável que, mesmo assim, ela já tenha ou- vido alar do Racionalismo, do Empirismo, do Dualismo, emborapossa não saber exata e exaustivamente como definir esses termostão polêmicos no domínio filosófico.

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    10/143

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    11/143

    de verdade e conhecimento válido. Não se trata de acreditar queessa área e seus problemas possuam uma excelência que outrasáreas da filosofia não dispõem; antes, trata-se de reconhecer queela pode se constituir numa propedêutica para a compreensão

    mais abrangente dos temas apresentados pelos filósoos moder-nos. Estudar essa época da filosofia de um ponto de vista da teoriado conhecimento significa adotar uma estratégia didaticamente viável e clara para a introdução dos principais temas e debates quetanto ocuparam os filósoos, de Descartes a Kant.

    Um número considerável de filósoos costuma ser da opiniãode que é sempre temerário alar das principais características deuma época. Segundo eles, quando azemos isso, geralmente dei-xamos muitas outras coisas importantes de lado. Acredito que issoseja correto, mas ao mesmo tempo é inevitável constatarmos quecomparações entre dierentes épocas da história do pensamentoocidental são eitas constantemente. Como não pensar na influên-cia decisiva da doutrina cristã na Idade Média? Como não azer adistinção entre a valorização do logos pelos gregos antigos e o orteapego aos mitos por parte de povos precedentes? Ora, ao realizar-mos tais comparações, acabamos necessariamente recorrendo àschamadas “principais características” de uma época.

    A preocupação acima, contudo, é providencial. Ao tratarmosdessas características, precisamos ter em mente que o painel tra-çado é sempre parcial e jamais decisivo. Por exemplo, é certo quea doutrina cristã exerceu uma enorme influência na Idade Média– e você já a estudou na disciplina de História da Filosofia II – masisso não quer dizer que, nessa época, as explicações racionais te-nham sido simplesmente postas de lado em nome da é religiosa.Esse é um erro comum em alguns manuais de Filosofia. A manei-

    ra iluminista de olhar a época medieval nos condicionou a vê-lacomo a chamada “Idade das revas”, mas isso de modo algum écorreto. A Idade Média legou tantos pensadores e doutrinas im-portantes e enriquecedoras quanto qualquer outra época: filósoosda estatura de Santo Agostinho, Abelardo, São omás de Aquinoe tantos outros desenvolveram, em suas obras, brilhantes conside-rações filosóficas sobre alguns dos mais undamentais problemasda História da Filosofia. Ao mesmo tempo, a matemática testemu-

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    12/143

    nhou a introdução do zero, e a astronomia, o apereiçoamento da visão aristotélica do mundo que, apesar de incorreta, conseguiaexplicar com razoável detalhamento o movimento dos astros. Aarte medieval, embora sem a aspiração à pereição geométrica e

    ao rigorismo da arte renascentista e pós-renascentista, perseguiu arepresentação do divino e da nossa relação com a é e a experiênciareligiosa em geral de um modo inigualável, que deve ser julgadodentro de seus próprios objetivos e visão de mundo, como, aliás, aarte de qualquer outro período histórico.

    O que dizer do logos grego? Você já viu nas disciplinas das pri-meiras ases sua importância e influência, mas caracterizar as ex-plicações do mundo anteriores aos gregos como meras descriçõesde mitos é um erro grave. Os gregos não inventaram o saber racio-nal. A matemática, considerada por eles como indispensável parao exercício do logos – não se esqueça que na entrada da Academiade Platão havia os dizeres “aqui não entra quem não souber geo-metria” – já existia muito antes dos gregos, e o amoso eoremade Pitágoras já existia antes mesmo de Pitágoras! Os gregos noslegaram o modo ocidental do saber racional e somos inescapavel-mente herdeiros dele, mas o conhecimento dos egípcios e babilô-nios, por exemplo, não pode ser de modo algum reduzido a um

    punhado de estórias míticas.Com base em tais considerações, podemos afirmar que é plau-

    sível capturar as características mais nítidas da modernidade, con-tanto que sejamos flexíveis o bastante para entendê-las de modoparcial e sempre sujeitá-las a revisão. Visões panorâmicas sãoincompletas e jamais deverão substituir um estudo rigoroso dosprincipais pensadores de uma dada época.

    Feitas as advertências acima, podemos agora nos perguntar:

    quais seriam os principais conceitos da Filosofia Moderna? O pri-meiro, e talvez undamental, seja o de razão. Mas vejam que nãoé mais a partir do logos grego, e sim da razão matemática, isto é,da razão na condição de proporção, que partimos para compararconceitos e relacionar grandezas entre si. Essa noção de razão éintroduzida por Descartes. Esse é um dos motivos pelos quais eleé considerado o pai da Filosofia Moderna. O conhecimento emgeral e a Filosofia em particular jamais seriam os mesmos após o

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    13/143

    advento da razão cartesiana. Os filósoos posteriores a Descartes– e mesmo vários de seus contemporâneos – irão ou combater oudeender essa razão. Eles jamais serão indierentes a ela.

    Intimamente ligada ao conceito de razão, a visão científica ou

    mecanicista do mundo  constitui-se numa marca indelével daépoca moderna da reflexão filosófica. Impulsionada pelas pesqui-sas e pelos estudos dos pioneiros da ciência renascentista e pelasubseqüente teoria da gravitação newtoniana, a ciência modernatransormar-ser-á no modelo do conhecimento válido, influen-ciando e maravilhando as reflexões dos filósoos modernos. Noinício do primeiro capítulo o advento da ciência moderna será ca-racterizado com mais detalhes.

    Não devemos nos esquecer da mudança de ênase nas discus-sões filosóficas que a filosofia moderna empreendeu. Refiro-me àprimazia da teoria do conhecimento em relação à ontologia. Osgregos e mais especificamente os medievais pressupunham quenão podia haver nenhum aspecto do real que osse incognoscívelà mente humana. Nesse sentido, suas principais perguntas eramsobre o ser, ou a essência das coisas. Os modernos, e originalmenteDescartes, passaram a se preocupar com o limite das nossas acul-dades cognitivas, ou com o que podemos conhecer. Essa preocupa-

    ção pressupõe que a mente humana, para o filósoo moderno, nãoé toda-poderosa e não pode conhecer toda a complexidade do real.Nesse sentido, a razão é, por assim dizer, “humanizada”, e o nossoconhecimento do mundo passa a ser considerado como uma pro-dução marcadamente humana, não mais uma concessão divina.

    Ao mesmo tempo, a filosofia se vê às voltas com um ato umtanto desconcertante: pode haver problemas que não são solúveis,questões que jamais poderão ser respondidas, pois se colocam para

    além de nossas habilidades de conhecer. No capítulo 2, mostrareique esse traço inovador e importante da modernidade na filosofiaé transormado como uma das características mais importantes dafilosofia transcendental de Kant. Vocês já viram com o Pro. LuizHenrique Dutra que essa preocupação com os limites do conheceré central para a teoria do conhecimento. Assim, podemos dizerque, para o filósoo moderno, as questões ontológicas sobre o queé, ou o que existe, só podem ser respondidas após um exame das

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    14/143

    nossas aculdades cognitivas. As questões epistemológicas pre-cedem as questões ontológicas. Como Kant afirma na Crítica daRazão Pura:

    (...) o entendimento nunca pode ultrapassar os limites da sensibilidade

    (...) As suas proposições fundamentais são apenas princípios da exposi-

    ção dos fenômenos e o orgulhoso nome de ontologia, que se arroga a

    pretensão de oferecer, em doutrina sistemática, conhecimentos sintéti-

    cos a priori  das coisas em si (por ex. o princípio da causalidade) tem de

    ser substituído pela mais modesta denominação de simples analítica do

    entendimento puro.

    Em outras palavras, antes de responder à questão sobre queclasses de objetos existem, é necessário traçar os limites e o alcan-

    ce do nosso conhecimento sobre esses objetos. Somente dentro dodomínio do que se pode conhecer é que será possível determinaras características daquilo que existe.

    Essa estratégia tem sua origem nas Meditações de Descartes. Em-bora já tivesse determinado um conjunto inicial de certezas, Des-cartes sentia que sua mente tendia a se desviar do caminho correto,sendo levada ao erro. “Meu espírito”, diz ele, “apraz-se em extraviar-se, e não pode conter-se nos justos limites da verdade” ( MeditaçãoII ). Ao tentar determinar a onte do erro e da alsidade, Descartesconclui que a vontade humana vai muito além do entendimento.

    (...) sendo a vontade muito mais ampla e extensa que o entendimen-

    to, eu não a contenho nos mesmos limites, mas estendo-a também às

    coisas que não entendo; das quais, sendo a vontade por si indiferente,

    ela se perde muito facilmente e escolhe o mal pelo bem ou o falso pelo

    verdadeiro. O que faz com que eu me engane e peque. (Meditação IV)

    Nossa vontade leva o entendimento a um domínio no interiordo qual ele não pode uncionar adequadamente. Para evitar isso, é

    necessário traçar, mediante a adoção de um princípio undamen-tal, os limites do conhecimento: somente entreter no espírito idéiasclaras e distintas. Estas são, por exemplo, as idéias matemáticas eas verdades metaísicas estabelecidas no curso das Meditações.

    Outro traço marcante da modernidade é o debate entre raciona-lismo e empirismo. Os manuais de Filosofia normalmente contra-põem os racionalistas continentais aos empiristas basicamente das

    DESCARTES, René. Meditações.

    São Paulo, Ed. Nova Cultural.1999. Meditação I.Doravante iremos nos referir aessa obra apenas apontandoo número da meditação a quecorresponde a referência.

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    15/143

    ilhas britânicas. Em assim o azendo, porém, eles deixam de ladomuitos aspectos comuns entre eles. É verdade que o racionalistaconsiderará a razão como onte do conhecimento genuíno, mas issonão quer dizer que os empiristas dêem as costas a ela. Ao se apre-

    sentarem os pensamentos de Berkeley e Hume, mostrar-se-á comoa razão ocupa um lugar de destaque no pensamento desses filóso-os empiristas. Ao mesmo tempo, é bem verdade que os empiristaselegem a experiência resultante dos nossos cinco sentidos como aonte do conhecimento genuíno, em contraste com os racionalistas,mas isso não quer dizer que estes últimos deixem de considerar aexperiência como um elemento indispensável na ormação do co-nhecimento. Como veremos no capítulo 2, Kant se coloca comoum herdeiro do racionalismo e ao mesmo tempo um deensor da

    idéia de que “o conhecimento começa com a experiência”.

    Outra característica da modernidade, e como que o corolário daadoção do conceito de razão e da ciência como instrumentos para aaquisição do conhecimento genuíno, é o “Esclarecimento”, ou “Ilu-minismo”, isto é, o movimento filosófico segundo o qual: (1) as ex-plicações baseadas na razão são sempre preeríveis em relação aosdemais tipos de explicações – daí a expressão A Idade da Razão a eleassociada; (2) a ciência – aqui entendida basicamente como a mecâ-

    nica newtoniana – é o grande guia da humanidade, em detrimentodo saber místico e religioso. Laplace, o grande seguidor e propaga-dor da ciência newtoniana, oi perguntado por Napoleão Bonapar-te “onde se encontra Deus nesse sistema mecânico?”, e respondeu:“Deus, excelência, não é mais necessário”. Nesse momento o Ilumi-nismo estabelece de uma vez por todas a separação entre Filosofia eeologia, e entre saber comum e ciência. Além disso, no campo daÉtica, o Iluminismo abarca doutrinas que, em geral, deendem a au-tonomia do cidadão mediante o exercício pleno da razão, norteandosuas ações com base em preceitos por ele mesmo ormulados e acei-tos. No campo da Filosofia Política, o Iluminismo se reere a teoriasdierentes entre si, mas que possuem alguns traços comuns, comoa crença na organização racional da sociedade – muitas vezes pormeio de um Contrato – e a valorização da idéia de liberdade e igual-dade dos indivíduos perante a lei – a partir da qual se cunhou o lemada Revolução Francesa de 1789: liberdade, igualdade e raternidade.

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    16/143

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    17/143

    ■ C ■D

    A R

    Este capítulo tem por objetivo expor algunsdos principais conceitos da filosofia cartesia-na, encontrados na obra Meditações de Fi-losofia Primeira. Isso se explica pelo ato deque, tendo Descartes sido o pai da Filoso- fia Moderna, suas idéias são undamentais para o entendimento de todo o período quese seguirá

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    18/143

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    19/143

    D A R ◆

    . O XVI A

    C MImagine que você é um estudante de filosofia na Renascença,

    por exemplo, um estudante rancês desse período. É claro que nãoé ácil imaginar isso, mas tente mesmo assim. Você começa a es-tudar filosofia e existe uma grande doutrina filosófica por mais deum milênio, e que, a princípio, tem respostas a todos os problemasfilosóficos que você possa imaginar, incluindo aqueles que hojechamaríamos mais propriamente de científicos. Imagine que você

    é esse jovem rancês diante dessa doutrina de autoridade indiscu-tível. Ao mesmo tempo, não se esqueça que essa é a Renascença, você está testemunhando muitas novas inormações, pois algumasrevoluções, tanto políticas quanto intelectuais e artísticas, estãoacontecendo à sua volta. Mas essa doutrina oficial, que já explica- va aparentemente tudo, parecia pouco a pouco não explicar muito,até chegar a não explicar nada.

    Essa doutrina era nada mais nada menos que a filosofia de Aris-

    tóteles. Você já estudou esse filósoo em disciplinas anteriores.Assim sendo, se quiser, você pode retornar aos livros-textos deHistória da Filosofia I, História da Filosofia II e Ontologia I paralembrar alguns dos traços gerais de sua filosofia. Aristóteles oi umgrande classificador: de coisas em geral e de seres vivos em parti-cular, como espécies de animais e plantas; mas ele também classifi-cou conjuntos de idéias e problemas, que deram origem às muitasáreas do conhecimento humano que até hoje existem. Poderíamos

    Doutrina a cujo conteúdoa disciplina História da

    Filosofia II deste curso buscoudar uma interpretação.

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    20/143

    ◆ H F III

    dizer que ele oi não apenas um filósoo, mas um biólogo, um ma-temático, um ísico, um astrônomo, um cientista político etc. Éclaro que isso pode ser dito de grande parte dos pensadores gre-gos, pelo simples ato de não haver as distinções que há hoje, de

    modo que um intelectual na época de ouro de Atenas era tantoastrônomo quanto matemático, ou filósoo, ou cientista político,etc. Mas Aristóteles é dierente porque ele praticamente inauguroualgumas dessas áreas. Antes de Aristóteles ninguém escrevera umratado dos Animais, por exemplo. E também ninguém escreveraum tratado tão abrangente sobre a ísica e o movimento.

    Mas onde estou querendo chegar? NaAstronomia, isto é, na área em que po-demos mais acilmente entender o queestava acontecendo na Renascença, emespecial na realidade de um certo jovemrancês cuja filosofia eu irei comentar naspáginas seguintes.

    Pense no que está acontecendo nessaépoca, principalmente no campo da as-tronomia. Aristóteles dizia que o univer-so era composto de eseras concêntricas.

    A Terra seria uma esfera no centro douniverso, e o centro da erra seria o lu-gar natural de todos os corpos próximosà erra, que tendiam a retornar ao seu lu-gar natural. Com isso, Aristóteles conse-guia explicar, entre outras coisas, o movimento de queda livre doscorpos. A Lua, o Sol, os planetas e as estrelas girariam em tornoda erra, incrustados que estavam em eseras ocas de cristais, cada

    uma carregando cada um desses corpos celestes. A erra seriaimóvel e, para além da esera das estrelas, nada existiria. O uni- verso tinha um fim e era echado. Quando as eseras girassem, elasproduziriam sons: a música das eseras. Ah, tem outra importantecaracterística nesse modelo: se estamos alando de eseras concên-tricas, e planetas incrustados nessas eseras, que se movem ao re-dor da erra, então estamos alando de um movimento circulardeles ao redor da erra. Isso não podia ser dierente: o círculo, para

    Visão do céu a partir da Terra em uma noite de céu estrelado.Existem na História Ocidental duas grandes teorias astronômicaspara explicar as relações que esses corpos celestes possuementre si e com a Terra. Fique atento para compreender por quecada uma delas representa uma maneira do homem conhecer omundo, e essas maneiras representam teorias filosóficas distintas

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    21/143

    D A R ◆

    os gregos, era a orma geométrica pereita, a figura de mil lados!Aristóteles acreditava que a esera da Lua dividia o universo emduas partes: o mundo sublunar, impereito; e o mundo supra lunar,pereito. No mundo impereito, próximo à erra, os movimentos

    poderiam descrever quaisquer tipos de trajetórias. Mas no mun-do supra-lunar, pereito, o movimento dos corpos celestes deveriaser pereito. E se o círculo era a figura geométrica pereita, entãoos corpos celestes pereitos deveriam, necessariamente, descreveruma trajetória circular ao redor da erra.

    Esse modelo do universo oi apereiçoado por Ptolomeu, no sé-culo III d. C., pois havia algumas discrepâncias no movimento dosplanetas, principalmente Marte. Durante o ano, contra o pano deundo das estrelas, Marte seguiria numa certa direção no céu e vol-taria, depois seguiria em rente, no que se chamou de movimento

    Terra   Lua

    Sol

    Vênus

    Mercúrio

    Marte

    Mundo

    sublunarMundo

    supralunar

    Júpiter

    Saturno

    Imagem que representa a teoria astronômica aristotélica. Teoria que preponderoudo século IV. A. c. até o século XV de nossa era. Fique atento para compreender quepressupostos filosóficos dão sustentação a essa teoria.

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    22/143

    ◆ H F III

    de retrogradação. Então Ptolomeu introduziu os epiciclos: os cor-pos celestes girariam em pequenos círculos dentro dos grandescírculos das eseras concêntricas. Só assim ele conseguiu explicaras idas e vindas de Marte e dos demais corpos celestes.

    Isso apaziguou os inquietos, ajudou a explicar a retrogradaçãoe tudo continuou dentro das normas originalmente estabelecidaspor Aristóteles. Esse modelo, importado da Grécia Clássica, rei-nou inconteste por mais de mil anos, com uma sólida matemáticasustentando-o. Ptolomeu oi seu criador, mas outros astrônomosapereiçoaram seus cálculos. E assim o universo, echado, finito,bem comportado, cheio de sons, músicas e movimentos pereitosmantinha-se dentro da visão ptolomaico-aristotélica.

    Como se tudo isso não bastasse, o universo echado harmoniza- va-se pereitamente com a visão cristã do universo. Você se lembradas aulas do Ensino Médio? Lembra-se como o cristianismo pou-co a pouco se estabeleceu no Império Romano, graças principal-mente a Constantino, e depois se tornou hegemônico em pratica-mente toda Europa? Pois bem. O universo com a erra no centro,ou geocêntrico, e o resto do universo dançando ao seu redor, seajustavam como uma luva às visões gerais do universo e do movi-mento dos astros tais como apresentadas na Bíblia. Veja um bom

    exemplo do capítulo 1 do Eclesiastes: “Nasce o Sol, e põe-se o Sol, e volta ao seu lugar, de onde nasceu”. O Sol se movimenta, ao nossoredor, como qualquer outro corpo celeste. Estamos, na erra, nocentro do universo. Afinal, omos criados por Deus à sua imageme semelhança, e ele nos colocou no paraíso, o lugar pereito para ascriaturas de Deus.

    Além disso, evidências do nosso dia a dia mostram sem sombrade dúvida que a erra, conosco sobre sua superície, encontra-se

    estática. Olhamos o céu noturno e tudo se move. Aí olhamos paraA erra, para o horizonte, e nada se move. Aristóteles estava certoo tempo todo. Sua autoridade inquestionável dava sustentação aogeocentrismo. E a autoridade igualmente inquestionável da Bíbliaconfirmava e coroava a visão aristotélica.

    Nosso jovem rancês, cuja teoria passaremos a conhecer e quepode muito bem ser seu colega, deve ter se admirado quando to-

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    23/143

    D A R ◆

    mou contato com essa visão monolítica, sem arestas, abrangente,do universo. Os princípios e pressupostos dos gregos, de um lado,e dos teólogos cristãos, de outro, não deixavam margem a dúvida.O que quer que osse contra os ditames dessa visão do universo

    deveria estar errado. Entretanto o geocentrismo não podia estarerrado. A Bíblia não podia estar errada. Aristóteles e Deus nãopodiam estar errados.

    Mas estamos alando da Renascença. Giordano Bruno, no finaldo século XVI, teve a coragem de dizer que o universo não era exa-tamente como Aristóteles descrevera. Os planetas seriam, segundoele, outros mundos, como a erra. Isso porque Deus era tão per-eito, tão poderoso, que não podia ter eito apenas um mundo. Hátantos mundos quantos Ele quis criar. Marte é um mundo. Júpiter.Saturno. O universo inteiro, na verdade, não podia ser echado,como concebera Aristóteles. Ele seria, na verdade, infinito. Nelehaveria incontáveis sistemas solares como o nosso. Além disso, seo universo é repleto de mundos como a erra, a hierarquia aristo-télica de uma parte pereita, o mundo supra-lunar, e uma parte im-pereita, o mundo sublunar, deveria ser rejeitada. Dierentementede Aristóteles, Giordano Bruno deendia a visão de um universoinfinito, aberto, homogêneo, isotrópico.

    Um certo Cardeal chamado Belarmino reagiu erozmente con-tra as idéias de Bruno. Blasêmia. Heresia. Era inaceitável que umpensador cristão – Bruno era um rei dominicano! – tivesse a ou-sadia de ir contra Aristóteles e, conseqüentemente, contra as Sa-gradas Escrituras! Embora Bruno acabasse por recorrer ao próprioPapa Clemente XVIII, ele eventualmente oi declarado um herege,teve sua prisão decretada e, finalmente, como se recusava a negarsuas próprias idéias perante a Inquisição, oi condenado à morte.

    Quando a sentença oi lida, ele se dirigiu aos juízes dizendo: “al- vez vocês, meus juízes, pronunciem esta sentença contra mim commedo maior que o meu em recebê-la.” Bruno oi queimado vivoem praça pública.

    Mas o Cardeal Belarmino não parou por aí. Outro italiano,Galileu Galilei, iria conhecer sua influência, seu prestígio e suaira. Para Galileu, não se tratava simplesmente de apontar as incon-gruências da visão aristotélica dominante. ratava-se de extirpá-

    Giordano Bruno (1548-1600)

    Galileu Galilei (1564-1642)

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    24/143

    ◆ H F III

    la. Aristóteles estaria errado e o geocentrismo não seria correto. Ouniverso não giraria em torno da erra e nós não seríamos o centrodo universo: seríamos mais um desses tantos planetas, como Mar-te, Júpiter, Saturno. E, mais importante ainda, Galileu simpatizou

    com a visão de um padre polonês chamado Copérnico que, entreoutras coisas, considerava os cálculos das trajetórias dos corposcelestes apresentados a partir do modelo ptolomaico-aristotélicomuito complicados. “Quem sabe”, pensou ele, “não poderíamossimplificar esses cálculos mudando um pouco esse modelo”. Gali-leu ficou ascinado com a nova receita: pegue o Sol, tire-o da eseratransparente que supostamente estaria girando ao redor da erra,pegue a erra, bem no centro, imóvel, e aça uma troca de posiçõesentre eles. Quer dizer, o Sol no centro e a Terra na periferia. O

    Sol imóvel, a erra se movendo ao redor dele. Será que os cálculosconerem? Bem, eles não apenas conerem: são simplificados porcausa dessa troca. Ficamos então com um modelo antigo, milenar,complicado, cheio de ciclos e epiciclos, de um lado, e um modelonovo, simplificado, tão ou mais exato do que o antigo, mas semsuas complicações desnecessárias.

    Copérnico nos legou o heliocentrismo. Assim, a erra não se-ria o centro do universo. Seríamos mais um mundo como tantos

    outros. Bruno teria razão, e Aristóteles não. Mas um novo instru-mento oi lançado no mercado. Poderíamos dizer que era uma versão renascentista do computador pessoal, que mudou nossa

    Copérnico (1473-1543)

    Sol

      M

      e  r  c  ú

      r  i  o

       V  ê  n

      u  s

       T  e  r  r  a

      M

      a  r  t  e   J

      ú  p  i  t  e

      r

      S  a  t  u  r  n  o

    Representação do sistema solar segundo a teoria astronômica heliocêntrica. Essa novaforma de conceber o universo representa uma nova visão de mundo.

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    25/143

    D A R ◆

     vida, tanto pessoal quanto profissionalmente. Refiro-me ao teles-cópio, inventado pelo alemão Hans Lippershey em 1608. Galileuimediatamente o adquiriu e o apereiçoou de um modo revolu-cionário. Como se não bastasse, ele optou por usá-lo não para ver

    os navios inimigos no horizonte ou as tropas inimigas a quilôme-tros de distância. Ele o apontou para o céu. Os pequenos pontosde luz oram aumentados de um modo jamais visto, e os planetasnão eram mais apenas suaves e ugidíos contornos coloridos mi-núsculos. Júpiter – que admirável! – tinha luas girando ao seuredor. Sim, elas se moviam, como a nossa Lua gira em torno daerra. Júpiter é uma maquete de um sistema solar. Um centro,com corpos celestes girando ao seu redor. Bruno tinha razão. Co-pérnico tinha razão. Aristóteles, portanto, e a tradição cristã, não

    poderiam jamais estar certos.

    Esqueceu-se do nosso jovem rancês? Ainda bem que não. Es-sas reviravoltas na concepção do universo ísico iriam mudar opensamento europeu e ocidental para sempre. ente imaginar quetodas essas idéias estavam ervilhando nas rodas intelectuais euro-péias. Estou me reerindo a uma época em que Leornado da Vincie Michelângelo já haviam hipnotizado seus conterrâneos da os-cana com a criação de obras de arte de peeição técnica e estética

    insofismáveis. Ao mesmo tempo, Galileu era um orador incompa-rável. Sua deesa do heliocentrismo, suas idéias sobre a trajetóriaparabólica dos projéteis, sua lei da queda dos corpos, tudo isso eraapresentado como que por um profissional da propaganda. Gali-leu talvez tenha sido o primeiro marqueteiro da ciência. Ele sabiacomo ninguém convencer e ascinar os ouvintes e leitores. Isso,obviamente, deu-lhe um excesso de confiança. Ele pensou que se-ria possível convencer os especialistas do establishment , os inte-lectuais da Igreja. Afinal, suas idéias, seus cálculos e os relatos deseus experimentos, combinados com sua capacidade de persuasão verbal, seriam mais do que suficientes para mudar as convicçõesdos aristotélicos mais radicais.

    Mas Galileu oi um pouco além de sua própria retórica. Ele de-cidiu parodiar a posição oficial ou, mais exatamente, do Papa Ur-bano VIII, que era seu amigo e conterrâneo da oscana. Escreveuum livro chamado Diálogo sobre as Duas Novas Ciências, com três

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    26/143

    ◆ H F III

    personagens que debatiam os sistemas geocêntrico e heliocêntri-co: Salviati, que representava ele mesmo; Sagredo, um personagemcurioso e arguto; e Simplício que, segundo o Santo Oício da Inqui-sição, era uma caricatura do Papa. As posições da Igreja, às vezes

    apresentadas de um modo tão risível que somente um buão comoSimplício poderia acreditar, eram objetadas uma a uma. No finaldo Diálogo não sobrou pedra sobre pedra da doutrina oficial.

    Assim, Galileu perdeu a amizade do Papa e, obviamente, suaproteção. odo o peso da Inquisição recairia sobre ele. Belarmino,aquele que levou Bruno à morte, triunaria novamente. Obrigadoa se retratar, sob pena de sorer as agruras da tortura, Galileu assi-nou um documento que reafirmava o geocentrismo como modelocientífico do universo. Após assinar, ele teria dito: “

    Epur se mouve”

    (“Mas ela se move”). Essa rase tornou-se, através dos tempos, umemblema da resistência do cientista aos ditames ideológicos queimpediriam o crescimento do conhecimento.

    Galileu não chegou a ser condenado à morte, como Bruno,mas passou o fim de sua vida em prisão domiciliar. Contudo suasidéias, longe de serem aprisionadas junto com ele, chegaram aosquatro cantos da Europa, principalmente na Inglaterra, com SirIsaac Newton. Mas isso já é uma outra estória. Por enquanto, bas-

    ta levar tudo isso em conta para entender como era viver numaépoca iclonoclástica como a Renascença, em que antigas idéiase pressupostos oram questionadas e pouco a pouco substituídaspor outras. Há uma sensação de falta de solo, de incerteza quantoàs verdades a serem aceitas e, ao mesmo tempo, a sensação de an-siedade pelo que há de vir.

    Bom, mas as transormações não estavam restritas à ciência ou,mais extamente, à astronomia. Na arte, por exemplo, a revolução

    renascentista também se azia presente. Desde a re-introdução daperspectiva no final do século XIV, com El Greco, entre outros,pintores e escultores pouco a pouco extravasaram os limites te-máticos cristãos e retornaram paulatinamente à tradição greco-romana para buscar inspiração. Já não era mais suficiente tentarcapturar a experiência da é e o conluo com o divino, como que-riam os artistas medievais. Chegara o momento de retratar a natu-reza em todos os seus detalhes. Quanto mais próxima do real, mais

    Isaac Newton (1643-1727)É atribuída a ele a autoria da

    teoria física moderna.

    Qualquer estudante francêsdessa época diante dessasnovas idéias poderiafacilmente pensar: “o quegarante que essa é a teoriacorreta? Afinal, tínhamos

    boas razões para acreditar nomodelo aristotélico e agoratemos boas razões paraacreditar que tal teoria estavaerrada e que a heliocêntrica éa correta. Mas o que garanteque não viremos a ter boasrazões para ver que essa teoriatambém estará errada e assim por diante?” 

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    27/143

    D A R ◆

    grandiosa seria a obra de arte. A virtudeestética tornou-se, assim, a reproduçãomais fiel possível da beleza natural.

    Os grandes virtuosos, como Raael

    de Sânzio, o grande Leonardo e Miche-lângelo, entre outros, souberam comoninguém levar essa estratégia às últimasconseqüências.

    . D E...

    Essa eervescência cultural, traumática

    mas edificadora, iconoclasta mas promis-sora, chacoalhava as mentes dos intelec-tuais europeus. E nosso jovem rancêsnão oi excessão. Quer dizer, ele oi simuma grande excessão, mas não somente

    porque reagisse ao velho propondo algo novo; isso muitos estavamazendo. Ele oi excessão porque sua proposta oi tão revolucioná-ria que acabou influenciando gerações de pensadores até chegar

    aos nossos dias. É claro que estou me reerindo a Descartes. Quan-do temos contato com suas obras pela primeira vez, pensamos queele passava o tempo todo trancado num quarto, estudando, so-nhando e coisas assim. Mas a Europa de sua época era, para ele,um grande parque temático a ser explorado. Após receber umaeducação tradicional no Colégio Jesuíta em La Flèche, de 1604 a1614, Descartes resolveu viajar pela Europa. Ele vai para Holandae se alista no exército do príncipe Maurício de Nassau. Em 1619se coloca a serviço do Duque da Baviera. Entre 1629 e 1649 vive

    na Holanda e decide publicar três pequenos resumos de sua obracientífica: a Dióptrica, os Meteoros e a Geometria. O preácio des-ses resumos ficou conhecido como o Discurso do Método. Em 1641publica as Meditações, sua obra prima, juntamente com algumasobjeções elaboradas por alguns de seus principais interlocutores,como Hobbes e Gassendi, assim como as suas respostas a essas ob- jeções. Em 1644 publica a importante obra Princípios de Filosofia,que complementa vários pontos importantes das Meditações.

    Muchelângelo Buonarrotti. A Pietá, século XV. Escultura emmármore, 174 cm por 69 cm. Representa Jesus morto nos braçosda Virgem. Embora a imagem faça referência a um tema bíblico,seu estilo artístico, típico do momento histórico, cultural efilosófico em que se encontrava, é marcado pela busca do retratomais fiel da natureza: nesse caso, os corpos e as expressão dossentimentos neles.

    René Descartes (1596-1650)

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    28/143

    ◆ H F III

    Mas embora ele gostasse muito de conhecer lugares e pessoas,seu principal passatempo era mesmo sonhar! Dormia de 10 a 12horas por dia e gostava particularmente dos momentos que nor-malmente antecedem o sono e que se seguem a ele. Acreditava que

    a imaginação nesses momentos ficava mais aguçada e se podia ten-tar então o que, no final do século XIX, Einstein iria chamar de ge-danken Experiment   (experimento imaginário). Nesses momentosele procurava respostas para as seguintes questões: “como seria seeu osse a única coisa que existisse no mundo? E se tudo isso queeu vejo e constato como sendo o mundo exterior não passasse deum grande sonho?” Questões como essas, e tantas outras que eleormulou, iriam povoar as mentes dos filósoos durante séculos.

    Agora imagine seu colega Descartes, com uma mente privilegia-da, já com uma educação ormal e religiosa, e com uma imagina-ção extremamente értil, diante de um mundo em ebulição, comoera a Europa de seu tempo. As velhas idéias, ainda em voga, eramdeendidas pelos intelectuais da Igreja, que detinham o poder polí-tico necessário não apenas para preservar os dogmas vigentes, mastambém para combater as idéias e teorias que desafiassem essesdogmas. Mas as novas observações científicas, o advento da as-tronomia copernicana, os cálculos de Kepler e os experimentos e

    observações de Galileu haviam estremecido os alicerces de muitosdos dogmas da época. O pensamento aristotélico, que dava susten-ção a eles, apresentava explicações que já não eram mais satisató-rias e que via de regra eram contraditas pelos atos.

    ratava-se, então, de reexaminar todo o conhecimento preexis-tente, aquele conhecimento que ele adquirira dos doutos para de-terminar se ainda era possível estabelecer verdades a partir dele.Se isso não osse o caso, quer dizer, se não osse possível reabilitar

    Aristóteles, então dever-se-ia edificar um novo corpo de conheci-mentos, dos escombros do ediício aristotélico.

    Mas como realizar essa tarea? Questionar crenças e idéias bemestabelecidas requer atenção, cautela e vigilância extrema, pois seestá lidando com pensamentos bastante arraigados. Para você en-tender melhor a dificuldade aqui, pense numa pessoa que sempre viveu numa cultura dierente da nossa, por exemplo, um mongebudista. Embora suas crenças sejam bem dierentes das nossas, a

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    29/143

    D A R ◆

    relação que ele tem com elas é bem parecida com a realação queestabelecemos com nossas próprias crenças. Deixemos de lado ascrenças mais básicas, que são iguais em todos os seres humanosporque, entre outras coisas, salvaguardam nossa sobrevivência,como “ogo queima”, “pular de um precipício normalmente trazconseqüências mortais” etc. Pense nas crenças mais básicas domonge, como a idéia de que a meditação e a concentração te leva-rão a um estado de conluo com o resto do universo – que ele cha-ma de Nirvana. Essa crença está tão arraigada nele, isto é, ele temtanta certeza de que ela é o caso, que duvidar dela seria algo queele ou jamais aria ou jamais conseguiria azer. Seria como esperarque um católico duvidasse que Jesus osse filho de Deus, ou de ummuçulmano que Maomé osse o maior dos proetas.

    Não devia ser ácil para os europeus dessa época começar a ouvircoisas do tipo “este é apenas um dos muitos mundos que existem”(Bruno), “o Sol é o centro do universo” (Copérnico), “corpos dedierentes pesos chegam ao chão praticamente ao mesmo tempo”(Galileu), “os planetas giram ao redor do Sol descrevendo uma tra- jetória não circular, mas elíptica” (Kepler) etc. udo aquilo que vocêacredita mais firmemente estaria se desmorando na sua rente.

    Descartes sabia que, para realizar um exame das idéias preesta-

    belecidas, este deveria, por todos os motivos apresentados acima,ser completo, sistemático e extremamente minucioso. Para darconta desse problema, Descartes concebe, nas  Meditações, o mé-todo da dúvida. Em poucas palavras, trata-se de duvidar de todasas crenças, mesmo aquelas mais arraigadas em nós. Refiro-me tan-to às crenças dos outos quanto às crenças aparentemente menosproblemáticas.

    “Inicialmente, devo duvidar das percepções que tenho.” Aris-

    tóteles nos ensina que a observação é undamental no estudo danatureza. Mas quantas vezes já nos enganamos pensando que umediício distante era de uma orma mas, ao nos aproximarmosdele, verificamos que ele posui uma orma bem dierente? udobem, mas não posso duvidar das percepções dos objetos bem pró-ximos de mim. Não posso duvidar de que estou aqui neste exatomomento escrevendo estas mal traçadas linhas no meu compu-tador, ou que há um computador, e a mesa onde ele está, e a casa

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    30/143

    ◆ H F III

    onde se encontra a mesa, e assim por diante. Bom, de ato, eu pos-so sim duvidar de tudo isso. Eu posso imaginar, ou mesmo fingir,que tudo isso que eu esteja percebendo seja ruto de um sonho. Jásonhei tantos sonhos vívidos, sonhos nos quais tinha certeza deestar já acordado.

    Esta situação é bem ilustrada no filme Matrix . Neo, o persona-gem principal deste filme, tem a mais absoluta certeza de que vivenum mundo de mesas, computadores, ediícios, pessoas etc. Esseé exatamente o mundo em que vivemos. Mas no filme a realidadedentro da qual Neo e milhões de outros seres humanos vivem éum sofisticado programa de computador ligado ao seu cérebropor meio de fios elétricos. Quando Neo desperta desse pesadelo e acorda dentro de uma nave, ele se encontra numa situação bem

    parecida com a que Descartes imaginou: quais são minhas razõespara acreditar que aquilo que entendo por real é, de ato, real,ou mesmo que as coisas no mundo existem da maneira como aspercebo e as sinto? Como distinguir o sono da vigília, a realidadeda ilusão?

    Essas indagações nos mostram que os sentidos não são, paraDescartes, uma fonte segura de conhecimento. Eles às vezesnos enganam. Não é sempre, claro. Mas se precisamos de alicer-

    ces inabaláveis, não devemos confiar naquilo que já nos enganouuma vez.

    Cena do filme Matrix em que o personagem Neo sai do casulo, local onde era mantido numa realidade virtual poreletrodos que sugavam-lhe energia.

    Uma boa descrição da estóriacontada neste filme encontra-se presente em: http://  pt.wikipedia.org/wiki/Matrix Acessado em: 21/11/2008.

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    31/143

    D A R ◆

    Portanto, para termos sucesso em nossa tarea mais geral de re-construir o conhecimento, precisamos nos distanciar dos sentidos.

    Deste modo, Descartes considera, a essa altura, a nossa crençanas verdades matemáticas. Mas até isso deve ser posto em dúvida?

    Descartes estaria nos convidando a duvidar que 2 + 2 = 4? Issoparece um absurdo. Mas lembre-se que a estratégia é duvidar atémesmo das crenças mais estabelecidas. A certeza sobre o resulta-do da soma de 2 + 2 é, para nós, tão inquestionável quanto a crençano Nirvana, para o monge budista. Ora, é exatamente por isso,pela sua aparência de certeza indiscutível, que as supostas verda-des matemáticas devem ser postas sob o crivo da dúvida.

    Descartes se dá conta de que o resultado da soma de 2 + 2 é

    4 seja no sonho, seja na vigília. Assim, ao que parece, as verda-des matemáticas resistem ao argumento do sonho. Mesmo se eusupuser que estou sonhando neste exato momento, mesmo se euestiver, na verdade, deitado na cama em sono R.E.M. e, portanto, apercepção de eu estar olhando o monitor do computador, enquan-to escrevo esta linha, não passa de uma ilusão; mesmo assim, as verdades matemáticas permanecem intocadas pela dúvida.

    Será que agora conseguimos um alicerce inabalável? Será que a

    matemática constitui-se na base de sustentação do novo ediíciodo conhecimento? Pense novamente no filme Matrix . O que Neoantes pensava ser o real é, na verdade, um programa de computa-dor, criado por uma máquina tão sofisticada, uma máquina quealimentou seu cérebro com tantas e detalhadas inormações, queNeo se encontra totalmente alheio ao que quer que não seja partedo conjunto desse mundo virtual. Mas todas as inormações, semexceção, oram orjadas, inventadas, para iludir Neo.

    Bom, agora considere novamente o ponto em que Descartes pa-rou. As verdades matemáticas são supostamente inabaláveis, masnão seria possível imaginar que estejamos numa situação bemsimilar àquela de Neo? É pelo menos logicamente plausível suporque tudo que sabemos, tudo mesmo, tenha sido impresso em nos-sas mentes por alguém ou algum a coisa. Descartes, obviamente,não imaginava um cenário tão complexo e tecnológico como o de

     Matrix , mas ele recorreu ao ente que mais se aproximaria de pode-

     Afinal, crenças tão bemestabelecidas, como a

    astronomia aristotélica até aépoca de Decartes, se mostram

    equivocadas. Então, por quenão duvidar da matemática

    desenvolvida até então? 

    R.E.M

    É a fase do sono na qualocorrem, segundo a visãocientifica, os sonhos mais

    vívidos. Durante estafase, os olhos movem-se

    rapidamente e a atividade

    cerebral é similar àquela quese passa nas horas em que se

    está acordado.

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    32/143

    ◆ H F III

    roso a ponto de manipular sua mente, a saber, Deus. Será que Deusnão teria me enganado a ponto de me azer acreditar em verdadesaparentemente sólidas como as matemáticas? Será que, em todoseu poder e esplendor, Deus não estaria me enganando, e que, na

     verdade, 2 + 2 não é 4? Afinal, tanta certeza a respeito disso podeter sido introduzida em minha mente por um Deus Enganador.

    Mas um Deus como o que usualmente concebemos é sumamen-te bom. Ele não pode ser pensado como enganador. Mas algumaentidade desprovida da benevolência divina poderia ser pensadanesse momento. Descartes a chama de  gênio maligno, ou um ser“que emprega toda sua indústria em enganar-me”. É claro que esseé um artiício metodológico inventado por Descartes para ortale-cer, ou melhor, para radicalizar a dúvida. Mas por que radicalizá-la? Ora, quanto mais orte ela or, mais certeza teremos daquilo queresistir e sobreviver a ela. Ao mesmo tempo, quanto mais abran-gente or sua aplicação, mais completa será nossa busca de um ali-cerce inabalável para o conhecimento. Além disso, a idéia de umgênio maligno, dierentemente da idéia de um Deus Enganador,serve para acilitar o processo de internalização e intermitência dadúvida, impedindo-nos de nos desviarmos ou nos distrairmos denossas reflexões críticas acerca das crenças preestabelecideas.

    Isso posto, devemos, a convite de Descartes, duvidar até mes-mo das crenças mais comuns, por exemplo, a crença de que existeum mundo ora dos meus pensamentos, ou a crença de que eumesmo existo. Você poderia reagir dizendo que seria ridículo secolocar tais dúvidas. Como duvidar dessas coisas tão claramente verdadeiras? Como posso duvidar de que estou aqui, agora, lendoeste livro-texto de História da Filosofia III? Como posso duvidarda existência deste livro-texto, ou da cadeira onde estou sentado,

    e coisas assim? E como se não bastasse, como duvidar da minhaprópria existência? Descartes nos adverte para o ato de que essadúvida não passa de um fingimento. É claro que não se trata deduvidar sinceramente de tudo isso; trata-se de colocar essa dúvidaa fim de, a partir dela, produzir explicações que resistam à dú-

     vida metódica.

    Será que eu existo? Esta é a pergunta de Descartes a si mes-mo nesse momento. Aqui, estamos diante de algumas das mais

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    33/143

    D A R ◆

    importantes reflexões da História da Filosofia. A pergunta podeparecer estranha, mas os recursos teóricos a serem introduzidospara oerecer a ela uma resposta apropriada e bem undamentadainstituirão uma nova maneira de azer Filosofia. A dúvida sobre a

    própria existência é dirimida por meio da amosa assertiva: cogito,ergo sum, ou “penso, logo existo”. al oi a maneira por ele escolhi-da no Discurso do Método para se reerir ao ato mesmo de duvidarque, ao ser realizado, torna-se a evidência incontestável da existên-cia daquele que a possui. Mais tarde, nas Meditações, ele apresentauma órmula revisitada do “penso, logo existo”, a saber, “eu sou, euexisto”, um pensamento que é “necessarimante verdadeiro sempreque eu o conceber em minha mente”.

    É bem provável que Descartes quisesse evitar a aparência deuma dedução lógica com a primeira ormulação. A primeira cer-teza, a certeza do Cogito, tem que ser uma intuição e não umadedução. É equivocado pensar que a existência é inferida, comonuma conclusão de uma prova lógica, a partir da constatação doato de pensar. Descartes não quer que a prova de sua existência sejarealizada por meio de um raciocínio dedutivo porque esse tipo deraciocínio, conorme você viu em Lógica I, unciona da seguintemaneira: de duas premissas, se deduz uma conclusão. A conclusão

    é verdadeira se as duas premissas também o são. Porém “penso,logo existo” é uma única verdade para Descartes. Ele consegue jus-tamente provar que existe por pensar, não porque seu pensamentoleve a um raciocínio que prove sua existência, mas porque o ato de

     pensar em si prova sua existência.

    O filósoo Hintikka sugere uma interpretação perormativa doCogito cartesiano. Como o ator numa peça, é a atuação da dúvida,ou de qualquer outro pensamento, que se apresenta como evidên-

    cia da existência. Assim, para Hintikka, mesmo o pensamento danão-existência prova a existência.

     Em outras palavras, a proposição “eu não existo” é auto-des-

    trutiva. Dizer isso é provar o contrário do que está sendo dito. O

    mesmo se aplica à proposição “eu não estou pensando neste mo-

    mento”; ela é evidência a mim indubitável de que estou pensando

    neste momento.

     Assim, o “ logo” da expressão“penso logo existo” nãodeve ser tomado como

    um conectivo que liga oque vem antes dele ao que

    vem depois de modo ademonstrar que a segunda

    é conseqüência da primeira.

     Abaixo há a apresentaçãoda interpretação de Hintikka,

    que te dará um exemplo decomo conseguir interpretar

    essa famosa frase deDescartes de modo a manter

    seu sistema filosófico coeso.

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    34/143

    ◆ H F III

    Você pode objetar que não é suficiente produzir uma evidênciaindubitável que valha apenas para mim. Contudo, lembre-se que,por enquanto, todas as outras coisas, o mundo, as pessoas, ou seja,tudo aquilo que não sou eu, está ainda sob júdice, quer dizer, está

    sendo atacado pela dúvida hiperbólica. A evidência do Cogito é,portanto, introspectiva. O mundo pode não existir, as coisas po-dem ser apenas ruto de uma grande alucinação produzida por umgênio maligno ou um cientista louco, mas embora isso possa serassim, eu tenho a mais plena certeza de que sou “todas as vezesque penso alguma coisa” (Meditação Segunda). Na saga Matrix ,a realidade que Neo conhece é uma mera ilusão; ela não passa deum sofisticado programa de computador. Apesar disso, Neo sabeque existe, embora possa não existir com o corpo que pensa ser

    dele (se é que há um corpo...), na cidade em que nasceu, no paísem que vive. Ele sabe que existe porque essa certeza é introspec-tiva; ela não depende da existência ou não do mundo exterior. Asincertezas quanto à existência e as características da realidade domundo permanecem. A introspecção se sobressai, sobrevivendoao ataque da dúvida hiperbólica.

    Mas será que Descartes teve mesmo provas de sua própria exis-tência? Embora os intérpretes não se ponham de acordo quanto à

    estrutura, à coerência interna e à eficácia da prova, há certa con-cordância com respeito ao caráter conciso e reticente das  Medi-tações. Nesse sentido, é necessário procurar em outras obras deDescartes, principalmente nos Princípios de Filosofia, as premis-sas que, por algum motivo, não são claramente apresentadas nas

     Meditações.

    Observe a seguinte passagem dos Princípios:

     Há que se notar algo que é bem conhecido pela luz natural: o nada não

    tem atributos ou qualidades. Disso se segue que, sempre que encon-

    trarmos atributos ou qualidades, deverá necessariamente haver alguma

    coisa ou substância a ser encontrada e a qual elas pertencem”. (DESCAR-

     TES, René - Princípios da Filosofia. Lisboa. Edições 70. Parte I, nº 11)

    E, mais adiante, ele complementa:

    O nada não possui atributos, isto é, ele não possui nenhuma propriedade

    ou qualidade. Portanto, se percebemos a presença de algum atributo,

    Não estejam de acordo sobrese é um argumento dedutivoou indutivo o seguinteargumento: penso, logo existo.

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    35/143

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    36/143

    ◆ H F III

    Bom, por enquanto, temos o seguinte: o nada não tem pro-

    priedades. Ao se perceber uma propriedade, pode-se inferir que

    há uma substância dando-lhe sustentação. O pensamento é uma

    propriedade. Isso quer dizer que, ao se detectar um pensamento,

    deve haver uma substância servindo-lhe de suporte. Ora, há um

    pensamento, qual seja, “duvido”. Portanto, deve haver uma subs-

    tância a qual essa dúvida pertence: EU.

    Vocês devem ter notado uma aparente contradição por parte deDescartes no que até agora oi dito. Por um lado, ele evita a todocusto mostrar o Cogito como resultante de uma inerência lógica.Esse talvez seja um dos motivos pelos quais ele alterou a ormula-

    ção “penso, logo existo”, encontrada no Discurso do Método, para“eu sou, eu existo”, encontrada nas  Meditações. No entanto, nosPrincípios, ele se reere a uma inerência do atributo encontradopara a substância que o contém. Como resolver esse dilema? Creioser possível desatar esse aparente nó levando em conta as estraté-

     gias de cada uma dessas obras. 

    Nas  Meditações, Descartes preere uma abordagem em soliló-quio, isto é, em primeira pessoa, pois ele pretende apresentar suas

    reflexões tais como elas ocorreram em sua mente. Nos Princípios,porém, a abordagem é acadêmica e não conessional: trata-se deexplicar os pressupostos e os conceitos undamentais da sua filo-sofia. Assim, a prova da existência oi realizada mediante intuição,ou seja, aquela reflexão que já apresenta a verdade à luz naturalda razão. Assim, não tenho dúvidas de que a leitura de Hintikkase ajusta pereitamente às intenções de Descartes nesse momento.Mas há uma reflexão sobre a reflexão realizada em primeira pes-soa, que visa esclarecer quaisquer obscuridades que se nos apre-sentem. Nela, adotamos a dedução, que nos leva, passo a passo,conceito a conceito, em direção à verdade.

    A descoberta da primeira certeza, a chamada certeza do Cogito,é o primeiro passo em direção à reedificação do conhecimento.Descartes sabe que deve proceder passo a passo, num processoem que cada peça do jogo, cada parte do conhecimento, é colo-cada no lugar certo. Mais ainda, cada peça colocada deverá servir

    Dependendo da obracartesiana considerada,a prova da existência deDescartes ou segue a estruturade um argumento dedutivo

    ou de um argumento indutivo(intuição).

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    37/143

    D A R ◆

    de alavanca para que se possa descobrir as de-mais. Descartes chama esse processo de “or-dem das razões”. Ora, se a primeira certeza iráme ornecer outras certezas, ou melhor, todas

    as demais certezas com as quais irei construiro conhecimento, então ela é undamental,e suas características estarão indiretamentepresentes em todas as outras certezas a seremdescobertas. Mais exatamente, o conhecimen-to construído por Descartes será necessaria-mente proveniente do sujeito, de vez que a pri-meira certeza é aquela da existência do EU. Oque quer que eu descubra daqui em diante,

    até mesmo a certeza da existência dos obje-tos materiais, será uma descoberta derivada

    do Cogito. Assim sendo, a estratégia de Descartes é a de retirar acerteza do mundo a partir da certeza do sujeito do conhecimento.Por isso, sua filosofia é chamada de idealista: o mundo será consi-derado do ponto de vista do sujeito do conhecimento. A naturezado real, em última instância, se funda em idéias, percepções e

    outros produtos da consciência. Em consequência disso, para o

    filósoo idealista, a realidade deve ser considerada como insepa-rável da consciência: é impossível conceber a primeira sem a se-gunda, de modo que há uma dependência (de nossa concepção)do real em relação à nossa consciência. Veremos no capítulo 2como Kant subverte essa ordem cartesiana, apresentando um ar-gumento no qual a certeza da existência do mundo exterior é con-dição de possibilidade da autoconsciência. O idealismo de Kant,portanto, será bem dierente do idealismo cartesiano.

    Mas voltemos a Descartes e à sua ordem das razões. Até agora,Descartes tem já uma certeza, a da própria existência. Sei que sou;contudo, não sei o que sou. O que penso ser? Nesse momento,Descartes utiliza novamete a erramenta da dúvida para analisarsuas crenças sobre si mesmo. Se elas sobreviverem à dúvida, entãoDescartes poderá responder à pergunta: “o que sou?” enho con- vicção que sou um homem, com um rosto, com mãos, braços, istoé, um corpo. E sou também uma coisa que se move, que se alimen-

    Para Decartes, o método que deve ser utilizado para seobter o conhecimento de algo é aquele cujas partes,como num jogo de quebra-cabeça, se interdependem; aspartes desse método dão sustentação umas às outras demodo que, na medida em que uma é colocada, ela mostra

    o local que outra parte desse todo deve ocupar e assimsucessivamente até formar o todo.

    Resta ainda a Descartes

     provar se essas idéias podemultrapassar o Eu, se posso ter

    mais alguma idéia que eu possa provar como verdadeiraa não ser apenas a idéia do Eu.

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    38/143

    ◆ H F III

    ta, que sente e que pensa. Estas últimas crenças são atribuídas àminha alma. Será que posso dizer que sou um homem? Descartesnão aceita essa definição, pois certamente ele tem em mente a de-finição aristotélica de homem como “animal racional”.

    Mas que é um homem? Direi que é um animal racional? Certamente

    não: pois seria necessário em seguida pesquisar o que é animal e o que

    é racional e assim, de uma só questão, cairíamos insensivelmente numa

    infinidade de outras mais difíceis e embaraçosas, e eu não quereria abu-

    sar do pouco tempo e lazer que me resta empregando-o em deslindar

    semelhantes sutilezas. (Meditação Segunda)

    O que dizer das demais? Ora, a dúvida hiperbólica colocou emdúvida a existência de todos os objetos materiais, incluindo meu

    corpo. Portanto, por enquanto, não posso asseverar com certezaque sou um homem com um rosto, mãos, braços, etc. O mesmo vale para o movimento e a alimentação, atividades diretamente li-gadas ao corpo. Ao mesmo tempo, o sentir depende do corpo; por-tanto, não posso com certeza afirmar que sou uma coisa que sente.

    Em contrapartida, é possível afirmar que eu seja uma coisa quepensa, pois não preciso do corpo para realizar as ações de pensar.“[S]ó ele”, afirma Descartes,

    é inseparável de mim... se eu deixasse de pensar, deixaria ao mesmotempo de ser ou de existir... nada sou, pois, falando precisamente, se-

    não uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um entendimento ou uma

    razão... Ora, eu sou uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente;

    mas que coisa? Já o disse: uma coisa que pensa. (ibid.)

    Essa é, assim, a segunda certeza na ordem das razões: eu souuma coisa que pensa. A coisa que pensa, o eu, é uma coisa quepensa duvidar, pensa sentir, pensa ver, e assim por diante (c.Ibid.). São esses os atributos da alma. No entanto, Descartes se dáconta de que, aparentemente, aquilo que oi mostrado como cer-to não parece tão claro e distinto quanto a percepção das coisasmateriais que, entretanto, ainda permanecem sub judice. Sendoassim, sua intenção neste momento é mostrar que a percepçãodos objetos materiais é apenas aparentemente mais ácil, ou clarae distintamente concebida. Para tanto, ele recorre ao exemplo dopedaço de cera:

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    39/143

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    40/143

    ◆ H F III

      Vale notar, porém, que os objetos materiais, até agora, aindaestão sob o ogo cerrado da dúvida hiperbólica, de modo que, em-bora Descartes tenha determinado que a extensão seja a qualidadedefinidora deles, a existência do mundo e seu mobiliário ainda se

    configura como um problema a resolver. Essa dúvida só será dissi-pada na Meditação VI , em que também se apresenta a solução doargumento do sonho.

    Vamos nos deter, a partir de agora, nos principais pontos dessaparte final das Meditações, a fim de aproundar as raízes do dua-lismo de Descartes e, em consequência disso, a gênese de muitosproblemas filosóficos que ainda nos ocupam no mundo contem-porâneo. Isso porque o dualismo é uma das doutrinas mais in-fluentes no pensamento moderno e contemporâneo. Na episte-mologia, o dualismo se opõe ao monismo, ou a doutrina filosóficasegundo a qual só há uma substância no universo. Os mais impor-tantes monistas são os materialistas, que advogam que só a maté-ria existe. A alma, ou a suposta substância imaterial, não existe, eo discurso sobre ela tem o mesmo status dos contos de adas. Nafilosofia da mente, o dualismo está presente nas discussões sobrea relação entre mente e corpo. Hoje em dia, os uncionalistas sãoos representantes mais recentes dos materialistas; os  epienome-

    nalistas e dualistas de atributo são os representantes mais recentesdos dualistas. odos esses debates contemporâneos têm sua raiznas Meditações. Para mostrar isso, apresentarei a seguir alguns co-mentários da Meditação VI. As certezas contidas na última partedas  Meditações  terão consequências filosóficas que ainda ecoamna filosofia ocidental.

    Vamos, pois, à Meditação VI . Você se lembra da ordem das ra-zões, então é claro que a prova da existência dos objetos materiais

    estará ligada a certezas descobertas nas meditações anteriores.Dessas, as mais importantes para entender o argumento de Des-cartes neste momento são: a certeza do Cogito na Meditação II , asprovas da existência de Deus na Meditação III  e na Meditação V ,a clareza e distinção como critério para a partição do verdadeiro edo also na Meditação IV  e a prova da distinção real entre a men-te e o corpo no início da  Meditação VI . Com esses ingredientes,as premissas da prova da existência dos objetos materiais é como

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    41/143

    D A R ◆

    se segue. É inegável que tenho experiências dos objetos materiais.Resta saber qual a causa dessas experiências. Pode ser que seja eumesmo, imaginando ver na minha rente o monitor do computa-dor em que estou escrevendo neste momento. No entanto, já oi

    mostrado que a minha essência é o pensamento (ou a dúvida, acrença, o sentimento etc). Isso quer dizer que, enquanto puro pen-samento, a única coisa que posso  produzir  é o pensar; as expe-riências sensórias são diferentes do pensar; portanto, não possoconceber que eu seja a causa das minhas experiências sensórias.Poder-se-ia pensar que houvesse um modo da minha vontade, eportanto eu mesmo, produzir essas experiências. Ocorre que asexperiências sensórias me são dadas independentemente da mi-nha vontade. Eu não aço surgir a curva que está na minha rente

    quando estou dirigindo, ou o corte de energia elétrica quando es-tou usando meu computador, ou uma situação adversa que se meaparece e me az sentir sem orças para reagir a ela. A minha von-tade, portanto, não pode ser considerada como causa das minhasexperiências sensórias.

    O segundo candidato à causa das minhas experiências dos ob- jetos materiais seriam os próprios objetos materiais e, se assim or,então eles devem existir; ou, finalmente, o último candidato pode-

    ria ser o próprio Deus. O desecho do argumento apontará para a validade do segundo candidato. Para tanto, Descartes recorre a umprincípio que ele já usara na Meditação III , a saber, que deve haverao menos tanta realidade na causa eficiente e total quanto no seu

    efeito; “pois de onde”, pergunta Descartes, “que o eeito pode tirarsua realidade senão de sua causa? E como poderia esta causa lhecomunicar se não a tivesse em si mesma?” ( Meditação III ). Ora,a causa das minhas experiências sensórias não pode ser Deus ouqualquer outra substância que não os próprios objetos materiais.Deus me deu orte inclinação a acreditar que as experiências des-ses objetos são verídicas.

    Deus não é enganador, pois ele é sumamente bom. Logo, se ele

    me pôs essa inclinação e não me engana, então os objetos mate-

    riais existem

    Esse argumento é aquele: osatributos só existem porque

    existe uma substância.Lembre-se do exemplo da cera

    de Descartes. Conforme vocêverá abaixo, essa substância,

    segundo Descartes, deve existirmesmo, não é um atributo

    de um gênio enganador. Isso porque tal autor pensa ter

     provado a existência de Deus.

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    42/143

    ◆ H F III

    Essa prova, obviamente, não é isenta de críticas. Leibniz, porexemplo, adverte que Deus poderia ter boas razões para nos en-

     ganar acerca da existência dos objetos materiais. É plausível pen-sar que ele o aça em nosso beneício, como é o caso de vários ma-

    leícios que ele permite ocorrer. Essa crítica nos permite apontaroutro problema na prova: ela se baseia totalmente no ato, paraDescartes incontestável, de que Deus existe. Suas provas com res-peito a isso, apresentadas na  Meditação III  e na Meditação V , di-ficilmente podem ser consideradas satisatórias. Se assim é, entãoparece que o gênio maligno, à espreita desde a Meditação I , aindanão oi neutralizado!

    Mas por que, então, é importante ainda hoje ler Descartes? Bom,basicamente porque, ao tentar apresentar soluções aos problemasque ele encontra, novos problemas e novas soluções são suscitadas,enriquecendo o universo do debate filosófico. O exemplo mais cla-ro disso é o problema da suposta interação entre alma (ou, comose preere dizer na filosofia contemporânea, a mente) e corpo. Co-locado de modo simples, trata-se de explicar como uma substân-cia que pensa e que é, portanto, essencialmente dierente de umasubstância extensa, pode no entanto interagir com algo extensocomo o corpo de modo a produzir seus pensamentos e suas ações

    no mundo mobiliado de objetos materiais igualmente extensos.Há passagens em que Descartes se reere à união entre essas duas

    substâncias como se dando entre a alma e o corpo como um todo,ou entre a alma e uma parte do corpo. Um exemplo do primeirocaso é a reerência que Descartes az, na Meditação VI , ao ato deque a alma está alojada no corpo, mas não como um piloto em seunavio. Isso parece implicar que alma e corpo ormam uma únicasubstância. Ele chega a se reerir à união substancial entre a alma e

    o corpo. Isso se repete na obra As Paixões da Alma, onde ele afirmaque não se pode dizer que a alma exista numa parte específica docorpo, excluindo as demais (c. DECARES R. Selected Philosophi-cal Writings, traduzido por John Cottingham, Roberto Stoothoff eDugald Murdoch. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.Pg. 229). Por outro lado, no ratado do Homem, escrito antes dasPaixões da Alma, Descartes afirma, numa amosa passagem, que aglândula pineal é a sede da alma (ibid., pg., 106).

    cf. Leibniz, G.W. Monadologyand Other philosophical

    Essays, traduzido e editadopor Paul Schrecker e AnnerMartin Schrecker. New York:Macmillan, 1965.

    Alma e corpo ligados de modo aformar uma única substância

    Numa outra interpretação deDescartes, a alma se ligaria aocorpo através da glândula pineal

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    43/143

    D A R ◆

    Alguns intérpretes procuram deender Descartes, argumentan-do que, se levarmos em conta que a glândula pineal, a partir dasenervações do sistema nervoso, tem contato direto com o corpocomo um todo, então essa afirmação se harmonizaria pereita-

    mente com as passagens anteriormente citadas. De ato, é no mí-nimo plausível que a deesa em questão reabilite Descartes no queconcerne a essa ambiguidade. Contudo, isso ainda não resolveum dilema ainda mais espinhoso, a saber, a questão de como amente está unida ao corpo (ou a parte[s] dele). Melhor dizendo,o que é preciso ainda esclarecer é como uma coisa não extensacomo a alma, que não está no espaço e não tem propriedades espa-ciais, pode estabelecer qualquer tipo de relação com o corpo, queé extenso. A situação fica ainda mais complicada se considerarmos

    que, no universo mecânico de Descartes, os objetos materiais, emcom eles os corpos, interagem entre si por meio da relação causa-eeito. Mas como a mente pode ser pensada como eetivamentese colocando em tal relação com o corpo? De que maneira a almacausaria o corpo, ou viceversa?

    Descartes jamais responde adequadamente a essas questões, e odebate ainda permanece em aberto. Alguns expoentes contempo-râneos da filosofia da mente procuram resolver esse dilema recor-

    rendo a um tipo de dualismo chamado por eles de interacionismodualista: a mente causaria o corpo a partir da ação voluntária. As-sim, eu me detenho antes de escrever estas explicações e vou paracozinha tomar um copo d’água. O corpo, por seu turno, causa amente a partir da percepção sensível: o sinal verde do trânsito geramudanças ísicas no meio ambiente, e os ótons da luz do semáorogeram uma experiência visual em minha mente. Isso, porém, nãoexplica como a causação se dá. Parece que a palavra mente aquipoderia acilmente ser substituída por “cérebro” sem perda totalde significado. E se assim é, então o dualismo deveria ceder lugara algum tipo de monismo materialista, segundo o qual somente amatéria existe no universo. Embora ele negue o rótulo de materia-lista, John Searle tem deendido nas últimas décadas que “a menteé o que o cérebro faz”.

    De qualquer orma, temos aqui os ingredientes de uma longatradição de discussão acerca da natureza humana, que visa não

    Qual é a relação que o cérebropossui com a mente? Isto é, querelação o corpo possui com aalma?

    Cf. Searle, J. The Rediscoveryof the Mind . Cambridge (Ms.):

    The MIT Press,1994.)

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    44/143

    ◆ H F III

    apenas responder o que é o ser humano, mas o que significa estarconsciente de algo, ou ser inteligente, percipiente etc. Embora nãonos preocupemos com essas questões em nosso cotidiano, a filo-sofia ainda tem algo a contribuir às chamadas “ciências cognitivas”

    no esclarecimento de conceitos-chaves para uma compreensãomais aproundada do que significa ser humano.

    Mas antes de passarmos para o próximo capítulo, altou aindaexplicitar o argumento de Descartes que dissipa por completo, se-gundo ele, o argumento do sonho. Nossa memória, diz ele,

    não pode jamais ligar e juntar nossos sonhos uns com os outros e com

    toda a sequência de nossa vida, (...) se alguém (...) me aparecesse de sú-

    bito e desaparecesse da mesma maneira, como fazem as imagens que

    vejo ao dormir, (...) não seria sem razão que eu consideraria mais umespectro ou um fantasma formado no meu cérebro (...) Pois, do fato de

    que Deus não é enganador, segue-se necessariamente que nisso não

    sou enganado.

    Descartes recorre à constância e à coerência das nossas me-mórias para estabelecer o critério de distinção entre o sono ea vigília. Os sonhos apresentam percepções ugidias de supostosobjetos que surgem e desaparecem num instante. A vigília, por seuturno, apresenta objetos se comportando de modo mais coerente,contendo duração e sequência coerentes, isto é, conorme as leis

    Penso,

    logo existo

    Eu sou uma

    coisa pensante

    Deus existe

    Deus é bom

    Deus coloca em

    mim a inclinação

    de acreditar que

    objetos exteriores

    existem

    Objetos

    exterioresexistem

    Constância e

    coerência em

    nossa memória

    Conhecimento

    Certezas a que Descartes chegou na sua investigação para determinar o que é verdadeiro. Certezas que, conforme já apontamos,vão dando base uma a outra, formando um quebra-cabeça. Repare que a “coerência e constância”, uma dessas certezas, será oque a física, a química e todas as ciências buscaram provar através de seus princípios (fórmulas).

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    45/143

    D A R ◆

    ísicas de representações do mundo exterior. Mas isso só pode serreerendado, mais uma vez, pela suma bondade e pereição de umDeus que, por possuir tais características, não pode ser enganador.Pois ainda que possa cometer erros, possuo idéias claras e distintas

    para aastar-me deles.Essa aparente solução de Descartes, na verdade, enrenta algu-

    mas dificuldades. Primeiro, não é logicamente impossível pensarnum sonho coerente, ou conorme a constância e a duração daspercepções encontradas na suposta vigília: é pereitamente plausí- vel conceber um sonho coerente e conorme aos padrões das per-cepções que obtemos na vigília. Segundo, a remissão a Deus comobase para a certeza de que não estou sonhando padece dos mes-mos problemas apresentados anteriormente acerca da existênciade Deus. erceiro, também é plausível imaginar uma sucessão desonhos desconectados que por acaso acabam estabelecendo umasérie coerente de percepções, como aquela experienciada na su-posta vigília. No capítulo 3, veremos que o argumento do filósooBerkeley sobre a distinção entre ilusão e realidade em muito seassemelha à idéia de coerência cartesiana das representações.

     Apesar de todas as dificuldades filosóficas, a visão cartesiana

    de uma compreensão unificada da realidade ainda exerce influ-

    ência em filósofos e cientistas.  Sua idéia de que o caminho emdireção à verdade reside na obediência a um método previamentedeterminado tem se constituído numa medida de prudência atéhoje seguida por grande parte dos filósoos. Finalmente, a cons-trução de uma filosofia das certezas subjetivas que se encontramà nossa disposição em solilóquio é praticamente sem precedentesna história da filosofia, e a reação provocada ainda ecoa nas hostesepistemológicas contemporâneas. Quanto à sua teoria da mente,

    tentei mostrar que ela gera mais problemas do que soluciona, massua abordagem e seus argumentos inovadores inauguraram umterreno inédito, ainda explorado nos debates da filosofia com ou-tras áreas do conhecimento humano. Finalmente, sua convicção deque a natureza do mental é substancialmente dierente da naturezado ísico ainda encontra adeptos, azendo com que o dualismo porele construído esteja longe de ser colocado de lado como visão al-ternativa nas discussões da relação entre a mente e o corpo.

     A coerência e a consistênciadevem ser atributos de

    modelos científicos, de nossasidéias sobre o que são ascoisas. Do contrário, tais

    modelos nem conseguiriamser usados para verificar se

    dados empíricos comprovama verdade desses modelos.É por isso, inclusive, que a

    matemática é tão usada pela

    ciência moderna.

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    46/143

    ◆ H F III

    Muito bem. Vimos até agora partes importante da principalobra de Descartes, o undador da filosofia moderna. No próximocapítulo, veremos como Kant, apesar de seguir no caminho dos ra-cionalistas de seu continente, irá divergir em importantes aspectos

    do pensamento de Descartes, apresentando uma versão do idea-lismo e do dualismo de grande influência nos debates posterioresno terreno da teoria do conhecimento, ética, filosofia política e fi-losofia da mente.

    L

    DESCARES, René. O Discurso do Método. Os Pensadores. SãoPaulo: Abril, 1999.

    ______________. Meditações, metafísicas. São Paulo: MartinsFontes, 2000.

    R

    Quais são as características centrais da modernidade.•

    Quais os principais cientistas da revolução cientíica ocorri-•da no início da Era Moderna. Quais suas principais idéias.

    Quais são as etapas seguidas por Descartes no processo de•universalização da dúvida na Meditação Primeira.

    Quais os principais passos da prova da existência de Deus na•Meditação erceira.

    Como Descartes prova a existência dos corpos materiais.•

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    47/143

    ■ C ■

    K F

    T

    Neste capítulo, procurar-se-á especificaros conceitos básicos da filosofia kantiana.Como já oi dito no início deste livro-texto,Kant é um dos filósoos mais importantes damodernidade e de toda a História da Filoso- fia. Suas idéias sintetizaram antigos concei-tos, preparando o terreno para considerações filosóficas indispensáveis para o tratamentode problemas até hoje estudados na Filosofia. Ao mesmo tempo, novas idéias oram por eleintroduzidas, tornando-se parte do jargão fi-losófico que a ele se seguiu. Estudar Kant é,antes de tudo, entender o espírito mesmo daFilosofia Moderna.

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    48/143

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    49/143

    K F T ◆

    . O L M

    Se a Filosofia Moderna teve seu início com Descartes, oi comKant que ela atingiu seu apogeu. Obviamente, há controvérsias a esserespeito. Alguns estudiosos de Hume acreditam que a crítica hume-ana aos conceitos de substância e causalidade – além de suas incur-sões na Ética, na Religião e mesmo na História – traz à luz idéias tãoinovadoras e inspiradoras que, sem ele, certamente não haveria uma

     filosofia transcendental . Embora eu considere haver certo exageronessa afirmação, creio ser igualmente equivocado, ao mesmo tempo,

    desprezar a influência de Hume nas reflexões filosóficas kantianas.O próprio Kant, nos Prolegômenos, conessa que Hume o despertarade seu sono dogmático. Se levarmos em conta que Kant é ruto datradição da metaísica alemã, desde Leibniz, passando por Wolff eMendelsohn, tal desabao, por si mesmo, já nos dá uma indicaçãoda importância de Hume para Kant. Mas só conseguimos entendera verdadeira dimensão desse “despertar” ao nos introduzirmos nosrudimentos da filosofia transcendental de Kant .

    A melhor maneira de azermos isso é acompanharmos as pri-meiras páginas dos preácios à 1a. e à 2a. edições e a Introduçãoda Crítica da Razão Pura. A motivação inicial de Kant é tentarentender por que a Metaísica, antes chamada por Aristóteles de“a rainha das ciências”, acabou chegando ao estado deplorável emque se encontrava na época de Kant. Antes, a metaísica, sentadaem trono, avistava todos os saberes e a estes ornecia princípios epostulados básicos sem os quais nenhuma área do conhecimento

    Imannuel Kant (1724-1804)

    Segundo Kant, denomina-se transcendental todo

    conhecimento que se ocupanão tanto com objetos,

    mas com o nosso modo deconhecê-los.

  • 8/16/2019 Anthony Kenny - Historia da Filosofia III

    50/143

    ◆ H F III

    poderia ser constituída. Contudo, a Metaísica oi se tornando umcampo de batalhas sem fim, um palco de discussões abstratas –que Hume chamava de abstrusas – em que cada filósoo chamavapara si a glória de ter respondido as grandes questões metaísi-

    cas de todos os tempos, tais como “Deus existe?”, “será que somosrealmente livres?”, “será que temos uma alma e, se a resposta orafirmativa, será que ela é realmente imortal?”. Há muitas outrasquestões metaísicas, por exemplo, sobre a essência das coisas. Mascada uma dessas três questões engendra classes de respostas quelevam os