Nietzsche e Arendt

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Cad. Nietzsche, São Paulo, n. 33, p. 301-326, 2013. 301 Entre a memória e a política: Nietzsche e Arendt na atualidade Miguel Angel de Barrenechea Mário José Dias * Resumo: Neste artigo a nossa proposta é pensar, a partir de filosofias tão diversas como as de Nietzsche e Arendt, questões relevantes do campo teórico da memória social, vinculadas à problemática da política na atu- alidade. Para tanto, partimos da tese de que Nietzsche e Arendt, embora não sejam autores vinculados diretamente à memória social, apresentam ideias que podem contribuir de forma fecunda a este campo discursivo. Justifica esta tese a constatação de que os pensadores colocam o problema da memória e do esquecimento no centro de sua reflexão sobre a sociedade e sobre a política. Para nos aproximarmos dessas ideias sobre memória e política em Nietzsche e Arendt, como proposta metodológica nos concen- tramos no estudo daqueles que consideramos os escritos mais importantes de cada um deles – e, respectivamente – nos quais esses conceitos são tematizados de forma lapidar. Em ambos os livros a memória e o esqueci- mento são interpretados, de formas distintas, como fenômenos sociais que surgem num contexto de violência, de coerção. Os filósofos em questão reconhecem que a memória e o esquecimento são processos sociais instaurados com dor e violência. Para eles, o desafio é estudar os processos elaborados pela violência que controla e instaura o poder em diversas configurações sociais, discutindo o papel da memória e do esquecimento nessas configurações societárias. O escopo deste artigo, assim, é indagar como, em pensadores como Nietzsche e Arendt, a memória e a política podem ser interpretados segundo perspectivas que, mesmo partindo de al- gumas noções muito próximas, chegam a conclusões muito diversas. Palavras-chaves: Nietzsche – Arendt – memória – esquecimento – política * Professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]; Doutor em Memória Social/PPGMS (UNIRIO), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected], respectivamente.

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Pensamento político. Poder. Filosofia Política.

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    Entre a memria e a poltica: Nietzsche e Arendt na atualidade

    Entre a memria e a poltica: Nietzsche e Arendt na atualidade

    Miguel Angel de BarrenecheaMrio Jos Dias*

    Resumo: Neste artigo a nossa proposta pensar, a partir de filosofias to diversas como as de Nietzsche e Arendt, questes relevantes do campo terico da memria social, vinculadas problemtica da poltica na atu-alidade. Para tanto, partimos da tese de que Nietzsche e Arendt, embora no sejam autores vinculados diretamente memria social, apresentam ideias que podem contribuir de forma fecunda a este campo discursivo. Justifica esta tese a constatao de que os pensadores colocam o problema da memria e do esquecimento no centro de sua reflexo sobre a sociedade e sobre a poltica. Para nos aproximarmos dessas ideias sobre memria e poltica em Nietzsche e Arendt, como proposta metodolgica nos concen-tramos no estudo daqueles que consideramos os escritos mais importantes de cada um deles e, respectivamente nos quais esses conceitos so tematizados de forma lapidar. Em ambos os livros a memria e o esqueci-mento so interpretados, de formas distintas, como fenmenos sociais que surgem num contexto de violncia, de coero. Os filsofos em questo reconhecem que a memria e o esquecimento so processos sociais instaurados com dor e violncia. Para eles, o desafio estudar os processos elaborados pela violncia que controla e instaura o poder em diversas configuraes sociais, discutindo o papel da memria e do esquecimento nessas configuraes societrias. O escopo deste artigo, assim, indagar como, em pensadores como Nietzsche e Arendt, a memria e a poltica podem ser interpretados segundo perspectivas que, mesmo partindo de al-gumas noes muito prximas, chegam a concluses muito diversas. Palavras-chaves: Nietzsche Arendt memria esquecimento poltica

    * Professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]; Doutor em Memria Social/PPGMS (UNIRIO), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected], respectivamente.

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    Introduo: memria e poltica na contemporaneidade A reflexo sobre a problemtica da memria, principalmente

    desde o sculo passado, ficou no centro de muitos debates teri-cos. Aps a publicao de A memria coletiva (1950), de Maurice Halbwachs, um novo campo do saber ocupa um lugar relevante no debate das cincias sociais, com importantes consequncias ti-cas e polticas1. A abordagem dos processos sociais vinculados a memrias de naes, grupos e indivduos teve um grande desen-volvimento. Questes como identidade ou singularidade de grupos, naes, comunidades comearam a ser discutidas desde ticas muito diferenciadas2.

    A tematizao da memria social, assim como a problemtica do esquecimento foi abordada por diversas reas, desde as artes (literatura, cinema, artes plsticas e outras), cincias (psican-lise, lingustica, neurolingustica, sociologia, antropologia etc.) at a reflexo filosfica que, na contemporaneidade, como Nietzs-che, Bergson, Arendt e outros, preocuparam-se em discutir como se processa a memria e o esquecimento no mbito individual e coletivo. Essa abordagem da questo da memria como processo individual e coletivo esteve no centro de intensas polmicas sobre o que pode e deve ser lembrado ou esquecido nas diversas socieda-des. Por um lado, foi valorizado o resgate das memrias de grupos,

    1 Vejamos como Gondar destaca a relao que h entre as concepes tradicionais da mem-ria, como por exemplo a de Halbwachs, e determinadas posturas ticas e polticas: Pensar a memria como uma reconstruo racional do passado, erigida com base em quadros sociais bem definidos e delimitados, leva-nos a um tipo de posicionamento poltico [...] (GONDAR, J. Quatro proposies sobre memria social. In: DODEBEI, V. (Org.). O que memria social? Rio de Janeiro: ContraCapa, 2005, p. 16.

    2 Ainda, conforme a abordagem de Gondar, para alm das posturas tico-polticas sustentadas pelos primeiros pensadores da memria social, encontramos outros filsofos que pensam a memria sob outras perspectivas, destacando que a memria pode tornar-se resistncia aos poderes institudos: [...] a memria tecida por nossas expectativas diante do devir, conce-bendo-a como um foco de resistncia no seio das relaes de poder, como props Foucault, implica outra tica e outra posio poltica. (Ibid.).

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    comunidades, naes que poderiam estar ameaadas de supresso, apagamento. Com isso se destacou a relevncia de preservar e de revitalizar a memria social. Para tal, foram adotadas numerosas aes e procedimentos, consagrando-se, como afirma Nora, luga-res de memria: arquivos, museus, monumentos etc3.

    No seio dessa valorizao da preservao e da tematizao da memria, avistou-se a importncia poltica de todos os processos de memria. Esses processos j atuam, seja na conservao e preserva-o, na luta pela imposio ou resguardo das memrias coletivas4, ou atravs de mecanismos polticos que pretendem cercear, limitar ou apagar essas memrias. No sculo passado as grandes guerras5, por seu carter transnacional, marcam conflitos e procedimentos terrveis como, por exemplo, as conhecidas prticas totalitrias im-postas pelos nazistas na Segunda Guerra, com a implantao de mecanismos sistemticos de perseguio, destruio e eliminao brbara de judeus, ciganos e outros grupos, considerados despre-zveis pela mquina blica nacional-socialista o que exigiu uma reviso geral das questes da memria e do esquecimento6.

    As sequelas do totalitarismo que tentou apagar ou dissimu-lar um passado de horrores levaram recolocao da questo da memria, do esquecimento e o seu lugar na poltica. O totalita-rismo, com o propsito de estabelecer o domnio total sobre os indivduos7, utilizou-se de instrumentos violentos para aniquilar a memria destes grupos, impondo-lhes o esquecimento de suas prprias existncias, instaurando, dessa forma, o terror no poder

    3 Cf. NORA, P. Entre a memria e a histria: a problemtica dos lugares. In: Projeto Histria, So Paulo, n. 10, dez. 1993.

    4 Pollak um autor que analisa as lutas e conflitos entre diversos grupos pela instaurao e resguardo das suas memrias. (Cf. POLLAK, M. Memria e identidade social. In: Estudos histricos, v. 5, n. 10, p. 200-212, 1992).

    5 Principalmente as conhecidas guerras mundiais: Primeira (1914/1918) e a Segunda (1939/1945).

    6 Cf. NASCIMENTO, A. Uma leitura nietzschiana do filme O trem da vida. In: BARRENECHEA, M. A. (org.). As dobras da memria. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008, p. 115-122.

    7 Cf. ARENDT, H. Origens do totalitarismo. So Paulo: Cia das Letras, 1989.

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    centrado e organizado pela constante utilizao da violncia. As tticas de propaganda totalitrias visaram negar at o direito me-mria desses grupos dizimados. Perante essa tendncia, a memria social ganhou outro estatuto, uma relevncia crucial nas diversas sociedades: o direito a preservar o passado8, o poder reconhecer--se no que j foi, na histria vivida e padecida, que no pode ser manipulada pelos sistemas autocrticos.

    Nesse sentido, a articulao entre poltica e memria ganhou um destaque extraordinrio na contemporaneidade. A filsofa ju-dia Hannah Arendt, vtima do sistema de terror nazista, tornou-se uma testemunha preciosa deste passado terrvel. A sua experincia pessoal a levou tecer profundas reflexes sobre os processos que articulam a memria, o totalitarismo e a violncia nos sistemas que pretendem impor o esquecimento, a anestesia dos grupos vitima-dos. A defesa arendtiana reviso e aperfeioamento da democra-cia se explica por este vis: a garantia de uma memria na poltica como forma de no esquecimento das prticas de violncia utiliza-das pelos regimes totalitrios e o resgate do sentido da poltica que se concretiza na e pela liberdade9.

    Neste artigo, a reflexo arendtiana sobre totalitarismo e demo-cracia, esquecimento, memria social e violncia ser importante para esclarecer as interfaces entre memria social e poltica na atu-alidade. Tambm analisaremos a concepo de outro autor alemo, F. Nietzsche, que no longnquo sculo XIX, desde uma tica e a partir de uma experincia muito diversa da de Arendt, refletiu so-bre os processos sociais que envolvem a produo da memria e do esquecimento. Ele concorda com Arendt na tese de que a violn-cia sempre est presente nos processos que levam produo da

    8 Cf. Idem. Entre o passado e o futuro. So Paulo: Perspectiva, 2005. O conceito de passado aqui proposto se configura como uma herana que nos empurra para frente e no para trs, nos fixando e nos aprisionando as lembranas do que j se foi.

    9 Cf. Idem. Sobre a violncia. So Paulo: Civilizao Brasileira, 2009.

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    memria, mas aborda desde outra tica o estatuto do esquecimento numa poca historicista que cultuava exageradamente o valor da memria e sua ao nas diversas sociedades.

    Contudo, Nietzsche, mesmo criticando, assim como Arendt, a poltica moderna que uniformiza e submete todos os cidados, avalia de forma diversa o estatuto da democracia; ele a questiona e preza por uma sociedade agonstica nos moldes da plis grega. Ve-remos, na sequncia, as diferenciadas interpretaes de Nietzsche e Arendt sobre memria, violncia e sociedade.

    Memria, esquecimento e violncia em Genealogia da moral e Origens do totalitarismo

    A queso da sociedade sempre foi um campo aberto a muitas interpretaes e, portanto, s mais variadas concluses. Pode-se afirmar que isso se deve, principalmente, ao fato de que no h um pensamento capaz de encontrar respostas que possam satis-fazer a todas as necessidades humanas. Qualquer tentativa ho-mogeneizao das aes gera efeitos totalitrios que subordinam e fragilizam o homem. A histria dos grandes movimentos polticos demonstra o quo perniciosa a tentativa de impor sistemas sociais com um pensamento nico, sem espao para o dissenso, para as diferenas10. O objetivo estaria pautado na crena de que a par-tir da adoo desses modelos estaria garantida a prosperidade e o avano de toda a sociedade. Para se alcanar essa finalidade seria necessrio anular as diferenas individuais em prol de um bem

    10 J desde Plato, notadamente em A repblica, existiram diversas tendncias e teorias, que tentaram impor um modelo de cidade ideal, vlida para todo tempo e lugar. Esse mo-delo nico, surgido num laboratrio conceitual, neste caso do dilogo platnico, pretende ser incontestvel, eliminando qualquer questionamento ou desvio da sua pretensa perfeio racional. Cf. PLATO. A repblica. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Calouste Gubelkian, 1996.

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    coletivo maior: a sobrevivncia da prpria sociedade. Esta tem sido a justificativa comum em que se baseia todo movimento revolucio-nrio que almeja gerir os rumos da sociedade11.

    A poltica, mesmo que abordada de forma indireta, na maior parte dos escritos de Nietzsche, constitui um ponto importante a ser considerado, principalmente se levarmos em conta a funo e o papel que ela representa enquanto instrumento e mecanismo de relao entre os homens12. Por outro lado, a poltica tema central nos escritos de Arendt, com especial ateno s formas violentas a que se submetem os agentes polticos para alcanarem o poder em um Estado.

    Ao longo do pensamento ocidental, as frmulas prontas e pr--determinadas incomodaram a esses dois filsofos em pocas di-versas: Nietzsche, no final do sculo XIX, e Arendt, no sculo XX. O olhar crtico e, por vezes, ctico de ambos sobre os rumos da sociedade moderna fez com que parte significativa de suas obras estivesse baseada na crtica a diversas tendncias polticas da mo-dernidade, que pregavam a homogeneizao e uniformizao de todos os cidados.

    Na obra Genealogia da Moral, Nietzsche demonstra que a cul-tura moderna est construda e alicerada sobre uma moral que cerceia, limita e fragiliza o homem. Arendt, por sua vez, admitindo o aprisionamento da memria a uma tradio construda sob es-sas bases, concentra sua crtica modernidade em uma das suas mais graves consequncias: o esquecimento da poltica. O desdo-bramento detalhado deste questionamento encontra-se em sua obra

    11 A pretenso de instaurar uma sociedade perfeita, arquitetada a partir de um pretenso ponto zero das relaes sociais esteve presente, ao longo da filosofia ocidental, em pensa-dores to diversos como Plato, Maquiavel, Rousseau, Hobbes, Hegel, Marx, Engels e outros.

    12 Na etapa final do seu pensamento, notadamente aps a publicao de Para alm de bem e mal, em 1886, Nietzsche outorga grande importncia reflexo sobre poltica, cunhando a controversa noo de grande poltica que ope a todos os sistemas da modernidade, que denomina da pequena poltica, isto , regimes polticos com uma viso restrita da questo social.

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    As origens do totalitarismo, na qual demonstra que o uso da violn-cia e a construo de um Estado burocrtico representam a perda do espao pblico, lugar privilegiado da poltica13.

    Percebe-se que para Nietzsche, a questo no estava centrada no debate sobre as origens da ao poltica, mas nos fundamen-tos de uma moral que enfraquece e torna o homem um animal submisso14, obediente das normas instauradas e justificadas pela tradio. Por sua vez, Arendt, que testemunhou a ascenso de di-versos regimes totalitrios do sculo XX, buscou um caminho que levasse o homem a pensar e realizar aes capazes de vencer a acomodao, a inrcia, a apatia poltica, principalmente aquela instaurada pelo terror.

    Essas concepes diferenciadas, que poderiam significar um abismo terico intransponvel entre os dois pensadores, encontra-ram na anlise de Ansell-Pearson, em Nietzsche como pensador poltico: uma introduo15, um importante ponto de convergncia. Lembremos que a filosofia da ao arendtiana destaca o espao de luta, presente no gon grego16; Nietzsche, em uma perspectiva muito diferente, tambm valoriza o espao agonstico da plis he-lnica. Para Ansell-Pearson, a crtica de ambos os filsofos estava dirigida contra a subordinao da poltica a uma moral de vida contemplativa, herdada da tradio judaico-crist, o que limitaria a insero ativa do indivduo na sociedade. Ainda segundo o comen-tarista, tanto Nietzsche quanto Arendt procuram encontrar um elo

    13 Para Arendt, a burocracia constituda por uma minoria experiente de peritos qualifi-cados cuja funo resistir e comandar os anseios da maioria do povo, que por sua inexpe-rincia no se qualifica para a organizao do Estado. Cf. ARENDT, 1989.

    14 Nietzsche afirma: Supondo que fosse verdadeiro o que agora se cr como verdade, ou seja, que o sentido de toda cultura amestrar o animal de rapina homem, reduzi-lo a um animal manso e civilizado, domstico... (GM/GM I 11, KSA 5.276).

    15 Cf. ANSELL-PEARSON, K.. Nietzsche como pensador poltico: uma introduo. Trad. Mauro Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

    16 Ibid., p. 47.

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    no perodo clssico grego que serviria de ponto de partida para uma crtica ao burguesa da sociedade moderna17.

    O centro da crtica arendtiana consiste na denncia e no ques-tionamento mais severo ao regime totalitrio, que faria desaparecer no cenrio da plis a discusso e o debate poltico. Servindo-se dos instrumentos de violncia, e da burocratizao, esse regime ani-quila o indivduo e fragiliza as suas foras, transformando-o, como afirmara Nietzsche, em um animal de rebanho18. A memria se d na dimenso do social, ultrapassando as convices e cren-as pontuais de determinados grupos para ter uma validade mais abrangente, capaz de influenciar inmeros grupos.

    Ao analisar a memria em Genealogia da moral, Nietzsche chega a descrever a forma violenta em que foi forjada a memria. A sociedade incutiu nos indivduos uma memria, utilizando-se dos instrumentos morais estabelecidos pela tradio que a eleva e enal-tece, em detrimento do esquecimento. O passado precisa ser conser-vado a todo custo e o esquecimento, como quer a tradio, acaba por constituir uma fraqueza e no uma fora, como afirma o filsofo19.

    Para Arendt, por sua vez, o no esquecimento necessrio como uma fora para que o passado poltico, que fundou os esta-dos totalitrios, possa ser banido. A memria assume, nesse caso, uma ao pr-ativa, pois significa o anteparo, o resguardo de to-dos os homens contra qualquer forma de submisso a governo, Es-tado ou nao. preciso alertar que no h, na interpretao de Arendt, uma concepo de memria que impea ou que se oponha

    17 Afirma Ansell-Pearson (Ibid, p. 55): Para ambos, a verdadeira liberdade a que se d no contexto heroico da arena pblica e os dois veem o gon grego como o modelo de tal arena.

    18 importante lembrar da imagem do homem moderno, entendido como animal de rebanho, como mostrado no prlogo de Assim falou Zaratustra, onde o enfraquecido homem da mo-dernidade apresentado como o ltimo homem ou homem da praa do mercado que s almeja comodidades, ainda aceitando a anulao de si mesmo, para sobreviver sob a proteo de um rebanho annimo e impessoal (Cf. Za/ZA, Prlogo, KSA 4.11-28).

    19 Para Nietzsche esquecer uma fora, um sinal de sade forte (GM/GM II 1, KSA 5.292).

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    ao esquecimento, mas um jogo constante de foras e uma necessi-dade de se criar permanentemente novos significados e valores para uma vida afirmativa.

    Com isso possvel levantarmos as seguintes questes: no campo da poltica, enquanto espao de criao e de renovao, qual o papel da memria e do esquecimento? Na perspectiva niet-zschiana presente em O nascimento da tragdia, ele chega a afirmar que Apolo (guardio das formas, da memria dos limites) precisa de Dionsio (instiga ao exagero, embriaguez, ao esquecimento) e vice-versa. (Cf. GT/NT 1, KSA 1.25). Esta luta poderia ser consi-derada, ao mesmo tempo, um ponto de encontro entre a memria e o esquecimento, do qual fala Arendt em sua obra A condio hu-mana, quando aborda a questo poltica situada no entre os espaos pblicos e privados? Este seria o novo espao da gon grega, como resposta crtica da modernidade? Dessa maneira, seria possvel aproximarmos algumas teses de Arendt e Nietzsche na abordagem da memria e do esquecimento?

    Na concepo de Nietzsche, os usos e abusos da memria, construda ao longo de toda a tradio, tornou possvel o surgimento de uma pequena poltica, aquela da qual se vive e se alimenta a sociedade moderna, sempre pronta a massificar e fragilizar o indi-vduo, tal como um rebanho pronto para ouvir e obedecer a voz de seu pastor.20 Esta a condio de vida gregria, ou seja, de uma ne-cessidade natural que o homem tem em se reunir em bandos, onde instigado e treinado para obedecer, como sustenta Nietzsche em Para alm de bem e mal:

    Na medida em que sempre, desde que existem homens, houve tam-bm rebanhos de homens (cls, comunidades, tribos, povos, Estados,

    20 Nietzsche considera que os Estados modernos, dominados por tendncias nacionalistas, deixam de lado a questo europeia, restringindo-se a uma viso mesquinha da poltica, afastada de grandes objetivos transnacionais, isto , descambando na pequena poltica, geri-da por pequenos homens, dominados por um rebanho annimo.

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    Igrejas), e sempre muitos que obedeceram, em relao ao pequeno n-mero dos que mandaram considerando, portanto, que a obe-dincia foi at agora a coisa mais longamente exercitada e cultivada entre os homens, justo supor que via de regra agora inata em cada um a necessidade de obedecer, como uma espcie de conscincia formal que diz: voc deve absolutamente fazer isso, e ab-solutamente se abster daquilo, em suma, voc deve (JGB/BM 199, KSA 5.119, grifo nosso).

    Essa espcie de cultura da obedincia, que acaba por impor normas rgidas com vista a um pressuposto ideal de convivncia, pode tambm ser interpretada como a despotencializao do indi-vduo, expondo-o sua fragilidade em detrimento das suas foras e neutralizando, assim, seus impulsos criativos, tornando-o sempre um refm dos que mandam. Nesse contexto, nasce o sentimento do ressentido, daquele que sempre se sente culpado por no obedecer, por no fazer o que precisa ser feito, por carregar nos ombros o difcil fardo do mundo: no se permitir deixar-se levar pelo esque-cimento das normas impostas, da moral estabelecida21.

    Pode-se, ento, admitir que o jogo de foras encontre seu campo de luta no palco de uma memria que impede o homem, diuturnamente, de no esquecer a sua condio de rebanho e que s se sair vencedor quando se libertar desses grilhes e, enfim, descobrir que a liberdade essa capacidade de transpor barreiras inerentes sua vontade de autossuperao que quer sempre mais fora (Cf. Za/ZA, Da superao de si, KSA 4.145-149). um lan-ar-se definitivamente busca de expanso de impulsos, proposta por Nietzsche e, enfim, encontrar um novo sentido para a poltica, como pretende Arendt.

    21 Em Genealogia da moral, Nietzsche esclarece a psicologia do ressentido, daquele que no pode esquecer que est continuamente impelido a memorizar, a atiar suas lembranas e que deve estar sempre alerta aos ditames da moral. (Cf. GM/GM I 10, KSA 5.270-274).

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    A tica de Nietzsche permitir pensar a poltica como um fluxo de movimento entre a memria e o esquecimento e perceber as nu-anas presentes entre a pequena poltica e a grande poltica como o novo agonismo moderno. Isso levaria a um resgate das potencia-lidades j existentes no indivduo, valorizando a sua fora plstica, enquanto criao e dinmica de alteridade capaz de construir a pluralidade, palco onde a poltica se instaura, conforme a perspec-tiva de Arendt.

    Um tema recorrente desde os primeiros escritos de Nietzsche (1870) consiste, especificamente, na necessidade de interpretar a vida como um constante jogo de foras presentes no homem sin-gular e, portanto, nico. Assim, possvel afirmar que ele per-passado pela dinmica do confronto de impulsos orgnicos, que inaugura uma arena de luta entre tudo aquilo que o fortalece e o fragiliza, exigindo uma constante e ininterrupta resposta afirmativa vida. Essa resposta trafega, entre outras coisas, por uma memria que o prende ao passado, ou ao esquecimento que o lana para um viver livre e espontneo. Isso no significa, entretanto, estabelecer um caminho nico, de respostas fixas e inalterveis, mas um fluxo de movimento capaz de faz-lo criar e recriar a liberdade, gerando sempre um significado novo para a vida. Nesse sentido, no seu li-vro de 1874, Segunda Considerao extempornea: da utilidade e desvantagem da histria para a vida, ele destaca a importncia do esquecimento criador. Um excesso de memria como pregava o historicismo em voga na sua poca acabar por sufocar as foras plsticas do esquecimento que permite a abertura para o novo, para a gestao de inditas possibilidades vitais (Cf. HL/CO. EXT. II 1, KSA 1.248-257).

    Nessa direo, a memria age de forma coercitiva para gerar indivduos obedientes e solcitos, portanto convencidos de que no h outro caminho a no ser acatar as normas e interdies sociais. Certos disso, eles se sentem to fragilizados, pequenos e fracos que se tornam presas fceis para a manuteno de uma poltica que no deseja mudana, mas a conservao do poder. Em contrapartida,

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    possvel pensar outras foras que os impulsionam ao esquecimento criador, capaz de torn-los fortes para vencer os instrumentos do poder que os fragiliza. Esta a possibilidade pensada por Nietzs-che, que ele chamou de grande poltica22.

    Memria e impulso de rebanho: tendncia de conservao na poltica

    No de admirar: tudo o que longo difcil de ver, ver inteiro. (GM/GM I 8, KSA 5.268)

    A memria se posiciona como uma luta constante entre a rea-lidade em que se vive, se viveu e a perspectiva do que poder vir a ser, estabelecendo, dessa forma, uma funo articuladora e de natureza poltica, uma vez que ela constitutiva da sociedade e do prprio homem e, consequentemente, de sua interao com a plis. O esquecimento, por sua vez, deve ser entendido como fora plstica e salutar que corrige os excessos da memria, que permite fechar as janelas da conscincia, deixando de lado os fardos exces-sivos do passado.

    Nietzsche, na Segunda Considerao extempornea, chega a apontar o momento em que o homem se d conta de sua realidade de memoriado, vtima de um excesso de lembranas e, portanto, im-pedido de exprimir a sua fora criativa, justamente quando afirma: Lembro-me. Nesse instante, ele se compara ao animal e sente inveja quando percebe que esse animal est isento totalmente do peso do passado: para ele no h lembranas a serem transporta-das para o dia seguinte. O que existe a intensidade do momento

    22 A noo de grande poltica, oriunda da etapa final da obra de Nietzsche, alude a um sistema global transnacional que superar a pequena poltica dos modernos. (Cf. JGB/BM 208, KSA 5.137-140).

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    carregada de esquecimento. Ele vive plenamente no agora sem ne-nhuma preocupao com o que j foi nem com aquilo que est por vir. (Cf. HL/CO. EXT. II 1, KSA 1.248-257).

    O esquecimento permite perceber que a vida se d nos corpos, sem dvidas com o passado, portanto, sem culpa. Trata-se de adotar uma atitude inocente, como a da criana23, ou do animal espontneo que habita plenamente o instante presente. o reconhecimento da importncia do corpo, e suas foras espontneas, impulsivas, no deliberadas, nesse processo de ultrapassar uma memria que cer-ceia e controla a vontade criadora.

    A possibilidade de entender o quo dolorosa a deciso do homem que, acostumado a padecer do ressentimento imposto por uma memria atrelada ao passado, obrigado a tomar um caminho lgico, previsvel e pensado por uma espcie de ordem natural das coisas. Abre-se, com isso, uma nova perspectiva de entender a dimenso desta fragilidade imposta pela memria que, construda sob a gide dos requintes de crueldade, determinou regras, nor-mas e leis capazes de impedir as foras criadoras.

    A definio mais forte para esta ao violenta que exerce a memria sobre a vontade est descrita em Genealogia da moral, quando Nietzsche afirma: Grava-se algo a fogo, para que fique na memria: apenas o que no cessa de causar dor fica na memria. (GM/GM II 3, KSA 5.295)24.

    A questo, para Nietzsche, passa a ser a necessidade e a ou-sadia de conceber no uma memria dominadora e castradora do esquecimento, mas capaz de deixar fluir a vontade e fazer aparecer,

    23 Outra imagem relevante sobre o valor do esquecimento a da criana, presente tambm em Das trs transmutaes. Essa criana vive plenamente o momento atual: Inocncia, a criana, e esquecimento. [...] um sagrado dizer sim. (Cf. Za/ZA, Das trs transmutaes, KSA 4.31).

    24 A histria repleta de exemplos que referendam esta afirmao nietzschiana como, por exemplo, a poltica dos castigos que so impostos s crianas, alunos, trabalhadores, prisio-neiros, escravos... Sempre que h um esquecimento ele se segue a uma punio normativa (leis) ou moral (conscincia). Qualquer que seja o motivo h sempre muito mais o que se lembrar do que se esquecer.

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    no universo de suas tenses e conflitos, um impulso libertador e po-tencializador da criao. No se trata de afirmar singelamente uma negao da memria, mas a valorizao da ao do esquecimento, articulado com o papel da memria. Com isso, sustenta-se que as foras criadoras conseguem se libertar das fortes tendncias sociais padronizao, domesticao, a atiar uma memria ressentida, como descreve Nietzsche em Genealogia da moral:

    Supondo que fosse verdadeiro o que agora se cr como verdade, ou seja, que o sentido de toda cultura amestrar o animal de rapina homem, reduzi-lo a um animal manso e civilizado, domstico, ento deveramos sem dvida tomar aqueles instintos de relao e ressen-timento, com cujo auxlio foram finalmente liquidadas e vencidas as estirpes nobres e os seus ideais, como os autnticos instrumentos da cultura, como o que, no entanto, no se estaria dizendo que os seus portadores representem, eles mesmos, a cultura (GM/GM I 11, KSA 5.276).

    Essa ideia do homem caracterizado como animal manso e ci-vilizado e, portanto, domesticado, criado sob a gide de uma memria que restringe o esquecimento, marcante nos escritos de Nietzsche. Os instrumentos para tornar slida essa imposio, onde a moralidade se torna o instinto de rebanho no indivduo (FW/GC 116, KSA 3.475), se configura na forma de um sentir-se culpado at mesmo por querer ser um indivduo singular capaz de desejar no obedecer e nem mandar, pois a liberdade de pensamento era o mal-estar em si (FW/GC 117, KSA 3.475).

    A soluo para ultrapassar as imposies de uma moral e de uma memria exageradas, proposta por Nietzsche, seria caminhar em direo vida ativa e criadora, portanto, capaz de afirm-la por inteiro, rompendo a condio de rebanho obediente, submisso e memorioso. Essa deciso aponta para outra direo mais rdua e inquietante, pois o obriga a sair de uma realidade que, aparente-mente, lhe d tranquilidade e o acomoda em sua zona de conforto.

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    Entre a memria e a poltica: Nietzsche e Arendt na atualidade

    O que esperar de uma vida afirmativa, seno a possibilidade de vencer o cansao, ultrapassar a repetio, a mesmice, prprias dos ressentidos? A resposta nietzschiana ser sempre a busca de uma vida afirmativa, sugerindo que hora de abandonar a condio pas-siva do ressentido, de vontade fraca, e assumir a fora plstica, na qual o esquecimento fonte de revitalizao da vida: uma articula-o com as foras criativas.

    Grande poltica, o Estado grego e a memria na poltica

    O tempo da pequena poltica chegou ao fim: j o prximo sculo traz a luta pelo domnio da Terra a compulso grande poltica. (JGB/BM 208, KSA 5.140).

    importante lembrar que os escritos de Nietzsche sobre a questo poltica no apresentam um modelo claro de como deveria ser o Estado. Em Para alm de bem e mal ele faz aluso grande poltica como corolrio sua crtica modernidade, contudo no h, nos seus escritos, uma concepo sistemtica da questo po-ltica. Os fragmentos colhidos ou as interpretaes decorrentes de suas obras so apenas indcios de um campo aberto s diversas possibilidades de interpretao e de aproximao a uma suposta teorizao poltica25.

    O argumento principal sobre a necessidade de se pensar um projeto poltico, na perspectiva de Nietzsche, o mesmo enfrentado pelo filsofo ao longo de sua trajetria de vida: a necessidade de ultrapassar o ressentimento criado por uma memria que produz

    25 Para alm das apropriaes e deturpaes resultantes, principalmente, da concepo nazista do sculo passado, h muitos autores que frisam o valor da questo poltica na obra nietzschiana. Giacoia sustenta que a poltica uma espcie de fio de Ariadne que, mesmo por atalhos e veredas labirnticas, pode nos guiar em direo aos problemas fulcrais da filo-sofia desse pensador [...]. (GIACOIA Jr., O. Introduo. In: NIETZSCHE, F. W. A grande poltica fragmentos. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2002, p. 9).

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    um animal de rebanho, sempre pronto uniformizao gerada por um conjunto de leis e de condicionamentos morais que o aprisio-nam e o enfraquecem. Da a necessidade de se pensar uma grande poltica capaz de privilegiar os indivduos fortes, que poderia in-tensificar seus impulsos mais naturais de fora, de pulses e assim venceriam os fracos, os ressentidos, os cativos.

    Como entender um Estado a partir de ideias to gerais? Niet-zsche afirma que preciso produzir seres que pairem sublimes sobre a inteira espcie homem: e para essa meta, sacrificar a si e aos prximos26. Com isso, Nietzsche postula outra forma de entender a poltica, tomando como modelo o agonismo grego. O Estado resultante do gon o centro dos antagonismos que ser capaz de produzir indivduos fortes e criadores. Por isso, Nietzsche capaz de reconhecer a importncia do Estado Grego como forma de superao do modo de vida do rebanho. Na plis helnica fora e arte evidenciam a sua radical diferena com o Estado moderno, que d e concede a iluso do poder representativo aos fracos e cativos.

    A questo levantada por Nietzsche tangencia a poltica en-quanto organizao instituda para fortalecer homens capazes de conduzir o rebanho. o enfraquecimento da fora plstica em fa-vor da necessidade de manuteno e conservao de uma prtica capaz de anular a luta, o confronto e, portanto, o surgimento de novas formas e criaes na cultura. Ao escrever sobre O Estado grego, Nietzsche inicia suas reflexes aludindo ao confronto entre dignidade do homem e dignidade do trabalho27. Esta a lgica presente no mundo moderno que, construdo sob a gide que pre-tende justificar uma sociedade de direitos, v no trabalho o valor de conquista da condio de cidadania. Ao contrrio, segundo afirma o pensador alemo, os gregos no valorizam o trabalho, mas a cria-o de formas artsticas, independente da produo e do mundo

    26 NIETZSCHE, F. ibid., p. 23.27 Cf. CV/CP. Neste caso empregamos a traduo brasileira: NIETZSCHE, F. Cinco prefcios

    para cinco livros no escritos. Trad. Pedro Sussekind. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.

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    das necessidades e da conservao vital: Os gregos no precisam dessas alucinaes conceituais, entre eles se expressa com ater-radora sinceridade que o trabalho um ultraje e uma sabedoria mais velada, que raramente vem fala, mas que vive por toda a parte, leva concluso de que as coisas humanas tambm so um nada ultrajante e lastimvel e a sombra de um sonho. (CV/CP, O Estado grego, KSA 1.765).

    Na continuao desse texto, o filsofo chega a declarar que o trabalho s tem sentido quando desperta a criao, o impulso que leva s realizaes da arte. Fora desse contexto, o trabalho no leva e nem conduz dignidade, mas sim ao seu contrrio: escravido; esta, por sua vez, passa a tornar-se instituio essencial de uma cultura, instituio terrvel, que segundo Nietzsche, o abutre que ri o fgado do pioneiro prometeico da cultura (CV/CP, O Es-tado grego, KSA 1.767). A ao do homem tem sentido no quando tende preservao vital, mas quando impulsionada pelo pathos que o leva a criar novas formas artsticas e culturais.

    A violncia como instrumento do esquecimento poltico e anulao da memria social

    Violncia, poder e poltica atravessam os escritos de Arendt e inauguram uma forma de distino entre eles, por se tratarem, na tica da autora, de fenmenos distintos e tambm por estarem intimamente relacionados perda de sentido da poltica no atual contexto democrtico. No campo da poltica, o uso de imagens se mostra uma ferramenta eficaz para construo e manuteno do po-der. A ferramenta mais eficaz para manipular e limitar a memria utilizar-se das prprias tecnologias de comunicao como eficaz propagadora das prticas de violncias que do maior visibilidade aos efeitos do terror. O uso das imagens um forte mecanismo de

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    fortalecimento ideolgico, prprio dos sistemas totalitrios, cujo fim a manuteno das situaes de poder como garantia e susten-tabilidade da poltica28.

    A violncia e a imagem interagem, no entender de Arendt, quando na instalao dos movimentos totalitrios que precisam se comunicar com as massas, passando a se constituir um recurso ne-cessrio do poder. Vale salientar que as massas esto sempre em si-tuao de acomodao e no encontram sentido na poltica, por isso precisam ser tocadas e sensibilizadas, j que elas constituem a maioria da populao e decidem a manuteno ou a substituio do poder29.

    Essa questo foi cuidadosamente aprofundada por Arendt, em Origens do totalitarismo e em outros escritos, como forma de de-nunciar o poder que se deixa instrumentalizar pelo uso da violn-cia. Exemplo claro disto so os campos de concentrao que se tornam formas visveis, contundentes e terrficas do poder onde a violncia usada como um instrumento. Para Arendt, a violncia empregada onde o poder se enfraquece com o propsito sempre de organizar uma forma de governo, mesmo que esta seja a instau-rao do terror. Nesses procedimentos dos sistemas autocrticos, h a presena de uma memria da violncia que faz emergirem prticas totalitrias de poder que submetem o homem e impem relaes de domnio e aniquilamento das diferenas, constituindo um espao do esquecimento da poltica. A violncia empregada como um instrumental social de fortalecimento das instituies

    28 Em sua obra Origens do totalitarismo, especificamente em seu captulo final Ideologia e Terror, Arendt descreve de maneira enftica o uso da propaganda e da imagem como forma de estabelecer o elo entre violncia e poder, instaurando, desta forma, o terror presente nos regimes totalitrios. (Cf. ARENDT, 1989).

    29 Dada a importncia que as massas exercem no contexto das relaes polticas, Arendt ir dedicar uma seo exclusiva em As origens do totalitarismo para aprofundar esse tema. A autora afirma: Potencialmente, as massas existem em qualquer pas e constituem a maioria das pessoas neutras e politicamente indiferentes, que nunca se filiam a um partido e rara-mente exercem o poder do voto (Ibid., p. 361).

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    despticas acaba por inibir a ao poltica, levando o homem a um esquecimento de suas foras criativas, restringindo-o a tornar-se um integrante annimo de uma sociedade de massa30.

    Essa forma de ver a realidade , na maioria das vezes, concre-tizada no campo de uma memria ficcional, distorcida, manipulada cuja vontade se deixa conduzir perdendo momentnea ou perma-nentemente o sentido da afirmao da vida. Como afirma Arendt, no relato sobre a funo dos instrumentos de violncia nos campos de concentrao: Mais do que arame farpado a irrealidade dos detentos que ele confina, que provoca uma crueldade to incrvel que termina levando aceitao do extermnio como soluo per-feitamente normal31.

    Ao analisarmos os movimentos que na atualidade lutam por instaurar processos democrticos na poltica, opondo-se aos siste-mas totalitrios, o uso das imagens se torna cada vez mais frequente, principalmente os ligados crtica do uso da violncia, seja ela no campo privado ou nos espaos pblicos, como forma de convenci-mento de que a cultura ocidental democrtica pode ser pacfica e duradoura. Esses movimentos encontram um ponto comum que se atribui figura permanente de um lder construdo momentanea-mente como apaziguador das vontades. No entanto, essa artificia-lidade do poder tambm frgil, mesmo que isso demore dcadas para ocorrer, mas o lder ser, com a mesma estratgia que o cons-truiu, destitudo e, na maioria das vezes, com uso da violncia, que atrelada a uma multiplicidade de imagens, se torna um espetculo a que todos querem assistir. Como afirma Arendt: A suprema ta-refa do Lder personificar a dupla funo que caracteriza cada

    30 Para Arendt, o movimento totalitrio encontrou espao para se estabelecer pela indiferen-a e neutralidade das massas s questes polticas fomentadas pela sociedade competitiva do consumo, que segundo a autora, gerou apatia e, at mesmo, hostilidade em relao vida pblica. (Ibid., p. 495).

    31 Ibid., p. 496.

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    camada do movimento agir como a defesa mgica do movimento contra o mundo exterior e, ao mesmo tempo, ser a ponte direta atra-vs da qual o movimento se liga a esse mundo32.

    Os novos campos de concentrao hoje distantes dos hor-rores do Holocausto surgem de maneira sutil e elegante, prin-cipalmente por passarem a ser considerados normais, e invadem, atravs do jogo de imagens, o nosso espao privado das relaes, atropelando e anestesiando nossa condio singular e gerando uma apatia pelo debate pblico da poltica. Com isso, esses novos cam-pos de concentrao reinventam estratgias capazes de, segundo Arendt, destruir a individualidade, a espontaneidade e a capaci-dade de iniciar algo novo33.

    A possibilidade de mudar essa apatia coletiva, essa aneste-sia social, deve partir deste algo novo, que pode se configurar, por exemplo, nos movimentos sociais fortalecidos e comprometidos com aes afirmativas da vida que, para alm do discurso ficcional imposto pelos sistemas totalitrios, possam construir efetivamente uma realidade nova para a cidadania. Para Arendt, este o novo comeo que o fim, isto , o esgotamento das formas polticas auto-crticas pode produzir34.

    Refundar a plis: para alm da anulao da memria e do esquecimento

    A memria, conforme a interpretao do Nietzsche, aquela que no permite deixar aflorar o esquecimento, o instinto que cons-titui o animal livre e sem memria. Nascida sob a gide da tradio moral, a memria, sempre que acionada, remete s lembranas da boa e virtuosa plis, das conquistas e sofrimentos por que passaram

    32 Ibid., p. 424.33 Ibid., p. 506.34 Cf. Ibid., p. 531.

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    os homens para construrem um lugar bom para se morar. O sim-ples fato de tentar esquecer essas conquistas ativa mecanismos do poder que impem a ordem e recomendam a insero em uma co-munidade que prega a conservao e a paz entre os homens. Arendt, por sua vez, destaca a importncia da preservao da memria na sociedade para no esquecer os excessos do totalitarismo, as arbi-trariedades dos sistemas autocrticos.

    Ao caracterizar o homem como um animal memoriado, de certa forma, ambos os autores acabam por admitir que a memria, j seja em nome do convvio social ou pela prpria condio racional a qual ele est submetido, se tornou presente em seu cotidiano, de-terminando suas aes e prticas sociais. O instrumento da fora, como mecanismo apropriado para no permitir que nada seja es-quecido, acaba por representar uma memria que tudo contm, mesmo sabendo que h um momentneo estado de esquecimento, pois se assim no fosse, facilmente se enlouqueceria com o peso excessivo das lembranas. No entanto, sempre que precisarmos de-las, elas surgiro imediatamente, pois nossa memria marcada a fogo em nossos corpos (Cf. GM/GM II 3, KSA 5.295).

    A poltica pode estabelecer um novo jogo de foras em que o esquecimento no se deixe abater pela memria imposta violenta-mente. Pode haver momentos em que o homem aceite os ditames da memria, para que simultaneamente o esquecimento deixe lugar ao criadora capaz de produzir o novo, rompendo com normas estabelecidas por uma tradio e uma moral sufocantes. Para no esquecer, o indivduo, conforme sustenta Arendt, ativa este jogo de foras que aparece na luta que encontra em si toda a vitalidade necessria para se tornar ele mesmo o prprio senhor da ao. Para anular esta ao criadora, prpria do indivduo singular, foi neces-srio que ele sofresse uma presso violenta do Estado. Esse Estado totalitrio pretende romper o elo do indivduo e da comunidade com o seu passado; ao ver cerceada a sua memria, a comunidade torna-se rebanho: um conjunto de homens apticos e annimos. Os mecanismos que no lhe permitem esquecer essa submisso social

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    podem ser revisitados a todo instante pelos requintes de crueldade presentes na e pela histria: censura, inquisio, tortura, culpa... Todos esses procedimentos violentos s tm um lugar onde se alo-jar: o prprio corpo, que obrigado a se calar sobrevive e se enche de memrias que no devem ser esquecidas.

    A criao do Estado acontece, portanto, tanto para Nietzsche quanto para Arendt, das formas mais violentas na histria da hu-manidade; ocasio em que os valores e as interdies morais so produzidos como forma de favorecer no a criao, mas nivelao e represso de todos os corpos sob um julgo comum. O homem anula-se a si mesmo em favor dos outros, do coletivo. Por sua vez, o outro igualmente permite anular-se, se deixando conduzir. Na in-diferenciao social imposta s massas, no h singularidade, no h pluralidade, mas s uma nica entidade coletiva que subjuga todas as vontades. Pensar a poltica para alm desses padres pre-estabelecidos de um Estado organizador das vontades inaugurar um novo comeo de onde deriva a ao criadora presente nos ho-mens singulares onde trafega livremente o jogo de foras presentes na memria e no esquecimento. refundar o espao agonstico e criador da plis.

    Consideraes finais: para alm do rebanho e da poltica moderna

    Na presente reflexo, abordamos algumas ideias importantes sobre memria e poltica de dois pensadores bastante singulares, com perspectivas muito diversas: Nietzsche e Arendt. Contudo, para alm das divergncias tericas desses relevantes filsofos, encontramos preocupaes comuns. Ambos refletem sobre mem-ria e esquecimento, sobre os mecanismos violentos que forjam a memria e o esquecimento; mecanismos articulados com as neces-sidades polticas das diversas sociedades. Para adentrarmos em pensamentos to vastos e diversos, seguimos como fio de Ariadne a

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    preocupao de ambos com a questo poltica e a problemtica da memria que se vinculam de forma inextricvel aos processos de violncia social.

    Embora Nietzsche, na sua concepo de grande poltica, aponte talvez para o resgate de modelos sociais no democrticos, e Arendt tenha atentado todo o seu percurso terico e vital para exaltar e, ao mesmo tempo, repensar os valores da democracia, ambos exaltam a importncia da plis grega, como modelo de sociabilidade. Que concluses possvel extrair dessa importante coincidncia em pensares to diversos? Nietzsche e Arendt, cada um ao seu modo, lutaram contra uma poltica do rebanho, da anulao individual, da supresso da singularidade. Ambos, inspirados no gon grego, exaltaram o confronto respeitvel, a diversidade, a multiplicidade de perspectivas. Ambos repararam que na construo da memria e da poltica a violncia tem um papel fundamental. Eles susten-taram igualmente que a poltica pode ser modelada para alm da violncia e da negao da memria.

    Arendt defende a preservao das lembranas do passado da comunidade, no como forma de fixao no tempo que passou, mas como um lanar-se para o futuro capaz de inibir a presena de regimes totalitrios, cerceadores da liberdade e singularidade do indivduo, e a valorizao da ao conjunta e o dilogo inter-pares; Nietzsche exalta uma memria que possa ser limitada nos seus excessos, na qual o esquecimento tambm atue como fora salutar. J no mbito da sociedade, na sua concepo de grande poltica, ele tambm pensa para alm do rebanho e nessa ques-to encontramos um ponto nodal de contato que aproxima ambos os filsofos: Nietzsche, assim como Arendt, afirma que preciso exercer a singularidade, preciso ultrapassar a mediocridade dos homens domesticados, anestesiados e esquecidos de sua prpria condio criadora.

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    Barrenechea, M. A.; Dias, M. J.

    Abstract: In this article our proposal is to think, from philosophies as diverse as Nietzsche and Arendt, relevant theoretical questions of social memory, linked to the issue of politics in actuality. The starting point of the thesis that Nietzsche and Arendt, although authors are not linked directly to social memory, present ideas that can contribute to this proli-fic discursive field. Justifies this argument finding that the thinkers pose the problem of memory and forgetting in the center of his reflection on society and on the political. To approach these ideas about memory and politics in Nietzsche and Arendt, as proposed methodological study we focus on those who consider the most important writings of each of them - Genealogy of Morals and The Origins of Totalitarianism, respective-ly - in which these concepts are thematized in tersely. In both books memory and forgetting are interpreted in different ways, such as social phenomenon that emerge in a context of violence, coercion. Philosophers concerned recognize that memory and forgetting are social processes brought pain and violence. For them, the challenge is to study the pro-cesses developed by the violence that establishes and controls the power in various social settings, discussing the role of memory and forgetting these corporate settings. The scope of this article, therefore, is to ask how, in thinkers such as Nietzsche and Arendt, memory and politics can be interpreted through perspectives, even from some notions very close, come to very different conclusions.Keywords: Nietzsche Arendt Memory Oblivion - Political

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    Artigo recebido para publicao em 26/04/2013.Artigo aceito para publicao em 15/05/2013.