TE X O : M a r i a R a m o s S i l v F O T O S : J oã M i...

4
Sempre que o vê, Belmiro de Azevedo pergunta-lhe se já acabou o curso de Engenha- ria. Não acabou, nem vai aca- bar. Tochas corre o Mundo enamorado pelas artes de rua. Em digressão pelas salas do País, o miúdo de Avelar ainda liga à mãe antes dos es- pectáculos. “Diz sempre que vai correr bem. O que ela não sabe é que se disser que vai correr mal fico à rasca!” Escolheu o Teatro da Trindade para local desta entrevista por ser o sítio onde mais actuou. Sim, no Mundo inteiro. E nesta sala do teatro-bar foi onde dei o salto para o palco, em 2000. Sempre que tenho um espectáculo novo experimento-o aqui. Quem são as ‘cobaias’? Tenho uma newsletter que envio já para umas 7500 pessoas. Costumo avi- sá-los e digo que, ao início, ainda vai es- tar muito colado com cuspo. Esgota logo nas primeiras semanas, porque o pessoal quer ver-me à rasca! É curioso que há pessoas que gostam de comprar bilhetes para a primeira semana e para a última, dois meses depois. Dizem que vêem dois espectáculos diferentes. Vou para casa ver o vídeo do espectáculo, analisar, mudar a ordem, a estrutura... É fácil ser autocrítico? No início fez-me confusão. A partir de certa altura é um instrumento de tra- balho como outro qualquer. Improviso muito e gosto de rever o espectáculo passado um ano ou assim. Às vezes há coisas que já me esqueci e penso: “ui, que improviso alucinado!” T ambém posso pensar: “És tão feio!” É a vida. Em que se baseia? Não sou comediante político, escrevo sobre o que acontece no dia-a-dia, atra- vés de reacções que tenho e que tento extrapolar para as outras pessoas. Sou um comediante ao vivo, não de televi- são, o que há pouco em Portugal, tiran- do o Zé Pedro Gomes e o António Feio. Tenta ser intemporal? É por aí. Faço espectáculos a um ano e meio de distância. Não pode passar o prazo de validade. Este humor pode ser mais afinado. Por exemplo, muitas ve- zes estou numa situação e penso como podia ser. Estava em Paris no aeropor- to. Imaginei que estava à espera de li- gação e comecei a cantarolar. Veio a se- gurança e prendeu-me. Só porque ino- centemente cantei: “J’avais une petite bombe à ma valiseeeeeeee, que va fai- “A comédia é das coisas mais cruéis” PEDRO ENTREVISTA TEXTO: Maria Ramos Silva FOTOS: João Miguel Rodrigues TOCHAS ? | PEDRO TOCHAS

Transcript of TE X O : M a r i a R a m o s S i l v F O T O S : J oã M i...

Page 1: TE X O : M a r i a R a m o s S i l v F O T O S : J oã M i ...pedrotochas.com/wp-content/uploads/2015/12/Pedro_Tochas_CM-1.pdf · Sempre que o vê, Belmiro de Azevedo pergunta-lhe

SSeemmpprree qquuee oo vvêê,, BBeellmmiirroo ddeeAAzzeevveeddoo ppeerrgguunnttaa--llhhee ssee jjááaaccaabboouu oo ccuurrssoo ddee EEnnggeennhhaa--rriiaa.. NNããoo aaccaabboouu,, nneemm vvaaii aaccaa--bbaarr.. TToocchhaass ccoorrrree oo MMuunnddooeennaammoorraaddoo ppeellaass aarrtteess ddeerruuaa.. EEmm ddiiggrreessssããoo ppeellaass ssaallaassddoo PPaaííss,, oo mmiiúúddoo ddee AAvveellaarraaiinnddaa lliiggaa àà mmããee aanntteess ddooss eess--ppeeccttááccuullooss.. ““DDiizz sseemmpprree qquueevvaaii ccoorrrreerr bbeemm.. OO qquuee eellaannããoo ssaabbee éé qquuee ssee ddiisssseerr qquueevvaaii ccoorrrreerr mmaall ffiiccoo àà rraassccaa!!””

Escolheu o Teatro da Trindadepara local desta entrevista porser o sítio onde mais actuou. Sim, no Mundo inteiro. E nesta sala doteatro-bar foi onde dei o salto para opalco, em 2000. Sempre que tenho umespectáculo novo experimento-o aqui.

Quem são as ‘cobaias’? Tenho uma newsletter que envio jápara umas 7500 pessoas. Costumo avi-sá-los e digo que, ao início, ainda vai es-tar muito colado com cuspo. Esgotalogo nas primeiras semanas, porque opessoal quer ver-me à rasca! É curiosoque há pessoas que gostam de comprarbilhetes para a primeira semana e paraa última, dois meses depois. Dizem quevêem dois espectáculos diferentes. Vou

para casa ver o vídeo do espectáculo,analisar, mudar a ordem, a estrutura...

É fácil ser autocrítico? No início fez-me confusão. A partir decerta altura é um instrumento de tra-balho como outro qualquer. Improvisomuito e gosto de rever o espectáculopassado um ano ou assim. Às vezes hácoisas que já me esqueci e penso: “ui,que improviso alucinado!” T ambémposso pensar: “És tão feio!” É a vida.

Em que se baseia? Não sou comediante político, escrevosobre o que acontece no dia-a-dia, atra-vés de reacções que tenho e que tentoextrapolar para as outras pessoas. Souum comediante ao vivo, não de televi-são, o que há pouco em Portugal, tiran-do o Zé Pedro Gomes e o António Feio.

Tenta ser intemporal? É por aí. Faço espectáculos a um ano emeio de distância. Não pode passar oprazo de validade. Este humor pode sermais afinado. Por exemplo, muitas ve-zes estou numa situação e penso comopodia ser. Estava em Paris no aeropor-to. Imaginei que estava à espera de li-gação e comecei a cantarolar. Veio a se-gurança e prendeu-me. Só porque ino-centemente cantei: “J’avais une petitebombe à ma valiseeeeeeee, que va fai-

s

“A comédia é das coisasmais cruéis”

PEDRO

ENTREVISTA

TEXTO: Maria Ramos Silva

FOTOS: João Miguel Rodrigues

TOCHAS

? | PEDRO TOCHAS

Page 2: TE X O : M a r i a R a m o s S i l v F O T O S : J oã M i ...pedrotochas.com/wp-content/uploads/2015/12/Pedro_Tochas_CM-1.pdf · Sempre que o vê, Belmiro de Azevedo pergunta-lhe

re boom!” É a técnica da verdade e dotratamento. É a minha visão e as pes-soas gostam.

Sente receptividades diferentespelo País? Sinto, mas já estou numa fase diferen-te. Muitos dos sítios aonde vou já lá fizespectáculos. As pessoas já me conhe-cem. Agora é este, o ‘Já Tenho Idadepara Ter Juízo’.

E o que é isto de já ter idadepara ter juízo?Estou com 36 anos e aparentementetrabalho duas vezes por semana, umahora. Quem vê de fora diz: “este gajotem uma grande vida”. Mesmo quandoestou em casa a praticar algo de teatrofísico é difícil explicar que estar a brin-car com uma corda faz parte do meutrabalho! “Então, mas não fazes nada?”

Ainda é difícil ser levado a sério? Para a família chegada não é complica-do. É mais os tios, os primos... Sincera-mente, ainda há uns anos houve umapessoa que me disse: “ah, eu ouvi dizerque ele faz espectáculos pelo Mundo...Ele faz é umas porcariazitas em Coim-bra!” A minha vida, ao contrário dasoutras, é que não pára mesmo.

Sem horário das nove às cinco.É pior que isso! Faço espectáculos parateatros, para empresas, faço palestras.Às quatro da tarde, de quinta-feira, te-nho que ir àquela sala e fazer rir 500pessoas que não conheço. Já não tenhograça quando quero, tenho graça quan-do sou obrigado a ter!

Como é essa obrigação, extra, defazer rir? Há que treinar muito o cérebro porqueos comediantes têm que pensar rápido.Tenho uma escola muito boa que são osespectáculos de rua.

Mas há coisas que mais facil-mente resultam com o público?Aí é que está. A desvantagem e belezadesta área é que nada é certo! Faço oPalhaço Escultor, o espectáculo que jáfiz mais vezes no Mundo inteiro, umasmil vezes. Consigo fazê-lo mesmo po-dre de cansado e às vezes corre mal. Efaço tudo igualzinho! Há coisas que re -

A comédia é das coisas mais cruéis. Ouresulta ou não resulta. Mando duas,três piadas, se ninguém ri, está a cor-rer mal! Nestas coisas não tento ser umcomediante. Quero ser um bom come-diante e ser cada vez melhor. Acho quesó consegue ser bom quem é um obses-sivo. E neste momento, nos espectácu-los de rua, o meu mercado já não é Por-tugal, é o Mundo. Passo quatro ou cin-co meses fora (por acaso tenho que en-curtar porque ando muito cansado!).

Recorda algum em especial?Se calhar o primeiro espectáculo de rua

“Recordo o meuprimeiro espectáculode rua porque umsem-abrigo deu-medois e quinhentosquando eu passeicom o chapéu. Achei aquilo de mais”

ç Tochas fotografadoesta semana no teatro-bardo Trindade, em Lisboa

sultam melhor mas, por exemplo, nun-ca recorro a palavrões. O ideal é criarempatia.

Qual é a sensação de terminar esentir que não correu bem? É muito mau. Entra-me logo o espectá-culo em loop na cabeça, a perceber oque é que correu mal, porque não podecorrer mal. Ainda por cima, se o últimoespectáculo me correu mal só me lem-bro disso. “Ah, não tenho jeito nenhumpara isto!” Enquanto não limpo isso...

Mexe muito com a auto-estima?

s

que fiz, porque um sem-abrigo deu-medois e quinhentos quando eu passei ochapéu. Achei aquilo de mais.

O que o levou a ir para a ruapela primeira vez? Estava a ajudar na organização de umafesta de Natal e fiz malabarismo. Acheigraça. Passado uns tempos vi um docu-mentário na televisão sobre artistas derua e aos 19 anos achei tão romântico,andar pelo Mundo de mochila às cos-tas, fazer amigos, conhecer cidades...Durante muitos anos fiz coisas de pal-co, coisas para empresas, mas lembrei-

O apelido artísticode Pedro NunoSimões Lopes dosSantos remonta àOrxestra Pitagóricada Universidade deCoimbra. “Em 100anos sou o primei-ro que não bebebebidas alcoólicas.Eu fazia malabaris-mo com fogo e pe-gou”. Pedro arru-mou a EngenhariaQuímica. Estudoumalabarismo e co-média física noCelebration BarnTheater, nos EUA,e em Inglaterra in-gressou naCircomedia -Academy of CircusArts and PhysicalTheatre. É peloMundo que conti-nua a fazer espec-táculos de rua“para o coração” ea acumular pré-mios em festivais.Em Portugal, dedi-ca-se às palestras emantém a digres-são do espectáculo‘Já Tenho Idadepara Ter Juízo” atéao próximo ano.Dia 25 passa porSanta Maria daFeira e dia 31 actuaem Vila Real.

ENTREVISTA

-me que o meu sonho era ser artista derua e então voltei! Já fiz espectáculosem 17 países.

Na altura, para um miúdo deuma terrinha como Avelar, comoera ser um artista de rua? Eu estava a estudar Engenharia Quími-ca. Mesmo quando trabalhava em fei-ras e ganhava o suficiente para mim, aspessoas não ligavam. Nunca tive neces-sidade de ter aprovação. Não bebo be-bidas alcoólicas e não fumo. Entreipara a universidade e continuei assim.Nunca cedi só para me integrar. s

? | PEDRO TOCHAS domingo | 22 DE ABRIL DE 2007 | ?

Page 3: TE X O : M a r i a R a m o s S i l v F O T O S : J oã M i ...pedrotochas.com/wp-content/uploads/2015/12/Pedro_Tochas_CM-1.pdf · Sempre que o vê, Belmiro de Azevedo pergunta-lhe

PUB

ENTREVISTA

E o que o levou para EngenhariaQuímica? O Belmiro de Azevedo! Li uma entrevis -ta do engenheiro e achei muito interes-sante. Tão simples como isso. E já o co-nheci, faço palestras para a Sonae, e elesabe a história. Pergunta-me sempre:“Já acabou o curso?”, “Oh engenheiro,eu tirei um curso de Teatro...”

E não pensa acabar? Não se justifica. A dedicação que meiria exigir ia-me tirar o prazer do quemais gosto de fazer, que é espectáculos.Tirar um curso só por tirar é aquelamentalidade portuguesa. “Então não ti-ras o curso, por segurança?” Dantes ti-ravas um curso e pronto, agora já não.Tens que mostrar que tens qualidade.

O humor sofre ou beneficia coma crise? Ainda no outro dia me perguntaram seestes políticos eram bons para fazer hu-mor. Eu sinceramente preferia ter bonspolíticos e que não houvesse material.Não preciso da desgraça para fazer co-média. Como comediante tenho que en-contrar a comédia mesmo quando ascoisas correm bem. Eu gosto mais defazer rir quando o pessoal está todocontente. Mas a comédia pode ser umcatalizador de recuperação. Em situa-ções de crise pode ser bom...

O melhor remédio... É. As pessoas divertem-se. Até para onosso cérebro, liberta certas substân-cias, certas coisas... Estudei eu Enge-nharia Química e não sei estas coisas!

Só há sucesso se se fizer rir? Comédia é fazer rir. Dizer que um co-mediante não é para fazer rir, é tanga.“Ah, ele faz uma comédia muito inte-lectual”. Pois, isso não é comédia,man!!! É como o médico conceptual:não cura, mas fala sobre a cura!

O que o faz rir? Tanta coisa... Ainda no outro dia esta-va a estacionar o carro e vinha uma se-nhora baixinha à frente e desaparece!Eu comecei-me a rir, ela levanta-setoda torta e disse-lhe que tinha tidopiada.

Costuma esperar-se do come-

diante que seja um tipo semprealegre. Sou normalmente positivo, mas já o eraantes. O meu lema é tudo o que aconte-ce é para o melhor. Há pouco tempo tiveum espectáculo que foi cancelado porcomplicações com a Igreja...

Complicações? Sim, mas nada a ver com o material. Ti-nha a ver com marcação de datas coma câmara. Eu marquei o espectáculoem Janeiro e telefonei em Junho a con-firmar. Entretanto marcaram um daIgreja! Pronto, este espectáculo foi adia -do, era para 300 pessoas. Marquei emCoimbra e tive 650 pessoas. Vês, se ca-lhar foi para o melhor!

Deus fechou uma porta e abriuuma janela. Literalmente. É. Um problema é uma forma de en-contrar uma solução. Por exemplo,uma vez numa greve da TAP um pilotoperguntou-me se preferia chegar tardea Londres ou não chegar. Eu disse que

preferia não chegar, por-que chegando tarde ia terque ligar para muita gen-te a justificar-me. Pronto,se morresse, andava poraí, tipo ‘Dr. House’, comofantasma ainda ia ver asgravações.

Gosta de séries? Oh, sou viciado em séries. Não vejo te-levisão, porque começaram a sair as sé-ries em pacote, a melhor invenção.Gosto do ‘House’, ‘Entourage’, ‘Lost’,‘Stargate’, ‘CSI Las Vegas’, ‘CriminalMind’, o ‘Boston Legal’. E agora come-cei a ver uma muito boa, o ‘Spot Night’.Como gosto de ver as séries por ordem,

compro os DVD. A pirataria não me fazconfusão nenhuma. Mas se há algo quegosto, compro. Nem lhe chamo pirata-ria. É mais um sistema de provas.

Há material seu pirateável?Não. Porque tenho na net algumas coi-sas e os meus espectáculos ainda es-tão todos em carteira. O nosso merca-do não é maduro o suficiente para va-ler a pena.

Que diferenças nota entre paí-ses? Nos espectáculos de rua nota-se logo.Passas o chapéu no fim. Mentalidadedos portugueses: “Ah, eu já vi, agoravou dar dinheiro porquê?”

Que outras coisas o incomodam?A falta de profissionalismo. Depois, afalta de habituação dos portugueses. Avida moderna é outra. O exemplo do co-mércio. Uma pessoa que trabalha atéàs seis ou mais, quando é que pode ir a

“A comédia pode ser umcatalizador da recuperação.Na crise pode ser bom...”

s

s

? | PEDRO TOCHAS

Page 4: TE X O : M a r i a R a m o s S i l v F O T O S : J oã M i ...pedrotochas.com/wp-content/uploads/2015/12/Pedro_Tochas_CM-1.pdf · Sempre que o vê, Belmiro de Azevedo pergunta-lhe

uma loja, fazer compras? Para fecharum dia por semana, mais valia à segun-da. Também gostava de ficar com o fim--de-semana livre, mas tenho que fazerespectáculos quando as pessoas os po-dem ir ver. Em termos políticos então...Mas eu não sou político.

Gostava de ser? Ah, candidatar-me a presidente! O meulema era: “muito não faço!” Ainda porcima é um cargo decorativo, digam oque disserem. Acho que conseguia fa-zer. Ele tem grandes jantaradas e eutambém gosto de comer. Ainda porcima eu até mandava umas piadas.Mas tinha que ver as regras. Não fiz tro-pa, houve anos em que não votei...

É dos que se queixa e não vota? Voto quando posso. Quando estou emPortugal voto sempre, mas também senão voto não fico muito preocupado.Nenhum partido defende o que me in-

teressa: diminuir os impostos e acabarcom as borlas. O rendimento mínimo éuma grande ideia mas estamos numafase em que quem não tem dinheirovive melhor do que quem tem algum.

Por falar em ‘azias’, ainda sesente ligado à água com gás? Sinto. Foi uma mega-oportunidade.Mudámos a percepção em relação àágua e criámos o mercado de sabores.É motivo de orgulho. Não tenho umarelação de inimigo com as empresas, sótento manter a minha integridade.

Já recusou propostas? Há uns anos, convidaram-me para ir aFelgueiras depois do escândalo e eunão fui. Eles disseram que não tinhamnada a ver com a presidente mas eudisse: “Não têm? Vocês é que votaramnela!” Não tive vontade. O dinheiro dá--me para as minhas coisas. Não sou deluxos. Olha o que trago vestido? Pareceque andei a arrumar carros! ||

s

“Ah, candidatar-mea presidente! O meu lema era:‘muito não faço!’”

ENTREVISTA

? | PEDRO TOCHAS