Rios do Inferno

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OS RIOS NA DIVINA COMÉDIA I – O INFERNO Alexandre Camanho de Assis Dante e Virgílio no Inferno (1822), Eugène Delacroix. O argumento da Comédia de Dante Alighieri (1265-1321) é conhecido: o autor peregrina pelos três mundos pós-morte. No Inferno e no Purgatório, Dante empreende sua jornada guiado pelo poeta romano Virgílio (70 a.C.-19 a.C.); depois, acede ao Paraíso acompanhado de sua musa Beatriz, ultimando sua experiência mística ao lado de São Bernardo de Claraval (1090-1153), principal voz da Cristandade medieval e notório entusiasta dos Cavaleiros Templários. A Comédia – epítome da cosmogonia medieval e reflexo especular do impressionante conhecimento natural, filosófico, histórico, literário e teológico de Dante – tem sido incansavelmente explorada pelos estudiosos nos mais distintos assuntos, métodos e abordagens. Aqui, dar-se-á ênfase aos rios com que se depara o poeta na sua jornada pelo primeiro dos mundos sobrenaturais. O primeiro rio que Dante divisa, logo ao ingressar no Inferno, é o Aqueronte: é, com efeito, na “trista riviera d’Acheronte 1 que o barqueiro Caronte embarca os condenados para transpô-los à outra margem, onde os aguarda a treva eterna, o fogo e o gelo 2 . O Aqueronte de Dante é largo e turvo 3 , mas não foi por ele inventado: o “rio do infortúnio” existe, efetivamente, no Épiro, região do noroeste da 1 Inferno, Canto III, 78. 2 tenebre etterne, in caldo e n’ gelo ”: Inferno, Canto III, 87. 3 un gran fiume”, Inferno, Canto III, 71; “onda bruna”, Canto III ,118.

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OS RIOS NA DIVINA COMÉDIAI – O INFERNO

Alexandre Camanho de Assis

Dante e Virgílio no Inferno (1822), Eugène Delacroix.

O argumento da Comédia de Dante Alighieri (1265-1321) é conhecido: o autor peregrina pelos três mundos pós-morte. No Inferno e no Purgatório, Dante empreende sua jornada guiado pelo poeta romano Virgílio (70 a.C.-19 a.C.); depois, acede ao Paraíso acompanhado de sua musa Beatriz, ultimando sua experiência mística ao lado de São Bernardo de Claraval (1090-1153), principal voz da Cristandade medieval e notório entusiasta dos Cavaleiros Templários.

A Comédia – epítome da cosmogonia medieval e reflexo especular do impressionante conhecimento natural, filosófico, histórico, literário e teológico de Dante – tem sido incansavelmente explorada pelos estudiosos nos mais distintos assuntos, métodos e abordagens. Aqui, dar-se-á ênfase aos rios com que se depara o poeta na sua jornada pelo primeiro dos mundos sobrenaturais.

O primeiro rio que Dante divisa, logo ao ingressar no Inferno, é o Aqueronte: é, com efeito, na “trista riviera d’Acheronte”1 que o barqueiro Caronte embarca os condenados para transpô-los à outra margem, onde os aguarda a treva eterna, o fogo e o gelo2. O Aqueronte de Dante é largo e turvo3, mas não foi por ele inventado: o “rio do infortúnio” existe, efetivamente, no Épiro, região do noroeste da 1 Inferno, Canto III, 78.2 “tenebre etterne, in caldo e n’ gelo”: Inferno, Canto III, 87.3 “un gran fiume”, Inferno, Canto III, 71; “onda bruna”, Canto III ,118.

Grécia, embora fosse considerado um afluente do Estige, outro rio infernal. O Livro VI da Eneida de Virgílio – guia de Dante – situa-o no mundo dos mortos; a Odisséia de Homero reputa-o um dos acessos fluviais ao Hades, e é por ele que Ulisses navega para honrar sua promessa à feiticeira Circe4.

As almas condenadas embarcam para a travessia do Aqueronte (Gustave Doré, Séc. XIX)

Dante segue com Virgílio na descida dos círculos infernais, encontrando crianças que morreram sem a graça do Batismo, poetas como Homero, gente que em vida foi cativa da luxúria, da gula, da avareza, da prodigalidade, até chegar ao Quinto Círculo, destinado aos que na Terra deixaram-se levar pela ira e pelo rancor. E o fazem acompanhando o curso de umas águas ferventes e escuras5 que, originárias de uma fonte, fluíam até o pântano Estige6, onde desaguavam.

O Estige, no Inferno dantesco, é o rio povoado pelos iracundos7; os protagonistas os notam como sombras dentro d’água, batendo-se e mordendo-se a si mesmos, ao longo de toda a extensão. Virgílio informa a Dante que, além destes, há gente submersa que suspira, fazendo a água borbulhar8: são as almas dos rancorosos, que mantiveram a ira dentro de si em estado latente.

4 Odisséia, Canto X, 513.5 “riva sovr’uma fonte che bole”, Inferno, Canto VII , 100-101; “L’acqua era buia”, Canto VII , 103.6 “la palude va c’ha nome Stige”, Inferno, Canto VII, 106.7 “cui vinse l’ira”, Inferno, Canto VII, 116.8 “sotto l’acqua ha gente che sospira, e fanno pullular quest’acqua”, Inferno, Canto VII, 118-119.

Flégias conduz Dante e Virgílio pelo Estige, em meio aos iracundos (Gustave Doré, Séc. XIX)

Mitologicamente, Estige é uma ninfa, filha de Tétis9, que, por ter ajudado Zeus a derrotar os titãs, foi brindada com uma fonte de águas mágicas. O Estige é lindeiro ao Tártaro, lugar sediado na mais absoluta das profundezas – na Ilíada, Homero diz que o Tártaro está tão longe do Hades10 quanto a Terra está do Céu11 – e que foi personificado como divindade primordial regente da expiação dos crimes e dos erros terríveis.

Nas águas mágicas do Estige, rio da imortalidade, Tétis banhou seu filho Aquiles para que adquirisse tal dom; mas, tendo segurado-o pelo calcanhar, fê-lo aí vulnerável, caindo sob a flecha de Páris12.

Singrando o Estige em um pequeno barco surge Flégias, que de mau grado trafega Dante e Virgílio por aquelas águas estagnadas até a cidade infernal de Dite, cuja irradiação vermelha permeia todo o Inferno. O Estige serpenteia Dite por um fosso que circula seus muros férreos; Flégias, às portas da cidade, ordena aos gritos que desçam.

9 Divindade que personifica a fecundidade feminina do mar.10 Na mitologia grega, deus-lugar do mundo inferior.11 Ilíada, Canto VIII, 13-16.12 O episódio do banho de Aquiles e o de sua morte, no entanto, não constam da Ilíada.

A cidade de Dite, cercada pelo Estige (Botticelli, Séc. XV)

O barqueiro Flégias, segundo a tradição grega, foi um rei lapita cuja filha fora seduzida por Febo (Apolo) e que, para se vingar do deus, incendiou seu templo em Delfos, tendo sido por isso precipitado ao Tártaro13. Flégias não atravessava a travessia do Estige na mitologia grega: este tarefa cabia a Caronte, que ora cruzava este rio, ora o Aqueronte, como na versão de Dante. Para pagar-lhe a travessia, os gregos colocavam moedas sob a língua dos mortos, por medo a que, recusadas, as almas tornassem à Terra.

Após se aventurarem pelo Sexto Círculo, onde penam os hereges, os dois poetas ingressam no círculo dos violentos, e aí avistam o rio Flegetonte, no famoso canto dos Centauros (Inferno, Canto XII). O Flegetonte é um rio de sangue fervente, que escalda perpetuamente as almas dos violentos contra seus semelhantes14 – tiranos, latrocidas e assassinos –; e aqueles que ousavam levantar-se da fervura eram prontamente flechados pelos centauros15.

13 Também a Eneida o situa no Tártaro (Canto VI).14 “la riviera del sangue in la qual bolle qual che per vïolenza in altrui noccia”, Inferno, Canto XII, 47-48.15 “saettando qual anima si svelle del sangue piú che ua colpa sortille”, Inferno, Canto XII, 74-75.

Centauros flechando os violentos às margens do Flegetonte (Gustave Doré, Séc. XIX)

O Flegetonte da mitologia grega é um rio de fogo, donde seu nome, “flamígero”, ou “ardente”. A Odisséia reporta-se a ele como um dos rios que Ulisses deve seguir, sob a instrução de Circe, rumo ao Hades, assim como o Aqueronte16; e a Eneida de Virgílio também o cita, rio flamejante e tempestuoso, que Enéias vê correndo velozmente ao redor das tríplices muralhas do Tártaro17.

Após cruzar o Flegetonte no dorso do centauro Nesso – que, tendo tentado violentar Dejanira, mulher de Hércules, fora morto a flechadas pelo herói, mas conseguiu também tirar a vida deste –, Dante e Virgílio ingressam na Floresta dos Suicidas e, em seguida, no Deserto Ardente, onde sofrem os violentos contra Deus, a Natureza e a Arte. O toscano vê um riacho vermelho18, de leito e margens de pedra19, de cujas águas saem bolhas que extinguem, com seu vapor, a terrível e incessante precipitação de fogo20 que atormenta os condenados àquele lugar.

Dante indaga a Virgílio qual a origem daquele rio; este lhe explica, singularmente, que na superfície da Terra, precisamente em Creta, há uma estátua de um velho – voltada para Roma e de costas para Damieta – cuja cabeça é de ouro, de prata os braços e peito, de ferro o restante, à exceção do pé direito – que sustenta a estátua – e que é de argila. De todo o corpo (menos da parte áurea) vertem lágrimas que se infiltram pela terra até chegar àquela região; delas se formam as águas do Estige, Aqueronte e Flegetonte, seguindo por aquele riacho rubro até o lago Cócito, no fundo do Inferno.

A interpretação a esta intrigante resposta deve ser feita com base no que o próprio Dante chamara, no seu Banquete (Convivio), de sentido alegórico, “aquele que se esconde sob o manto dessas fábulas, configurando-se uma verdade oculta sob

16 Odisséia, Canto X, 513.17 Eneida, Canto VI, 265.18 “un picciol fiumicello, lo cui rossore...”, Inferno, Canto XIV, 77-78.19 “lo fondo suo ed ambo le pendici fatt’eran pietra, è margini da lato”, Inferno, Canto XIV, 82-83.20 “come ‘l presente rio, che sovra sè tutte fiammele ammorta”, Inferno, Canto XIV, 89-90.

bela mentira”21. Certo, a tal estátua é veterotestamentária22; mas tudo indica que Dante deu a ela um significado completamente diverso: valeu-se das Idades proclamadas por Hesíodo23 – uma metáfora da inexorável degradação da raça humana – para espelhar, na estátua, a própria humanidade.

O velho tem as costas voltadas para Damieta, porto egípcio que representa o mundo antigo, não-cristão, e mira Roma – a cidade cristã por excelência – “como seu espelho”24. Dante pode também ter aproveitado para fazer uma velada crítica à Igreja e ao Império, valendo-se dos pés de ferro e argila.

Virgílio confirma a Dante sua suspeita de aquele riacho vermelho originar-se do Flegetonte, e responde a este que mais adiante – já fora dali – ele verá o rio Letes.

A jornada prossegue; sucedem-se aduladores, magos, adivinhadores, simoníacos, rufiões, falsários, maus conselheiros, corruptos – enfim, toda sorte de fraudadores, gente que habita o Oitavo Círculo. Dante e Virgílio descem cada vez mais, encontrando uma legião de condenados anônimos ou conhecidos. Às bordas do Último Círculo, pedem ao gigante Anteu25 que os baixe ao ponto mais fundo, onde está o lago Cócito.

21 “è quello che si nasconde sotto ‘l manto di queste favole, ed è una veritate ascosa sotto bella menzogna”, Convivio, Trattato Secondo, 3.22 É um sonho de Nabucodonosor (Daniel 2: 31-33).23 Os Trabalhos e os Dias, 106-142: cinco raças se sucedem – de ouro, prata, bronze, a dos heróis e a de ferro – , cada qual mais corrompida que a anterior.24 “e Roma guarda come süo speglio”, Inferno, Canto XIV, 105.25 Filho de Gaia e Poseidon, era extremamente forte. Percebendo que a origem de sua força era estar em contato com a Terra (sua mãe, Gaia), Hércules levantou-o do chão e, mantendo-o suspenso, apertou-o até a morte.

Anteu desce Dante e Virgílio até o Lago Cócito (Gustave Doré, Séc. XIX).

O lago Cócito é, assim, o nono e último círculo do Inferno: sua superfície é inteiramente de gelo, a ponto de Dante comentar que parecia ser feita de vidro, não de água26. O Cócito é o estuário dos rios do Inferno: como num bacia hidrográfica medonha, a água, o sangue e a lama que os formam drenam implacavelmente para este lago27.

Cócito é o lugar mais profundo e terrível do Inferno, destinado aos traidores. Suas águas congeladas estão divididas em quatro círculos, dispostos em ordem de gravidade no sentido das bordas até o centro. O primeiro é Caína – inspirado na figura bíblica de Caim –, endereço dos traidores dos próprios parentes: ali, os condenados ficam mergulhados até um pouco abaixo da cintura28.

O segundo círculo gelado é Antenora, morada final dos traidores da pátria. Seu nome deve-se ao príncipe troiano Antenor, que alegadamente mantivera correspondência com o inimigo grego, favorecendo assim o cerco contra sua própria cidade. Em Antenora, somente as cabeças ficam de fora: Dante, inadvertidamente, chega a chutar o rosto de uma destas almas29.

26 “un lago, che per gelo avea di vetro e non d’acqua semblante”, Inferno, Canto XXXII, 23-24.27 “Acheronte, Stige e Flegetonta; poi sen van giú per questa stretta doccia infin là ove piú non si dismonta: fanno Cocito”, Inferno, Canto XIV, 116-119.28 “là dove appar vergogna”, Inferno, Canto XXXII, 34.29 “forte percossi il piè nel viso ad una”, Inferno, Canto XXXII, 78.

As almas aprisionadas nas águas congeladas do lago Cócito (Gustave Doré, Séc. XIX)

Ptoloméia é o próximo círculo dentro do lago Cócito. Ali são igualmente reféns do gelo seus moradores, mas de forma ainda mais cruel: somente os rostos estão de fora, e ainda assim a cada pranto as lágrimas imediatamente congelam, cobrindo toda a órbita ocular30. Ptolomeu, personagem bíblico (I Macabeus 16:11-16) que assassinou à traição seus convidados para um banquete, serviu de inspiração para o nome deste sítio, reservado aos traidores dos hóspedes: de fato, um dos interlocutores de Dante neste círculo explica que quando alguém em vida comete uma traição deste tipo, sua alma desce imediatamente à Ptoloméia, enquanto seu corpo é arrebatado pelo espírito de um demônio31 que o rege até o fim de sua vida física.

O último e mais tenebroso círculo dentro do lago Cócito é Judeca, cujo nome se deve ao supremo traidor: Judas Iscariotes. Aqui, as almas quedam completamente submersas, “como palhinhas no vidro”32: umas na vertical, outras jacentes na horizontal, de cabeça para cima ou para baixo, outras dobradas33. Judeca é o depósito das almas dos traidores de seus benfeitores, e isso justifica, ali, a presença do próprio Lúcifer: é seu bater de asas que produz um vento glacial, que congela as águas do Cócito.

30 “chè le lagrime prime fanno groppo, e sí come visiere di cristalo, rïempion sotto ‘l ciglio il coppo”, Inferno, Canto XXXIII, 97-99.31 “il corpo suo ‘ è tolto da um demonio”, Inferno, Canto XXXIII, 130-131.32 “come festuca in vetro”, Inferno, Canto XXXIV, 12.33 “altre sono a giacere; altre stanno erte, quella col capo e quella con le piante; altre, com’arco, il volto a’ piè rinverte”, Inferno, Canto XXXIV, 13-15.

Lúcifer e os condenados à Judeca (Gustave Doré, Séc. XIX)

Dante fraqueja e treme34 perante aquela pavorosa visão. Lúcifer está preso ao gelo da metade do peito para cima, e tem uma cabeça de três rostos – cada qual com seu par de asas –: a da frente vermelha, uma amarelada à direita e a da esquerda negra. Pelos seis olhos ele chora, dali escorrendo lágrimas que se juntam a uma baba de sangue. Cada boca morde um infeliz perpetuamente: a central mastiga, e esfola, Judas; a esquerda masca Brutus. Cassius está sendo devorado pela boca destra. Dante põe assim no centro do Inferno o traidor do Cristo e os conspiradores assassinos de Júlio César – alusão aos que se empenham em destruir o Papado (inclusive o próprio Papa) e o Império – juntamente com o anjo que se rebelou contra Deus.

Dante vinculou notavelmente a situação terrível do Inferno com rios de água conspurcada, antecipando uma hoje conhecida verdade: onde as águas não são de qualidade, não pode haver vida boa e sã; é possível mesmo cogitar, com base no Inferno de Dante, que rios poluídos são o prenúncio do Inferno, caracterizam-no e com ele muitas vezes se identificam.

Rios escoltam Dante ao longo de toda a sua jornada infernal, e não será diferente na hora de sua evasão dali: é por meio do murmúrio de um riachinho35 que os poetas começam a nortear sua ascensão rumo ao Purgatório. Este regato é Letes, que ambos, mais tarde, encontrarão – já rio formado – no Paraíso Terrestre; mas agora, libertos do Inferno, eles apenas tornam a ver as estrelas36...

34 “com’io divenni allor gelato e fioco” Inferno, Canto XXXIV, 22.35 “per suono è noto d’un ruscelletto”, Inferno, Canto XXXIV, 129-130.36 “a riveder le stelle” Inferno, Canto XXXIV, 139.

Dante e Virgílio avistam as estrelas, rumo ao Monte Purgatório (Gustave Doré, Séc. XIX)