Os Tres Medicos - Martins Pena

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  • 7/29/2019 Os Tres Medicos - Martins Pena

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    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    Os Trs Mdicos(Martins Pena)

    PersonagensMarcos - velho, pai de Rosinha e de Miguel - tenente de marinha

    Lino das Mercs - velho

    Dr. Milssimo - mdico homeopata

    Dr. Cautrio - mdico alopata

    Dr. Aquoso - mdico hidropata

    Um criado

    (A cena se passa no Rio de Janeiro, no ano de 1845)

    CENA I

    (Sala em casa de Marcos. Porta no fundo e direita; mesa e cadeira. Marcos, sentado

    junto mesa, e a seu lado Rosinha e Miguel. Marcos mostra no semblante abatimento)

    MARCOS - Meus filhos, pouco tempo poderei viver. As forcas abandonam-me. Tenhoo pressentimento que minha morte bem prximo est...

    ROSINHA - Meu pai, no desanime! Espero em Deus que esta sua molstia serpassageira.

    MARCOS - Passageira? Quando a vida assim se desorganiza inevitvel o seu fim.

    MIGUEL - Esse temor que pode tornar a molstia grave, quando talvez seja elaligeira, e em grande parte devida aos anos.

    MARCOS - Devida aos anos ela, mas no como pensas... Os anos a tm exacerbado.

    Deus o sabe como!ROSINHA - Mas os mdicos...

    MARCOS - Que pode a medicina em molstia como a minha? Aos mdicos no torno aculpa, que fazem eles o que aprenderam, e o que podem. A cincia muitas vezesineficaz.

    MIGUEL - Se meu pai consultasse a outro mdico...

    MARCOS - A outro? Que mais queres que eu faa? So poucos os que aqui tm vindo?

    O meu mdico assistente, o Dr. Cautrio, homem de reputao bem adquirida.

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    MIGUEL - No contesto. Antigo, rotineiro e feliz muitas vezes, mas se meu pai notem colhido vantagem com seu tratamento, para que no chama, por exemplo, ummdico homeopata?

    ROSINHA - Assim .

    MARCOS - No creio na homeopatia.

    MIGUEL - Se a no conhece! Peo-lhe um favor: um de meus verdadeiros amigos oDr. Milssimo. H pouco que chegou de Paris, aonde estudou com muita aplicao ahomeopatia. Permita que venha ele fazer-lhe uma visita.

    MARCOS - Debalde! Nada espero...

    MANUEL - O que lhe custa? Deixe-o vir; talvez tire-se proveito.

    ROSINHA - Eu estou persuadida que ele ser capaz de o por bom.

    MARCOS - Pois bem, que venha. No quero que se queixem de mim. Ouvi-lo-ei;pouco me custa.

    ROSINHA - J eu creio v-lo restabelecido e passeando alegre por esta sala.

    MARCOS - Alegre!... (levanta-se) Escuta, Rosinha, falemos de ti, que s moa e queainda podes viver longos anos - que isto por c est velho e muito desarranjado. Quandoeu morrer...

    ROSINHA - Meu pai!

    MIGUEL - Senhor!

    MARCOS - Quando eu morrer, ficareis desamparados...

    MIGUEL - Oh, enquanto eu viver, minha irm...

    MARCOS - s oficial de marinha; hoje ests aqui, amanh ali... Precria proteo! Deum marido precisa tua irm e este j escolhi.

    MIGUEL - Quem ?

    MARCOS - O meu amigo Lino das Mercs.

    ROSINHA - Meu Deus!

    MIGUEL - Ele?

    MARCOS - homem probo e honrado; tem a alma de um anjo. Far-te- feliz. Istoposso eu dizer por que o conheo h muito tempo. Tenho-lhe estudado o carter;

    andamos juntos na escola e desde esse tempo dura a nossa amizade.

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    MIGUEL - Marido to velho!

    ROSINHA - ( parte) Andaram juntos na escola!...

    MARCOS - s um rapazola, Miguel e s por tua idade julgas capazes de tudo. Tu,

    minha Rosinha, tens mais juzo. Isto um louco. Meu amigo Lino far-te- feliz.

    ROSINHA - Mas, meu pai, no desejo casar-me, e se...

    MARCOS - Cr, filha, que borda da sepultura ponho todo desvelo em fazer-teditosa... Casar-te-s com ele, e em breve, que assim de pede teu pai...

    ROSINHA - ( parte) No possvel, meu Deus!

    MIGUEL - ( parte) Veremos como isto ser...

    CENA II

    (Entra Lino)

    LINO - (entrando) Bom dia, amigo Marcos.

    MARCOS - Oh, a propsito vens. (Lino cumprimenta a Rosinha e a Miguel)

    LINO - Como se acha? Melhor? Vejo-o mais forte...

    MARCOS - Aparncias, amigo... Isto caminha mal. Rosinha, Miguel, deixem-me como meu amigo Lino.

    MIGUEL - ( parte, para Marcos) Meu pai, pense bem no que vai fazer.

    MARCOS - Tenho resolvido.

    CENA III

    (Marcos e Lino)

    LINO - O que queres de mim?

    MARCOS - J l se vo trinta anos que nos conhecemos! Amigos velhos! No tebastava esse ttulo, queres estreit-lo mais.

    LINO - Oh, tua filha um anjinho. Faz-me muito feliz. E consente ela?

    MARCOS - Consentir, porque ama-me e respeita.

    LINO - Oh, que contentamento! Que linda esposinha!

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    MARCOS - E preciso apressarmos este negcio.

    LINO - Quanto antes! Oh, que dia ser para mim!

    MARCOS - Quero deixar-lhe um amparo neste mundo que cedo deixarei...

    LINO - Ora, deixa-te disso! Ainda vivers, e muito, para veres os teus netinhoscorrerem por esta sala.

    MARCOS - Conheo o meu estado...

    LINO - Histria...

    MARCOS - Sabes tu, Lino, o que para o homem um temor contnuo, que por toda aparte o persegue, que noite o faz despertar banhado em suores frios, que no meio deparentes e amigos o traz sempre assustados e receoso e que o ameaa com a desonra?

    LINO - Pois que vai?

    MARCOS - Escuta-me amigo, devo descobrir-te um segredo e patentear-te assim acausa deste meu mal. H mais de quarenta anos que nos conhecemos; foste testemunhade minha louca e desperdiada mocidade... Rico sem parentes que me guiassem, vi-mecercado de amigos. Amigos!...

    LINO - Tratantes...

    MARCOS - Que pagavam-me com perniciosos exemplos e conselhos a fortuna queajudavam a desperdiar.

    LINO - Quimistas!

    MARCOS - Tu eras a nica exceo.

    LINO - E por isso brigavas sempre comigo...

    MARCOS - Mocidade!... Amei! Uma moa acendeu o meu peito violenta paixo. Noconhecia obstculos aos meus desejos, e dirigi-me a casa do pai, a fim de pedir-lhe a

    mo daquela que me fazia louco. Foi-me negada. A minha m reputao era conhecida;assim devia ser. Voltei para casa desatinado, revolvendo no pensamento milhares deprojetos. Para desabafar-me, escrevi uma carta a Maurcio, quele que se dizia meumelhor e sincero amigo.

    LINO - Oh, que grande patife!

    MARCOS - Ento no o conhecia eu... Foram estas as palavras da carta! "Meu amigo,ele negou-me a mo de Serafina, e suas desabridas palavras deixaram-me a cruel certezaque eu nunca a gozarei. Daria metade de minha fortuna para que este homem noexistisse." Carta fatal! Criminoso pensamento!

    LINO - Com efeito, no dos mais cristos...

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    MARCOS - Oito dias depois o pai de Serafina, quando entrava na porta de sua chcara,foi assassinado.

    LINO - Bem me recordo! Mas ainda no se soube por quem.

    MARCOS - No adivinhas agora?

    LINO - Maurcio?

    MARCOS - Sim, esse monstro!

    LINO - Eu bem te dizia que esse tratante tinha nascido para forca!

    MARCOS - Interpretou as palavras que eu escrevi no delrio da paixo; realizou opensamento que apenas vislumbrava na minha delirante imaginao... Amigo cruel!

    LINO - Boa laia de amigo!

    MARCOS - Baldadas foram as pesquisas da polcia.

    LINO - Andou tudo em pandareco... Que de conjeturas se fizeram!

    MARCOS - E eu tive a criminosa fraqueza de aproveitar-me deste crime to atroz. Umano depois eu estava casado com Serafina.

    LINO - L disso no te culpo eu, porque enfim no foste tu que mataste o velho.

    MARCOS - Trs anos depois de casado morreu minha mulher, deixando-me doisfilhos.

    LINO - Coitadinha, to boa senhora que era!

    MARCOS - E que a vida tem sido a minha, deste ento! Perseguido por esse homeminfernal, que de amigo que se dizia tornou perseguidor, no encontro descanso. Senhorda carta que lhe eu escrevi, no cessa de ameaar-me com a sua publicao, se de prontoeu no satisfazer os seus imoderados desejos. Metade de minha fortuna dizia eu quedaria para que o pai de Serafina no existisse; mais da metade tenho dado a Maurcio

    para que me entregue a carta fatal, mas o prfido zomba de mim, e novas exignciasacompanham novas promessas. O que ser de mim, se ele a publicar?

    LINO - No tenhas medo... Em primeiro lugar, porque ele no querer tambmdenunciar-te; em segundo, por ainda teres fortuna para lhe pagares a discrio. Otratante achou em ti uma mina de caroo...

    MARCOS - E quando eu tiver dado o ltimo real, serei levado ao tribunal e arrastado escada da forca, e meus filhos ficaro no mundo pobres e infamados! Eis o que memata! Ainda dirs que me posso curar? O mal est aqui... (aponta para o corao)

    LINO - Isto apreenso de mais... O homem no capaz de denunciar-te.

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    MARCOS - ... Tu no o conheces! Amigo, apressemos esse casamento, porque eu devomorrer quanto antes para salvar meus filhos.

    LINO - Isto mais nervos que outra coisa! Eu j pedi ao meu mdico que viesse hojever-te. hidropata; talvez te cure.

    MARCOS - Que me importam mdicos homeopatas ou hidropatas! No te vas embora,passa o dia conosco. Tenho ainda que falar-te. Rosinha? Vou descansar um pouco,sinto-me muito fraco.

    LINO - No queres o brao?

    MARCOS - No, obrigado, ai vem a menina. (Entra Rosinha) Ajuda-me. (Apoiado noombro de Rosinha sai)

    CENA IV

    (Lino, s)

    LINO - No deixa de ter razo, mas o caso no para tanto abatimento. Talvez que omeu doutor o ponha bom. Eu tenho c para mim que o seu mdico assistente, o Dr.Cautrio, um charlato, aprendeu no tempo antigo. Pobre velho! Estou que no caibona pele... De hoje a oito estarei casadinho!

    CENA V

    (Cautrio e Lino)

    CAUTRIO - Licena...

    LINO - Oh, o Dr. Cautrio! Como vai?

    CAUTRIO - Como passa o nosso doente?

    LINO - Anda muito apreensivo.

    CAUTRIO - Mau isso como o moral no podemos ns. Com licena. (assenta-se)Estou cansadssimo! M vida, Sr. Lino, m vida a do mdico!

    LINO - O doutor zomba; dizem que das melhores...

    CAUTRIO - Experimentem-na.

    LINO - Nenhum capital e avultados lucros...

    CAUTRIO - Sempre esta questo de dinheiro... Questo eterna!

    LINO - E vital!

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    CAUTRIO - No contam os incmodos, os dissabores e os desgostos por quepassamos. E os calotes... Somos como criados do povo. Julgam-se todos com direito aonosso saber, to arduamente adquirido e to pouco reconhecido! No temos hora, dianem descanso... Salva-se o doente, agradece-se natureza; morre o doente, culpa-se omdico. Que recompensa a noites de estudos e de insnia! Em nossos braos morrem a

    esposa, o amigo, os filhos, sem que lhe possamos valer. A nossos ps se arrasta adeplorada famlia pedindo a vida para o seu pai, cabea e arrimo, que todos os esforosda arte no puderam salvar. E essas cenas de angstia se reproduzem diariamente. Quevida! E invejam-na...

    LINO - Esse o nico lado mau. E o bom?

    CAUTRIO - (levantando-se) O nico? E essa scia de inovadores, magnetizadores,hidropatas e homeopatas com que lutamos todos os dias? (tira um jornal do comrcioda algibeira) Aqui esto nestas colunas as mais nojentas diatribes, os mais asquerososinsultos que esses charlates cospem contra a nossa face.

    LINO - Nunca gostei destas descomposturas...

    CAUTRIO - E que homem sisudo pode gostar? Discuta-se, argumenta-se eapresentem-se razes, e, sobretudo fatos; seja a contenda cientfica, que seraproveitoso; mas assim como ela apareceu e aparecer ainda entre ns pernicioso.Essas personalidades infames indispem os homens e no esclarecem os mdicos.

    LINO - Mas doutor, o senhor e os seus tambm tm culpa nisso!

    CAUTRIO - Fomos os agredidos! Assim devia ser... Quando se no tem razo,responde-se com insultos. E aonde iriam buscar os homeopatas razes convincentes

    para oporem s nossas? Onde? H sistema mais absurdo e ridculo do que ahomeopatia? Onde as bases em que se firmar - similia similibus curantur? AbsurdoContraria contrariis curantur - eis a verdade! H nada mais natural e simples do quetratar o calor pelo frio, o seco pelo mido, os humores pelos laxantes, a sua acridade

    pelo lcalis, etc. etc.? O contrrio disto no tem o senso comum. A alopatia o grande everdadeiro sistema e... Mas, ai, que eu estou aqui a questionar e o doente est a minhaespera! Com liena. (sai pela direita)

    CENA VILINO - Estes mdicos so todos mais ou menos intolerantes. Cada um quer matar l aseu modo, e brigam por isso como endemoninhados... Safa! De medicina s a hidropata;Ao menos leva-se tudo gua fria, que se no faz bem, tambm no faz mal. (batem

    palmas escada) Quem ?

    AQUOSO - (dentro) D licena?

    LINO - Oh, o meu Dr. Aquoso! Pode entrar.

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    CENA VII

    (Aquoso e Lino. Aparece porta Aquoso)

    LINO - Sem cerimnia... (Aquoso entra) J pedi ao amigo Marcos que o consultasse;

    est disposto a isto.

    AQUOSO Hei de p-lo bom!

    LINO - Homem, isso agora presuno de mais! Pois se ainda no sabe que molstiaele tem?

    AQUOSO - Tenha o que tiver, a hidropatia faz milagres!

    LINO - ( parte) A temos outro!

    AQUOSO - Meu caro, Deus criou tanta gua no mundo debalde. gua fria e mais guafria a grande panacia universal. gua para tudo, em tudo, com tudo e por tudo gua

    por todas as partes... E salve-se a humanidade!

    LINO - (rindo) Ah, ah, ah! doutor, voc devia trazer atrs de si uns poucos de ilhuscom carroas de gua...

    AQUOSO - Deixemos de zombaria. Onde est o doente? Quero arranc-lo das garrasda morte, isto , das mos de meus ignorantes colegas.

    LINO - Espere, tenho de consultar-lhe sobre um negcio. Tenho um conselho que lhepedir.

    AQUOSO - Muito me lisonjeia.

    LINO - Mas h de prometer-me falar com sinceridade.

    AQUOSO - Com toda a sinceridade.

    LINO - Dar-me- o seu parecer nu e cru, sem temor de ofender-me?

    AQUOSO - Eu o prometo.LINO - Quero saber se fao bem em casar-me.

    AQUOSO - Quem, vs?

    LINO - Sim, eu mesmo em pessoa. Que pensa?

    AQUOSO - Diga-me primeiro uma coisa...

    LINO - O qu?

    AQUOSO - Que idade tem?

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    LINO - Eu?

    AQUOSO - Sim.

    LINO - No estou certo.

    AQUOSO - O senhor tem pelo menos sessenta e oito anos.

    LINO - No h tal... E que os tenha? Os anos no valem nada. Ainda estou forte e bemconservado; no me troco por muitos moos.

    AQUOSO - Meu amigo, falar-lhe-ei com franqueza, que assim exigiu de mim. No secase. O homem de sua idade no deve fazer essa loucura; os inconvenientes soinumerveis. Deixe-se disso, no se case...

    LINO Hei de me casar! E ningum ser capaz de persuadir-me do contrrio. Por que

    no me hei de casar? Essa boa! Estou resolvido e muito resolvido.

    AQUOSO - Isto agora outro caso... Case-se, amigo.

    LINO - J pedi a moa.

    AQUOSO - Case-se, meu amigo; faz muito bem.

    LINO - Ainda estou bem disposto.

    AQUOSO - Pois no, case-se.

    LINO - Tenho uma sade robustissima. Que importa a idade? Ainda tenho todos osmeus dentes. (mostra os dentes) O peito est perfeitssimo... (tosse) Que lhe parece? As

    pernas vigorosas; sou capaz de danar a polca. (dana) Se loucura, estou resolvido apratic-la.

    AQUOSO - E ter muito juzo...

    LINO - Ento acha que eu fao bem?

    AQUOSO - Oh, muito bem! Pois no, case-se, e quanto antes.LINO - Um abrao! Muito me alegra que me d esse conselho e que o meu amigo sejada minha opinio.

    AQUOSO - Que idade tem a noiva?

    LINO - Quinze anos!

    AQUOSO - Ela tem quinze e o senhor tem sessen... Com a fortuna!

    LINO - O que ?

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    AQUOSO - Nada, case-se, case-se.

    (sai pela direita, rindo-se)

    CENA VIII

    (Lino, s e depois Miguel)

    LINO - Esta minha unio h de ser muito feliz. Todos riem-se quando eu falo nela;estou contentssimo!

    MIGUEL - (entrando) Meu pai o chama. (Lino sai)

    CENA IX

    (Miguel, s, e depois Milssimo)

    MIGUEL - Queres casar com minha irm, gebo? Eu te mostrarei como isto h de ser...

    MILSSIMO - (entrando) Miguel?

    MIGUEL - Oh, por que no vieste mais cedo? H uma hora que te espero.

    MILSSIMO - Estive ocupado no Instituto Homeoptico.

    MIGUEL - Deixa-te de Instituto e dize...

    MILSSIMO - Que eu deixe do Instituto! Meu amigo, a cincia homeoptica marchacom passos de Briareu; Hahneman triunfa e Broussais leva o diabo.

    MIGUEL - Tu principias...

    MILSSIMO - (com entusiasmo) Os estpidos e ignorantes alopatas j voreconhecendo a nossa supremacia. Mdicos carrascos, rotineiros, asnos enfim, queexperimentam no msero doente os seus infernais medicamentos, que misturam de um

    modo horroroso milhares de nojentas drogas em uma s receita; que furam, atassalham,queimam, martirizam e desgraado paciente. Pobres doentes! Forte canalha! Ahomeopatia triunfa por toda a parte. Os esclarecidos soberanos a acolhem em seu estadocom os braos abertos.

    MIGUEL - D-me ateno!

    MILSSIMO - Hamburgo, Framcfort, Magdeburgo, Varsvia, Moscou, Petersburgo,Dronstadt, Mannheim, Estrasburgo, Npoles, Roma, Gnova, Londres e Paris, etc.,ufanam-se de seguir os seus ditames. A homeopatia o nico e verdadeiro sistemamdico. O prprio Hipcrates disse: "Vomitus curantur." O que isto, seno

    homeopatia? O vitalismo a base das mulheres doutrinas mdicas. Bichat, Andral,

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    Boerhaave, Paracelso, Cooper Astley, Chaussier, Thomassine, Dupuytren, o prprioBroussais foram homeopatas sem o saberem! (tira o leno e enxuga o rosto)

    MIGUEL - Acabaste?

    MILSSIMO - (continua com mais calor) S foi dado a um homem, ao sublimeHahnemann, esclarecer o mundo!

    MIGUEL - Ouve-me, com todos os diabos!

    MILSSIMO - (continuando) Broussaisistas e broussaisistas levantam-se contra ns.Que importa?

    MIGUEL - Ah, espera que te curo! (falam ambos ao mesmo tempo)

    MILSSIMO - No admiram-me esses ataques. Quando a nova doutrina aparece no

    mundo mdico, os mais virulentos crticos a perseguem; mas a verdade segue avante.

    MIGUEL - realmente uma desgraa! Estes velhos so teimosos... E que remdio,seno fazer-lhes a vontade? Mas custa! Casar-se a minha pobre irm, a minha queridaRosinha!

    MILSSIMO - (deixando repentinamente de falar e dirigindo-se para Miguel)Rosinha? O que h de novo?

    MIGUEL - (continua, sem dar ateno a Milssimo) Que casamento todesproporcionado! Com um velho!

    MILSSIMO - Falas de tua irm?

    MIGUEL - (no mesmo) Mas enfim, quando um pai exige, que remdio!

    MILSSIMO - Responde-me, com os diabos!

    MIGUEL - (no mesmo) Os filhos devem obedincia ao pai. Quando manda, cumpre-se.De hoje a oito dias est casada.

    MILSSIMO - (sacudindo-o pelo brao) O que isso de oito dias? No meresponder?

    MIGUEL - Oh, falava comigo? No sabia.

    MILSSIMO - Que casamento esse? Com quem? Quando? Como se resolveu?Depressa!

    MIGUEL - Oh, j me ds ateno?

    MILSSIMO - Olha que te esgano! (quer-lhe agarrar no pescoo)

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    MIGUEL - Chega-te para l! Desde que entraste, esforo-me para te participar estarepentina resoluo de meu pai, e tu a quebrares-me a cabea com a malditahomeopatia.

    MILSSIMO - Maldita?

    MIGUEL - Ai, pior! Se continuas a atrapalhar-me, largo tudo de mo e deixo-teentregue a ti mesmo! E a mana Rosinha casar-se- com o velho Lino.

    MILSSIMO - Com o Lino?

    MIGUEL - Meu pai assim o quer; mas eu digo-te que ela se h de casar contigo. Souteu amigo, e os amigos conhecem-se nas ocasies. O meu plano est traado; Rosinha jest dele informada. A ti nada digo, porque botarias tudo a perder com a tuahomeopatia. Basta que estejas informado do ocorrido. J falei a meu pai para te ouvirsobre a sua molstia. Ganha a sua confiana. Receita, d-lhe glbulos e tinturas, mas

    no o mates.

    MILSSIMO - A homeopatia no mata, a homeopatia...

    MIGUEL - s incorrigvel! Adeus, que vou ao quartel. Podes entrar quando quiseres.At j. Ateno! (sai)

    CENA X

    (Milsimo e depois Rosinha)

    MILSSIMO - (s) Isto est mau! Se o velho ateimar, por mais que o Miguel faa,nada conseguir. Maldito Lino! Agora que eu desejava ser mdico alopata, para temandar desta para melhor vida! Entremos. (vai a entrar e aparece Rosinha) Rosinha,estou desesperado!

    ROSINHA - J sabe?

    MILSSIMO - Teu mano tudo contou-me.

    ROSINHA - No desanime ainda!MILSSIMO - Eu temo...

    ROSINHA - O mano Miguel j combinou comigo.

    MILSSIMO - E que pretendem vocs fazerem? (aqui aparece porta Lino)

    LINO - ( parte) Ol! (pra, a fim de observar. Rosinha, que o v, continua a falar comMilssimo como se estivessem ss)

    ROSINHA - ( parte) Beije a minha mo.

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    MILSSIMO - Eu?

    ROSINHA - ( parte) Beije minha mo, depressa! (Milssimo beija a mo de Rosinha.Lino d um pulo de surpresa)

    LINO - ( parte) Hum! (arrepelando-se)

    ROSINHA - ( parte, para Milssimo) Ajoelhe-se... (Milssimo ajoelha-se) Beije...Mais... (Milssimo beija-lhe a mo)

    LINO - ( parte) Hum!

    ROSINHA - (alto, para que Lino a oua) Bem sabes quanto te amei e ainda te amo,mas devo obedecer a meu pai. Sou filha obediente, casar-me-ei com o senhor Lino.

    MILSSIMO - Pois isso deveras?

    ROSINHA - Mas que importa que eu d a minha mo a esse homem?

    MILSSIMO - (sempre de joelhos) O que importa?

    ROSINHA - Que o acompanhe ao altar? Serei sua mulher, preencherei os deveres deesposa fiel, mas o meu corao ser sempre teu.

    LINO - ( parte) Hum!

    MILSSIMO - Mas isto no me basta!

    ROSINHA - (continuando) E demais, conto com a sua avanada idade. Ele velho,pouco pode viver. Ao depois nos uniremos.

    MILSSIMO - No isto o que me prometeste?

    LINO - Hum! (batendo com os ps)

    ROSINHA - (fingindo que v Lino pela primeira vez) Ah, est a meu futuro...

    (Milssimo levanta-se)LINO - ( parte) Futuro espantalho...

    ROSINHA - Chegue-se para c.

    MILSSIMO - ( parte, para Rosinha) Zomba!

    ROSINHA - Tenho a satisfao de apresentar-lhe o Sr. Lino das Mercs, meu futuroesposo.

    MILSSIMO - Oh, Senhor, tenho muito prazer em o conhecer... (cumprimentam-se aparte, para Rosinha) Mas...

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    ROSINHA - pessoa muito de bem e condescendente; conhece a pureza do nossoamor e no estranhar que continuemos a amarmo-nos.

    MILSSIMO - Oh, senhor, tanta bondade! (cumprimentam-se. Lino j no pode darpalavra, surpreendido pelo que ouve, e s se lhe nota no semblante extrema surpresa.

    Milssimo, tomando rosinha parte) Acabemos com isto, seno despropsito!

    ROSINHA - Se despropositas, tudo se perde.

    MILSSIMO - Ento casa-te com ele?

    ROSINHA - No.

    MILSSIMO - Mas que...

    ROSINHA - o plano combinado com o mano Miguel.

    MILSSIMO - Ah, por que no me preveniste? (rindo-se) Ah, ah, ah! Meu amigo,(encaminha-se para Lino, que recua) aperte-me esta mo. (segue a Lino at junto aobastidor, toma-lhe a mo e sacode com fora) Sejamos amigos! (trazendo para o meioda cena) Sua futura uma prola... D-me um abrao! (abraa-o com fora) Queventura, ter to amvel mulher e to verdadeiro amigo! Outro abrao! (abrao-o) Somosambos felizes, muito felizes! (chega-se para Rosinha, ajoelha-se) Permita que eu toquecom os meus lbios e esta nevada mo. (beija-lhe a mo e levanta-se) Adeus, meu caroe ntimo amigo, vou ver o doente. (sai pela direita. Lino v tudo, estupefato)

    CENA XI

    (Rosinha e Lino)

    ROSINHA - A severidade de meu pai tem-me trazido em abominvel sujeio. Hmuito tempo que me desesperava a pouca liberdade que tenho, e mil vezes tenhodesejado casar-me para fazer a minha vontade. Graas a Deus, felizmente apareceste, eeu vou recobrar o tempo perdido! Seremos ditosos! Em bailes, partidas, teatros, jantaresesplendidos, passeios campestres passaremos a vida. Ainda no gozei do mundo -sempre em casa, fechada com meu pai! Venha agora a desforra! A teu lado serei a mais

    feliz das mulheres. Daremos uma partida todas as semanas, convidaremos os nossosamigos, teremos carruagem, carrinhos e caleas para passearmos, chcaras parapassarmos os domingos, camarotes para ambas as companhias - Italiana e dramaturgica,criados, damas de companhia, esplndidos aparelhos, casa suntuosa - enfim, passaremosvida de bem-aventurados! Estars sempre a meu lado, e quando os teus achaques -

    perdoe-me, se j te falo com esta familiaridade -, quando os teus achaques da velhice teprenderem em casa, a est o teu novo amigo para acompanhar-me ao passeio e aoteatro; para fazer as tuas vezes nos jantares que dermos...Tu o recebers comcandura...Em nossa mesa haver sempre um talher posto para ele. Que ventura a minha!Como tarda o dia da nossa feliz unio! Adeus, esposo, at logo. (sai pela direita. Lino

    fica por alguns instantes sem dar palavra, olhando para a porta por onde saiu Rosinha)

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    LINO - E ento? (momento de silncio) J no me quero casar. Estou muito velho, noposso com isso. Vou desmanch-lo. Mas como? E o meu amigo? E minha palavra? Emboa estou metido! Oh, que menina, oh, que prola! Nada, nada, estas coisas no so paramim... No posso, estou muito velho... Vou-me aconselhar com o Dr. Aquoso, ele aivem!

    CENA XII

    (Entra o Dr. Aquoso, desesperado sem ver Lino)

    AQUOSO - So uns ignorantes, ignorantssimos, corja de coveiros!

    LINO - ( parte) Que diabo tem ele?

    AQUOSO - (no mesmo) Sustentarei at o ltimo alento que no h no mundo bestas

    mais bestas do que vs meus carssimos colegas!

    LINO - ( parte) Ai, que brigaram!

    AQUOSO - (no mesmo) Querem curar assim? Babau! Assassinos de profisso, de borlae capelo... Desgraados dos que se entregam em suas mos! Receitem, matem, quedaro contas a Deus.

    LINO - O homem est bravo! Doutor?

    AQUOSO - (no mesmo) Que absurdos, que burrices!

    LINO - Doutor, oua-me... (tomando-o pelo brao)

    AQUOSO - Oh, o que quer?

    LINO - Queria que me desse um parecer...

    AQUOSO - (voltando-se para a porta por onde saiu) Estais em vosso juzo? Sabeisbem o que fazeis?

    LINO - Eu vos...AQUOSO - E que responsabilidade pesa sobre vs?

    LINO - Faa-me o obsquio...

    AQUOSO - Assim se mata um homem, de sangue frio...

    LINO - No me deixar falar, homem?

    AQUOSO - E abusa-se da cincia?

    LINO - (tomando-o pelo brao) O que isto doutor, ofenderam-no?

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    AQUOSO - Oh, de uma maneira horrorosa! Ousarem argumentar comigo e sustentaremque a gua fria no remdio eficaz para curar todas as molstias!

    LINO - Isto uma blasfmia!

    AQUOSO - Blasfmia horrvel! Quero ver o que fazem os custicos, as bichas, asventosas e todo esse aparelho infernal...

    LINO - ( parte) preciso ir com ele... (alto) verdade, quero ver o que fazem.

    AQUOSO - Ou essas tinturas e ninharias homeopticas!

    LINO - (voltando-se para a porta) Ignorantes!

    AQUOSO - (votando-se para a porta) Burros!

    LINO - (no mesmo, enquanto Aquoso passeia pela sala) Sois muito atrevidos emquererem argumentar com um homem como o doutor, de to abalizados conhecimentos! imprudncia e desaforo. Devereis ouvir contritos as suas opinies e segui-las risca,mas o orgulho vos perde e a ignorncia vos sustenta. (aqui Aquoso sai sem que Lino d

    f) Longa experincia tem-lhe demonstrado que gua fria o remdio universal - o mais absurdo e ridculo. S a estupidez pode seguir outro trilho, loucos, malvados,assassinos! Doutor, estais vingado! (voltando-se para a cena) Agora, oua-me. Que dele? Foi-se! e esta! E eu a esgoelar-me... Isto hoje vai bem! E a menina e a sua arenga,que no me saem da cabea... Ao amigo Marcos no ouso dizer nada. Boa lembrana,vou empenhar-me com o Dr. Cautrio a ver se ele desmancha honradamente estecasamento que j se me atravessou na garganta. Vamos, falemos ao doutor. (vai a sair

    pela direita e abordado pelo Dr. Cautrio, que entra com impetuosidade) Doutor?(Cautrio, sem dizer palavra, endireita-se para a porta do fundo) Doutor? Doutor?(Cautrio sai) L vai outro com o diabo nas tripas. Desta salva-se, ou morre o doente...E eu sem decidir coisa nenhuma. O remdio entender-me com o meu novo e sinceroamigo...Safa com tal sinceridade! Que prola!... (vai para sair)

    CENA XIII

    (Milssimo entra arrebatadamente)

    MILSSIMO - Seria esquecer-me de todos os preceitos de humanidade, se o deixasseentregue a esses algozes.

    LINO - Doutor, faz o obsquio...

    MILSSIMO - Ver assim assassinar a um homem! Que assassinado morrer ele, seisto continua.

    LINO - Parece que se ajustaram!

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    MILSSIMO - Onde est o senso comum desta gente? Que fazem da inteligncia?Inteligncia? Essa no a tm eles, que se a tivessem abandonariam a horrvel prtica queseguem. (aqui entra pelo fundo um pajem com uma carta na mo e sai pela direita)

    LINO - ( parte) Este tambm est doido... No arranjo nada. (vai a sair pela direita;

    Milssimo trava-lhe o brao)

    MILSSIMO - Diga-me, meu caro, o senhor amigo verdadeiro do dono desta casa?

    LINO - Prezo-me de o ser.

    MILSSIMO - Pois previno-o que ele vai ser vtima do mais horrssono atentado.

    LINO - Um atentado? Explique-se...

    MILSSIMO - Matam-no hoje mesmo.

    LINO - Matam-no? E quem?

    MILSSIMO - O Dr. Cautrio, esse infernal alopata, esse...

    LINO - (rindo-se) Ah, ah, ah!

    MILSSIMO - O senhor ri, se o caso de morte!

    LINO - Doutor, ns os conhecemos e muito bem avaliamos a amizade que h entre ossenhores mdicos.

    MILSSIMO - Engana-se! No fala em mim o esprito de sistema. cabeceira dodoente, s trato de salv-lo. Abandono controvrsia e animosidade. Por isso digo-lhecom ntima convico que o Sr. Marcos pode-se contar como defunto, se continuar atratar-se, como acaba de assegurar-me, com o Dr. Cautrio, com esse estpido eignorantissmo alveitar. Meu amigo, peo-lhe um favor. Eu vou a casa buscar a minha

    botica homeoptica, quero preparar aqui mesmo uma tintura para o nosso amigo edoente. No entanto, resolva-o a abandonar o seu assassino.

    LINO - Mas...

    MILSSIMO - Resolva-o, meu amigo, resolva-o, que eu j volto. Asnos, estpidos!

    (sai)

    CENA XIV

    (Lino, s, e depois Marcos)

    LINO - E que tal? No sei se os doutores homeopticos so alguma coisa em medicina,

    mas em descompostura posso afianar que so insignes. Que gente! E atrapalharam... Eo diabo da menina no me sai da cabea! Nada, o melhor decidir a falar ao amigo

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    Marcos... Coragem! (vai a entrar e entra Marcos como alucinado. traz uma carta namo)

    MARCOS - (entrando) Estou perdido, perdido!

    LINO - ( parte) Tambm ele...

    MARCOS - Desgraado de mim!

    LINO - (seguindo) O que ? O que aconteceu?

    MARCOS - Que farei?

    LINO - Mas o que foi?

    MARCOS - L esta carta; desse maldito homem que ser a causa de minha perdio.

    (d-lhe a carta)

    LINO - (lendo) "Carssimo amigo, no sei como isto acontece. O dinheiro em minhamo voa, e cada vez tenho mais necessidade dele... Manda-me dinheiro, bastam-me doiscontos. Seno...Entendes-me?"

    MARCOS - Desgraadamente... Continua...

    LINO - (continuando a ler) "Esquecia-me dizer-te uma coisa. Antes de ontem vi tuafilha janela. Gostei dela e quero que seja minha mulher. Arranja isto de modo quedentro de oito dias esteja tudo concludo; ando incomodado e no quero morrer semmulher. Trata do dote, mas v l o que fazes - quero que seja avultado. S assim teentregarei aquela cartinha que me escreveste h dezesseis anos... Bem sabes, se tiveres a

    petulncia de negares o que eu peo, vai tudo com os diabos, e terei a satisfao de tever danar na fora a meu lado. Adeus. Medita e responde. Teu do corao, Maurcio."

    MARCOS - Quem me salva, quem me salva?

    LINO - Prudncia, e pensemos.

    MARCOS - Meu Deus!

    LINO - Lamentaes para o lado, e vejamos o meio de remediar isto.

    MARCOS - No h meios que valham!

    LINO - Manda-lhe o dinheiro...

    MARCOS - E mais exigir, e mais, e sempre mais, e por fim minha filha!

    LINO - Vou falar-lhe...

    MARCOS - Nada conseguirs.

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    LINO - O caso de atrapalhar...

    MARCOS - Desgraado! Meus queridos filhos! Que eu viva assim!...

    LINO - Ocorre-me uma idia. J viste representar-se Catarina Howard?

    MARCOS - A ocasio boa para zombares!

    LINO - Quem zomba? J viste tambm Julieta e Romeu?

    MARCOS - Lino!

    LINO - Escuta. Catarina v-se atrapalhada pelo rei, finge-se morta; Julieta, embaraadacom o pai que a quer obrigar a casar contra sua vontade, tambm finge-se morta...Fazetu outro tanto.

    MARCOS - Mas quem...

    LINO - Vai para dentro, comunica a tua filha este nosso plano veste o teu hbito deirmo terceiro e deita-te na cama, e morre.

    MARCOS - Morre!...

    LINO - Faze de conta. Logo que fores defunto, principiar em casa a choradeira elamentaes. Chamam-se os armadores para armar a porta da rua; a notcia espalha-se

    pela cidade e, no entanto eu corro a casa do tal patife, que j informado de tua morte - asms notcias voam - se acomodar mediante alguma pequena vantagem. Que te parece alembrana?

    MARCOS - E julgas que assim ele se acomodar?

    LINO - E que remdio ter ele? De que valor lhe ficar sendo a tua cartinha, logo queestejas morto? E sobre o temor que tens da morte que ele especula.

    MARCOS - E o que preciso fazer?

    LINO - O que eu j te disse. (empurrando para dentro) Vai para dentro, vai, veste o

    hbito e deita-te... E morre... Anda, vai morrer. (Marcos sai) Se eu no fosse seuverdadeiro amigo, deixava-o entregue a si mesmo e descartava-me assim da filha, masisto seria infame. Veremos o efeito que faz a sua morte. No que dar tudo isto? O diahoje vai bem. Excelente, pois no?

    CENA XV

    LINO - (retendo-o) Espera! No sabe o que lhe aconteceu?

    AQUOSO - Acontecesse o que acontecesse, hei de salv-lo! (aqui entra o Dr.

    Milssimo, trazendo debaixo de brao uma botica homeoptica)

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    MILSSIMO - Eu que hei de salv-lo!

    AQUOSO - Quem? O senhor?

    MILSSIMO - Eu sim? Eu mesmo, com uns glbulos que vou administrar-lhe.

    AQUOSO - Desta me rio eu! Ah, ah, ah!

    MILSSIMO - De que se ri?

    LINO - Senhores, muito me penaliza participar-lhes que o meu amigo Marcos...

    MILSSIMO - Espera, isto ao depois! Quero primeiro que o senhor doutor Aquriodiga-me por que se ri dos meus glbulos!

    AQUOSO - (rindo-se) Tratar um doente com glbulos... Ah, ah!

    MILSSIMO - Doutor!

    LINO - Senhores, eu...

    MILSSIMO - (vendo os negros de barris, desata a rir) Ah, ah! Aquilo gua fria?

    AQUOSO - !

    MILSSIMO - Tratar um doente com gua fria! Ah, ah!

    LINO - Um s momento de ateno, quero participar-lhes...

    MILSSIMO - (rindo-se) Logo dois barris! O doente pegou fogo? Ah, ha! (os doisriem-se, dizendo, um - glbulo - e outro gua fria)

    LINO - (enquanto dos dois riem-se) E ento? Quando os mdicos se ajuntam, oubrigam ou escarnecem-se. (aqui entra o Dr. Cautrio, seguido de um moo que traz umgrande vidro com bichas)

    CAUTRIO - (entrando) J aqui esto?

    LINO - Doutor? (vai para junto dele, ficando Lino e Cautrio ao fundo, e Milssimo eAquoso frente, rindo-se sempre)

    CAUTRIO - (para Lino) De que se riem?

    LINO - Asneira.

    CAUTRIO - Deix-los! Vou aplicar estas bichas.

    MILSSIMO - Bichas? (voltando-se e vendo o Dr. Cautrio) Oh, por c? O que isto

    de bichas? Quem falou em bichas?

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    CAUTRIO - Eu!

    MILSSIMO - Bichas!

    CAUTRIO - ( parte) Temos bulha!

    CAUTRIO - Senhores! Curem os mdicos, qualquer que seja o sistema que julgaremconvenientes.

    MILSSIMO - E quem so os que matam? (os trs ao mesmo tempo, apontando cadaum para os outros dois) Os senhores!

    LINO - Ol!

    OS TRS - (no mesmo) Os senhores insultam-me!

    LINO - Basta! Toda esta contenda se acabar quando souberem que o doente...

    MILSSIMO H de ser curado por mim! (pega na botica que deixou sobre a mesa)

    AQUOSO H de ser por mim! (para os negros) Tragam a gua. (encaminha-se paraa porta da direita)

    CAUTRIO H de ser por mim! (para o moo) Traz as bichas. (os trs mdicoschegam ao mesmo tempo porta da direita. nesse momento entra Rosinha, chorando)

    CENA XVI

    ROSINHA - (entrando) Que desgraa, que desgraa!

    CAUTRIO - O que aconteceu?

    MILSSIMO - O que foi?

    ROSINHA - Que infortnio o meu! (assenta-se junto mesa)

    AQUOSO - Seu pai?ROSINHA - Expirou neste momento.

    TODOS - Morreu!

    LINO - (com exclamao) Meu amigo! (sai pela direita)

    AQUOSO - Assim devia ser...

    MILSSIMO - Se foi tratado pelo Sr. Dr. Cautrio!... (Cautrio est como penalizado

    pela notcia)

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    AQUOSO - Sangue e mais sangue tirado!

    MILSSIMO - Custicos e mais custicos!...

    AQUOSO - extrema fraqueza segue-se a morte...

    MILSSIMO - Aps o martrio vem a morte...

    AQUOSO - (para Cautrio) Colega, mataste o doente!

    MILSSIMO - Colega, assassinaste ao homem!

    CAUTRIO - Deixem-me!

    AQUOSO - No lhe dizia que o tratamento seguido daria com ele na tumba? A est!

    MILSSIMO - E que a infernais drogas o enviariam ad patres?...

    AQUOSO - No quis ouvir-me...

    MILSSIMO - Ateimou em suas aplicaes...

    CAUTRIO - Ai, que se vo-me as orelhas esquentando!

    ROSINHA - Meu infeliz pai!

    CENA XVII

    (Entra Lino)

    LINO - (entrando) J est frio!

    CAUTRIO - Vou v-lo.

    LINO - (retendo-o) Aonde vais? J no o pode valer.

    MILSSIMO - No lhe valeu em vida; agora depois de morto, que quer cur-lo. Paraque o matou?

    ROSINHA - Meu pai! (Lino chega-se para ela, como consolando-a)

    CAUTRIO - (chega-se para Milssimo e Aquoso, arrebatado) Os senhores tero abondade de no me darem nem mais uma palavra!

    MILSSIMO - E se eu der?

    AQUOSO - E se eu me no calar?

    CAUTRIO - Previno-os que a pacincia tem limites...

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    MILSSIMO - O assassinato tambm tem limites, e, no entanto todo dia assassinam-sehomens com a maldita alopatia.

    CAUTRIO - Senhor!

    AQUOSO - Se s usassem de gua fria...

    MILSSIMO - V-se voc tambm ao diabo com a sua gua fria!

    AQUOSO - V ele, no seja tolo! (aqui entre Miguel. Lino, vendo-o entrar, dirige-separa ele; falam em segredo. Lino, surpreso pelo que lhe diz Miguel, chega-se para

    Rosinha, fala com ela e saem todos os trs apressados pela direita. os trs mdicos

    ficam em cena questionando, sem verem os que saem)

    MILSSIMO - Tolo?

    CAUTRIO - Mais do que tolo ele: atrevido!

    MILSSIMO - Atrevido?

    AQUOSO - E ignorante... Com os seus glbulos!...

    CAUTRIO - E Charlato!

    MILSSIMO - E tu, com os teus custicos bichas, e tu, com a gua fria? Burros!

    AQUOSO - Burro ele, que mata os doentes a couces.

    CAUTRIO - Se o doente estivesse nas tuas mos, j h muito que tinha espichado acanela.

    MILSSIMO - Havia salv-lo! Tu que o mataste, carrasco e esfola-burros!

    CAUTRIO - Patife!

    MILSSIMO - (segurando Cautrio pela casaca) Quem patife? Tratante!

    CAUTRIO - Tire as mos, s alveitar!AQUOSO - Largue o outro e fale comigo, s beladona!

    MILSSIMO - Hei-de te ensinar a ti e a este toleiro!

    AQUOSO - (segurando Milssimo pela casaca) Quem toleiro?

    MILSSIMO - Tu! (Milssimo d uma bofetada em Aquoso; Cautrio d outra emMilssimo. principiava entre os trs uma luta de pancadas e desconposturas as libitum)

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    CENA XVIII

    (Marcos, vestido de hbito de terceiro Santo Antnio, aparece a porta, seguido de Lino,

    Miguel e Rosinha)

    MARCOS - (entrando) Estou salvo! (os trs mdicos espantam-se vendo Marcos)

    OS TRS - O defunto! (recuam espavoridos para a extremidade esquerda do teatro, osdois negros e o moo das bichas deitam a correr pela porta afora)

    MARCOS - Estou salvo!

    OS TRS - Ressuscitou!

    MARCOS - (para os mdicos) Meus amigos, alegrem-se comigo.

    OS TRS - No fui eu que matei, foi aqui o meu colega. (empurram um para diante dooutro)

    MARCOS - (chegando-se para eles) Que temor esse?

    OS TRS - Ai!

    LINO - Doutores, olhem que o homem est vivo.

    OS TRS - Vivo?

    MARCOS - E bom de todo.

    AQUOSO - Pois no morreu?

    MARCOS - No me v?

    CAUTRIO - (para Lino) Que gracejo foi este, senhor?

    MARCOS - Doutor, no se altere. Uma causa moral trazia-me acabrunhado e em breveme levaria a sepultura. Um homem existia cuja vida era o meu tormento; mas graas a

    Deus essa causa moral desvaneceu-se e esse homem deixou de existir. O senhorMaurcio morreu, e eu estou salvo!

    MILSSIMO - O senhor Maurcio morreu?

    MIGUEL - H uma hora.

    MILSSIMO - Morreu? No possvel!

    CAUTRIO - (rindo) Ah, ah, ah!

    MARCOS - De que se ri?

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    CAUTRIO - O mdico do senhor Mauricio, aquele que o tratava nessa pequenaindisposio de que morreu, ali o Sr. Dr. Milssimo...

    MARCOS - (corre para Milssimo e o abraa) Meu amigo, quanto lhe devo!

    CAUTRIO - Tratou-o homeopticamente... Ah, ah, ah!

    MARCOS - O senhor foi quem o matou?

    CAUTRIO - Foi ele, sim. Ah, ah!

    AQUOSO - Foram os seus glbulos... Ah, ah!

    MARCOS - Meu salvador, exigi de mim o que quiserdes. Tudo vos darei.

    MILSSIMO - Senhor...

    MARCOS - Como vos hei de eu recompensar este to insigne servio, como agradecer-vos?

    LINO - S de um modo...

    MARCOS - E qual ele?

    LINO - O senhor doutor Milssimo, matando o senhor Maurcio, salvou-te a vida; eeste servio no h ouro que pague. Assim, d-lhe a mo de tua filha.

    MILSSIMO - Oh!

    MARCOS - A mo de minha filha?

    LINO - S assim te desobrigars. ( parte)... E eu me verei livre dela.

    MILSSIMO - Assim tambm penso eu...

    MARCOS - (para Lino) Mas tu desistes?

    LINO - Sacrifico-me amizade e gratido.MARCOS - E tu, filha?

    ROSINHA - O que posso eu hoje negar a meu pai?

    MARCOS - Vem c. (para Milssimo) Aqui est minha filha. a maior recompensaque lhe posso dar. Sou grato; s uma coisa lhe peo, e que no h de curar em minhacasa. O Doutor (volta-se para Cautrio) Continuar a ser o meu mdico; com ele meentendo eu. Est por isso?

    MILSSIMO - O que no farei eu para agrad-lo?

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    MARCOS - Excelentemente. Amigo, Miguel, um abrao. (abraam-se formando umgrupo)

    CAUTRIO - (para Milssimo) Colega, de hoje em diante acreditarei no vossosistema, porque j vi um homeopata ressuscitar a um morto fazendo uma morte... Ah,

    ah, ah!

    AQUOSO - Ah, ah, ah!

    MILSSIMO - Colegas, toda a cura boa, quando a paga igual a esta. (mostraRosinha)

    LINO - (para Aquoso) Doutor, preciso de meia dzia de clisteres de gua fria para nome meter em outra...

    MILSSIMO - Feliz de mim! E viva a homeopatia!

    TODOS - (rindo-se) Viva a homeopatia!

    CAI O PANO

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