O Concerto barroco de Alejo Carpentier e a antropofagia modernista

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O Concerto barroco de Alejo Carpentier e a antropofagia modernista Beatriz Helena Domingues * RESUMO: Este artigo analisa a novela Concerto Barroco (1974), do escritor cubano Alejo Carpentier, como um texto barroco, ou neobarroco que retoma aspectos da antropofagia modernista dos anos 1920, do recurso à carnavalização, tal qual proposta por Mikhail Bakthin, e do Realismo Maravilhoso dos anos 1960-70. Esta análise é feita através de uma aproximação dos três personagens principais da obra com as metáforas shakespearianas de Próspero, Caliban e Ariel. Palavras-chave: Concerto Barroco. Alejo Carpentier. História e Literatura. Barroco latinoamericano. Antropofagia. Este ensaio analisa a novela do escritor cubano Alejo Carpentier Concerto Barroco, publicada em 1974, partindo da premissa de que a ficção pode ser muito eficaz para iluminar processos históricos mais ou menos complexos (KRAUSE, 2010; MORSE, 1988). Nesta peça exemplar do barroco, ou neobarroco na América Latina, pode-se perceber um movimento de encantamento e desencantamento da Ibero-América com a Europa e vice-versa, enfocado através dos três personagens centrais: o Amo, um aristocrata crioulo da Nova Espanha, seu criado negro Filomeno e o compositor italiano Antonio Vivaldi. Neles e através deles, tento também apontar a plausibilidade de refletir sobre uma aproximação da metáfora Próspero-Ariel-Caliban a uma história que, embora se passe no século XVIII, mistura tempos históricos. Na atitude desses personagens considera também ser possível detectar aspectos da versão antropofágica do modernismo brasileiro. O argumento central é que a atitude devoradora proposta por nossos modernistas nos anos 1920, em especial por Oswald de Andrade, pode ser detectável na história dos antepassados africanos na América contada pelo escravo Filomeno e na ópera sobre a conquista espanhola do Novo Mundo por Vivaldi. Tais atitudes, conforme se verá, ficam particularmente evidenciadas nos diálogos entre tais personagens e o Amo. Carpentier e o Concerto barroco Alejo Carpentier y Valmont (1904-1980) foi um novelista, ensaísta e músico cubano que influenciou profundamente a literatura latino-americana durante o famoso período do boom. Viajou extensivamente, principalmente pela França, América do Sul e México, onde conheceu proeminentes representantes da comunidade artística e da cultura latino-americana. Interessou-se particularmente pela política da região e frequentemente se alinhou a movimentos revolucionários como a Revolução Cubana liderada por Fidel Castro. Mas acabou sendo exilado de Cuba. Seu conhecimento de música permitiu-lhe explorar a musicologia, tendo publicado um profundo estudo sobre a música de Cuba, e frequentemente integrado temas musicais com técnicas literárias em seus trabalhos. Explorou elementos do afro-cubanismo e incorporou seus aspectos culturais na maioria dos seus escritos. Ainda que tenha experimentado uma miríade de gêneros como jornalismo, drama para rádio, peças teatrais, ensaios acadêmicos, óperas e libretos, o autor é mais conhecido por seus romances. Ele se inclui entre os representantes do Realismo Maravilhoso – sendo por muitos

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O Concerto barroco de Alejo Carpentier e a antropofagia modernista

Beatriz Helena Domingues*

RESUMO:Este artigo analisa a novela Concerto Barroco (1974), do escritor cubano Alejo Carpentier, como um texto barroco, ou neobarroco que retoma aspectos da antropofagia modernista dos anos 1920, do recurso à carnavalização, tal qual proposta por Mikhail Bakthin, e do Realismo Maravilhoso dos anos 1960-70. Esta análise é feita através de uma aproximação dos três personagens principais da obra com as metáforas shakespearianas de Próspero, Caliban e Ariel.

Palavras-chave: Concerto Barroco. Alejo Carpentier. História e Literatura. Barroco latinoamericano. Antropofagia.

Este ensaio analisa a novela do escritor cubano Alejo Carpentier Concerto Barroco, publicada em 1974, partindo da premissa de que a ficção pode ser muito eficaz para iluminar processos históricos mais ou menos complexos (KRAUSE, 2010; MORSE, 1988). Nesta peça exemplar do barroco, ou neobarroco na América Latina, pode-se perceber um movimento de encantamento e desencantamento da Ibero-América com a Europa e vice-versa, enfocado através dos três personagens centrais: o Amo, um aristocrata crioulo da Nova Espanha, seu criado negro Filomeno e o compositor italiano Antonio Vivaldi. Neles e através deles, tento também apontar a plausibilidade de refletir sobre uma aproximação da metáfora Próspero-Ariel-Caliban a uma história que, embora se passe no século XVIII, mistura tempos históricos. Na atitude desses personagens considera também ser possível detectar aspectos da versão antropofágica do modernismo brasileiro. O argumento central é que a atitude devoradora proposta por nossos modernistas nos anos 1920, em especial por Oswald de Andrade, pode ser detectável na história dos antepassados africanos na América contada pelo escravo Filomeno e na ópera sobre a conquista espanhola do Novo Mundo por Vivaldi. Tais atitudes, conforme se verá, ficam particularmente evidenciadas nos diálogos entre tais personagens e o Amo.

Carpentier e o Concerto barroco

Alejo Carpentier y Valmont (1904-1980) foi um novelista, ensaísta e músico cubano que influenciou profundamente a literatura latino-americana durante o famoso período do boom. Viajou extensivamente, principalmente pela França, América do Sul e México, onde conheceu proeminentes representantes da comunidade artística e da cultura latino-americana. Interessou-se particularmente pela política da região e frequentemente se alinhou a movimentos revolucionários como a Revolução Cubana liderada por Fidel Castro. Mas acabou sendo exilado de Cuba.

Seu conhecimento de música permitiu-lhe explorar a musicologia, tendo publicado um profundo estudo sobre a música de Cuba, e frequentemente integrado temas musicais com técnicas literárias em seus trabalhos. Explorou elementos do afro-cubanismo e incorporou seus aspectos culturais na maioria dos seus escritos. Ainda que tenha experimentado uma miríade de gêneros como jornalismo, drama para rádio, peças teatrais, ensaios acadêmicos, óperas e libretos, o autor é mais conhecido por seus romances. Ele se inclui entre os representantes do Realismo Maravilhoso – sendo por muitos

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considerado como pioneiro no gênero –, um estilo que lhe permitiu explorar as qualidades fantásticas da história e da cultura da América Latina. O exemplo mais famoso da influência afro-cubana e de uso do real maravilhoso é El Reino Deste Mundo, novela publicada em 1949 sobre a Revolução Haitiana de fins do século XVIII, em cujo prólogo teria cunhado o termo Realismo Maravilhoso.

Tendo convivido in loco com o movimento surrealista francês, Carpentier também adaptou a teoria surrealista à literatura da América Latina. Sempre explorando a problemática da identidade cubana, valeu-se de suas experiências viajando pela Europa e América Latina para expandir sua compreensão da identidade da região. Misturou elementos de história política, social, música e arte de uma forma que veio a influenciar fortemente o trabalho de jovens escritores latino-americanos. Morreu em Paris em 1980 e foi enterrado no Cemitério Colón, em Havana, junto com outras celebridades políticas e artísticas do país.

Três palavras contidas nesta breve biografia do autor são decisivas para a compreensão de sua novela Concerto Barroco: música, barroco e cultura cubana. Nesta breve obra-prima de 1974, Alejo Carpentier chegou ao ápice de sua arte narrativa e musical. Ele próprio denominou-a “suma teológica” de sua carreira. Como o título indica, trata-se de um concerto musical. Mas é muito mais que isto. É um concerto barroco, no qual se fundem sinfonias e, portanto, visões de mundo, de diferentes partes da Europa, América e África (afro-cubana). A temática desta obra – o encontro de dois mundos (de duas tradições, de duas culturas) e das relações que eles estabelecem entre si – é um tema constante na narrativa do autor, com destaque para o contraponto América/Europa. O autor capta magistralmente as dificuldades inerentes às tentativas de ambas as partes de compreender o diferente de si mesmo e de aceitá-lo como tal.

Se em geral Carpentier é associado ao Realismo Maravilhoso, ele mesmo insere a obra aqui em questão – Concerto Barroco (1974) – no então denominado “Barroco do Novo Mundo”, ou simplesmente Barroco, adaptado do modelo europeu ibérico para uma visão latino-americana (CARPENTIER, 1984). Em 1972, Severo Sarduy publicou um ensaio seminal intitulado “El barroco y el neobarroco” no qual adverte, sem pretender explicá-la em termos históricos ou ideológicos, a reconhecida presença da estética barroca em algumas manifestações artísticas da cultura hispano-americana – particularmente nas literárias e de origem cubana – e se propõe a precisar o conceito de “barroco”, que, naquela ocasião, havia ampliado seu espectro semântico a ponto de proporcionar as mais inusitadas metáforas (SARDUY, 1977, p. 183).

Como exemplos da utilização de diversos recursos do barroco Sarduy cita Alejo Carpentier, José Lezama Lima e Guillermo Cabrera Infante. Estes escritores cubanos também apontaram, em vários ensaios e novelas, sua filiação barroca. Nas palavras de Carpentier,

Nossa natureza é indômita, como nossa história, que é a história do real maravilhoso e do insólito na América [...] e se nosso dever é o de revelar este mundo, devemos mostrar e interpretar nossas coisas. E estas coisas se apresentam como coisas novas a nossos olhos. A descrição é inequívoca, e a descrição de um mundo barroco há de ser necessariamente barroca (CARPENTIER, s/d, p. 123-124, tradução nossa).

Segundo Carpentier, o barroco é uma visão de mundo constante e não um estilo histórico como o romantismo, que foi típico de uma determinada época. Diferentemente de estilos históricos como o gótico, por exemplo, o barroco, além de um estilo arquitetônico, é também um estilo literário que pode ser encontrado em locais que pouco têm em comum em outros aspectos: por exemplo, na literatura hindu, russa e iraniana, dentre outras. Mas a América tem certamente suas peculiaridades

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devido à conjunção com o maravilhoso entendido de forma diferente do mágico e do surrealista (CARPENTIER, 1984). O maravilhoso na América está no cotidiano, e não nos sonhos, como no surrealismo. Não é algo fabricado, como no surrealismo ou no mágico, e sim uma transposição do real para o papel.

O barroco americano não tem um tempo histórico, está em nossa constituição. Diferentemente do barroco dos séculos XVII e XVIII – associado por muitos à Contrarreforma e/ou a uma visão conservadora do mundo –, os neobarrocos da segunda metade do século XX têm como característica diferencial ter consciência de estar sendo barrocos. Embora diagnostiquem a existência deste estilo desde o período pré-colombiano, existiria nos anos 1970 uma clara intenção paródica e desconstrutivista que convergiu, em vários aspectos, com o que se denominou em seguida “pós-moderno”.

Feitas estas considerações sobre como o próprio Carpentier interpreta sua obra como parte desse movimento, gostaria de esclarecer que na análise aqui proposta sigo a sugestão de Richard Morse de considerar mais valioso o texto ficcional do que as explicações do autor sobre ele (MORSE, 1995). Se, de uma maneira geral, concordo que novelistas sejam mais interessantes e expressivos em seus romances do que em textos em que tentam explicá-los ou nos quais se engaja em alguma causa, isto é particularmente verdade no que se refere à obra de Carpentier (MORSE, 1995). A leitura do Concerto Barroco proporciona ao leitor o que Barthes chamou o prazer da fruição: o leitor se deixa levar por um texto que certamente demandou muito trabalho do autor, mas pouco do leitor. É como a novela me fez sentir e pensar.

Concordo com Ernesto Martín Ghioldi que não é tanto a dicotomia América/Europa como a fusão de elementos americanos e europeus o que se destaca em Concerto Barroco; ou seja, não só a tensão desta oposição, mas, sobretudo, sua conjunção (GHIOLDI, 2007). Neste sentido, a etimologia da palavra concerto – harmonia, ordem ou pacto derivado de um combate ou discussão – não poderia resultar mais propícia para resgatar a essência do livro1. Mas o espetáculo sincrético de Concerto Barroco não é fruto somente do contato entre América e Europa: coexistem também o “alto” e o “baixo”, o culto e o popular, a tradição e a inovação, o sagrado e o profano. As categorias carnavalescas de Mikhail Bakhtin se aplicariam, segundo ele, perfeitamente tanto ao capítulo do “Carnaval de Epifania em Veneza”, como ao ambiente da cidade ou ao livro inteiro. A ópera, os excrementos, a música barroca, os vinhos, a prata, as prostitutas e as grosserias, atos sublimes e atos degradantes convivem ao longo de Concerto Barroco. Conforme já assinalado, isto faz todo sentido devido à proximidade de abordagens entre o neobarroco e algumas categorias bakthinianas, especialmente a de carnavalização.

Além desta reconhecida sintonia entre Carpentier e Mikhail Bakthin, gostaria de explorar – neste choque de culturas entre Europa e América e nos encontros e desencontros vividos pelos protagonistas americanos, afro-americanos e europeus – atitudes antropofágicas por parte dos principais personagens, aqui identificados com os shakespearianos Próspero, Ariel e Caliban. Ao criarem o conceito de antropofagia enquanto um movimento cultural, os modernistas brasileiros preconizavam, dentre outras coisas, que voltássemos aos primeiros relatos que de nós fizeram os portugueses desde a descoberta e, ao invés de procurar nossa problemática identidade em um índio “filho de Catarina de Médicis”, como fizeram os românticos do século XX, assumíssemos uma atitude canibal, de antropofagia ritual de autores, modas e estilos europeus2. De uma forma ou de outra, e com motivações bem diferentes, assim me parecem ter agido o negro Filomeno  e o compositor Vivaldi, ambos músicos, ao tentar, no caso do primeiro incluir sua própria história na do continente americano, ou no do segundo adaptar um “fábula” exótica desse continente para o gosto musical europeu.

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O escravo Filomeno é identificado com Caliban, e o compositor italiano Antonio Vivaldi seria um Próspero que, ainda escrevendo uma ópera inspirada no Novo Mundo, não perdia suas referências europeias. Embora o que ele tivesse em mente fosse apenas revitalizar um estilo musical que considerava carente de originalidade naquele momento, o resultado acabou sendo uma peça barroca talvez tão mestiça quanto a história da participação dos ancestrais de Filomeno na conquista do México. No Amo percebo uma atitude mais próxima da de Ariel, mas um Ariel que se desencanta com Próspero (a Europa idealizada) e que termina por fazer um acerto de contas com seu próprio passado e sua própria cultura.

A história se passa em inícios do século XVIII. Um milionário da prata mexicana, neto de conquistador maltrapilho, aristocrata há uma geração apenas, deixa a terra natal e parte para uma viagem para a “ilustre e gloriosa Europa”, narrada por seus antepassados como guardiã de toda civilização Ocidental. Chegando a Veneza em pleno carnaval, o Amo e seu criado Filomeno são protagonistas de um concerto sem igual, que reúne os maiores prodígios da Europa barroca, misturando a música do Velho e do Novo Mundo com a africana (ou afro-americana). A narrativa nos leva de uma Cidade do México, “que imita em prata lavrada todas as manias metropolitanas”, a uma Veneza em que, depois de muitas peripécias eróticas e musicais, o Amo, vestido de Montezuma, acaba por se identificar com o imperador asteca quando o padre Antonio Vivaldi tenta levar ao palco a sua versão operística da conquista do México, na qual o Amo representaria o imperador asteca. Desapontado diante da versão “nada mexicana” do livreto de Vivaldi, o Amo-Montezuma, agora chamado Indiano, se desilude de vez com a Europa e resolve voltar para a América e para um México com o qual ele agora se identifica de maneira praticamente inversa àquela do início da história3. O México se metamorfoseia do lugar a ser deixado a fim de se ter acesso aos requintes da civilização (europeia) naquele reconhecido como sendo sua pátria, que não perderia em história ou sofisticação para a Europa. Filomeno, por seu turno, decide permanecer no Velho Mundo, dirigindo-se a Paris: até porque, enquanto no México “não passaria de mais um negrinho”, na Cidade Luz seria pelo menos alvo de curiosidade, conclui ele. Por sua cor e por sua música.

De forma que a viagem acaba sendo, para o Amo e seu criado, uma experiência de auto-reconhecimento. Para o Amo, de decepção com a Europa idealizada dos crioulos e, de certa forma, de aproximação com índios mexicanos. Para Filomeno, na condição de afro-cubano e, portanto já um desterrado no México, a estadia europeia traz sentimentos diferentes. Como não havia de sua parte qualquer idealização, foi uma exposição a uma cultura desconhecida, que ele assimila a seu modo e à qual reage como bem sente e entende. Esta abertura de Filomeno-Caliban para tudo que vê, ouve e experimenta faz lembrar a atitude de devoração do outro, do que está fora, proposta pela antropofagia modernista; ou talvez certa afirmação de Caliban, talvez próxima do que Retamar chamou de “Revanche de Caliban” (FERNÁNDEZ RETAMAR, 1981). É Filomeno-Caliban quem, muito melhor que o Amo-Ariel, se abre para o novo, experiência, aprende, dialoga e se fortalece devorando a cultura europeia. E mais, consegue fazer-se de certa forma reconhecido e admirado tanto pelos europeus quanto por seu Amo mexicano, que o tinha por selvagem, bárbaro, negro e escravo.

As analogias com Próspero e Caliban, a meu ver, dialogam intimamente com as que se valem da metáfora do espelho. Carpentier reverte o espelho ao fazer com que o Amo confronte a realidade da sua diferença em relação ao europeu. Na história, isto acontece quando, além da desilusão com a idealizada Europa, o Amo-Montezuma revolta-se contra a “deturpação” de sua história, tida por ele como “a verdadeira história da conquista do México”, pelo compositor italiano. Antes de sair da Nova Espanha, não só admirava como se identificava com a versão oficial da conquista do México como um pacto entre Carlos V e Montezuma, tal qual retratada na grande moldura em sua sala de visitas.

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O conhecimento efetivo, o contato com uma realidade “idealizada”, causa não somente decepção em relação ao objeto idealizado como um reconhecimento de aspectos positivos de sua própria sociedade. É nisto que consiste a inversão do espelho.

Como já plenamente reconhecido, a partir de meados do século XIX a experiência de decepção com o objeto idealizado por protagonistas de novelas latino-americanas transfere-se da Europa para os Estados Unidos. Vide, por exemplo, as impressões de Sarmiento sobre os Estados Unidos após sua viagem ao país idealizado (SARMIENTO, 2005). No século XVIII, que é quando se passa o Concerto Barroco, a referência era a Europa, com os países ibéricos vivendo uma fase de decadência. O Amo e Filomeno passam rapidamente pela Espanha e as impressões do crioulo são todas, surpreendentemente para ele, negativas: assinala a inferioridade da comida, discorda da suposta beleza das mulheres e descreve Madri como mais suja e menos bela que a Cidade do México. Ou seja, quando o espelho começa a refletir os problemas da Europa, traz à tona as eventuais qualidades da pátria mexicana. Mas a inversão só ocorre, de fato, com a experiência italiana, em especial com a reação do crioulo à versão operística da conquista do México de Vivaldi.

A seguir analiso o que considero duas devorações antropofágicas: a da participação dos negros na conquista e colonização da América por Filomemo e a transposição da versão oficial da conquista do México para a música erudita europeia por Vivaldi. Filomeno conta ao Amo a história de seus antepassados contida no “Espejo de paciencia” e Vivaldi adapta o relato do Amo sobre a conquista do México para um livreto de ópera que veio a ser intitulada “Montezuma”. É importante esclarecer que, como em outras novelas, Carpentier se baseou em fontes históricas: no caso em questão um relato histórico e uma partitura musical. No texto em geral e nos aspectos selecionados em particular, o estilo barroco e a carnavalização facilitam a visualização da atitude de devoração proposta pela antropofagia modernista. Começo com a versão afro-americana sobre o papel dos negros na história mexicana – na qual se destacou um ancestral de Filomeno/Caliban –, e finalizo com “devoração” europeia da história oficial da conquista do Império asteca a partir dos referenciais operísticos europeus, tal qual feito pelo “Próspero” Antonio Vivaldi. Entre eles, ocorre, na peça, o concerto barroco que dá título à obra.

A versão afro-americana da conquista do México

A primeira cena da narrativa mostra o Amo em sua residência na cidade do México preparando-se para uma viagem pela Europa. Da descrição da casa do rei da prata, reluzente de prata, detenhamo-nos em um quadro, de grandes proporções e em posição privilegiada, retratando a versão oficial espanhola da conquista do México:

[...] Ali, um Montezuma entre romano e asteca, com um ar de César coroado com penas de quetzal, aparecia sentado num trono em que se mesclavam o estilo pontifical e o de Michoacán, sob um pálio levantado por duas partasanas, tendo a seu lado, de pé, um indeciso Cuauhtémoc com a cara de um jovem Telêmaco que tivesse os olhos meio amendoados. Diante dele, Hernán Cortés, com barrete de velado e espada na cinta - a arrogante bota pousada no primeiro degrau do sólio imperial –, estava imobilizado em dramática estampa conquistadora (CARPENTIER, 2008, p. 9-10).

Esta descrição é importante por frisar a referência que o Amo crioulo tinha sobre a conquista do México, a rigor, uma pluralidade de referências – antiguidade clássica, Espanha, mundo asteca –, integradas de uma forma barroca.

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Quando passa por Cuba rumo à Europa, o Amo perde seu criado Francisquilo para uma epidemia e, logo em seguida, conhece o escravo negro Filomeno e o convida para viajar com ele à Europa na condição de criado (um Amo não poderia existir sem alguém que o servisse). Filomeno aceita entusiasticamente o convite. O Amo o havia observado por alguns dias e o escolhera por vários motivos. Dentre eles ressaltava os talentos musicais de Filomeno (“o negro sabe ler partituras!”) e o fato de “nesses dias, ricos senhores terem pajens negros”. Nada então mais natural, para um Amo, do que seguir uma “moda da Europa”. Mas não fica só nisto.

Na primeira conversa com Filomeno, o Amo fica a par da genealogia do negro: o bisavô, um negro de nome Salvador, havia sido protagonista de uma célebre façanha que um poeta do país, chamado Silvestre de Balboa, cantou em uma longa e bem rimada ode, intitulada “Espejo de paciencia”. A história de seus ancestrais que Filomeno conta ao Amo narra episódios da descoberta e conquista do Novo Mundo de uma forma que eu chamaria de paródica, irônica, antropofágica, carnavalesca à la Bakhtin.

Um dia [...] lançou âncoras às águas de Manzanillo, lá onde uma interminável cortina de árvores praieiras costuma esconder o mal que possa vir do mar, um bergantim sob o comando de Gilberto Girón, herege francês daqueles que não acreditam em Virgens nem em Santos, capitão de uma caterva de luteranos, aventureiros de toda laia, dos muitos que, sempre prontos a meter-se em empresas de ataques, contrabandos e rapinas, andavam a transumar malfeitorias por diversas paragens do Caribe e da Flórida. Soube o desalmado Girón que nas fazendas de Yara, a algumas léguas da costa, encontrava-se, em visita a sua diocese, o bom Frei Juan de las Cabezas Altamirano, bispo dessa ilha outrora chamada Fernandina – porque, quando a avistou pela primeira vez o Grande Almirante Dom Cristóvão, reinava na Espanha um Rei Fernando que tanto montava quanto a Rainha, assim diziam as pessoas de outras épocas, talvez por ser dever de Rei montar Rainha, mas nesses rolos de alcova ninguém, no fim das contas, sabe quem monta quem, pois essa história de o varão montar ou ser montado é um assunto que [...]  (CARPENTIER, 2008, p. 21).

Neste ponto Filomeno é bruscamente interrompido pelo Amo, que lhe ordena que prossiga com sua história por linha reta, sem se meter em curvas transversais, “pois para tirar a limpo uma verdade são necessárias muitas provas e contra provas.” Filomeno não se opõe à reprimenda, porém continua narrando a história de seus ancestrais com o mesmo entusiasmo e agitação. Isso faz o Amo pensar: “Assim contam alguns feirantes nos mercados do México a grande história de Montezuma e Hernán Cortés.”

Filomeno é especialmente enfático ao relatar como seu bisavô Salvador havia vencido o huguenote Girón que, tendo chegado ao povoado de madrugada e encontrando os moradores dormindo, se apoderara do “virtuoso prelado” sem reverência nem maiores considerações, e exigira, em troca de sua liberdade, um tributo que era uma enorme quantia para aquela pobre gente. Os atribulados moradores conseguiram reunir a exorbitante demanda e o bispo foi devolvido à sua paróquia, onde foi recebido com grandes festejos e alegria:

Furioso ao inteirar-se do ocorrido, um bizarro Gregório Ramos, capitão “com arrojo de Paladino Roland”, resolve que o francês não irá se dar bem, nem se aproveitar do butim, malganho com tanta facilidade. Junta rapidamente uma cambada de homens peitudos e colhudos e, à frente deles, dirige-se a Manzanillo com o propósito de travar batalha com o pirata Girón. Ia na tropa gente com espada de boa têmpera, alabardas, bota-fogos e espingardas [...]. Também

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iam vários índios nabori4, prontos para lutar de acordo com as manhas e os costumes de sua nação. Mas ia, sobretudo - sobretudo! -, no esquadrão movido por heróico empenho, ele, esse, Aquele a quem o poeta Silvestre de Balboa haveria de cantar em especial estrofe: andava entre os nossos, diligente um certo etíope digno de elogio, chamado Salvador, negro valente, desses que Yara tem no lavradio, filho de Golomón, velho prudente: e que, ao ver Girón andar com brio, machete e lança em punho, impetuoso, contra ele se lança feito leão furioso (CARPENTIER, 2008, p. 22-23).

O combate, segundo Filomeno, não foi nada fácil. Pelo contrário, foi bastante prolongado. Depois de desfechar furiosas facadas no luterano, de “enganá-lo, sufocá-lo, cansá-lo, acossá-lo, com manhas como as que se usam nas vaquejadas de gado bravio, o valoroso Salvador o alvejou em cheio, a lança transpassando-lhe o peito” e exclamou: “Oh, Salvador crioulo, negro honrado! Voe tua fama, e nunca fique à míngua; que em louvação de tão bravo soldado é bom que não se cansem pena e língua!” (CARPENTIER, 2008, p. 24).

A cabeça do pirata é cortada e “cravada na ponta de uma lança para que todos, no caminho, saibam de seu fim miserável, antes de ser baixada no ferro de um punhal que lhe adentra a goela até a empunhadura” (CARPENTIER, 2008, p. 24). Quando Salvador chega na cidade de Bayamo:

Pedem os moradores, aos gritos, que se conceda ao negro Salvador, como prêmio por sua valentia, a condição de homem livre, que ele muito fez por merecê-la. Concedem as autoridades a mercê. E, com o regresso do Santo Bispo, a festa se alastra pelo povoado. E é tanto o contentamento dos velhos, e o alvoroço das mulheres, e a algaravia das crianças, que, sentido por não ter sido convidado para a festança, contempla-a, das frondes de goiabeiras e canaviais, um público de sátiros, faunos, silvanos, sernicapros, centauros, náiades e até hamadríades “de anágua” (CARPENTIER, 2008, p. 24).

Essa história de semicapros e centauros que despontam nos goiabais de Cuba pareceu ao Amo “um excesso imaginativo do poeta Balboa”. Ainda assim, “não deixou de admirar-se de que um negrinho de Regia fosse capaz de pronunciar tantos nomes oriundos de paganismos remotos” (CARPENTIER, 2008, p. 24). O fâmulo, por sua vez, muito orgulhoso de sua descendência, não punha em dúvida que nessas ilhas se tivessem visto seres sobrenaturais. Como Cristovão Colombo – que teria sido, segundo Gabriel Garcia Marques, o inaugurador do gênero Realismo Maravilhoso – lida com o insólito como parte do cotidiano.

[...] mostrengos de mitologias clássicas, semelhantes aos muitos, de tez mais escura, que aqui continuavam habitando os bosques, fontes e cavernas - como já os haviam habitado nos reinos imprecisos e distantes de onde teriam vindo os pais do ilustre Salvador, que era, a seu modo, uma espécie de Aquiles, pois se não há Tróia presente é possível ser, guardadas as proporções, um Aquiles em Bayamo ou um Aquiles em Coyoacán, se notáveis forem os sucessos (CARPENTIER, 2008, p. 25).

A disparidade e heterogeneidade de referências – no caso, centauros, Aquiles, Coyoacán – são artifícios típicos do barroco, bem como do modernismo antropofágico. O protagonista Filomeno prossegue tentando reviver o bulício das músicas ouvidas durante a festa memorável, que talvez tenha durado dois dias e duas noites (a concepção de tempo é cíclica), e cujos instrumentos foram enumerados pelo poeta Balboa em um inventário filarmônico: “flautas, flautas-de-pã e rabecas, um

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cento”. A história narrada, e em especial o concerto, desconcertam o Amo, que na qualidade de um admirador de música e de história, ficara intrigado que ninguém conhecesse os casos citados no “Espejo de paciencia”. Segundo ele, nem mesmo na corte do Rei Felipe – que de tão aficionado à música nunca viajava sem levar consigo um órgão de madeira para que, nos pousos para descanso, fosse tocado pelo cego Antonio de Cabezón –, se ouvira falar em “sinfonias de cem rebecas.” Mas, no concerto descrito por Filomeno, “mesclaram-se músicos de Castela e das Canárias, crioulos e mestiços, naboris e negros”, o que indigna o Amo.

“Brancos e pardos misturados em semelhante pândega?”, pergunta-se o viajante. “Impossível harmonia! Jamais se viu um disparate desses, pois mal conseguem amaridar-se as velhas e nobres melodias do romance, as sutis mudanças e diferenças dos bons maestros, com a bárbara algaravia que os negros armam quando pegam nos guizos, chocalhos e tambores!... [...] que grande embusteiro deve ter sido esse tal de Balboa!” (CARPENTIER, 2008, p. 26).

Ainda que o tal Balboa possa ter sido um embusteiro, após ouvir a história de Filomeno o Amo não tinha como não reconhecer seu afeto por este bisneto de Golomón. Veste então Filomeno de Francisquilo. Mas, como se verá, Filomeno não vira um Francisquilo, ou sequer um criado à la Ariel. De Havana os dois zarpam para Madri, a capital metropolitana. A experiência é desastrosa para o Amo e divertida para Filomeno. Enquanto o Amo era todo decepção e sentia nostalgia do México, Filomeno devorava o que aparecia. Os dois só concordaram na avaliação sobre Valência, uma cidade que “compartilhava o ócio a vagareza da América” (CARPENTIER, 2008, p. 26).

É importante esclarecer que existiu de fato uma obra intitulada “Espejo de paciencia”, publicada em 1608 por Silvestre de Balboa Ibero-América Troya de Quesada (1563-1649), narrando como o capitão Gilberto Girón aprisionou o Ilmo. Sr. D. Fr. Juan de las Cabezas Altamirano, bispo da ilha de Cuba, no porto de Manzanillo, no ano de 1604. Foi dedicada por Silvestre de Balboa, natural da ilha da Grande Canária, ao próprio bispo. Na versão afro-cubana de “Espejo de paciencia” oferecida por Carpentier no Concerto Barroco o que me parece ocorrer é uma leitura paródica, carnavalesca e antropofágica desta saga histórica do século XVI, incluindo nela o personagem Salvador, através do qual destaca a participação dos negros na vitória dos espanhóis contra os infiéis protestantes e, portanto, como atores destacados da conquista e colonização da América Central. Em sua adaptação antropofágica de “Espejo de paciencia”, o autor transforma o negro Salvador, bisavô de Filomeno, no herói que salva o bispo católico dos temíveis corsários protestantes. O admirável é a forma como se dá a mistura de elementos da história oficial da descoberta e conquista do Novo Mundo, tão referenciada em elementos europeus, com aquela do não lugar dos negros, aqui transformados em “heróis”. Sem eles, os espanhóis não teriam vencido os luteranos. Conforme um excelente aforisma de Oswald de Andrade “sem nós [Caraíbas] a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem” (ANDRADE, 1995, p. 47).

Este relato de Balboa, na versão cubana e barroca de Filomeno, pode ser lido, em meu entender, como uma devoração, pela cultura afro-cubana, da versão espanhola da conquista. Contém também a inversão de alto-baixo, erudito e popular, tradicional e inovador destacados por Bakthin na análise da obra de Rabelais. Em suma, temos aqui uma peça de Realismo Maravilhoso no melhor estilo, e totalmente barroca. Em termos oswaldianos: “Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti” (ANDRADE, 1995, p. 46).

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O curioso será observar, no fim da peça de Carpentier, o carnaval invertido: uma espécie de devoração europeia da visão oficial da conquista do México, de confecção espanhola e crioula, por compositores interessados em inserir em suas óperas personagens americanos, porém em desenlaces do gosto de seu próprio público. Vivaldi estava muito mais interessado em histórias que se adaptassem bem a seu estilo musical (ópera) do que na suposta veracidade da narrativa. Isto indigna profundamente o mesmo Amo que, enquanto fantasiado de Montezuma, fornecera a matéria-prima da obra. É nesse momento que ele se converte no Amo-Indiano, empenhado, supostamente, na defesa de sua história e cultura.

A versão barroca de Vivaldi sobre a conquista do México

A meu ver, a melhor maneira de mostrar a devoracão  de Vivaldi da história da conquista do México é, como já dito, seguindo o ritmo da narrativa e a interação entre os personagens. Prossigamos então. A próxima parada do Amo e de Filomeno é Veneza, Itália, aonde chegam durante o carnaval. O Amo se veste de Montezuma e Filomeno não vê necessidade de se fantasiar, pois percebeu que sua cara natural parecia máscara entre “tantas ante-faces brancas que davam, aos que as usavam, um meio rosto de estátua. Como nasci com esta máscara, não vejo necessidade de comprar outra” (CARPENTIER, 2008, p. 37), constata ele. Como diria Oswald, uma vez que nascemos canibais, nos relatos europeus, devemos sê-lo conforme isso nos beneficie.

Amo e Filomeno entram em um café e encontram, em uma mesa nos fundos, um padre ruivo, que pergunta ao Amo: “Inca?”. “Mexicano” respondeu o Amo. E desatou a contar uma longa história que, ao frade, depois de muito vinho, pareceu um bom enredo para uma ópera: um imperador vivendo entre lagos, templos e vulcões, que tem seu império arrebatado por um punhado de espanhóis ousados. “Bom tema; bom tema para uma ópera.”, exclamava ele (CARPENTIER, 2008, p. 38).

A atitude do “padre ruivo” – tratava-se de Antonio Vivaldi – ao ouvir a história do mexicano faz lembrar a do Amo em Cuba enquanto escutava a narrativa insólita de Filomeno. Em ambos os casos, o ouvinte gostou da história por seu exotismo e pela forma animada como foi narrada, mas sem lhe dar qualquer credibilidade. Como visto, o Amo pensara que Balboa havia sido um impostor, pois aquela história não fazia sentido para ele. Ainda assim, gostou de seus aspectos fantásticos na forma como foi contada pelo bisneto do herói, misturando elementos da cultura afro-cubana com a “versão oficial” da conquista ibérica, lado a lado a referências ao paganismo clássico europeu.

Estavam também na bodega, em Veneza, um saxão de cara vermelha (Georg Friedrich Haendel) e um risonho napolitano (Domenico Scarlatti) que propuseram a Vivaldi e aos recém-conhecidos Montezuma e Filomeno isolarem-se em algum lugar onde pudessem fazer música. O local escolhido foi um convento, no qual ocorre um concerto barroco extraordinário: vários músicos tocam seus respectivos instrumentos, sendo que, “no início, os europeus, vez por outra beliscavam a face de Filomeno, custando a acreditar que não se tratasse de uma máscara” (CARPENTIER, 2008, p. 39). Mas à medida que o concerto progride, Filomeno cresce em magnitude ao mostrar seu talento – devido em grande parte à sua flexibilidade e maleabilidade –, e começa a dar o tom da orquestra. Desde os tempos em que vivia em Cuba, o negro estava acostumado a improvisar, a lidar com culturas alheias e tendo que recorrer a aspectos delas para expressar-se, fosse na confecção de sua história ou de sua música. E delas fazem sua própria digestão, sua antropofagia.

Uma vez terminado o concerto, no qual Filomeno se destacara entre os músicos europeus, todos eles se dirigem para o cemitério. O Amo foi convidado por Vivaldi a narrar novamente a história de Montezuma, uma vez que o compositor não conseguira reter muito do que lhe havia sido contado

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na véspera, devido ao barulho do carnaval e ao vinho. Ao ouvi-la novamente Vivaldi, com ajuda dos outros músicos europeus, imagina sua ópera.

Magnífico para uma ópera! Não falta nada. Há trabalho para os maquinistas. Papel de destaque para a soprano – essa índia, apaixonada por um cristão – que poderíamos confiar a uma dessas formosas cantoras que... [...]Esse personagem de imperador vencido, de soberano desafortunado, que chora sua miséria com inflexões dilacerantes... Penso nos Persas, penso em Xerxes (CARPENTIER, 2008, p. 52).

Ele não consegue esconder seu entusiasmo frente a tantos novos temas e personagens que poderiam renovar e enriquecer a ópera europeia: “É que estou ficando cansado dos assuntos batidos. Quantos Orfeus, quantos Apolos, quantas Ifigênias, Didos, Galatéias! É preciso procurar novos temas, ambientes diferentes, outros países, sei lá” (CARPENTIER, 2008, p. 53). Filomeno aproveita a deixa para sugerir que Vivaldi encenasse uma história ainda mais exótica: “por que não inventa uma ópera sobre meu avô Salvador Golomón? Esse sim, seria um assunto novo. Com cenário de marinhas e palmeiras.” Mas aquilo era demais para o saxão e para o veneziano, que caíram em tal risada que o Amo-Montezuma se sentiu compelido a tomar a defesa de seu fâmulo: “Não o acho tão extravagante: Salvador Golomón lutou contra alguns huguenotes, inimigos de sua fé, como Scanderbergh lutou pela própria. Se aos senhores parece bárbaro um crioulo nosso, igualmente bárbaro é um eslavão ali da frente” (CARPENTIER, 2008, p. 53).

Subitamente vemos o Amo-Ariel apontando para Próspero suas limitações em sua visão de mundo e interpretação de culturas não familiares a ele. Como Montaigne e Zaratustra, ele próprio se dá conta de que o que é ou não bárbaro é relativo: o que é para um pode não ser para outro. Em defesa de sua história como tema viável, Filomeno cita uma ópera inglesa. A reação de Vivaldi é ainda mais preconceituosa: verbaliza seu horror à vulgaridade e ao caráter grotesco das óperas inglesas, que chegam a encenar peças com cenas de canibalismo: “e o pior é que no empadão fora usada a carne de seus rostos – narizes, orelhas e garganta –, como os tratados de artes incisórias recomendam que se faça com as peças de fina venatória” (CARPENTIER, 2008, p. 53). Filomeno novamente intervém capcioso: “E uma Rainha dos Godos comeu isso?” “Do mesmo modo que como este folhado”, respondeu Vivaldi, mordendo um da cesta das freiras. Pensou então: “E há quem diga que isso é costume de negro!” (CARPENTIER, 2008, p. 54). Ou seja, é como uma ironia impagável que Filomeno conclui a discussão sobre quais temas mereceriam ou não ser temas de óperas: mandando “prósperos” e “arieis” se olharem no espelho! E quem sabe, então, agindo como ou aprendendo com Caliban.

A seguir Filomeno senta-se com o Amo-Indiano para assistir ao ensaio da ópera. A descrição da cena pode nos remeter a Rabelais, a Macunaíma ou outras peças barrocas. A representação começa “com a Imperatriz com um traje entre Semíramis e dama de Ticiano, bela e valente mulher, que tenta reanimar os brios de seu derrotado esposo, posto por um ‘falso ibero’ em tão funesto transe” (CARPENTIER, 2008, p. 53). Filomeno tenta participar da conversa sugerindo a inclusão de ingredientes que pudessem tornar a trama mais picante. Ele parecia instintivamente compreender o que Vivaldi poderia considerar aproveitável para sua ópera, embora nunca tivesse visto ou escutado uma. O que não poderia faltar na trama, sopra ele para o Amo, “é Anna Giró, a amante do Frade Antonio. É sempre dela o papel de protagonista” (CARPENTIER, 2008, p. 55) no que é severamente repreendido pelo crioulo: “aprenda a respeitar”. Mas eis que aparece no palco Teutile, personagem mencionado na Historia de la conquista de México, de Mosén Antonio de Solís, que fora Cronista-mor das Índias5, agora transformada em mulher:

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“Mas acontece que aqui é uma fêmea!”, exclama o indiano, notando que os seios sobressaíam na túnica enfeitada de passamanarias. “Não é à toa que a chamam de ‘alemã’”, diz o negro. “E você sabe que, em matéria de úberes, as alemãs...” “Mas isso é um grandessíssimo absurdo”, diz o outro. “Segundo Mosén Antonio de Solís, Teutile era general dos exércitos de Montezuma.” “Pois aqui se chama Giuseppa Pircher, e tenho para mim que se deita com Sua Alteza, o Príncipe de Darmstadt, ou Armestad, como dizem outros, que mora, enjoado que está das neves, num palácio desta cidade.” “Mas Teutile é um homem e não uma mulher.” “Qualquer um sabe disso!”, diz o negro. “Aqui tem gente com muitos vícios... Se não, veja só” (CARPENTIER, 2008, p. 64).

Uma vez mais, o negro demonstra compreender que existem “versões”, que é possível brincar, parodiar metamorfoseando histórias tidas como reais. Na versão vivaldiana, Teutile queria casar-se com Ramiro, irmão caçula do Conquistador Dom Hernán Cortés. Nem a moralidade nem a veracidade eram problemas para Filomeno que estava descobrindo uma nova forma de expressão musical, a ópera. Já o Amo-Indiano, desconcertado com a inversão de aparências, começa a se perder no labirinto de uma ação que se enreda e se desenreda em si mesma, com enredos sem fim.

Enquanto o Indiano-Ariel se indigna, Filomeno-Caliban, mais maleável e, por que não dizer realista, se diverte e assimila, a seu modo, atitudes e comportamentos aos quais vem sendo exposto. Tenta inclusive “ensinar” o Amo a ter um pouco mais de flexibilidade no julgamento de situações 6. Não há um simples jeito de as coisas serem, uma única verdade: o que é bárbaro acolá pode ser civilizado aqui, e vice-versa. O que o Amo-Indiano pensa serem verdades e valores só o são pra ele, não para os demais. A interrupção da conversa neste ponto pelo fâmulo mostra seu não cometimento tampouco com a discussão sobre o que seria ou não um bom tema para ópera: “me deixe ouvir a música, pois está soando uma passagem de trompete que me interessa muito”. Era a música que o atraía. Mas, junto com o trompete, a trama continuava com Montezuma pedindo à Imperatriz Mitrena que imolasse sua filha Teutile (“mas se Teutile, porra, era um general mexicano!...”) antes que a donzela fosse “maculada pelos torvos apetites de um invasor”. Porém (“e aqui os “poréns” devem multiplicar-se ao infinito...”.) a princesa prefere suicidar-se na presença de Cortés.

Nisso, Montezuma dispara uma flecha em Cortés, e se arma um tal rolo no palco que o indiano perde o fio da meada e só é tirado de seu atordoamento ao ver o cenário mudar, e de repente nos vemos no interior de um palácio com as paredes enfeitadas de símbolos solares, onde aparece agora o Imperador do México vestido à espanhola. -“Isso sim, está estranho!”, observa o indiano, ao perceber que o Signor Massimiliano Miler tirou a fantasia que ele - este que está aqui, neste camarote, o rico, o riquíssimo negociante de prata - usou ontem à noite, ou anteontem à noite, ou ante-ante-anteontem à noitíssima, ou sabe-se lá quando, para ficar parecido com os senhores da aristocracia romana que, para posar de austeros diante das extravagâncias da Sereníssima República, agora adotavam as modas de Madri ou de Aranjuez, como faziam muito naturalmente, desde sempre, os ricos senhores de Ultramar (CARPENTIER, 2008, p. 6).

Na devoração de Vivaldi, astecas e espanhóis eram indiscerníveis e se vestiam de romanos, como haviam tentado por tanto tempo os próprios crioulos mexicanos. Esse era o caso do outro “general dos mexicanos” que entra em cena, um tal de Asprano, “jamais mencionado por Bernal

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Díaz del Castillo ou por Antonio de Solís em suas famosas crônicas” (CARPENTIER, 2008, p. 63). No palco surge uma sala semelhante àquela que abre a novela em Coyoacán, inclusive com o quadro do Amo-Indiano retratando a conquista do México. Ele considera esta cena “mais fiel à realidade, de certo modo, que o que até agora se viu por aqui.” Agora Teutile (será preciso aceitar, decididamente, que é fêmea e não macho?) lamenta o destino de seu pai, prisioneiro dos espanhóis, que agiram perfidamente. Mas Asprano dispõe de homens prontos a resgatá-lo: “Meus guerreiros estão impacientes por montar em suas canoas e pirogas; impacientes para castigar o Duce (sic) que faltou com sua palavra” (CARPENTIER, 2008, p. 66).

Entram em cena Hernán Cortés e a Imperatriz, e a mexicana entrega-se a um patético lamento em que um sotaque evocador da Rainha Atossa de Ésquilo mescla-se (nesse começo que ouvimos agora) com um certo derrotismo malinchero. Mitrena-Malinche reconhece que aqui se vivia em trevas de idolatria; que a derrota dos astecas fora anunciada por pavorosos presságios.

[...] e de repente compreendeu-se que eram Falsos Deuses os que nessas terras se adoravam; e que, finalmente, por Cozumel, em trovão de canhões e bombardas, chegara a Verdadeira Religião, com a pólvora, o cavalo e a Palavra dos Evangelhos. Uma civilização de homens superiores impusera-se com dramáticas realidades de razão e de força (CARPENTIER, 2008, p. 67).

A sensação do Amo nesta altura é de perda de identidade espacial e temporal. Não sabe mais se foi ontem, ou “a quantos ontem estava ele vestido de Montezuma, e muito menos de quando admirava seu quadro de Cortés no México em sua residência” (CARPENTIER, 2008, p. 68). Estava secando suas lágrimas quando aparece uma luminosa visão do lago Texcoco com uma batalha entre espanhóis e mexicanos. Ele aprova a ponto de exclamar: “Foi assim, foi assim!”. E Filomeno caçoa: “Você esteve lá?”. “Não estive, mas foi assim e basta!” (CARPENTIER, 2008, p. 69).

Já a próxima cena traz de volta a indignação. A Gran Plaza de México aparece “enfeitada de triunfos à romana, colunas rostrais, sob um céu flamejado por todas as flâmulas, galhardetes, estandartes, insígnias c bandeiras vistos até agora” (CARPENTIER, 2008, p. 69).

Entram os prisioneiros mexicanos, correntes no pescoço, chorando sua derrota; e quando parece que se assistirá a uma nova matança, dá-se o imprevisto, o incrível, o maravilhoso e absurdo, contrário a toda verdade: Hernán Cortés perdoa seus inimigos, e, para selar a amizade entre astecas e espanhois, celebram-se, em júbilos, vivas e aclamações, as bodas de Teutile e Ramiro, enquanto o Imperador vencido jura eterna fidelidade ao Rei da Espanha, e o coro, sobre cordas e metais levados em tempo pomposo e a toda força pelo Mestre Vivaldi, canta a ventura da paz reconquistada, o triunfo da Verdadeira Religião e as alegrias do Himeneu. Marcha, epitalâmio e dança geral, e da capo, e outro da capo, até que se fecha o veludo encarnado sobre o furor do indiano (CARPENTIER, 2008, p. 70).

O Amo-Indiano não pode mais se conter: “Falso, falso, falso; tudo falso!” grita e corre até Vivaldi que secava seu suor com um lenço xadrez enquanto dobrava as partituras. O diálogo que se segue é um dos melhores momentos da história e ilustra bem o barroquismo e o apelo à carnavalização pelo autor ao tentar captar não somente a leitura europeia, mas europeia e artística de uma fabulosa história americana. Como “falso”, pergunta atônito, o músico.

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“Tudo. Esse final é uma estupidez. A História. [...]“A ópera não é coisa de historiadores.”“Mas... Nunca existiu tal Imperatriz do México, nem Montezuma teve filha alguma que se casasse com espanhol.“Um momento, um momento”, diz Antonio, com repentina irritação. “O poeta Alvise Giusti, autor desse ‘drama para música’, estudou a crônica de Solís, que tem em alta estima, por ser documentada e fidedigna, o bibliotecário-mor da Marciana. E ali se fala da Imperatriz, sim senhor, mulher digna, animosa e valente.”“Nunca vi isso.”“Capítulo XXV da Quinta Parte. E também se diz, na Quarta Parte, que duas ou três filhas de Montezuma se casaram com espanhóis. Portanto, uma a mais, uma a menos...”“E esse deus Uchilibos?”“Eu não tenho culpa se vocês têm uns deuses com nomes impossíveis. Os próprios Conquistadores, tentando remedar a fala mexicana, denominavam-no Huchi-lobos, ou algo parecido.”“Pesquei: tratava-se de Huitzilopochtli.”“E você acha que dá pra cantar isso? Tudo, na crônica de Solís, é trava-língua. Contínuo trava-língua. Iztla-palalpa, Qualpopoca, Xicotencatl... Aprendi-os como exercício de articulação. Mas... quem, porra, terá tido a idéia de inventar semelhante idioma?”“E esse Teutile, que vira fêmea?”“Tem um nome pronunciável, que se pode dar a uma mulher.”“E o que foi feito de Guatimozín, o herói verdadeiro de toda essa história?”“Teria quebrado a unidade de ação... Seria personagem para outro drama.”“Mas... Montezuma foi apedrejado.”“Muito feio para um final de ópera. Bom, talvez, para os ingleses, que terminam seus jogos cênicos com assassinatos, carnificinas, marchas fúnebres e coveiros. Aqui as pessoas vêm ao teatro para se divertir.”“E onde meteram Dona Marina, em toda essa pantomima mexicana?”“A Malinche foi uma traidora safada, e o público não gosta de traidoras. Nenhuma cantora nossa teria aceitado um papel desses. Para ser grande e merecedora de música e aplausos, essa índia devia ter feito o que Judite fez com Holofernes.”“Sua Mitrena, no entanto, reconhece a superioridade dos Conquistadores”“Mas é quem, até o final, anima uma resistência desesperada. Esses personagens sempre fazem sucesso” (CARPENTIER, 2008, p. 71-72).

O Indiano, mais moderado, insiste em dizer que “a história conta...” e aumenta a indignação de Vivaldi:

Não me venha com História quando se trata de teatro. O que conta aqui é a ilusão poética... Veja, o famoso Monsieur Voltaire estreou em Paris, há pouco, uma tragédia na qual se assiste a um idílio entre um Orosmán e uma Zaira, personagens históricos que, se tivessem vivido quando transcorre a ação, teriam, ele mais de oitenta anos, ela muito mais de noventa (CARPENTIER, 2008, p. 72).

Quanto à história da América, o Padre Ruivo só encontra nela fábulas: “contos de Eldorados e Potosís, cidades-fantasmas, esponjas que falam, carneiros de velocino vermelho, Amazonas com uma teta a menos, e orejones que se alimentam de jesuítas” (CARPENTIER, 2008, p. 73). Vivaldi finaliza a discussão esclarecendo que a solução do poeta Alvise Giusti, autor do “drama” para a música, foi inspirada por sua leitura da obra do cronista Mosén Antonio de Solís.

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Embora a discussão acima seja ficção, a ópera não o é. Vivaldi de fato escreveu uma ópera intitulada “Montezuma”, que estreou no Teatro Sant’Ângelo, em Veneza, em 1733. E foi tão grande o sucesso de se levar à cena um tema das Américas que o libreto de Alvise (que alguns chamam de Girolamo) Gusti acabaria por inspirar novas óperas sobre a conquista do México de dois célebres compositores italianos: o veneziano Antonio Galuppi (1706-1785) e o florentino Antonio Sacchini (1730-1786)7.

Conclusão

O capítulo final inicia-se com uma pergunta de Filomeno ao Indiano: “por que tenho que vê-lo tão aflito com a representação em música que acabamos de ver?”. “Não sei”, responde o outro: “O Padre Antonio deu-me muito o que pensar com sua extravagante ópera mexicana” (CARPENTIER, 2008, p. 75). Pois mesmo sendo ele herdeiro direto dos colonizadores, reconhece que a versão de sua história que acabara de ouvir induziu-o a sentimentos contraditórios, a ponto de torcer pelos índios:

Quanto mais a música de Vivaldi corria e eu me deixava levar pelas peripécias da ação que a ilustrava, maior era o meu desejo de que os mexicanos triunfassem, no anseio de um possível desenlace, pois ninguém podia saber melhor do que eu, nascido lá, como se passaram as coisas (CARPENTIER, 2008, p. 76)..

Admite inclusive que desejou que “Montezuma vencesse a arrogância do espanhol e que sua filha, como a heroína bíblica, degolasse o suposto Ramiro” (CARPENTIER, 2008, p. 76). Ou seja, percebeu de repente que estava do lado da gente da América e contra aqueles que lhe deram sangue e sobrenome! Reconhece, enfim, a superioridade do teatro em relação à narrativa histórica para propiciar viagens a lugares distantes e tempos passados, admitindo que chegou a se sentir ator e não apenas expectador enquanto assistia a ópera. “Às vezes é preciso afastar-se das coisas, por um mar no meio, para ver as coisas de perto”, conclui ele. Filomeno intervém: “De acordo com o Padre Antonio, tudo o que é de lá é fábula.” Ao que retruca o Indiano: “De fábulas alimenta-se a Grande História, não se esqueça disso. Fábula parece o que é nosso às pessoas daqui porque estas perderam o senso do fabuloso. Chamam de fabuloso tudo o que é remoto, irracional, situado no ontem” (CARPENTIER, 2008, p. 77).

Após um breve silêncio pondera: “Não entendem que o fabuloso está no futuro. Todo futuro é fabuloso” (CARPENTIER, 2008, p. 76). A mudança produzida no Indiano-Ariel pela devoração de sua história por Vivaldi-Próspero – o leitor mais atento pode perceber nela um paródia da história oficial (espanhola e crioula) da conquista do Império asteca – e pela convivência com Filomeno-Caliban é impressionante. Podemos quase ouvir Zaratustra ponderando que “muitas coisas que um povo considerava boas, considerava-as, outro, como escárnio e opróbrio: foi o que achei. Muitas coisas achei, aqui, chamadas mal e, acolá, ornadas de purpúreas honrarias” (NIETZSCHE, 1979, p. 15). A mudança operada no protagonista é suficiente para que ele decida que é hora de voltar para casa. Vai com Filomeno a uma loja de instrumentos musicais. Enquanto o fâmulo demonstrava fascínio por peças de Antônio Vivaldi e Georg Fredrich, o Indiano comprava presentes para levar de volta ao México. Filomeno resolve ir para Paris (no México seria apenas um neguinho) e a história se encerra com ele se encantando com um concerto de Louis Arsmstrong (1901-1971). Aí já estamos no século XX, e o músico selecionado, não coincidentemente, é representante do jazz, um estilo considerado por Carpentier como mestiço, barroco! E por que não antropofágico?

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The Baroque and the Concerto barroco by Alejo Carpentier

ABSTRACT:This paper analyses the novel Concerto Barroco (1974) by the Cuban writer Alejo Carpentier as a baroque, or neo-baroque text that incorporates aspects of modernist 1920s anthropophagy, the use of carnivalization such as proposed by Mikhail Bakthin, and Marvelous Realism of the 1960s and 1970s. It does so through parallels between the three main characters of the novel and the Shakespearean metaphors of Prospero, Caliban, and Ariel.

Keywords: Baroque Concert. Alejo Carpentier. History and Literature. Latin American Baroque. Antropophagy.

Notas explicativas

* Professora Associada IV do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora, UFJF. Este artigo é resultado parcial de pesquisa financiada pela FAPEMIG

1 Concerto é derivado de consertar, do latim consertare: “combater, pelear”, “debater, discutir”, derivado de certare: “lutar” (COROMINAS, 1954).

2 Em “Decifrando o código Morse”, prefácio do livro O código Morse, discuto sintonias entre a abordagem antropofágica de Oswald de Andrade e de Richard Morse

3 No início da história Carpentier refere-se ao aristocrata mexicano simplesmente como Amo. Depois do encontro com Vivaldi e sua fantasia em Veneza, como Amo-Montezuma, e finalmente, quando da decepção do Amo com a versão de Vivaldi de seu personagem e da história da conquista de sua pátria, Amo-Indiano.

4 Nos primeiros tempos da conquista da América, índios recrutados para prestar serviços pessoais aos espanhóis.5 Antonio de Solís y Rivadeneyra (1610-1686) foi um escritor, poeta, dramaturgo e historiador espanhol. Como

historiador deve sua fama à sua Historia de la conquista de México, población y progresos de la América septentrional, conocida con el nombre de Nueva España (1684).

6 Lembrar que o Amo havia demonstrado certo relativismo cultural ao repreender Vivaldi por desconsiderar completamente a história de Filomeno como possível tema para uma ópera.

7 Quem nos dá esta informação é o próprio Carpentier, no apêndice do livro (um hábito encontrado em outras novelas como, por exemplo, O Século das Luzes).

Referências

ANDRADE, Oswald. Utopia antropofágica.  São Paulo: Globo, 1995. 238 p.CARPENTIER, Alejo. Concerto Barroco. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 88 p._. Ensayos. Havana: Editorial Letras Cubanas, s/d. 390 p._. O barroco e o real maravilhoso. Trad. Andrea Isteban de Carpentier. In:_. A Literatura do Maravilhoso. Havana: Editorial Letras Cubanas, 1984. 188 p.CHIAMPI, Irlemar. Barroco e Modernidade. São Paulo: Perspectiva/FAPESP, 1998. 180 p.DOMINGUES, Beatriz; BLASENHEIM, Peter L (Org.). O Código Morse: ensaios sobre Richard Morse. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. 283 p.FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. Caliban e outros ensaios. Tradução Maria Elena Matte Hiriart e Emir Sader. São Paulo: Busca Vida, 1988. 188 p.GHIOLDI, Ernesto Martín. Situaciones de transculturación através de expresiones artísticas em Concierto barroco de Alejo Carpentier. Antropol. Sociol., n. 9, Enero-Diciembre 2007, p. 105-119.

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Recebido em: 21 de outubro de 2012Aprovado em: 25 de novembro de 2012