Ângelo Dimitre Gomes Guedes WASSILY KANDINSKY...

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE Ângelo Dimitre Gomes Guedes WASSILY KANDINSKY: “DO ESPIRITUAL NA ARTE” E A PROPOSTA DA SONORIDADE INTERIOR. São Paulo 2011

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  • UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

    Ângelo Dimitre Gomes Guedes  

     

     

     

    WASSILY KANDINSKY: “DO ESPIRITUAL NA ARTE” E A PROPOSTA

    DA SONORIDADE INTERIOR.  

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    São Paulo 2011

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    ÂNGELO DIMITRE GOMES GUEDES

    WASSILY KANDINSKY: “DO ESPIRITUAL NA ARTE” E A PROPOSTA

    DA SONORIDADE INTERIOR.

     

    Dissertação apresentada ao Programa de Pós graduação em Educação, Arte e História da Cultura Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação, Arte e Cultura Orientador: Prof. Dr. Wilton Luiz de Azevedo

    São Paulo 2011

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  • G924w Guedes, Ângelo Dimitre Gomes.

    Wassily Kandinsky: “Do espiritual na arte” e a proposta da sonoridade interior. / Ângelo Dimitre Gomes Guedes. -

    88 f. : il. ; 30 cm.

    Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2011.

    Bibliografia: f. 87-88.

    1. Kandinsky, Wassily. 2. Sonoridade interior. 3. Sinestesia. I. Título.

    CDD 750.92

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    ÂNGELO DIMITRE GOMES GUEDES

    WASSILY KANDINSKY: “DO ESPIRITUAL NA ARTE” E A PROPOSTA

    DA SONORIDADE INTERIOR.

     

    Dissertação apresentada ao Programa de Pós graduação em Educação, Arte e História da Cultura Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação, Arte e Cultura

    Aprovado em 18/08/2011

    BANCA EXAMINADORA

    Prof. Dr. Wilton Luiz de Azevedo Universidade Presbiteriana Mackenzie

    Profª. Drª. Lourdes Malerba Gabrielli Universidade Presbiteriana Mackenzie

    Profª. Drª. Maria Sílvia Barros de Held

    Universidade de São Paulo

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    AGRADECIMENTOS

    Ao meu pai Prof. Roberto Guedes dos Santos, pelo maior exemplo do que é ser um professor,

    por toda a ajuda e conselhos, por todo o carinho, amor e educação investidos em seu filho.

    À minha mãe Edeli Gomes Guedes, por toda a sabedoria, amor, carinho e paciência durante o

    caminho percorrido.

    Ao Prof. Dr. Wilton Luiz de Azevedo, meus agradecimentos especiais pela orientação do

    trabalho, pelo constante acompanhamento e incentivo, pela confiança, exemplo e amizade.

    À Profª. Drª. Elcie Aparecida Fortes Salzano Masini, minha gratidão, pelo exemplo de amor à

    educação e pelo incentivo à minha carreira como pesquisador.

    Aos amigos docentes do Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura, por estimularem

    a minha aprendizagem e iluminarem caminhos em busca de novos conhecimentos.

    Aos amigos discentes do Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura, pela amizade

    sincera, por participarem desse momento único em minha vida e contribuírem para o meu

    crescimento profissional e pessoal.

    A todos os colegas que contribuíram para a publicação do livro “Crisálida: O despertar da

    criatividade”, organizado pela Prof.ª Dr.ª Regina Célia Faria Amaro Giora, à qual eu agradeço

    em especial pelo apoio e pela confiança.

    Ao meu irmão Átila Diogo, por todo apoio, carinho e confiança na realização deste trabalho.

    À minha amiga e namorada Natália Aggio, pelo constante incentivo e apoio, por toda a

    paciência, pelo “foco” e pelos bons momentos ao seu lado.

    A todos os meus grandes amigos e primos, verdadeiros irmãos, que fazem parte da minha

    história e de todas as minhas conquistas, em especial ao Guilherme Pilz, mesmo sabendo que

    os outros ficarão com ciúmes.

    A todos os funcionários da Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura, que

    sempre ajudaram a todos com muita eficiência e paciência.

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    À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo apoio

    financeiro durante a realização do mestrado.

    Ao Fundo Mackenzie de Pesquisa (MACKPESQUISA), pelo apoio financeiro durante a

    realização do mestrado.

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    “Enquanto tiveres coragem para amar e

    disposição para aprender, a felicidade

    rondará teu coração, a cuja porta, se

    aberta, não carecerá bater.”

    Roberto Guedes do Santos

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    RESUMO

    A relação entre os códigos visual, sonoro e verbal é um tema que sempre fascinou diversos

    artistas e pesquisadores. Wassily Kandinsky (1866-1944) foi responsável por um dos mais

    conceituados trabalhos nesse campo. Poesia, sinestesia e sensibilidade são características

    marcantes desde a sua infância. No final do século XIX e início do século XX, a arte

    apresentava sinais de ruptura com o modelo de representação do mundo exterior. Em meio a

    esse cenário, Kandinsky buscou o conteúdo interior/espiritual de uma obra de arte: a

    sonoridade interior. Por meio dela, formas exteriores distintas podem atingir a mesma

    ressonância na alma do espectador. Em seu livro “Do Espiritual na Arte”, publicado em 1914,

    Kandinsky expôs os principais conceitos concernentes à sonoridade interior. O autor parecia

    profetizar novos rumos à Arte, nos quais os valores externos seriam reduzidos e a sonoridade

    interior amplificada. Esta dissertação apresenta uma reflexão sobre todo esse cenário. Aponta o trajeto percorrido por Kandinsky no desenvolvimento de sua linguagem, concentrando-se

    em assuntos concernentes a relações intercódigos. Expõe os principais conceitos apresentados

    no livro “Do Espiritual na Arte”. Apresenta a Arte Monumental, conceito criado por

    Kandinsky, no qual diversos códigos são relacionados. Analisa recortes da composição cênica

    “A sonoridade amarela”, exemplo de Arte Monumental. Apresenta um ensaio artístico criado

    pelo autor da presente dissertação, no qual são relacionados elementos dos códigos visual,

    sonoro e verbal, por meio da sonoridade interior.

    Palavras-chave: Kandinsky. Sonoridade interior. Do Espiritual na Arte. Códigos visuais,

    sonoros e verbais. Cores, sons e palavras. Sinestesia.

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    ABSTRACT

    The relationship between the visual, sonorous and verbal codes is a subject that has

    fascinated many artists and researchers. Wassily Kandinsky (1866-1944) has been responsible

    for one of the most respected works in this field. Poetry, synesthesia and sensitivity

    are hallmarks since his childhood. In the late nineteenth and early twentieth centuries,

    art showed signs of breaking with the representation of the outside world model. In this

    scenario, Kandinsky sought the inner/spiritual content of the art work: the inner

    sonority. Through inner sonority, different outward forms can achieve the same resonance in

    the soul of the viewer. In his book "Concerning the Spiritual in Art", published in 1914,

    Kandinsky set out the main concepts related to inner sonority. The author seemed

    to predict new directions for art, in which external values would be reduced and inner sonority

    amplified. This dissertation presents a reflection on this scenario. It points out the path

    traveled by Kandinsky in the development of his language, focusing on

    issues concerning relations between codes. It also sets out the main concepts presented in his

    book , presents the Monumental Art, concept created by Kandinsky, in which several codes

    are related, brings an analysis of parts of the scenic composition "The Yellow sound", that is

    an example of the Monumental Art. And finally, it presents an art essay written by the

    author of this dissertation, in which elements of visual, sonorous and verbal codes are related

    through inner sonority.

    Keywords: Kandinsky. Inner sonority. Concerning the Spiritual in Art. Visual, sonorous and

    verbal codes. Color, sounds and words. Synesthesia.

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    LISTA DE ILUSTRAÇÕES

    Figura 1. Small Pleasures, 19913 – W. Kandinsky..................................... 13

    Figura 2. As grandes banhistas. 1905 – P. Cézanne.................................... 19

    Figura 3. Flower Bed, 1913 – P. Klee......................................................... 22

    Figura 4. Retrato de Gabriele Münter, 1905 – W. Kandinsky..................... 24

    Figura 5. Gabriele Münter a pintar em Kallmünz, 1903 – W. Kandinsky... 25

    Figura 6. Estudo para Composição II, 1910 – W. Kandinsky..................... 27

    Figura 7. Yellow Cow, 1911 – F. Marc....................................................... 28

    Figura 8. Impressão V, 1911 – W. Kandinsky............................................. 30

    Figura 9. Improvisação XXVI, 1912 – W. Kandinsky................................ 30

    Figura 10. Composição VI, 1913 – W. Kandinsky........................................ 31

    Figura 11. Montanha, 1909 – W. Kandinsky................................................. 33

    Figura 12. Vista sobre Murnau com Comboio e Castelo, 1909 – W. Kandinsky............................................................................................................

    33

    Figura 13. Blue Mountain (Montanha Azul), 1908/1909 – W. Kandinsky..... 34

    Figura 14. Quadro com arco petro 1912 – W. Kandinsky............................... 34

    Figura 15. Composição V, 1911 – W. Kandinsky........................................... 36

    Figura 16. Esboço definitivo para a capa do almanaque Der Blaue Reiter, 1911.....................................................................................................................

    37

    Figura 17. Der Blaue Reiter, 1911/1912 (Xilogravura) – W. Kandinsky....... 38

    Figura 18. L’Oiseau Bleu – Touchagues......................................................... 44

    Figura 19. Les Demoiselles D’Avignon, 1907 – P. Picasso........................... 45

    Figura 20. A Dança, 1909 – H. Matisse........................................................... 46

    Figura 21. Esquema de categorias referentes à forma exterior........................ 51

    Figura 22. Exemplo de intervalo melódico consonante................................... 56

    Figura 23. Exemplo de intervalo melódico dissonante.................................... 56

    Figura 24. Composição VIII, 1923 – W. Kandinsky....................................... 60

    Figura 25. Características dos dois primeiros grandes contrastes..................... 65

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    Figura 26. Comparação de cores com tons de cinza........................................ 66

    Figura 27. Terceiro grande contraste - Verde e Vermelho............................... 69

    Figura 28. Quarto grande contraste - Laranja e Violeta................................... 71

    Figura 29. O círculo do contraste entre dois pólos........................................... 72

    Figura 30. Resumo sobre a Teoria de Cores de Kandinsky (1990).................. 73

    Figura 31. Frame do Ensaio Artístico composto pelo autor da presente pesquisa...............................................................................................................

    82

    Figura 32. Frame do Ensaio Artístico composto pelo autor da presente pesquisa. .............................................................................................................

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    SUMÁRIO

    1 Introdução................................................................................................... 11

    2 Kandinsky e a busca pela sonoridade interior............................................. 14

    3 “Do Espiritual na Arte”.............................................................................. 41

    3.1 Rumo ao espiritual.................................................................................... 41

    3.2 Princípio da Necessidade Interior.............................................................. 46

    3.3 Sonoridade Interior....................................................................................

    50

    3.4 Sobre as Cores – Características, simbolismo, percepção e analogia com a música...............................................................................................................

    61

    4 Arte Monumental: A sonoridade amarela................................................... 74

    5 Ensaio acústico-espiritual: composição visual, sonora e verbal................. 82

    6 CONCLUSÃO............................................................................................ 84

    REFERÊNCIAS.......................................................................................... 87

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    1 Introdução

    Wassily Kandinsky (1866-1944) foi um artista que revolucionou o cenário artístico da

    sociedade moderna, pois transitou pelo universo visual, sonoro e verbal de maneira ímpar e é

    considerado um dos principais responsáveis pela ruptura da arte como a representação do

    exterior por meio do figurativismo. A arte, segundo Kandinsky, é capaz de transpor o

    materialismo da sociedade e aproximar o Homem do Espiritual. A expressão de um artista

    deve explorar a sonoridade interior1 dos elementos artísticos, atingir a alma do espectador e

    vibrá-la de maneira semelhante às cordas de um instrumento musical.

    A relação entre elementos visuais, sonoros e verbais tornou-se cada vez mais evidente

    no decorrer da sua vida e de sua produção artística. Ele acreditava que os sons produziam, no

    espectador, um efeito livre da ligação referencial com a realidade como objeto. Não havia

    uma representação figurativa e ele visualizava esse mesmo efeito a partir de elementos

    provenientes de outros códigos.

    A relação intercódigos presente em sua obra está evidente também em seu discurso,

    sempre repleto de poesia e de riqueza de detalhes:

    “O sol derrete Moscou inteira numa mancha que, como uma tuba exaltada, faz entrar em vibração todo o ser interior, a alma inteira. Não, não é a hora do vermelho uniforme, a mais bela de todas! Só o acorde final da sinfonia leva cada cor ao paroxismo da vida e subjuga Moscou inteira, fazendo-a ressoar, como o fortíssimo final de uma orquestra gigante. O rosa, o lilás, o amarelo, o branco, o azul, o verde-pistache, o amarelo chamejante das colheitas, das igrejas – cada qual com sua melodia própria -, a relva de um verde exaltado, as árvores de uma sonoridade mais grave ou a neve de mil vozes canoras, ou ainda o allegretto dos galhos descarnados, o anel vermelho, rígido e silencioso dos muros de Kremlim, e por cima, dominando tudo como um grito de triunfo, como um aleluia esquecido de si mesmo, o longo traço branco, graciosamente severo, alongado, estendido para o Céu em eterna nostalgia, a cabeça de ouro da cúpula, que entre as estrelas douradas e variegadas das outras cúpulas é o sol de Moscou. (KANDINSKY, 1991, p. 73)

    Kandinsky era um profissional de característica multidisciplinar. Além das diversas

    artes exploradas (música, teatro, poesia, pintura, xilogravuras e outras), o autor teve múltiplas

    experiências em sua biografia, como por exemplo, atividades acadêmicas na área de direito,

    trabalhos com pesquisas étnico-culturais, criação e desenvolvimento de livros, e atividades

    como docente em uma das mais respeitadas escolas de Arte do Século IXX, a “Bauhaus”. A

                                                                                                                   1 O conceito de sonoridade interior será apresentado no decorrer da presente pesquisa.

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    importância que Kandinsky atribuía a seus textos era uma maneira de sua arte não se perder

    no tempo, a partir da possibilidade de outros artistas aprenderem com seus escritos.

    O livro “Do Espiritual na Arte”, publicado em 1914, apresenta o pensamento de

    Kandinsky sobre a arte e seus novos caminhos. Nesse livro, encontram-se conceitos

    desenvolvidos pelo autor como o princípio da necessidade Interior e a sonoridade interior, os

    quais são fatores-chave para a relação dos universos visual, sonoro e verbal.

    A presente pesquisa teve como objetivos principais analisar a relação intercódigos que

    Kandinsky explorava por meio, principalmente, da sonoridade interior dos Elementos

    Artísticos, assunto explorado em seu Livro “Do Espiritual na Arte” e realizar um trabalho

    prático, na forma de um ensaio artístico, baseado nos conceitos analisados.

    Inicialmente, o caminho percorrido pelo autor para o desenvolvimento de sua

    linguagem como artista foi descrito e analisado. Essa análise pretendeu focar, principalmente,

    nos assuntos relacionados ao objeto de pesquisa, ou seja, nas relações intercódigos presentes

    na obra de Kandinsky, assim como nas influências que contribuíram para essa linguagem

    multimidiática desenvolvida pelo autor.

    Os principais conceitos explorados no livro “Do Espiritual na Arte” como, por

    exemplo, a sonoridade interior, são explicados e analisados diante de uma perspectiva

    multidisciplinar, aproximando-os de assuntos relacionados ao campo artístico.

    “Do Espiritual na Arte” é conhecido por muitos pela relevante abordagem ao universo

    cromático. Nesse livro, ele apresenta sua pesquisa sobre as cores (características, simbolismo,

    percepção e analogia com a música). Esse estudo evidencia muitos dos conceitos explorados

    no decorrer do livro. No final dele, Kandinsky aponta uma nova forma de expressão artística,

    que é capaz de relacionar artes de diferentes meios, a partir da sonoridade interior como

    elemento primordial de composição. Kandinsky a denomina como Arte Monumental. Esse é o

    principal exemplo da relação intercódigos que Kandinsky explorava.

    O presente trabalho foi organizado de maneira a aproximar e a analisar o

    desenvolvimento da linguagem de Kandinsky no período anterior à produção do livro e os

    conceitos utilizados na Arte Monumental e apresentados no livro. A partir deste estudo

    teórico, realizou-se um ensaio artístico.

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    No estudo teórico da presente pesquisa são descritos, primeiramente, aspectos da vida

    do autor que contribuíram para o seu desenvolvimento como artista e como estudioso da arte

    (Capítulo 1: Kandinsky e a busca pela sonoridade interior); em seguida, faz-se a apresentação

    e a análise dos conceitos apresentados pelo autor no livro “Do Espiritual na Arte” (Capítulo 2:

    “Do Espiritual na Arte”), tais como o princípio da necessidade interior, a sonoridade interior e

    as cores; a terceira parte trata do conceito da Arte Monumental, que é primeiramente descrita

    e, posteriormente, exemplificada com a análise da peça “A sonoridade amarela” (Capítulo 3:

    Arte Monumental: “A sonoridade amarela”); na quarta parte, apresenta-se um ensaio visual,

    sonoro e verbal, desenvolvido pelo autor da presente pesquisa e apoiado pelos conceitos

    pesquisados no estudo teórico (Capítulo 4: Ensaio acústico-espiritual: Composição visual,

    sonora e verbal). Neste ensaio, são relacionados os códigos visual, sonoro e verbal por meio

    da expressão do artista e usa-se a sonoridade interior como principal elemento de criação.

    Figura 1: Small pleasures, 1913 – W. Kandinsky

    Fonte: THE GUGGENHEIM COLECTION (2006, p. 105)

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    2 Kandinsky e a busca pela sonoridade interior

    Wassily Kandinsky (1866-1944) foi considerado o pioneiro na arte abstrata,

    entretanto, sua contribuição vai muito além. Sua obra, ainda hoje, é referência para artistas

    que preferem se expressar sem o uso do figurativismo geralmente presente na arte. Além

    disso, sua relação entre música e pintura é considerada uma das mais expressivas já

    realizadas. Kandinsky parecia enxergar sons e ouvir cores. A faculdade sinestésica que

    Kandinsky aplicava, buscava a vibração da sonoridade interior na alma do espectador de uma

    obra de arte, independente do meio (música, teatro, pinturas, xilogravuras e outros). Os

    primeiro indícios dessa característica do autor foram observados durante a sua infância.

    Kandinsky nasceu em Moscovo, no dia 4 de dezembro de 1866, segundo o calendário

    gregoriano. Seu pai, Vasili Silverstrovich, nasceu na Sibéria Oriental, pois a família

    Kandinsky havia sido forçada a viver por lá, devido a uma reforma radical de Alexandre II.

    Sua mãe, Lydia Tikheeva, era moscovita e conhecida por sua inteligência e beleza, que muito

    encantavam o jovem Kandinsky. Por mais breve que tenha sido a relação dos dois, ambos

    permaneceram presentes na vida do autor, mesmo após a separação. Kandinsky passou a ser

    criado por sua tia, Elisaveta Tikheeva. O jovem parecia refugiar-se em um universo lúdico

    repleto de poesia e mistérios. Sua tia foi quem mais incentivou a sensibilidade do autor

    durante sua infância, por meio da música, de brincadeiras, da leitura de contos alemães e da

    literatura russa:

    A irmã mais velha de minha mãe, Elizaveta Ivanova Tikheeva, teve sobre todo o meu desenvolvimento uma influência considerável, indelével. Uma criatura iluminada, de quem jamais se hão de esquecer quantos estiveram em contato com ela ao longo de sua vida profundamente altruísta. Devo-lhe o nascimento de meu amor pela música, pelo conto e, mais tarde, pela literatura russa e pela natureza profunda do povo russo. Uma das mais luminosas recordações da minha infância ligadas a Elizaveta Ivanovna é um cavalinho de chumbo pertencente a um jogo de cavalinhos, pigarço, com amarelo-ocre no corpo e uma crina amarelo-clara. Nos primeiros dias de minha chegada a Munique, para onde fui aos trinta anos, abandonando o longo trabalho dos anos anteriores para aprender pintura, encontrei um cavalo pigaço que era a réplica exata daquele. Ele aparece invariavelmente todos os anos na época de regar as ruas. No inverno, desaparece misteriosamente, mas na primavera faz sua aparição tal qual era um ano antes, sem ter envelhecido ou mudado: parece imortal. (KANDINSKY, 1991, p. 71)

    As cores estão sempre presentes nas recordações de sua infância. A maneira rica como

    ele as retrata é dotada de uma poesia única que, quase sempre, o autor mistura com sensações

    provenientes de todos os sentidos para descrevê-las, fato que demonstra a sonoridade interior

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    em comum nos sentidos para o autor. Em seu livro “Rückblicke” (Recordações – Olhar no

    passado), o autor comenta sobre sua paixão por andar a cavalo. A riqueza de detalhes e a

    sensibilidade com o elemento cor, relacionado ou acompanhado de sensações provenientes de

    outros sentidos, aparecem em trechos nos quais o autor comenta sobre sua infância:

    Como todas as crianças, desejava apaixonadamente “andar a cavalo”. Para me agradar, nosso cocheiro talhava sobre finas varas galhos em forma de espiral; na primeira faixa ele retirava as duas cascas do galho, na segunda apenas a primeira, de modo que meus cavalos tinham habitualmente três cores: o amarelo escuro da casca externa de que eu não gostava e que de bom grado veria substituído por outra cor, o verde cheio de seiva da segunda camada da casca de que eu gostava muito particularmente e que mesmo murcho conservava algo de encantador e, por fim, a cor branco marfim da madeira da vara que tinha um perfume de umidade e que provocava a tentação de lamber, mas que logo murchava e secava tristemente, o que estragava de antemão a alegria que esse branco me causava. (KANDINSKY, 1991, p. 69, grifo nosso)

    Nesse mesmo livro, o autor comenta sobre as primeiras cores presentes em sua

    memória: verde-claro e “cheio de seiva”, o branco, o vermelho-carmim, o preto e o amarelo-

    ocre. Essas lembranças de seus três anos de idade remetem-no a diferentes objetos, os quais

    ele não conseguia visualizar tão bem quanto as cores.

    A maneira como o autor descreve a sensação, ao ver a cor saindo do tubo de tinta a

    óleo que havia comprado por volta de seus 13 anos, revela a sinestesia e a poesia presentes na

    percepção e na linguagem de Kandinsky:

    “Uma pressão do dedo e, jubilosos, faustosos, refletidos, sonhadores, absorvidos em si mesmos, com uma profunda seriedade, uma crepitante malícia, com o suspiro do parto, a profunda sonoridade do luto, uma força, uma resistência obstinadas, uma doçura e uma abnegação na capitulação, um autodomínio tenaz, tamanha sensibilidade em seu equilíbrio instável, esses seres estranhos a que se chama cores vinham um depois do outro, vivos em si e para si, autônomos e dotados de qualidades necessárias à sua futura vida autônoma [...] Parecia-me às vezes que o pincel, que com vontade inflexível arranca fragmentos desse ser que vive das cores, fazia nascer a cada arrancamento uma tonalidade musical. Por vezes, eu ouvia o chiado das cores no momento em que se misturavam. (KANDINSKY, 1991, p.p. 91,92, grifo nosso)

    Por volta de 1874, Kandinsky teve suas primeiras lições de música, piano e,

    posteriormente, violoncelo. Seu estilo musical apresentava influências orientais e ocidentais..

    O próprio violoncelo é um exemplo dessa influência. Apesar de ser tipicamente ocidental, é

    um instrumento não temperado (que não possui trastes), o que torna o seu instrumentista

    capaz de executar maiores nuances entre os tons. A música ocidental é formada pela escala

    cromática de 12 tons2, já a oriental possui mais divisões e a diferença entre os tons são muito

                                                                                                                   2 No sistema anglo-saxão, tem-se a notação literal: C, C# (ou dB), D, D# (ou Eb), E, F, F# (ou Gb), G, G# (ou Ab), A, A# (Bb), B. Em países latinos, tem-se a notação silábica, criada pelo monge italiano Guido d’Arezzo.

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    sutis, dificilmente percebidas por músicos formados no sistema ocidental. O instrumentista de

    violoncelo precisa ter o ouvido bem treinado para encontrar as notas exatas do sistema

    ocidental. Essa experiência pode ter causado grande influência na riqueza de detalhes que

    Kandinsky aplicava à sua arte.

    Durante muito tempo, a estrutura escalar árabe ofereceu problemas aos musicólogos europeus que não conseguiam descrevê-la, nem concluir sequer sobre o número de intervalos de que ela se compunha. Diferentes pesquisas afirmavam que o sistema comportava dezesseis, dezoito, dezenove [e] [vinte e quatro] intervalos, sem falar na dificuldade de determinar o tamanho desses intervalos, que mostravam desnorteantes unidades desiguais (em posição aos semitons uniformes que compõem a escala ocidental moderna). Pesquisas posteriores, baseadas em gravações de canto e oscilogramas (registro de freqüência), chegaram mais recentemente a tabular esse sistema escalar (identificando vinte e quatro intervalos desiguais no interior da oitava) [...] A variada palheta dos intervalos mínimos que permitem o desenvolvimento dessa combinatória é constituída muitas vezes de nuances menores do que o semitom (a menor unidade de distinção melódica no teclado de um piano), sem que sejam, no entanto, necessariamente, quartos de tom, isto é, metades exatas de um semitom. É que a construção da escala, em seu colorido microtonalismo, não obedece a necessidades aritméticas de racionalização do campo sonoro, mas a necessidades acústicas, ligadas a critérios de potência expressiva. (WISNIK, 1989, p.p. 81, 82)

    A sensibilidade artística de Kandinsky sempre foi muito evidente em seu caminho,

    entretanto, antes de dedicar-se integralmente à arte, o autor desenvolveu trabalhos expressivos

    em outras áreas. Em 1886, ingressou na Universidade de Direito em Moscou. Sua faculdade

    de escrever era extremamente significativa. Kandinsky utilizava as palavras com a mesma

    perícia com que utilizava as cores. Durante esse período, o autor engajou-se em movimentos

    político-estudantis, atividade que, segundo suas próprias palavras, “servia de ensejo para

    novas experiências e tornava as cordas da alma sensíveis, receptivas e particularmente aptas a

    vibrar”. (KANDINSKY, 1991, p. 75).

    Foi atraído por diversos assuntos e temas durante essa época. O direito romano

    fascinava-o, porém, sua estrutura era oposta à que ele, um típico eslavo, estava acostumado;

    era austera e possuía uma lógica demasiadamente insensível. O direito criminal,

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             Nessa notação, foram retiradas as primeiras sílabas dos versos de um hino a São João Baptista. Ut quent laxis, Resonare fibris, Mira Gestorum, Famuli tuorum, Solve polluti, Labii reatum, Saancte Iohannes. (Para quem possam ressoar as maravilhas dos teus feitos, com largos cantos, apaga os erros dos lábios manchados, ó São João. Posteriormente, a nota “Ut” passou a chamar-se Dó, embora “Ut” ainda hoje seja utilizada na França. A notação silábica é utilizada em países de origem latina. Na Alemanha, Noruega, Suécia e países do leste europeu, o B (Si) é utilizado para representar o Si (b) e a letra H é utilizada para a nota Si natural. Esses sistemas de notação musical representam verbalmente e graficamente a altura das notas musicais determinadas no sistema ocidental. Altura é a propriedade física do som “que nos permite distinguir sons graves, intermediários ou agudos, dependendo do número de vibrações por segundo produzido pelo objeto sonoro”. (BIAGIONI et al., 2005).

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    17  

    principalmente os estudos de Lombroso3 (1835-1909) sobre a motivação interior de um

    criminoso, também interessava Kandinsky. Outro tema explorado era a história dos direitos

    russo e camponês que, na opinião do autor, caminhavam ao encontro do direito romano, pois,

    representavam uma libertação na aplicação da lei.

    A etnografia despertava a paixão de Kandinsky em revelar a alma e a essência do

    povo. Em 1889, o autor visitou a região nortenha de Vologda a fim de escrever um relatório

    sobre costumes relativos ao direito dos camponeses e às tradições religiosas, a pedido da

    Sociedade das Ciências Naturais, Etnografia e Antropologia. Essa experiência foi riquíssima

    em detalhes; sua descrição não se restringiu à organização social dos camponeses, mas

    também à sua percepção das cores presentes naquele cenário.

    Chegava a aldeias onde, subitamente toda a população se apresentava vestida de roupa cinzenta das cabeças aos pés, com rostos e cabelos de um verde amarelado, ou arvorava de repente trajes variegados que deambulavam sobre duas pernas como vivos quadros coloridos. Nunca me esquecerei dos casarões de madeira cobertos de esculturas. Nessas vivendas mágicas, vivi uma coisa que nunca mais se reproduziu. Elas me ensinaram a mover-me no próprio âmago do quadro, a viver no quadro... A mesa, as banquetas, o grande fogão, que ocupa um lugar importante na casa do camponês russo, os armários, cada objeto era pintado como ornamentos variegados que se desdobravam em grandes traços. Nas paredes, imagens populares: a representação simbólica de um herói, uma batalha, a ilustração de um canto popular... Quando, enfim entrei no aposento, senti-me cercado de todos os lados pela pintura na qual, portanto, penetrara. (KANDINSKY, 1991, p. 86)

    Após essa experiência, Kandinsky percebeu que tinha a mesma sensação ao entrar nas

    Igrejas de Moscou e nas capelas de Baviera e Tirol. Nas visitas seguintes a esses lugares, tal

    percepção ficou ainda mais clara.

    O autor, em seu ensaio autobiográfico, afirma que, apesar dos diversos compromissos

    acadêmicos, continuava aprimorando seus talentos artísticos durante esse período. Procurava

    fixar o “coração das cores”, como ele mesmo denominava. Buscava expressar toda a força

    que esse coração exercia sobre si mesmo, porém, não obtinha sucesso satisfatório.

    (KANDINSKY, 1991). Mesmo não se dedicando ao âmbito artístico como poderia, esse

    período voltado aos estudos acadêmicos em muito contribuiu para a evolução de Kandinsky

    como autor (produção geral, como pinturas, livros e aulas), enriquecendo todo o seu sistema

    cognitivo, aprimorando sua linguagem, desenvolvendo o pensamento abstrato e o

                                                                                                                   3 Cesare Lombroso (1835-1909) era professor de medicina legal e de psiquiatria na Universidade de Turin, Suas teorias deslocavam o julgamento de um criminoso de um estudo do sistema das leis para os da motivação interior, exercendo um papel oposto a criminologia clássica. Fator que chamava a atenção do Kandinsky durante seus estudos sobre direito. (KANDINSKY, 1991, notas)

  •  

     

    18  

    autoconhecimento e, talvez, estimulando o caminho rumo à dedicação integral ao âmbito

    artístico, como ele mesmo cita:

    Todos esses estudos me cativaram e ajudaram a desenvolver o pensamento abstrato. Amei todas essas ciências e, ainda hoje, rememoro com reconhecimento as horas de entusiasmo e quiçá de inspiração que elas me proporcionaram. Mas essas horas se empanaram ao primeiro contato com a arte, porque só ela tinha o poder de transportar-me fora do tempo e do espaço. Os trabalhos científicos nunca me haviam propiciado tais experiências de tensões interiores e de momentos criativos. (KANDINSKY, 1991, p. 76)

    O trabalho acadêmico desenvolvido pelo autor era reconhecido por todos e começava

    a trazer resultados para a sua vida profissional. Após a investigação requisitada pela

    Sociedade de Ciências Naturais, Etnografia e Antropologia, ele foi convidado a integrá-la.

    Obteve sucesso também nos exames jurídicos e consagrou-se assistente na Universidade de

    Moscou. Em 1892, estabeleceu uma relação conjugal com sua prima, Anya Chimiakin, que

    também apreciava assuntos intelectuais.

    Mesmo com o sucesso na vida profissional e acadêmica, Kandinsky ainda sonhava em

    dedicar-se apenas à arte; sentia que somente ela alimentaria seu espírito, como ele mesmo cita

    em seu livro “Do Espiritual na Arte”. Contudo, ainda não havia desenvolvido suas faculdades

    pictóricas satisfatoriamente e receava seguir esse caminho. Ainda em dúvida, Kandinsky foi

    convidado a lecionar alemão na Universidade Russa de Dorpat, porém recusou e finalmente

    decidiu não mais calar sua ambição artística.

    Alguns acontecimentos foram primordiais para a decisão do autor. Em 1895,

    Kandinsky espantou-se ao não distinguir o objeto presente em uma das obras expostas na

    mostra dos impressionistas franceses. Só conseguiu visualizá-lo após informar-se pelo

    catálogo que se tratava de uma Meda de Feno, desenhada pelo pintor Claude Monet (1840-

    1926). Em um primeiro instante, acostumado somente com a arte realista, considerou uma

    audácia descomunal. Entretanto, era exatamente isso que ele buscava no seu inconsciente.

    O movimento impressionista já se configurava como uma quebra do paradigma

    mimético, retrato fiel do mundo exterior. Essa ruptura, que teve a contribuição potencial do

    próprio Kandinsky posteriormente, confrontava o academicismo da época e tornava a arte

    visível como sua própria realidade. Um dos principais responsáveis pelo início dessa ruptura

    foi o pintor Cézanne (1939-1906). Dono de um estilo muito peculiar e único, entretanto,

    associado ao impressionismo e ao cubismo por muitos, era chamado de “o pai da Arte

    Moderna” por Picasso e por Matisse. O artista, não se submetia a regras do academicismo,

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    19  

    como leis de perspectivas e outras. Ele visualizava a natureza segundo três formas

    fundamentais: a esfera, o cilindro e o cone. No livro “Do Espiritual na Arte”, Kandinsky

    comenta sobre o pintor:

    Tratou os objetos como tratou o homem, pois tinha o dom de descobrir a vida interior em tudo. Captura-os e entrega-os à cor. Recebem dela a vida – uma vida interior – e uma nota essencialmente pictórica. Impõe-lhes uma forma redutível a fórmulas abstratas, freqüentemente matemáticas, das quais emana uma radiante harmonia. Não é nem um homem, nem uma maçã, nem uma árvore, que Cézanne quer representar; ele serve-se de tudo isso para criar uma coisa pintada que proporciona um som bem interior e se chama imagem. (KANDINSKY, 1990, p. 50)

    Figura 2: As grandes Banhistas, 1898-1905 – P. Cézanne

    Fonte: http://revistaescola.abril.com.br/ensino-medio/cezanne-sentimento-vence-forma-530391.shtml

    Acesso em :16.jun.2011

    Os artistas modernos vinham gradativamente desprendendo-se da relação com a

    realidade como objeto. Esse período de mudanças na arte visual foi também estimulado pelo

    advento da máquina fotográfica. Esse instrumento, capaz de recortar um fragmento da

    realidade em um determinado espaço e tempo, estimulou pintores a buscarem novos estilos e

    a se afastarem da relação mimética que a arte costumava apresentar até então. Além disso, a

    fotografia exerceu correspondência direta com o impressionismo pela maneira como os

    pintores desse estilo utilizavam o elemento cor. Segundo Zanchetta (1994), as descobertas

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    20  

    provenientes da pesquisa fotográfica, sobre composição de cores e formação de imagem na

    retina do observador, influenciaram a técnica dos pintores impressionistas, os quais passaram

    a não misturar as tintas na tela para obter cores distintas, mas sim, a utilizar pinceladas de

    cores puras que, colocadas lado a lado, eram misturadas pelos olhos do observador durante o

    processo de formação da imagem.

    Além do impacto causado pela não percepção do objeto no quadro de Monet, das

    rupturas e inovações do cenário das artes visuais na época, outras ocorrências específicas

    ajudaram a impulsionar a decisão do autor. A ópera “Lohengrin”, de Richard Wagner (1813-

    1883), promoveu um efeito sinestésico em Kandinsky. A disposição dos sons dessa obra o

    inspirou ainda mais a relacionar cores e sons, o que era uma das grandes chaves de todo o seu

    processo de criação.

    Lohengrin pareceu-me constituir uma perfeita realização dessa Moscou. Os violinos, os baixos profundos e, mais particularmente, os instrumentos de sopro personificavam, então, para mim toda a força das horas do crepúsculo. Via mentalmente todas as minhas cores, elas estavam diante dos meus olhos. Linhas selvagens, quase loucas, desenhavam-se ante mim. Não ousava dizer que Wagner pintara em música “a minha hora”. Mas evidenciou-se-me com toda a clareza que a arte em geral possuía uma força muito maior do que até então me parecera e que, por outro lado, a pintura podia despender as mesmas forças que a musica. E a impossibilidade de descobrir sozinho essas forças, ou ao menos procurá-las, tornou minha renúncia ainda mais amarga. (KANDINSKY, 1991, p. 78)

    A Teoria da Radiotividade e a desintegração do átomo também promoveram uma

    espécie de ruptura das regras fixas estabelecidas desde sempre. Nesse momento, Kandinsky

    sentia-se livre para experimentar, criar, ouvir sua necessidade interior por arte, expressar seus

    próprios sons e iniciar a ruptura com a relação mimética que a arte apresentava. Após essa

    ruptura, o que mais importava era o som natural da arte e da expressão do autor e não a sua

    forma exterior. A obra de arte tinha voz própria a partir de sua criação (expressão do artista).

    A pretensão artística, reprimida até então, e as experiências musicais e pictóricas, que

    já havia vivido, passaram a ter novos significados e, por conseguinte, suas forças se

    potencializaram. Kandinsky estava convicto de buscar novos caminhos para a pintura. Aos 30

    anos, seu primeiro passo foi partir rumo a Munique. A escolha não foi despretensiosa, a

    cidade era vista como um grande centro artístico cultural, liberal e inovador. O jovem

    arquiteto August Endell (1871-1925) sintetizou em uma frase o conceito da propensão

    revolucionária do cenário artístico de Munique: “Não existe erro maior do que reduzir a arte à

    reprodução fiel da realidade (ENDELL apud DÜCHTING, 2007, p. 9).

  •  

     

    21  

    A chegada a Munique despertou algumas memórias de sua infância em Moscou, como

    as cores e a sua tia que tanto colaborou com sua educação artística.

    Os contos alemães, que eu ouvira tantas vezes em criança, ganharam vida. Os tetos estreitos e altos, hoje desaparecidos, da Promenadeplatz e da Maximillianplatz, o velho Schwabing e, sobretudo, o Au, que descobri certa vez por acaso, metamorfosearam tais contos em realidade. O bonde azul sulcava as ruas como uma atmosfera de conto de fadas corporificado, tornando a respiração leve e agradável. As caixas de correio amarelas lançavam das esquinas seu canto vibrante de canário. Eu saudava a inscrição “Moinho das Artes” e sentia-me numa cidade artística, o que era para mim como uma cidade de conto de fadas. (KANDINSKY, 1991, p. 71, grifo nosso)

    Motivado, Kandinsky optou por aprimorar suas faculdades pictóricas e matriculou-se

    na Escola de Anton Azbe (1862-1905), porém sentia-se preso ao ter que retratar rostos e

    corpos de modelos. Frequentemente, Kandinsky fugia das aulas para aprender à sua maneira.

    Com sua caixa de pintura, desenvolvia estudos sobre o bairro de Scwabing, o jardim inglês e

    as alamedas do Isar ou optava por estudar em casa e pintar quadros, tendo como referência

    apenas a memória, sem influência das leis da natureza. Por esse motivo, muitos colegas

    consideravam-no preguiçoso e até pouco talentoso. (KANDINSKY, 1991)

    Kandinsky continuava a estudar desenho de anatomia com um certo desânimo até que

    passou a perceber uma beleza subjetiva nessa tarefa:

    É, efetivamente, uma inteligência infinita que se manifesta em cada detalhe: qualquer narina, por exemplo, desperta em mim o mesmo sentimento de admiração que o vôo de um pato selvagem, a ligação da folha ao ramo, o nado da rã, o bico do pelicano, etc. (KANDINSKY, 1991, p. 96)

    Muitos colegas de Kandinsky, após verem suas obras, chamavam-no de colorista. Não

    havia como negar que Kandinsky explorava muito melhor esse elemento do que a forma e

    seus traços.

    Para tornar-se mais completo, Kandinsky resolveu procurar Franz Stuck (1863-1928),

    um dos melhores desenhistas da época. Somente na segunda tentativa, o desenhista o admitiu

    em sua escola. A relação de Franz com Kandinsky colaborou muito para o seu

    desenvolvimento como artista. Segundo o próprio Kandinsky, Franz discursava “com um

    amor surpreendente pela arte, pelo jogo das formas e pela fusão das formas entre si”

    (KANDINSKY, 1991, p. 98), característica que cativou o autor. Sua contribuição para a

    evolução de Kandinsky não foi apenas com o desenho, mas com o processo de criação e de

    produção da obra também. Seu discurso pouco didático obrigava Kandinsky a refletir

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    22  

    longamente, o que o deixava muito impaciente. Contudo, quase sempre percebia as críticas do

    professor como muito pertinentes e isso otimizava a significação do conteúdo dessas aulas.

    Foi também na escola de Franz que conheceu o artista Paul Klee (1879-1940), cuja

    amizade resultaria, anos após, em uma parceira muito significativa para a evolução da arte

    não figurativa: o expressionismo abstrato.

    Figura 3: Flower Bed, 1913 – P. Klee

    Fonte: THE GUGGENHEIM COLECTION (2006, p. 113)

    Após esse período significativo para a sua evolução como artista, Kandinsky saiu da

    escola e optou por continuar seu caminho de maneira autônoma. Sua produção tornava-se

    maior a cada ano. Paralelo a esse desenvolvimento técnico, Kandinsky colhia observações e

    experiências que o distanciavam cada vez mais da arte figurativa:

    [...] quando deparei com um quadro de uma beleza indescritível, impregnado de grande ardor íntimo. A princípio, fiquei confuso, depois abeirei-me rapidamente do quadro misterioso no qual via apenas formas e cores e cujo o tema me era

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    23  

    incompreensível. Não tardei a encontrar a chave do enigma: era um dos meus quadros, encostado na parede com o lado para baixo. (KANDINSKY, 1991, p. 87)

    No dia seguinte a essa observação, Kandinsky procurou, em vão, encontrar a

    impressão que o quadro rotacionado a 180˚ lhe havia causado, o que confirmou que o objeto

    prejudicava seus quadros. O figurativismo era danoso à sonoridade de sua obra; se sua

    intenção era fazê-la gritar da maneira mais pura e autêntica possível, ela deveria ser livre de

    qualquer relação iconográfica, indicial e simbólica4 com a realidade como objeto. Mesmo

    com essa certeza, Kandinsky receava produzir uma arte vazia. Devido a isso, estudou as

    sensações provenientes das cores e das formas durante anos. Todas as práticas e observações

    oriundas desse estudo fizeram com que Kandinsky trabalhasse de maneira mais ativa nesse

    processo. O que deveria substituir o objeto? Essa pergunta era incansavelmente repetida e

    impulsionava cada vez mais as pesquisas do autor em sua busca pela sonoridade e

    necessidade interiores.

    [...] não é em função do real, mas em função do irreal, que a mão do pintor escolhe, arbitra, cria, atinge objeto material que, às vezes, é resistente... Então, o papel, a fibra, a pedra, a madeira, a tela são provocações para a mão sonhadora se autodeterminar e impor sua vontade ao corpo do mundo[...] O pintor toca o mundo em sua concretude, sem reduzí-lo a um panorama de totalidade ou unidade definitivas[sic]. (RAPOSO, 1998, p. 48)

    Em 1901, Kandinsky fundou o grupo artístico Phalanx e promoveu uma série de 12

    exposições, as quais foram realizadas até 1904, quando o grupo encerrou as atividades. Nesse

    período de intensa produção artística (1901-1904), deve-se sublinhar dois momentos – o

    encontro em 1902 com Gabriele Münter (1877-1962) (Figuras 4 e 5), que se tornaria sua

                                                                                                                   4 Os conceitos de ícone, índice e símbolo, foram aqui citados, de acordo com a Teoria da Semiótica de Charles Sanders Peirce (1839-1914). Os signos são divisíveis conforme três tricotomias e subdivididos em dez classes. Os conceitos de ícone, índice e símbolo referem-se à denominação do signo de acordo com a segunda tricotomia, a qual é a principal divisão dos signos (PEIRCE, 2008). “Qualquer coisa, seja uma qualidade, um existente individual ou uma lei, é ícone de qualquer coisa, na medida em que for semelhante a essa coisa e utilizado como um seu signo” (PEIRCE, 2008, p. 52). Essa relação ícone/objeto é caracterizada por uma relação de similaridade. Exemplo: Pintura Figurativa. Já o índice é “um signo, ou representação, que se refere a seu objeto [...] por estar numa conexão dinâmica (espacial inclusive) tanto com o objeto individual, por um lado, quanto, por outro lado, com os sentidos ou a memória da pessoa a quem serve o signo (PEIRCE, 2008, p.74). Indica uma relação existencial ou referencial. Por exemplo: "uma batida na porta é índice [...] um violento relâmpago indica que algo considerável ocorreu, embora não saibamos exatamente qual foi o evento. Espera-se, no entanto, que ele se ligue com alguma outra experiência (PEIRCE, 2008, p. 67). O símbolo se caracteriza como “um signo que se refere ao objeto que denota em virtude de uma lei, normalmente uma associação de idéias gerais que opera no sentido de fazer com que o símbolo seja interpretado como se referindo aquele objeto” (PEIRCE, 2008, p. 52). Sinteticamente, a relação do signo com o seu objeto pode ser: iconográfica (similaridade com as características do objeto), indicial (conexão dinâmica existencial ou referencial) e simbólica (representação do objeto). Kandinsky, após a experiência de ver seu quadro de “ponta-cabeça” com uma sonoridade interior muito mais forte devido à ausência do objeto figurativo, percebeu que o objeto da arte não poderia ser a realidade. A presença desse objeto figurativo prejudicava a amplificação da sonoridade interior e sua vibração na alma do espectador. No decorrer do trabalho, mais detalhes sobre a sonoridade interior serão abordados.

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    24  

    companheira e muito o incentivaria em suas pesquisas, após o seu divórcio com Anya

    Chymiaki e a sétima exposição da Phalanx, realizada em 1903, que contou com quadros de

    Claude Monet.

    Figura 4: Retrato de Gabriele Münter, 1905 – W. Kandinsky

    Fonte: DÜCHTING (2007, p. 19)

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    Figura 5: Gabriele Münter a pintar em Kallmünz, 1903 – W. Kandinsky

    Fonte: DÜCHTING (2007, p. 18)

    Nesse período, Kandinsky estudou intensamente teorias sobre as cores, elementos com

    os quais já apresentava muita familiaridade e perícia, porém de maneira empírica. Sua

    principal referência foi a Doutrina das Cores de Johann Wolfang Von Goethe (1749-1832).

    Ao contrário de Newton (1643-1727), autor que desenvolveu a mais completa teoria sobre as

    cores, visualizando-as, principalmente, como fenômeno físico, Goethe estava mais

    interessado na interação do espectador com o elemento cor. Nessa teoria, além do fenômeno

    físico, foram também abordados a fisiologia e o fenômeno psíquico. A teoria de Goethe

    apresenta alguns equívocos como, por exemplo, a oposição à afirmação de Newton de que a

    luz branca era “formada pelas diferentes luzes coloridas do espectro” (PEDROSA, 2003, p.

    55). Goethe dedicou-se a analisar a questão de como a cor se apresentava no ambiente e na

    percepção humana. Sua postura caminhava de encontro ao pensamento dogmático de seu

    tempo, o qual limitava a liberdade para que o pensamento se desenvolvesse. Esse ponto de

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    vista, que aborda os fenômenos físico, fisiológico e psíquico, voltado principalmente para o

    espectador, mesmo equivocado em alguns pontos, estimulou muitas outras pesquisas, em

    diversas áreas do conhecimento e, além de Kandinsky, muitos outros pintores e autores o

    utilizaram.

    [...]Já que ocupa um lugar tão elevado na série de fenômenos naturais originários, preenchendo com uma diversidade bem definida o círculo simples que lhe foi designado, não devemos nos surpreender ao percebermos que a cor, em suas manifestações gerais e elementares na superfície de um material, sem nenhuma relação com a qualidade ou forma dele, produz sobre o sentido que lhe é mais adequado, a visão, e, por meio deste, sobre a alma, um efeito que, isoladamente, é específico e, em combinação, é em parte harmônico, em parte característico, mas também desarmônico, embora sempre definido e significativo, que se vincula imediatamente à moralidade. É por isso que as cores, consideradas como um elemento da arte, podem ser utilizadas para os mais altos fins estéticos. As pessoas sentem grande prazer com a cor. O olho necessita dela tanto quanto da luz. Vale lembrar o rejuvenescimento que se sente, num dia nublado, ao ver o sol iluminar uma parte isolada da paisagem, tornando as cores visíveis. (GOETHE, 1993, p. 139, grifo nosso)

    No capítulo em que Goethe descreve o efeito sensível moral da cor, ele afirma que o

    amarelo está mais para o claro e o azul mais para o escuro. No decorrer do trabalho, pode-se

    observar que Kandinsky apresenta muitos pontos em comum com os conceitos abordados pela

    teoria de Goethe.

    Kandinsky desenvolveu exponencialmente seu trabalho pictórico, promoveu e

    participou de diversas exposições e grupos durante essa época. Toda essa intensa experiência

    contribuiu com a evolução de uma nova pintura, a que aspirava. Por volta desse período,

    Kandinsky passou a recolher as impressões que ajudariam o processo de desenvolvimento do

    livro “Do Espiritual na Arte”, como ele mesmo cita no prefácio do livro:

    As idéias que desenvolvo aqui são o resultado de observações e de experiências interiores acumuladas pouco a pouco ao longo dos últimos cinco ou seis anos. Eu tinha a intenção de escrever uma obra mais completa. Mas é um assunto que exigiria inúmeras experiências no domínio da sensibilidade. Outros trabalhos de importância não menor me absorveram e tive, por enquanto, de renunciar a esse projeto. Talvez nunca o execute. Outro, sem dúvida, o realizará mais completamente e melhor do que eu. Limitar-me-ei, portanto, a esboçar as linhas gerais da questão, a mostrar somente a importância do problema, e considerar-me-ia feliz se o eco de minhas palavras não se perdesse no vazio. (KANDINSKY, 1990, p. 21)

    Em 1909, surge a Neue Künstlervereinigung München – NKVM (Nova Associação

    dos Artistas de Munique), da qual faziam parte Kandinsky, sua esposa Gabriele Münter,

    alguns amigos, importantes artistas e historiadores de arte. A segunda exposição do grupo,

    organizada em 1910, caminhava de encontro com os interesses da conservadora política

    artística da época em Munique (DÜCHTING, 2007), transformando a cidade no centro da arte

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    vanguardista. A mostra contou com a obra “Composição II” de Kandinsky. Em seu estudo

    (Figura 6), ainda se notam aspectos iconográficos e figurativos como, por exemplo,

    cavaleiros, casas e paisagens, porém, a dinâmica das linhas, o desequilíbrio e as cores

    gritantes parecem refletir o espírito de Kandinsky pouco antes do salto para a abstração.

    Figura 6: Estudo para Composição II, 1910 – W. Kandinsky

    Fonte: DÜCHTING (2007, p. 24)

    Os críticos foram agressivos e afirmaram que o autor de uma obra como essa só

    poderia estar utilizando substâncias alucinógenas. Um dos poucos artistas que defenderam

    Kandinsky foi Franz Marc (1880-1916), nessa época, ainda desconhecido do público

    muniquense. Seu trabalho também procurava romper com o mimetismo. A partir desse

    episódio, iniciou-se uma amizade entre os dois autores. Franz Marc caminhou ao lado de

    Kandinsky para a abstração. Desde o início, é notório que havia tensões na NKVM, devido ao

    fato de que o grupo como um todo não acompanhava a evolução da pintura de Kandinsky e a

    crítica tornava-se cada vez mais intensa.

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    28  

    Figura 7: Yellow Cow, 1911 – F. Marc

    Fonte: THE GUGGENHEIM COLECTION (2006, p. 109)

    Por volta desse período, o autor fez suas primeiras improvisações e começou a compor

    a obra “A sonoridade amarela”. Nela, Kandinsky propõe signos que prejudicam a significação

    do espectador por meio da relação com o seu objeto. Essa relação torna-se confusa devido à

    maneira como os elementos são apresentados. Os signos propostos pelo autor na peça pouco

    significam caso o espectador deseje relacioná-los entre si, com seus referentes (do signo) e

    com o seu próprio sistema cognitivo. A música não é uma simples trilha sonora em função

    das imagens, as quais não são lineares. Parece não haver um roteiro, não existir uma história

    figurativa. O que Kandinsky propõe nessa peça são signos visuais, sonoros e verbais que se

    entrelaçam, porém, nenhum está em função do outro; o que importa para o autor é a

    expressão, a sonoridade interior de cada elemento (separados e juntos), a vibração dessa

    sonoridade interior na alma do espectador e a percepção dessa tempestade de signos. O

    significado, nesse caso, é extremamente subjetivo. A experiência vivida por meio da

    percepção desse som pode significar de diferentes maneiras para cada indivíduo. Kandinsky

    destaca a sonoridade de sua expressão e dos elementos presentes na composição, a qual

    atingirá certa ressonância no interior no espectador. Essa obra demonstra a ruptura da relação

    mimética na arte, expõe a relação sinestésica presente em sua linguagem e em seu processo de

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    criação e evidencia o princípio da necessidade interior, apontado em seu livro “Do Espiritual

    na Arte”.

    Esse período, que antecede a publicação do livro e no qual as observações que

    serviram para sua criação estão em fase final, é também muito significativo para a criação

    artística de Kandinsky, pois surgem as primeiras improvisações. A partir desse momento, no

    qual Kandinsky organizou seu pensamento em busca da sonoridade interior, seu processo de

    criação começa a fluir cada vez mais e a barreira entre o universo visual e sonoro também se

    torna quase inexistente; o autor experimenta cada vez mais essa relação que o fascina desde a

    sua infância e esse processo se torna observável em obras como essa.

    Também em 1909 Kandinsky classifica suas principais obras pictóricas em

    Impressões, Improvisações e Composições (Figuras 8, 9 e 10), fato que aponta essa

    organização de pensamentos e atividades que Kandinsky estabeleceu, após anos de estudos,

    reflexões, prática e observações.

    Essa nomenclatura de classificação de suas principais obras pictóricas é um ótimo

    exemplo da ligação entre o universo visual e sonoro em Kandinsky. Os termos aplicados são

    muito utilizados na música: as Impressões constituem-se de modelos naturalistas, sem a

    ruptura total com o figurativo; as Improvisações tratam de abstrações livres e espontâneas; as

    Composições tratam da abstração em um grau mais elaborado, a partir de toda a sua

    experiência.

  •  

     

    30  

    Figura 8: Impressão V, 1911 – W. Kandinsky

    http://www.centrepompidou.fr/education/ressources/ENS-kandinsky-mono-EN/ENS-kandinsky-monographie-EN.html

    Acesso em: 17.jun.2011

    Figura 9: Improvisação XXVI, 1912 – W. Kandinsky

    Fonte: DÜCHTING (2007, p. 41)

  •  

     

    31  

    Figura 10: Composição VI, 1913 – W. Kandinsky

    Fonte: DÜCHTING (2007, p. 50)

    Por meio das composições, Kandinsky buscava uma pintura mais semelhante à

    música. O autor apresentava um enorme fascínio pelo tema:

    A palavra composição deixava-me profundamente perturbado e mais tarde estabeleci como objetivo na vida pintar uma “Composição”. Essa palavra tinha em mim o efeito de uma prece. Enchia-me de veneração. Nos estudos que pintava, eu me deixava levar. Pensava pouco nas casas e nas árvores, traçava na tela, com a espátula, linhas e manchas coloridas e deixava-as cantar tão forte quanto eu podia. (KANDINSKY, 1991, p.p. 83,84, grifo nosso)

    Para ele, pintura e música tinham muitos pontos em comum, principalmente, a

    sonoridade interior. Ele era capaz de estabelecer inúmeras relações entre os signos

    provenientes de cada uma. A percepção de um som, apresentava muita similaridade com a

    percepção de uma cor. Propriedades como ritmo, timbre, volume, altura, matiz e tonalidade se

    relacionavam na mente do autor. Contudo, ele invejava a natureza abstrata da música e

    buscava na pintura um resultado semelhante. Acreditava que esse era o futuro da pintura, pois

    uma obra pictórica livre de objetos figurativos poderia alcançar o mesmo efeito que a música

    exercia em seu espectador. Kandinsky visualizava uma vantagem para a pintura, a qual, ao

    contrário da música, não apresentava duração determinada no processo de interação

    espectador-obra de arte. O impacto poderia ser instantâneo e mais denso:

  •  

     

    32  

    A música, por exemplo, dispõe da duração. Mas a pintura oferece ao espectador – vantagem que a música não possui – o efeito maciço e instantâneo do conteúdo de uma obra. Por mais totalmente emancipada da natureza que seja, a música não tem necessidade, para exprimir-se, de recorrer às formas de sua linguagem. Quanto à pintura, ela ainda está hoje quase totalmente reduzida a contentar-se com as formas que toma emprestadas da natureza. Sua tarefa ainda consiste em analisar esses meios e essas formas, aprender a conhecê-los, como a música, por sua vez, já o fez há muito tempo, e esforçar-se por integrá-los em suas criações, utilizando-os para fins puramente pictóricos. (KANDINSKY, 1990, p. 56)

    Para o autor, cada arte possui suas próprias forças e não se pode substituir uma pela

    outra, mas sim uni-las e potencializar ainda mais a sonoridade interior da obra de arte

    impressa no espectador.

    A produção pictórica dessa época, a exemplo da “Composição II”, já mencionada

    anteriormente, ainda continha vestígios figurativos e iconográficos. Pouco a pouco,

    Kandinsky desprendeu-se de qualquer referência à realidade como objeto. Até mesmo os

    nomes de algumas obras produzidas nessa época ainda apresentavam esses vestígios como,

    por exemplo, “Montanha”, de 1910 (Figura 11), “Vista sobre Murnau com Comboio e

    Castelo”, de 1909 (Figura 12), “Montanha Azul”, de 1908/1909 (Figura 13) e Quadro com

    Arco Preto, de 1912 (Figura 14). Essas obras apresentam forte sonoridade interior, perceptível

    por meio de cores e formas bem aplicadas.

  •  

     

    33  

    Figura 11: Montanha, 1909 – W. Kandinsky

    Fonte: DÜCHTING (2007, p. 28)

    Figura 12: Vista sobre Murnau com Comboio e Castelo, 1909 – W. Kandinsky

    Fonte: DÜCHTING (2007, p. 23)

  •  

     

    34  

    Figura 13: Blue Mountain (Montanha Azul), 1908/1909 – W. Kandinsky

    Fonte: THE GUGGENHEIM COLECTION (2006, p. 103)

    Figura 14: Quadro com arco petro 1912 – W. Kandinsky

    Fonte: DÜCHTING (2007, p. 36)

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    35  

    Em 2 de janeiro de 1911, Kandinsky assistiu ao concerto do compositor vienense

    Arnold Schöenberg (1874-1951) e ficou impressionado com a sua performance. A

    atonalidade de Schöenberg, seus estudos, pesquisas e produções artísticas caminhavam ao

    encontro do abstracionismo de Kandinsky e vice-versa. A ruptura com regras comuns, a forte

    e intensa expressão do autor e de sua arte são alguns dos pontos em comum:

    O atonalismo é a quebra do sistema e a sua deriva [...] Sch[ö]enberg registra que o novo estilo atonal, guiado sobretudo por “fortes impulsos expressivos”, não se habilitava a produzir obras longas [...] Independente dessa inaptidão estrutural para o discurso extenso, que Sch[ö]enberg pretendia superar, a fase atonal contém invenções inusitadas de timbres e entoações. (WISNIK, 1989, p. 165)

    A partir do primeiro encontro, iniciou-se uma amizade que muito contribuiu para o

    desenvolvimento artístico de ambos e para a evolução da arte abstrata. Kandinsky afirma, em

    seu livro “Do Espiritual na Arte”, que o compositor caminhava sozinho na contramão do

    senso-comum, que estava a caminho do materialismo e de motivos exteriores. Para o autor, o

    trabalho de Schöenberg explora, de maneira única, a necessidade interior e representa o início

    da música futura:

    O compositor vienense Arnold Schöenberg percorre sozinho esse caminho, apenas reconhecido por alguns raros e entusiásticos admiradores [...] Schöenberg dá-se claramente conta de que a liberdade sem a qual a arte sufoca nunca é absoluta. Cada época recebe seu quinhão dela e o gênio mais poderoso não pode ir mais além. Mas essa medida deve esgotar-se por inteiro cada vez, e o será sempre. A parelha indócil pode escoicear quanto quiser. Também, Schöenberg se esforça para esgotar essa liberdade, e nesse caminho da “necessidade interior” já descobriu os tesouros da “Beleza Nova”. Sua música faz-nos penetrar num reino novo onde as emoções já não são somente auditivas, mas, sobretudo, interiores. Aí começa a “música futura”. (KANDINSKY, 1990, p.p. 48, 49)

    Kandinsky reconhecia no trabalho de Schöenberg muitos dos conceitos explorados por

    ele até então como, por exemplo, o princípio da necessidade interior. Ambos corresponderam-

    se durante muito tempo, explorando ainda mais esses pontos em comum. Além da intensa

    troca de conhecimentos e experiências, Schöenberg também expôs com o grupo

    expressionista que Kandinsky liderava, denominado “Der Blaue Reiter” (Cavaleiro Azul), do

    qual artistas como A. Jawlensky (1867-1941), A. Kubin (1877-1959), A. Macke (1887-1914),

    F. Marc e Paul Klee eram membros.

    O grupo surgiu logo após Kandinsky e Marc afastarem-se da NKVM. O motivo do

    rompimento desses autores com a associação foi a rejeição da Composição V (Figura 15) pelo

    júri da terceira exposição, apesar de eles já haverem previsto o fato. Conforme mencionado

    anteriormente, o grupo não acompanhava a evolução rumo ao espiritual. Dessa forma,

  •  

     

    36  

    começaram a trabalhar no primeiro almanaque do Der Blaue Reiter antes mesmo da decisão

    final de retirarem-se da NKVM.

    Figura 15: Composição V, 1911 – W. Kandinsky

    Fonte: joanaemarta.no.sapo.pt/telas_kandinsky_set.htm, acesso em: 14.dez.2010

    O expressionismo, a priori, é o processo inverso do impressionismo. O movimento

    ocorre do interior do artista/sujeito para o exterior; o sujeito imprime no objeto, ao contrário

    do impressionismo, onde estão em pauta a sensibilidade do artista e as impressões

    provenientes da realidade (objeto). Todavia, mesmo os movimentos artísticos considerados

    expressionistas são distintos entre si.

    As obras do cubismo, por exemplo, caracterizam-se como a expressão do autor e toda

    a sua subjetividade, por meio da decomposição da realidade/objeto em formas geométricas.

    No cubismo, permanece uma ligação referencial com a realidade (objeto); os signos oriundos

    desse movimento artístico podem significar de maneira denotativa (mesmo com o objeto

    retratado decomposto em formas geométricas, a presença da ligação referencial com a

    realidade/objeto continua presente); e conotativa (significado subjetivo de cada espectador, da

    reconstrução da realidade/objeto em formas geométricas). Já o expressionismo abstrato de

    Kandinsky não possui uma ligação referencial com o objeto (figurativismo); a expressão,

  •  

     

    37  

    segundo o autor, apresenta o máximo da sua sonoridade interior quando está livre desse

    figurativismo ou de qualquer ligação referencial com a realidade como objeto.

    O grupo Der Blaue Reiter potencializava o caminho que Kandinsky vinha traçando

    com a arte abstrata e o distanciamento do cerne materialista da sociedade. O nome do grupo,

    apesar de despretensioso, simbolizava muitos dos conceitos explorados pelo autor:

    [...] para Kandinsky, a cor azul continuava a ser, por um lado, a cor celeste por excelência, portanto, a cor espiritual, tal como para Marc, por outro, o tema do cavaleiro [...] estava já presente sob diversas variantes na obra de Kandinsky e definia a transformação do príncipe-encantado no cavaleiro, combatendo por uma nova estética. São Jorge, que aparecia frequentemente no almanaque, retoma este motivo no sentido cristão, como provam as inúmeras pinturas sobre vidro de Kandinsky. O combate contra o dragão é uma imagem da vitória do espírito sobre a visão materialista do mundo, uma esperança expressa em diversas formas no almanaque. (DÜCHTING, 2007, p. 42)

    Tanto os espectadores, quanto os críticos, inclusive os que eram favoráveis a

    Kandinsky, encontraram dificuldades em acompanhar o pensamento do grupo durante a

    primeira exposição. As obras expostas eram bem distintas em relação a estilos (DÜCHTING,

    2007). Todas eram provenientes de diferentes artistas e não havia uma relação materialista

    entre elas. Nelas estavam contidas a expressão de cada artista, a sonoridade interior que

    atendia única e exclusivamente ao princípio da necessidade interior.

    Figura 16: Esboço definitivo para a capa do almanaque Der Blaue Reiter, 1911

    W. Kandinsky | Fonte: DÜCHTING (2007, p. 26)

  •  

     

    38  

    Figura 17: Der Blaue Reiter, 1911/1912 (Xilogravura) – W. Kandinsky

    Fonte: DÜCHTING (2007, p. 37)

    “Do Espiritual na Arte” foi lançado antes, praticamente contemporâneo à primeira

    exposição do grupo e profetizava a mudança rumo ao espiritual.

    [...] Meu livro Do Espiritual na arte, a exemplo de O cavaleiro Azul, tinha por finalidade, sobretudo, despertar essa capacidade, que será absolutamente necessária no futuro e possibilitará experiências infinitas de viver o Espiritual nas coisas materiais e abstratas. O desejo de fazer surgir essa capacidade, fonte de tal felicidade, entre os homens que ainda não a possuíam era o objetivo essencial das duas publicações. (KANDINSKY, 1991, p. 104)

    O livro “Do espiritual na Arte” é constantemente interpretado de maneira equivocada.

    Alguns atribuem a palavra espiritual à mente do sujeito envolvido como espectador ou criador

    da mensagem artística, em um sentido restrito à cognição. Na citação abaixo, Kandinsky

    comenta sobre o livro “Do Espiritual na Arte” e Rückblicke” (Recordações – Olhar no

    passado).

    ... Os dois livros foram e são freqüentemente mal compreendidos. Tomam-nos por “manifestos” e seus autores são catalogados entre os artistas [“acidentados”] que se extraviaram no trabalho cerebral e na teoria. Nada estava mais longe de mim do que apelar para a razão, para o cérebro. Essa tarefa teria sido, hoje, ainda prematura, e representará para os artistas o objetivo (=não) próximo, importante e inelutável, na evolução ulterior da arte. Para o espírito que se fortaleceu e se enraizou solidamente, nada pode ou poderá ser mais perigoso, portanto, nem mesmo o trabalho cerebral, tão temido na arte. (KANDINSKY, 1991, p. 104)

  •  

     

    39  

    Kandinsky se interessava muito por assuntos ligados à espiritualidade. Para o autor,

    todo espírito tem fome de arte e apenas uma arte criada de maneira autêntica é capaz de suprir

    a fome do espírito. Muitas obras de arte seguem apenas a tendência do mercado, do material,

    do estilo de seu tempo e outros caminhos que as tornam “vazias”.

    À medida que o homem se desenvolve e se completa, aumenta o círculo de propriedades que ele aprende a reconhecer como próprio dos seres e das coisas. Coisas e seres adquirem uma significação que se resolve, finalmente, em ressonância interior. (KANDINSKY, 1990, p. 64)

    A abordagem espiritual do tema está presente também na descrição de Kandinsky

    sobre a percepção da cor. Para o autor, quanto mais o indivíduo é evoluído espiritualmente,

    mais sensível aos efeitos psíquicos da cor ele será.

    Quanto mais cultivado é o espírito sobre o qual ela se exerce, mais profunda é a emoção que essa ação elementar provoca na alma. Ela é reforçada, nesse caso, por uma segunda ação psíquica. A cor provoca, portanto, uma vibração psíquica. E seu efeito físico superficial é apenas, em suma, o caminho que lhe serve para atingir a alma. Se essa segunda é realmente uma ação direta, conforme é licito supor pelo que se acaba de expor, ou se, pelo contrário, só é obtida por associação, é difícil decidir. Estando a alma estreitamente ligada ao corpo, uma emoção qualquer sempre pode, por associação, provocar nele outra que lhe corresponda. Por exemplo, como a chama é vermelha, o vermelho pode desencadear uma vibração interior semelhante à da chama. O vermelho quente tem uma ação excitante. Sem dúvida, porque se assemelha ao sangue, a impressão que ele produz pode penosa, até dolorosa. A cor, neste caso, desperta a lembrança de outro agente físico que exerce sobre a alma uma ação penosa. (KANDINSKY, 1990, p. 64)

    No período de 1897 a 1914, Kandinsky manteve contato direto com autores e

    pesquisadores de ciências ocultas como Teosofia e Antroposofia. Não por acaso, esse período

    é contemporâneo ao ínicio de sua carreira artística, contemporâneo ao caminho da abstração e

    à produção do livro “Do Espiritual na Arte”. Essas ciências procuravam reaproximar o

    homem do mundo espiritual. Nesse período, pode-se destacar autores como: Helena

    Blavatsky (1831-1891), fundadora da Sociedade Teosófica; Annie Besant (1847-1873)

    e Charles Webster Leadbeater (1847-1934), autores do livro Formas de Pensamento, que foi

    uma das influências para Kandinsky e, por fim, Rudolf Steiner (1861-1925), fundador da

    Sociedade Antroposófica. Steiner, um dos principais pesquisadores sobre Goethe,

    desenvolveu inúmeras atividades como escritor e conferencista, abordando assuntos

    cognitivos, filosóficos e literários, tornou-se membro da Sociedade Teosófica de Helena

    Blavatsky e, mais tarde, fundou a Sociedade Antroposófica. O trabalho de Steiner deixou

    inúmeras contribuições no campo da pedagogia, da arte, da espiritualidade, dentre outros,

    sempre distanciando-se do antropocentrismo e do ceticismo, consequências dos avanços

  •  

     

    40  

    científicos da época. No livro “Do Espiritual na Arte”, Kandinsky descreve o caminho a ser

    percorrido pela "Nova Arte”, discursa sobre o cenário contemporâneo ao livro, a mudança

    para o Rumo Espiritual, o Conceito da Pirâmide, o Príncipio da Necessidade Interior e sobre

    elementos imagéticos, sonoros e verbais, como cores, formas, sons e palavras; cuja

    sonoridade interior vibra a alma do espectador. “A cor [forma/som/palavra] é a tecla5. O olho

    é o martelo. A alma é o piano de inúmeras cordas. Quanto ao artista é a mão que, com a ajuda

    desta ou daquela tecla, obtém da alma a vibração certa”. (KANDINSKY, 1990, p. 66). No

    decorrer da pesquisa, o princípio da necessidade interior será melhor abordado.

    Não só a sinestesia e a múltipla vivência nos campos imagético, sonoro e verbal,

    apontadas no decorrer da vida de Kandinsky, principalmente na infância, com influências de

    contos e fábulas alemãs que estimularam seu sistema cognitivo, sua imaginação e criação,

    mas também todas as experiências relacionadas à espiritualidade e às ciências ocultas foram

    imprescindíveis para a ruptura da relação mimética que a arte materialista costumava

    apresentar. Toda essa multidisciplinaridade colaborou com a compreensão da arte como seu

    próprio universo e da sonoridade interior comum nos diferentes tipos de obra de arte, seja ela

    visual, sonora ou verbal. A partir do momento em que a obra de arte não apresenta uma

    relação figurativa, sua sonoridade interior vibra muito mais alto na alma do espectador.

    Kandinsky acreditava que a sociedade, em geral, necessitava de uma arte que

    proporcionasse mais contato com o espiritual e somente a arte pura, resultado da expressão do

    artista e livre do figurativismo, seria capaz de fazê-lo.

                                                                                                                   5 No livro “Do Espiritual na Arte”, a primeira explicação sobre o princípio da necessidade interior define a cor como tecla. (KANDINSKY, 1990, p. 66). Porém, essa analogia pode ser feita com todos os elementos citados acima (cor, forma, som e palavra).

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    41  

    3 “Do Espiritual na Arte”

    “Do Espiritual na Arte” apresenta os principais conceitos explorados por Kandinsky

    em seu processo de criação e abstração. O autor expõe seu pensamento em relação à arte em

    geral, à arte moderna e à sociedade. O livro é organizado em três partes, de maneira

    progressiva: Generalidades, Pintura e Conclusões. Em Generalidades, o autor introduz o leitor

    ao assunto, expõe o conceito da Pirâmide Espiritual e seu constante movimento rumo ao

    cume, mesmo que, em alguns períodos, seja quase imperceptível, também faz reflexões sobre

    a arte e a sociedade; argumenta que o homem deve voltar-se novamente ao lado espiritual,

    afastando-se do ceticismo e do antropocentrismo provenientes dos avanços científicos e

    tecnológicos. Em “Pintura”, Kandinsky expõe o princípio da necessidade interior e a

    sonoridade interior, apresenta reflexões sobre a linguagem das cores e das formas

    (simbolismo, características e analogia entre cores e sons), expõe o conceito de Arte

    Monumental, no qual todas as artes e seus elementos característicos (palavras, cores, formas,

    sons, etc.) se relacionam em uma única composição, levando em consideração a sonoridade

    interior desses elementos, e encerra o livro concentrando-se na relação entre o artista e a sua

    criação.

    Analisar-se-á, a seguir, os principais conceitos concernentes ao objeto de pesquisa,

    explorados no livro “Do Espiritual na Arte”..

    3.1 Rumo ao espiritual

    No período de desenvolvimento e de publicação do livro “Do Espiritual na Arte”, o

    materialismo proveniente das novidades tecnológicas conquistava cada vez mais notoriedade,

    contribuindo para que a sociedade se afastasse cada vez mais de assuntos relacionados à

    espiritualidade.

    Para Kandinsky, essa tendência apenas freava o constante movimento da pirâmide

    espiritual. Kandinsky elaborou essa pirâmide como um esquema representativo da vida

    espiritual, no qual ele aponta os diferentes níveis de evolução, na arte e na sociedade em

    geral.

  •  

     

    42  

    A Pirâmidade Espiritual é composta de partes desiguais, uma menor e mais aguda no

    cume e duas partes mais largas e espaçosas próximas à base. Metaforicamente, Kandinsky

    aponta que, no topo da pirâmide, muitas vezes, há lugar apenas para um indivíduo, chamado

    de visionário ou profeta, o qual é questionado por todos os outros situados na parte inferior da

    pirâmide, ao passo que na base, demasiadamente espaçosa, lugar onde o nível de evolução

    espiritual é menor, há espaço livre para o senso comum. Kandinsky comenta sobre os poucos

    que atingem o ápice da pirâmide:

    Por sua vez, na ponta extrema, não há mais do que um homem sozinho. Sua visão iguala sua infinita tristeza. E os que estão perto dele não o compreendem. Em sua indignação, tratam-no de impostor, de semilouco. Toda a sua vida, solitário, muito longe e acima dos outros, Beethoven também foi alvo dos ultrajes destes (KANDINSKY, 1990, p. 36, grifo nosso)

    Para Kandinsky, o movimento da pirâmide, mesmo sendo ofuscado em alguns

    momentos e tornando-se quase imperceptível, está sempre ativo. A parte mais próxima da

    base caminha em direção ao ápice. A arte e a vida espiritual caminham sempre para o alto e

    para a frente (KANDINSKY, 1990). A arte alimenta o movimento da vida espiritual.

    Segundo o autor, é possível encontrar artistas em todas as partes da pirâmide, porém

    somente aqueles que visualizam além dos limites de onde se encontram, ajudam a impulsionar

    esse movimento. Suas criações, como artista, motivam e direcionam aqueles que estão na base

    da pirâmide:

    Então sempre surge um homem, um de nós, em tudo nosso semelhante, mas que possui uma força de “visão” misteriosamente infudida nele... Com frequência, já nada do seu “eu” corporal subsiste na terra. Tenta-se, então, reproduzir por todos os meios e em tamanho maior que o natural, no mármore, no bronze, na pedra, essa forma corporal, como se ela pudesse ter importância em tais mártires, divinos servidores dos homens, que sempre desprezaram a matéria e serviram apenas ao espírito. Mas esse “mármore” é o testemunho visível de que homens cada vez mais numerosos chegaram ao ponto atingido pelo primeiro deles, aquele que agora se glorifica. (KANDINSKY, 1990, p. 31)

    Kandinsky faz algumas reflexões sobre o cenário religioso, científico e moral dessa

    época e demonstra que os “apoios exteriores” da sociedade tornaram-se cada vez mais frágeis,

    estimulando o momento de mudança rumo ao espiritual. Os primeiros campos afetados foram

    a literatura, a música e a pintura. Kandinsky cita o exemplo de Maurice Polydore Marie

    Bernard Maeterlinck (1862-1949) na literatura. “Talvez Maeterlinck, esse vidente, seja um

    dos primeiros profetas, um dos primeiros araustos desse desmoronamento” (KANDINSKY,

    1990, p. 46). A arte de Maeterlinck, segundo Kandinsky, é extremamente simbólica e

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    43  

    caminha no campo da representação e da abstração. Detalhes materiais em suas cenas são

    recursos simbólicos que procuram alcançar um som interior. Seu grande recurso é a palavra,

    que, em sua obra, possui dois sentidos: um sentido imediato e um sentido interior. No sentido

    imediato, tem-se a significação literal e no sentido interior, tem-se a vibração da sonoridade

    da palavra.

    Maurice Maeterlinck também mantinha uma forte ligação com o espiritual. Era

    filósofo, escritor e poeta e escreveu obras sobre a vida social, o destino da humanidade, o

    mistério da natureza, entre outras.

    Nesta análise sumaríssima de seu teatro, ter-se-á reconhecido que a estética de seu teatro, ter-se-á reconhecido que a estética de Maeterlinck não deixava de ter prolongamentos metafísicos e morais: sua intenção não era distrair o espectador, nem comovê-lo ou instruí-lo, mas elevá-lo àquelas alturas vertiginosas onde a alma pode expandir-se livremente. Em seu próprio teatro – e a evolução da obra haveria sempre de confirmá-lo – Maeterlinck era antes de tudo um moralista e, com tôda solenidade antiga desta palavra, um Sábio. (BUISSON, 1962, vida e obra, p. 41)

    Em sua obra “O pássaro azul” (L’Oiseau Bleu), por exemplo, Maurice Maeterlinck

    explorou a mágica do universo infantil, contrapondo a característica de puerilidade a

    reflexões sobre a vida e o homem em um cenário repleto de quimeras, filosofia e “sabedoria

    nimbada de poesia” (BUISSON, 1962, p. 39). Maeterlinck explorava os dois sentidos (literal

    e interior) por meio de todos os recursos simbólicos presentes em seu texto.

    Ai de nós: o pássaro azul da felicidade só existe para lá dos limites dêste mundo perecível, mas aqueles que têm coração puro, jamais hão de procurá-lo inutilmente, pois nêles a vida sentimental e a imaginativa se enriquecerão e se purificarão na viagem através das províncias do país dos sonhos. (WIRSÉN, 1962, p. 31)

    Alguns recortes da peça que ilustram esse universo de poesia e fantasia são descritos

    abaixo:

    Fada: A alma do açúcar não é mais interessante do que a alma da pimenta. Aqui têm vocês o que eu trouxe para ajudá-los na busca do Pássaro Azul. Sei perfeitamente que o Anel-que-torna-a-gente-invisível ou o tapête-mágico seriam mais úteis. Mas perdi a chave do armário onde estão guardados. Ah, ia-me esquecendo. (Mostra o Diamante.) Se você pegar nêle assim, está vendo? E der outra voltinha, tornará a ver o passado. Mais outra voltinha, e verá o Futuro. É curioso, prático, e não faz barulho. (MAETERLINCK, 1962, p. 74)

    Segundo quadro: No Palácio da Fada. Magnífico vestíbulo, no palácio da Fada Beriluna. Colunas de mármore claro, com capitéis de ouro e prata, escadarias, pórticos, balaustradas, etc.[...] Entram pelo fundo, à direita, suntuosamente vestidos, a Gata, o açúcar e o Fogo. Saem de um aposento do qual brotam raios de luz: o quarto-de-vestir da Fada. A gata recobriu uma gaze leve a mala de sêda preta: o Açúcar envolveu-se num traje de sêda, metade branco metade azul-claro; o Fogo tem à cabeça plumas multicores e usa longo manto carmesim, forrado de ouro. Atravessam

  •  

     

    44  

    a sala ponta a ponta, e chegam ao primeiro plano, à direita, onde a Gata os reúne sob o pórtico. (MAETERLINCK, 1962, p. 87)

    Figura 18: L’Oiseau Bleu – Touchagues

    Fonte: MAETERLINCK (1962, p. 55)

    Além do exemplo de Maurice Maeteterlinck na literatura, Kandinsky cita

    co