James Hilton O Horizonte Perdido

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Horizonte

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James Hilton

Horizonte

Perdido

Tradução deFrancisco Machado Vila e

Leonel Vallandro

Digitalização: Argo, o glorioso

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PRÓLOGO

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Tinham-se apagado os charutos e começava a apontar em nós aquela espécie de desilusão que de ordinário per-

turba antigos condiscípulos ao se encontrarem de novo, ho-mens feitos, e descobrirem que já não existe entre eles amesma afinidade.

 Rutherford escrevia novelas. Wyland era secretário deembaixada e convidara-nos a jantar em Tempelhaf. Nãomostrara lá muita alegria, mas mantinha aquelaequanimidade que o diplomata deve ter sempre à mão para

 semelhantes ocasiões. Dir-se-ia que o único ponto de união que nos ligava

uns aos outros era o fato de sermos ingleses celibatários,reunidos numa capital estrangeira; quanto a mim, chegara já â conclusão de que nem o tempo nem a Ordem de Vitóriatinham apagado em Wyland "Tertius " o leve toque de presunção que lhe conhecera.

Simpatizava mais com Rutherford: era uma bela evo-lução do menino frágil e precoce que noutro tempo eu mal-tratava ou protegia alternativamente. E a única emoçãoque Wyland e eu sentíamos em comum — uma pontinha deinveja  —  nascia da idéia de que ele ganhava provavel-mente muito mais e devia ter um gênero de vida muito maisinteressante do que nós.

 Ainda assim, a tarde nada teve de aborrecida. Víamosdali quando aterravam os aparelhos da Lufthansa, vindosde todos os cantos da Europa Central; e no escurecer, à luz

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dos arcos voltaicos, a cena tinha um magnífico esplendor de teatro. Um dos aviões era inglês e o piloto, passando pela nossa mesa com o seu traje completo de aviador,cumprimentou Wyland, que a principio não o reconheceu. Depois vieram as apresentações, porém, e o estranho foiconvidado para a nossa roda.

 Era um moço jovial, de agradável presença, chamadoSanders. Wyland desculpou-se: era difícil identificar as pessoas sob o traje e o capacete de aviador. Ao que San-

ders, respondeu, rindo: —  Sei muito bem disso. Não esqueça que eu estava

em Baskul. Riu também Wyland, mas não tão espontaneamente; e

a conversa mudou de rumo.Sanders revelou-se um bom contingente para o nosso

 pequeno grupo e ajudou-nos a tomar muita cerveja. Pelas

dez horas, Wyland deixou-nos durante alguns minutos, para falar com alguém que se achava numa mesa próxima,e Rutherford, aproveitando o repentino hiato que se abrirana palestra, observou, dirigindo-se a Sanders:

 —  Falou em Baskul. Conheço um pouco o lugar. Queaconteceu lá?

Sanders sorriu, meio contrafeito:

 —  Oh! referia-me apenas a um fato que provocou al- guma excitação, quando eu me achava no serviço. Era, porém, aquele moço dos que não podem guardar 

 segredos, e continuou: —   Foi o caso que um afegane, afridi ou o que quer 

que seja, fugiu com um de nossos aviões. Meteu-nos emmaus lençóis, como pode imaginar. Também, nunca vi

tamanha desfaçatez! O diabo emboscou-se no caminho do piloto, derrubou-o, tirou-lhe o uniforme e subiu para a dire-ção, sem que ninguém notasse. Deu ao mecânico as ordens

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certas, decolou e lá se foi voando em grande estilo. Mas o pior é que nunca voltou.

 Rutherford parecia interessado. —  Quando foi isso? —  Oh! haverá, talvez, um ano. . . em maio de trinta e

um. Estávamos fazendo evacuar a população civil de Baskul para Peshawar, por causa da revolução. . . Lem-bra-se, não? Estava tudo em polvorosa; do contrário, penso que isso não poderia ter acontecido. E contudo,

aconteceu! Isto prova, até certo ponto, que o hábito faz omonge, não acha?

 Ainda com o mesmo interesse, Rutherford observou: —  Supunha que nessas ocasiões haveria mais de um

homem encarregado de um avião. —   E assim é, com todos os transportes comuns de

tropas; mas aquele era um aparelho todo especial, cons-

truído primitivamente para certo marajá, e tinha um equi- pamento muito aperfeiçoado. O pessoal do Serviço Topo- gráfico Indiano se servira dele para vôos de grande alturaem Caxemira.

 —  E diz o senhor que nunca chegou a Peshawar? —  Nunca! E também não desceu em parte alguma, que

 se saiba. E é isto o mais estranho do caso. Está claro que

 se o sujeito pertencia a uma tribo nativa, poderia ter voado para as montanhas, com a mira no resgate dos passageiros.Suponho, entretanto, que morreram todos. Há por essa fronteira muitos sítios em que um avião pode despedaçar-se sem que ninguém ouça. . .

 —  Sim, é isso mesmo. Quantos passageiros eram? —  Quatro, se não me engano. Três homens e uma

espécie de missionária. — Um deles não se chamava, por acaso, Conway?Sanders respondeu, surpreso:

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 —   Mas sim, era um deles. "Glória" Conway. . .Conhecia-o?

 —   Andamos na mesma escola  —  tornou Rutherford,meio embaraçado. Porque, embora dissesse a verdade, sen-tia que não lhe ficava bem fazer esta observação.

 —   Era, a julgar pelo que fez em Baskul, um grandetipo.

 —   Era, sim  —  concordou Rutherford.  —  Indubita-velmente. Mas que coisa extraordinária. . . Sim, extraordi-

nária. . . Pareceu sair de um devaneio e disse: — Os  jornais não deram a notícia, senão eu a teria

lido. . . Como foi isso?Sanders não se sentia agora muito a gosto. Pareceu-

me até que corava. —  Para dizer a verdade  —  replicou enfim  —, creio

que fui mais longe do que devia. . . Bem, isso talvez já nãotenha tanta importância. . . Será novidade velha, sabida emtodos os cassinos de oficiais, para não falar nos bazares. Ahistória foi abafada, já se vê. . . quero dizer, a maneiracomo se deu o fato. Não era notícia para ser bem recebida,não! O governo apenas anunciou a perda de um aparelho,mencionando os nomes. Uma dessas notícias que não

chamam muita atenção fora do círculo interessado. Naquele momento voltava Wyland e Sanders foi-lhedizendo, a modo de desculpa:

 —   Estes amigos estavam falando de "Glória " Con-way, Wyland. E, não sei como, contei-lhes a história de Baskul. . . Mas acho que não há mal nisso, não é mesmo?

 Por um momento guardou Wyland um silêncio austero.

 Era evidente que procurava conciliar os deveres da cor-tesia com a retidão oficial. Por fim disse: —   Lamento que se faça desse caso uma mera

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anedota. Sempre pensei que vocês, homens do ar, faziam ponto de honra de não espalhar histórias fora da escola.

 Depois desta censura ao moço, voltou-se mais amável  para Rutherford e continuou:

 —  Certamente, não houve mal nenhum no seu caso. Mas não há negar que às vezes é necessário cercar de certomistério os fatos ocorridos na fronteira.

 —   E por outro lado  —  replicou Rutherford  secamente  — é natural que se sinta curiosidade de saber 

a verdade. —  A verdade não foi escondida a ninguém que tivesse

motivo sério para averiguá-la. Achava-me em Peshawar nessa época, e posso afirmar-lhe isso. Conheceu bem Con-way . . . quero dizer, desde os tempos de escola ?

 —   Estivemos pouco tempo juntos em Oxford, e rarasvezes o encontrei depois. E  você, esteve com ele muitas

vezes? —  Uma ou duas apenas, quando estava de serviço

em Angorá. —  Gostava dele? —  Achei-o inteligente, mas um tanto desleixado.Sorriu Rutherford à observação e replicou: —   Era inteligente, sim. Fez um curso triunfal na

universidade, até rebentar a guerra. Fez parte de uma guarnição de remo e foi figura importante na União  — e prêmio disto e daquilo, e não sei que mais. Também o con- sidero o melhor pianista amador que conheço. Assombrosamente versátil, é daqueles tipos que Jowett teria apontado para futuro primeiro-ministro. E contudo, o fato é que não se ouviu mais falar nele depois que saiu de

Oxford. Certamente a guerra lhe veio cercear a carreira. Era muito novo, e ouvi dizer que tomou parte ativa nela. —   Foi ferido, creio que numa explosão — respondeu

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Wyland;  —  mas nada de grave. Fez boa figura. Obteveuma condecoração na França. Creio que voltou depois aOxford, por pouco tempo. . . como uma espécie deexplicador. Sei que foi para o Oriente em vinte e um. Seusestudos de línguas orientais lhe valeram o lugar comisenção das formalidades preliminares habituais. Desempenhou diversos cargos.

O sorriso de Rutherford acentuou-se. —   Isto explica tudo, então. E a história jamais reve-

lará quanto esplendor foi desperdiçado em decifrar notasdo Foreign Office e em servir chá nas recepções da Legação.

 —   Ele pertencia ao corpo consular, não ao diplomá-tico — disse Wyland com ar altivo.

 Era evidente que não lhe agradavam os motejos. E quando, após outras pilhérias semelhantes, Rutherford 

ergueu-se para sair, ele não protestou. Na verdade ia ficando tarde, e eu declarei que também

me retirava. A atitude de Wyland, ao nos despedirmos, eraainda a do decoro oficial ofendido, mas sofrendo em silên-cio. Sanders, porém, mostrou-se muito cordial e declarouque esperava tornar a encontrar-se conosco.

 Eu ia tomar um trem transcontinental na manhã

 seguinte, muito cedo, e, enquanto esperávamos um táxi, Rutherford perguntou-me se queria passar a noite no seuhotel. Tinha lá um gabinete e poderíamos conversar. Aquiesci à excelente idéia e ele acrescentou:

 —   Assim poderemos falar de Conway, se você qui- ser... a não ser que este assunto o aborreça.

 Afirmei-lhe que não, ainda que pouco o conhecesse.

 —   Ele terminou o curso no fim do meu primeiro tri-mestre e não tornei a vê-lo. Mas foi extraordinariamentebondoso comigo certa ocasião. .. eu era um calouro, e não

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havia razão alguma para fazer o que fez. Foi uma coisatrivial, mas que nunca esqueci.

 —  Sim, também o apreciava muito, e no entantoconheci-o durante muito pouco tempo.

 Ficamos alguns minutos calados. Não deixava de ser um tanto estranho aquele silêncio. Pensávamos ambos emalguém que nos interessava muito mais do que seria deesperar, dado o pouco contato que tivéramos com ele.Tenho aliás observado que outros, que mal conheceram

Conway, encontrando-o somente por acaso e falando-lhe por um momento, guardavam dele viva recordação.

 Era um moço notável, certamente; e para mim, vista aidade em que o conheci  —  a idade do culto do herói  —, sua lembrança conservou uma nitidez romântica. Era alto eextremamente bem-parecido, e não só se distinguiu nos jogos como arrebatava toda sorte de prêmios escolares.

Um reitor sentimental, falando um dia dos seus feitos,classificou-os de "gloriosos" e daí se originou a alcunha. Nenhum outro, talvez, poderia sobreviver a ela.

 Lembro-me de que certa ocasião fez um discurso em grego. Era extraordinariamente dotado para as representa-ções teatrais. Havia nele algo da época de Isabel  — a natu-ral versatilidade e bela figura, aquela efervescente combi-

nação de atividade mental e física. Qualquer coisa, enfim,de um Philip Sidney. Nossa civilização atual não gera mui-tos tipos assim. E, por ter feito esta observação, ouvi de Rutherford:

 —  Sim, é verdade, e temos para essas criaturas umnome especial e desdenhoso: diletantes. É possível quealgumas pessoas tenham dado esse nome a Conway. . .

 gente como Wyland, por exemplo. Não dou muita atenção aWyland. Não posso suportar tal tipo de homem, todaaquela vaidade, aquela colossal presunção. E essa

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mentalidade de prefeito de colégio. . . não notou? Certasexpressões como "apelar para o sentimento de honra "e"espalhar histórias fora da escola"  —  como se todo oimpério fosse a quinta classe de um liceu! Por isso mesmo éque vivo a questionar com esses senhores diplomatas.

 Atravessamos algumas ruas em silêncio, mas ao caboele recomeçou:

 —  Seja como for, não desejaria perder esta reunião. Foi para mim uma coisa singular ouvir Sanders contar 

aquele caso de Baskul. Veja você; eu tinha ouvido falar nisso e não dera muito crédito. Era parte de uma históriamuito mais fantástica, em que eu não via razão alguma para acreditar  — ou antes, havia apenas uma razão muitoinsignificante. Agora há duas razões muito insignificantes.Você deve ter adivinhado que eu não sou muito crédulo. Passei grande parte da vida viajando e sei que há coisas

muito esquisitas por esse mundo afora. . . quando a genteas vê pessoalmente, é claro; mas não tanto assim, se ouvir-mos o conto em segunda mão. E no entanto. . .

 Dir-se-ia ter-lhe ocorrido de repente que aquilo nãome interessava muito. Interrompeu-se e depois continuou,rindo:

 —  Bem, uma coisa é certa: não vou revelar o segredo

a Wyland. Seria o mesmo que procurar vender um poemaépico ao Tit-Bits. Não; prefiro tentar a sorte com você.

 —  Talvez eu não mereça. . . —  A leitura do seu livro não me deu essa impressão. Eu não tinha mencionado minha autoria daquele tra-

balho técnico (afinal, a neurologia não interessa a todo o

mundo) e fiquei agradavelmente surpreendido por saber que Rutherford ouvira falar do livro. Disse-lho, e elerespondeu: 14

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 —  Pois bem, eu me interessei porque foi justamente aamnésia o mal de Conway. . . em certa ocasião.

Chegáramos ao hotel e ele foi buscar sua chave noescritório. Enquanto subíamos para o quinto andar, disse:

 —  Tudo isto não passa de rodeios. O fato é que Con-way não morreu. Pelo menos, estava vivo há alguns meses.

 Não era possível comentar isto no exíguo espaço etempo de uma ascensão em elevador. Alguns segundos maistarde, já no corredor, perguntei-lhe:

 —  Tem certeza disso? E como o sabe? Abrindo a porta, respondeu-me: —   Porque em novembro passado viajei com ele de

 Xangai a Honolulu, num navio de carreira japonês. Não tornou a falar senão depois de estarmos instala-

dos nas nossas poltronas, servidos de bebidas e charutos. —  Estive na China no outono, em férias. Ando sempre

correndo mundo. Havia muitos anos que não via Conway;nunca nos correspondemos e não posso dizer que pensassemuito nele, posto que sua fisionomia fosse uma das poucasque eu tinha bem presentes na memória. Fora a Hankowvisitar um amigo e voltava pelo expresso de Pequim. Traveiconhecimento no trem com uma madre superiora de irmãsde caridade francesas, por sinal que uma pessoaencantadora. Viajava para Chung-Kiang, onde estava situado o seu convento, e, como eu falava um pouco o francês, parece que gostou de conversar comigo a respeitode seu trabalho e outros assuntos gerais. Não sinto lá muita simpatia pelas obras missionárias comuns, mas não mecusta admitir, como aliás fazem muitos outros, que oscatólicos formam categoria à parte, pois que ao menos tra-balham rijo e não se colocam na posição de oficiais de patente num mundo governado por hierarquia. Isto, porém,

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não vem ao caso. O fato é que essa senhora, falando sobreo hospital da missão em Chung-Kiang, mencionou um casode febre que aparecera lá algumas semanas antes  —  umhomem que supunham europeu, posto que não soubesseexplicar de onde vinha nem trouxesse papéis consigo.Vestia um traje nativo, das classes mais pobres, e quandoas irmãs o recolheram estava muito mal. Falava o chinêscorrentemente, o francês com a maior correção, e minhacompanheira de trem afirmou que, antes de saber qual anacionalidade das freiras, também se dirigira a elas eminglês, com pronúncia puríssima. Disse-lhe que não meentrava na cabeça semelhante fenômeno e caçoeiamavelmente com ela, pelo fato de ter descoberto uma pronúncia puríssima em língua que não conhecia. Pilheriamos sobre isto e outras coisas, e a conversa acabou por um convite que ela me fez para visitar a missão, sealgum dia aparecesse por ali. Ora, naquele momento issome parecia tão improvável como subir ao Everest, equando o trem chegou a Chung-Kiang despedi-me com sincero pesar por ver terminar aquele encontro casual. E no entanto, voltei a Chung-Kiang poucas horas depois. É que o trem teve um desarranjo alguns quilômetros adiante,e foi com muita dificuldade que pôde voltar à estação, ondenos informaram de que não poderia chegar outra máquinaantes de doze horas. É comum isso nos caminhos de ferrochineses. De modo que me vi constrangido a passar meiodia em Chung-Kiang e resolvi pegar na palavra a boa freira, fazendo uma visita à missão.

"Fui recebido cordialmente, ainda que não sem certaestranheza. A meu ver, uma das coisas mais difíceis paraquem não é católico é compreender a facilidade com queum adepto dessa religião combina a rigidez oficial com

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uma largueza pessoal de vistas. Não é complicado isto?Seja como for, aquela gente da missão era muito amável. Ainda não fazia uma hora que estava lá e já me ofereciamuma refeição preparada para mim. Um jovem médicochinês  —  era cristão  —  sentou-se à mesa comigo paraconversar, numa divertida mescla de francês e inglês. Maistarde a madre superiora levou-me a ver o hospital,orgulho de todos ali. Mencionara-lhes a minha profissãode escritor, e eram tão ingênuos que ficaram alvoroçados

à idéia de que eu podia incluí-los a todos num livro. Ao passo que eu percorria as camas, ia-me o doutor explicando os casos. Era tudo imaculado no hospital, que parecia muito bem dirigido. Já nem me lembrava domisterioso doente e sua refinada pronúncia inglesa,quando a madre mo apontou. Eu só via a parte posterior da cabeça do homem, que parecia adormecido. Alguém

 sugeriu a idéia de falar-lhe eu em inglês, e assim fiz,dizendo-lhe 'boa tarde'; foi a primeira palavra, não muitooriginal, na verdade, que me veio à lembrança. O homemergueu repentinamente a cabeça e respondeu: 'boa tarde'. De fato, falava com inflexão educada. Mas não tive tempode me surpreender com isso, porque já o reconhecera  — apesar da barba, da aparência completamente mudada e

do longo tempo que passara sem o ver. Era Conway. Tinhacerteza de que era ele, e contudo, se tivesse refletido ummomento, chegaria talvez à conclusão de que não podia ser. Felizmente, obedeci ao primeiro impulso. Chamei-o pelo nome, dizendo o meu, e, posto que me olhasse sem sinal algum de reconhecimento, convenci-me de que nãome enganara. Vi-lhe aquela estranha e quase

imperceptível contração dos músculos faciais, tão minhaconhecida, e os mesmos olhos que, como costumávamosdizer em Balliol, eram mais do azul de Cambridge que do

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de Oxford. Além disso, ninguém podia enganar-se comaquele homem: quem o via uma vez ficava com as suas feições gravadas para sempre na memória. É claro que omédico e a madre superiora se mostraram muitointeressados. Disse-lhes que o conhecia, que era inglês emeu amigo e que só atribuía o fato de não me ter reconhecido à perda absoluta da memória. Concordaramcom a minha hipótese, não sem assombro, e tivemos entãouma longa conferência a respeito do caso. Nenhum deles

tinha idéia alguma da maneira como Conway puderachegar a Chung-Kiang naquele estado.

"Para encurtar a história, fiquei ali mais de quinzedias na esperança de poder fazê-lo, de um modo ou deoutro, lembrar-se de alguma coisa. Não obtive resultado,mas foi recuperando a saúde e conversávamos muito.Quando lhe disse francamente quem eu era e quem era ele,

mostrou-se bastante dócil e não discutiu. Estava mesmoalegre, sem motivo especial, e parecia gostar de minhacompanhia. Quando lembrei que poderia reconduzi-lo à pátria, disse apenas que isso não lhe interessava. Não dei- xava de ser desanimadora aquela aparente falta de vontade própria. Assim que me foi possível, fixei a data da partida.Confiei o caso a um conhecido que era funcionário do con-

 sulado de Hankow, e deste modo consegui que o passaportee outros papéis necessários fossem preparados sem osembaraços que, a não ser assim, teriam surgido. Parecia-me, no interesse de Conway, ser melhor que toda aquelahistória escapasse à publicidade e espalhafato dos jornais. E folgo em dizer que consegui o que desejava. Seria,realmente, um bom bocado para a imprensa!

"Pois bem, saímos da China de maneira normal. Des-cemos o Yang-tsé até Nanquim, e ali tomamos o trem para Xangai. Nessa noite partia um vapor japonês para São

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 Francisco e corremos a tomar passagem nele."  —  Prestou-lhe você um serviço imenso — observei. Não o negou Rutherford: —  Creio que não teria feito tanto se fosse por outra

 pessoa. Mas havia não sei o que naquele rapaz. . . é difícil explicar, mas sempre fora assim. . . a gente sentia-se felizem fazer por ele tudo que pudesse.

 —  Sim  —  concordei.  —  Ele possui um encanto particular, um como dom de conquistar as pessoas, que até

agora é agradável recordar  —  posto que eu o veja aindacolegial, em traje de etiquete.

 —   É pena que você não o tivesse conhecido emOxford. Era brilhante — não há outra palavra. Dizem quedepois da guerra ficou diferente, e creio mesmo que assim foi. Mas não posso deixar de lamentar que, sendo tão bemdotado, não tivesse ocupação mais importante  —  porque

não considero grande carreira para um homem isso de ser esteio da majestade britânica. E Conway era, ou devia ter  sido, grande. Nós ambos o conhecemos e não estou exage-rando, certamente, quando digo que nunca nos esquece-remos disso. E, até lá na China, ele, cujo espírito estava perturbado, cujo passado era um mistério, conservavaainda aquele poder de atração.

Calou-se um momento, cismando, depois continuou: —  Como bem pode imaginar, reatamos a velha ami- zade durante a viagem. Disse-lhe tudo que sabia a seu res- peito e ele ouviu-me com uma atenção concentrada quequase tocava as raias do absurdo. Lembrava-se de tudo perfeitamente, desde a sua chegada a Chung-Kiang; eoutro ponto que lhe pode interessar é que não esquecera as

línguas. Disse-me, por exemplo, que sabia ter tido algo quever com a índia, pois que conhecia a língua hindustani. EmYokohama encheu-se o vapor e entre os novos passageiros

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estava Sieveking, o pianista, a caminho dos Estados Uni-dos, onde ia dar concertos. Era da nossa mesa e falava àsvezes com Conway, em alemão. Isto prova que, no exterior,ele parecia perfeitamente normal. A não ser a perda dememória, que não se notava no trato comum, sua aparência geral era a de um homem são. Alguns dias depois de partirmos do Japão, Sieveking aquiesceu em dar um con-certo a bordo e eu e Conway fomos ouvi-lo. Tocou bem, éclaro — alguns trechos de Brahms e Scarlatti e muita coisa

de Chopin. Uma ou duas vezes olhei para Conway e pare-ceu-me que ele estava apreciando aquilo, o que seria muitonatural, visto ter sido músico.

"Terminado o programa prolongou-se o recital numa série de repetições, que Sieveking concedeu  —  muitoamavelmente, pareceu-me  — a alguns entusiastas agrupa-dos em redor do piano. Também desta vez, tocou principal-

mente Chopin. Você sabe que é a sua especialidade. Afinal deixou o piano e dirigiu-se para a porta, ainda acompa-nhado de admiradores; mas, evidentemente, achava que de-viam dar-se por satisfeitos. Nesse ínterim, tinha início um fato estranho. Conway sentara-se ao piano e estava tocan-do uma música rápida e viva, que eu não reconheci, masque fez com que Sieveking voltasse, muito excitado, a inda-

 gar o que era. Após um longo silêncio, estranho na verda-de, Conway pôde apenas dizer que não sabia. Sieveking,ainda mais alvoroçado, exclamou que era incrível. Fazen-do, na aparência, um tremendo esforço fÍsico e mental para se lembrar, Conway disse afinal que era um estudo de Cho- pin. Não me pareceu que fosse, e não me surpreendi aoouvir Sieveking negá-lo peremptoriamente. Conway, entre-

tanto, mostrou-se de repente indignado, o que me espantou, porque até aquele dia revelara tão pouca emoção em todasas coisas! Sieveking, do seu lado, objetava:

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" 'Meu caro amigo, conheço tudo quanto existe deChopin e afirmo-lhe que ele jamais escreveu isso que o senhor acaba de tocar. Podia perfeitamente ter escrito otrecho, pois é o seu estilo, mas sucede apenas que não oescreveu. Desafio-o a mostrar-me em qualquer edição'.

"Ao que Conway replicou afinal:" 'Oh! sim. . . lembro-me agora. . . isso nunca foi

impresso. Conheço o trecho porque o ouvi de um antigoaluno de Chopin. . . Aprendi também com ele outra peça

inédita'." Olhando-me firmemente, Rutherford continuou: —  Não sei se você conhece música; mas, ainda que

não conheça, creio que poderá imaginar a excitação de Sie-veking, e também a minha, quando Conway continuou atocar. Para mim, certamente, aquilo foi um repentino eassombroso vislumbre do seu passado  — a primeira reve-

lação que lhe escapava. Sieveking achava-se, naturalmente,todo absorto no problema musical  — um quebra-cabeça, seatendermos à época da morte de Chopin: 1849.

"Todo esse incidente foi tão inexplicável, em certo sentido, que talvez não seja demais acrescentar que haviaali pelo menos uma dúzia de testemunhas, inclusive um professor da Universidade da Califórnia, homem de certa

nomeada. Seria muito fácil, está visto, declarar que a expli-cação de Conway era cronologicamente impossível, ou pouco menos que impossível; mas havia, ainda assim, ostrechos musicais a pedir explicação. Se não era como eledizia, o que era então? Sieveking afirmou-me que, se aque-las duas peças fossem publicadas, estariam no repertóriode todos os concertistas dentro de seis meses. Pode ser exa-

 gero, mas serve para mostrar a opinião que Sieveking faziadelas. Depois de muito argumentar não conseguimosassentar uma explicação satisfatória, pois que Conway

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insistia na sua história e, como já me parecia que ia fican-do fatigado, estava ansioso por afastá-lo dali e levá-lo paraa cama. O último episódio foi uma combinação para gravar o trecho em disco. Sieveking declarou que se encarregariade todos os arranjos assim que chegasse à América, eConway prometeu tocar diante do microfone. Muitas vezestenho lamentado, por várias razões, que ele não chegasse acumprir a promessa." 

Consultando o relógio, disse-me Rutherford que eu

tinha tempo suficiente para apanhar o trem, pois sua histó-ria estava quase terminada.

 —  Porque naquela noite  — continuou ele  —, a noitedo recital, voltou-lhe a memória. Tínhamos ambos ido dei-tar-nos e eu me conservava acordado quando ele entrou nomeu camarote e disse-mo. Tinha o rosto rígido e a únicadefinição que encontro para a sua expressão é a de umatristeza esmagadora, uma espécie de tristeza universal  — alguma coisa remota e impessoal, isso a que os alemãeschamam Wehmut, Weltschmerz, ou coisa que o valha. Dis- se-me que podia recordar tudo agora, que a memóriacomeçara a voltar-lhe aos poucos enquanto Sieveking toca-va. Sentou-se à beira da minha cama e ali ficou calado;deixei-o à vontade, para que falasse quando e comoquisesse. Disse-lhe que me alegrava por lhe ter voltado amemória, mas que me entristecia, ao mesmo tempo, por ver que ele preferia que não houvesse voltado. Ergueu então acabeça e ouvi de sua boca o que hei de sempre considerar um grande cumprimento:

" 'Graças a Deus, Rutherford, você tem imagina-ção...' 

"Persuadi-o depois a vestir-se enquanto eu fazia omesmo, e começamos a andar no convés de um lado para

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outro. Era uma noite serena, estrelada e quente, e o mar tinha um aspecto viscoso e pálido: parecia leitecondensado. Se não fosse a vibração das máquinas,diríamos que estávamos passeando numa esplanada. Abandonei-o apropria iniciativa, sem lhe fazer a princípio pergunta alguma. Quase ao romper da madrugadacomeçou a falar; fê-lo sem interrupções, e, quando acabou,a manhã ia em meio e o sol escaldava. Quando digo'acabou', não quero dizer que nada mais ficasse por acrescentar àquela primeira confissão. Ele ainda preencheu muitas lacunas importantes durante as vinte equatro horas que se seguiram. Sentia uma tristeza profundae não podia dormir, de sorte que conversamos quaseconstantemente. Pelo meio da noite seguinte o vapor deviachegar a Honolulu. Estivemos bebendo no meu camaroteao escurecer; deixou-me às dez horas, mais ou menos, enunca mais o vi." 

 —  Você quererá dizer?... Já me surgia no espírito a lembrança de um suicídio

calmo e deliberado que presenciara uma vez, no paquete de Holyhead para Kingstown.

 —  Oh! não  —  respondeu Rutherford, rindo.  — Conway não era desse tipo. Fugiu-me apenas. E era muito fácil desembarcar, mas ele deve ter tido dificuldade em subtrair-se às buscas a que, naturalmente, não deixei de proceder. Soube depois que conseguira reunir-se àtripulação de um bote carregado de bananas, que sedirigia para Fidji.

 —  E como veio a saber disso? —  Da maneira mais simples: escreveu-me de Bancoc,

três meses mais tarde, remetendo um cheque para pagar asdespesas que eu tivera com ele. Agradecia-me, ajuntando

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que se achava muito bem. E que ia empreender uma longaviagem —  para o noroeste. Mais nada.

 — Que queria dizer com isso? —  Sim, é muito vago, não é? Há muitos lugares que

 ficam a noroeste de Bancoc. Até Berlim, afinal, fica nessadireção.

Calou-se e encheu os copos. Era uma história estranha aquela; ou seria ele que lhe

dava essa feição? Eu não saberia dizer qual fosse o maisexato. O episódio da música, por mais assombroso que fosse, não me interessava tanto como o mistério da chegadade Conway àquele hospital da missão chinesa. Fiz estecomentário, e Rutherford respondeu que eram ambos par-tes do mesmo problema.

 —   Pois sim; mas como foi que ele foi ter a Chung- Kiang? Certamente há de lhe ter contado tudo isso aquelanoite, no vapor.

 —  Falou-me nisso, sim, e seria absurdo, depois de lhecontar tanta coisa, guardar segredo sobre o resto. Mas éuma história comprida e não haveria tempo sequer paradelineá-la antes de você tomar o trem. Além disso, há umamaneira mais conveniente de satisfazê-lo. Não gosto muitode revelar as manhas da minha desacreditada profissão,mas a verdade é que, quanto mais pensava na história deConway, mais atração sentia por ela. Principiara por tomar simples notas, depois de nossas diversas conversa-ções no navio, a fim de não esquecer os detalhes. Maistarde, como certos aspectos dela começaram a me empol- gar, vi-me constrangido a aumentar aquelas notas — a dar  forma aos fragmentos, a encadeá-los numa narrativa única. Não quero dizer com isto que tenha inventado ou alteradoalguma coisa. Há no que ele me contou material de sobra.

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Conway conversava com muita fluência e tinha o domnatural de comunicar um ambiente. Creio também que eu, por minha parte, começava a compreender o homem.

Foi buscar uma maleta e tirou de dentro um maço deoriginais datilografados.

 —  Aqui tem você a história. Faça dela o que quiser. —   Pelo que vejo, você acha que não vou acreditar 

nela. —  Oh! Minha opinião não é tão definitiva.. . Mas

olhe, se você acreditar, será pela famosa razão deTertuliano, lembra-se? Quia impossibile est. Talvez não seja mau o argumento. Seja como for, diga-me depois o que pensa disto.

 Levei comigo os papéis. Li a maior parte da históriano expresso do Oriente. Pretendia devolvê-la com umalonga carta, assim que chegasse à Inglaterra; mas não o fiz

logo, e antes de fazer a remessa recebi um bilhetinho de Rutherford, dizendo-me que ia recomeçar a andejar e que por alguns meses não teria endereço fixo. Ia para Caxemi-ra, e dali "para leste ".

 E isto não me surpreendeu.

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CAPÍTULO 1

Piorara consideravelmente a situação em Baskulnaquela terceira semana de maio, e no dia 20 chegaramde Peshawar aparelhos da Air Force, mediante arranjo

feito para evacuar os residentes brancos. Eram estes maisou menos oitenta e a maior parte foi conduzida semnovidade, atravessando as montanhas em aviões detransporte de tropa. Empregaram-se também nesse mister alguns aparelhos de várias espécies, entre eles um aviãode cabina, cedido pelo marajá de Chandapor. E foi nesseavião que embarcaram, pelas dez horas da manhã, quatro

 passageiros: Miss Roberta Brinklow. da Missão doOriente; Henry D. Barnard, cidadão americano; HughConway, cônsul de S. M. Britânica; e o capitão CharlesMallinson, vice-cônsul.

Estão aí os nomes, conforme apareceram mais tardenos jornais indianos e ingleses.

Contava Conway trinta e um anos. Havia dois que es-tava em Baskul, desempenhando uma tarefa que, vista agoraà luz dos acontecimentos, poderia ser considerada como adefesa teimosa de uma causa perdida.

Encerrava-se ali uma fase de sua vida. Dentro dealgumas semanas, talvez uns poucos meses de licença,

seria enviado para outra parte. Tóquio ou Teerã, Manilhaou Mascate: na sua profissão nunca se sabe o que vaiacontecer.

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Estava já há dez anos no serviço consular — temposuficiente para avaliar as suas possibilidades com a mesmaagudeza com que observava as aldeias. Sabia que nuncateria muito com que comprar melões; mas já era consola-ção bastante pensar que não gostava mesmo de melão. E, para usarmos outra imagem botânica, não se tratava de"uvas verdes". Preferia as ocupações menos cerimoniosase mais pitorescas que se lhe ofereciam, e, como nem sem- pre eram as melhores, muita gente achava que ele "faziamau jogo". Entretanto, e segundo o seu gosto, parecia-lheque jogara muito bem; tivera um decênio moderadamenteagradável.

Era alto, muito bronzeado, cabelos castanhos apara-dos curtos e olhos de um azul quase negro. Parecia severoe preocupado, enquanto sério; quando ria — o que era raro — tinha aparência de menino. Observava-se-lhe, junto aoolho esquerdo, uma leve contração nervosa que aparecianitidamente quando trabalhava em excesso ou bebiademais; e, como passara todo o dia e toda a noite que pre-cederam a evacuação a reunir e destruir documentos, eraessa contração muito acentuada quando entrou no avião.Achava-se fatigadíssimo e infinitamente satisfeito por ter arranjado as coisas de sorte a viajar no luxuoso aparelhodo marajá, em vez de ir num dos apinhados aeroplanos datropa. Refestelou-se gostosamente no confortável assentode vime quando o avião se elevou nos ares. Era daquelaespécie de homens que, estando habituados aos trabalhosmais duros, esperam ter em recompensa os pequenos con-fortos da vida. Podia suportar alegremente os rigores daestrada de Samarcande, mas, para viajar de Londres aParis, gastaria a última nota de dez libras tomando uma passagem no "Seta de Ouro".

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Já fazia mais de uma hora que estavam voando quan-do Mallinson, que ia sentado logo à frente de Conway,observou que, a seu ver, o piloto não seguia o caminhodireito.

Era Mallinson um moço de vinte e poucos anos,corado, inteligente sem ser intelectual, encerrado naslimitações do ensino público, cujas vantagens tambémsoubera aproveitar. A reprovação num exame era a causa principal de ter sido mandado para Baskul, onde estiveraseis meses em companhia de Conway, que já começava agostar dele.

Mas Conway não queria fazer o esforço que exigeuma conversação em aeroplano. Abriu os olhos sonolentose replicou que, fosse qual fosse o caminho tomado, era desupor que o piloto o conhecesse melhor do que eles.

Dali a meia hora, rendido pelo cansaço e embalado pelo zumbido do motor, ia já a adormecer quando Mallin-son tornou a perturbá-lo:

 — Escute, Conway, pensei que era Fenner quem noslevava!

 — E então, não é ele? — O sujeito voltou a cabeça agora mesmo, e sou

capaz de jurar que não é ele. — É difícil de dizer, através daquele vidro. — Eu conheceria o rosto de Fenner em qualquer 

 parte. — Pois bem, se não é ele é algum outro. Não tem

importância. — Mas é que Fenner me disse positivamente que iria

conduzir este aparelho. — Sem dúvida mudaram de idéia e deram-lhe um dos

outros.

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 — Bem, neste caso, quem é aquele homem? — Meu caro rapaz, como vou saber disso? Não julga

certamente que aprendi de cor a fisionomia de todos ostenentes-aviadores da Air Force, não é?

 — Pois eu conheço muitos, e não me lembro daquelesujeito.

 — Deve pertencer então à minoria que você nãoconhece — replicou Conway, sorrindo.

E acrescentou: — Quando chegarmos a Peshawar, daqui a pouco,

você poderá travar conhecimento com ele e indagar tudoquanto quiser.

 — Neste andar não chegaremos nunca a Peshawar.O homem está completamente fora de rumo. E não meadmira. . . Voando a tamanha altura ele não pode ver onde está.

Conway não se inquietou. Estava habituado às via-gens aéreas e confiava nos pilotos. Além disto, não tinhamotivo algum para desejar chegar depressa a Peshawar. Nada tinha de particular a fazer ali e não se sentia ansioso por ver ninguém. Era-lhe, pois, de todo indiferente que aviagem durasse quatro ou seis horas. Não era casado; nãoo aguardava uma terna recepção ao desembarcar. Tinhaamigos na cidade e provavelmente alguns deles o levariamao clube, onde beberiam juntos; era uma perspectiva agra-dável, mas não de molde a causar-lhe grande alvoroço.

Também não encarava com saudades a década trans-corrida. Fora um período igualmente agradável, ainda quenão o tivesse satisfeito inteiramente. Instável, bom por intervalos, tendendo a perturbar-se; tal era o sumáriometeorológico daquela época de sua vida, bem como dahistória mundial.

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Passaram-lhe pela memória Baskul, Pequim, Macau eoutros lugares. A cena mais remota na sua lembrança eraOxford, onde, depois da guerra, passara dois anos fazendo preleções sobre história oriental, respirando o pó em bibliotecas cheias de sol, descendo a High Street de bicicleta. A visão era atraente, mas não o comovia; parecia-lhe, em certo sentido, que ele era apenas uma partede todas as coisas que pudera ter sido.

Uma sensação gástrica muito sua conhecida advertiu-o de que o avião começava a descer. Teve a tentação deadmoestar Mallinson pelo seu nervosismo, e tê-lo-ia feitosem dúvida se o moço não se houvesse levantado subita-mente, batendo com a cabeça no teto e acordando Barnard,o americano, que estava a cochilar no seu canto, do outrolado do estreito corredor.

 — Meu Deus! — exclamou Mallinson, espiando pela janela. — Olhem para baixo!

Conway olhou. Não era aquela, certamente, a vistaque esperava — se é que esperava alguma coisa. Em vezdos acantonamentos em elegante disposição geométrica edos retângulos mais compridos dos hangares, só se avis-tava um nevoeiro opaco que velava uma imensa desolação.O avião, que ia descendo rapidamente, achava-se ainda auma altura extraordinária para um vôo comum. Avistava-se, cerca de uma milha aquém da névoa mais sombria dosvales, o espinhaço rugoso de uma longa fila de montanhas.Era o cenário típico da fronteira, se bem que Conway jamais o tivesse visto de tamanha altura. Não era — e istolhe causou estranheza — sítio algum próximo de Pesha-war.

 — Não reconheço esta parte do mundo! — observou.Depois, e mais discretamente, por não querer assustar 

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os outros, acrescentou ao ouvido de Mallinson: — Parece que você tinha razão... O homem errou

mesmo o caminho!O avião descia com espantosa rapidez e o ar ia fican-

do cada vez mais quente. Dir-se-ia que a terra adusta quese avistava lá embaixo era um forno, cuja porta se abrirade repente. Acima do horizonte erguiam-se picos demontanhas, um após outro, recortando no ar a silhuetaescarpada. Já o vôo seguia a curva de um vale, cuja baseestava toda semeada de rochedos e vestígios de cursos deágua ressequidos; pareciam cascas de nozes espalhadas pelo chão. O avião se debatia e agitava entre golfadas dear, tão violentamente como um bote de remo nas ondasencrespadas. Os quatro passageiros mal se podiam manter sentados.

 — Parece que ele vai aterrar! — gritou o americanocom voz rouca.

 — Mas não pode! — retorquiu Mallinson. — Só sefor louco tentará semelhante coisa! Vai despedaçar-se, eentão.. .

Mas o piloto aterrou. Abria-se um pequeno espaçolivre à beira de um barranco e o aparelho, com muita perí-cia, depois de alguns baques e solavancos, pousou sereno.

O que veio depois, contudo, foi mais espantoso emenos tranqüilizador.

Apareceram nativos barbudos, de turbante à cabeça,que acorriam de todos os lados cercando o avião e impe-dindo que alguém saísse dele, a não ser o piloto. Este sal-tou em terra, mantendo com eles animada palestra, durantea qual se verificou que não somente não era Fenner comoaté não era inglês, e quiçá nem europeu. Enquanto falavamiam carregando latas de petróleo de um depósito próximo e

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despejando-as nos tanques, de capacidade excepcional. Osgritos dos quatro passageiros aprisionados eram recebidoscom arreganhos de dentes e desdenhoso silêncio. E à maisleve tentativa de desembarque correspondia logo um movi-mento ameaçador de vinte rifles.

Conway, que conhecia um pouco o idioma afegane,arengou com os homens conforme pôde, naquela língua,mas sem resultado. Quanto ao piloto, a única resposta aqualquer pergunta, em qualquer língua, era um significa-tivo aceno com o revólver.

O sol do meio-dia, chamejando sobre o teto da cabina,aquecia o ar inteiro a tal ponto que os ocupantes delaestavam quase a desmaiar, com o calor e o esforçodispendido em protestos. Viam-se absolutamenteimpotentes; era condição da evacuação que viajariam semarmas.

Quando afinal os tanques foram fechados, passou-seuma lata de petróleo cheia de água morna por uma das janelas da cabina. Ninguém respondeu a pergunta alguma,ainda que os homens não parecessem pessoalmente hostis.Depois de outra conferência voltou o piloto para o seu posto; desajeitadamente, um dos afeganes pôs a hélice emmovimento, e recomeçou o vôo. A partida, naquele espaçoconfinado e com a carga suplementar de combustível, foiainda mais magistral do que a aterragem. O avião ergueu-se por entre o nevoeiro, depois voltou-se para o oriente,como a assentar um rumo.

Ia em meio a tarde.

Que caso extraordinário! Era para desorientar! Járetemperados pelo ar mais fresco, mal podiam crer os

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 passageiros que tudo aquilo de fato acontecera. Era umultraje sem precedente e sem igual, mesmo nos anaisturbulentos da fronteira. E, se não fossem eles mesmos asvítimas, certo o reputariam incrível. Era a coisa maisnatural do mundo que a esse primeiro momento deincredulidade se seguisse uma explosão de indignação e,dissipada esta, uma ansiosa curiosidade.

Apresentou Mallinson uma teoria que foi aceita, àfalta de outra melhor: tinham-nos raptado para serem pos-tos a resgate. Se o processo não era novo, a técnica nãocarecia de originalidade. Já era consoladora a idéia de quenão tomavam parte num fato inteiramente virgem na histó-ria mundial; afinal, já tinha havido muito rapto no mundoe boa parte deles acabara bem. Os homens os reteriam emalgum covil das montanhas até que o governo pagasse, eentão lhes dariam a liberdade. Seriam tratados com toda aconsideração, e, como o dinheiro do resgate não lhes sairiado próprio bolso, aquilo só seria desagradável enquantoestivessem prisioneiros.

Mais tarde, certamente, a Air Force enviaria um aviãode bombardeio, e ficava-se com uma boa história paracontar durante o resto da vida. Foi Mallinson que, umtantinho nervoso, enunciou esta conclusão.

O americano, porém, entendeu de fazer espírito barato:

 — Pois, meus senhores, parece-me que é uma belaidéia, seja lá de quem for, mas não posso dizer que a suaAir Force se cobriu hoje de glória. Vocês, ingleses, fazemchacota dos assaltos de Chicago e outras coisas, mas nãome lembra nenhum caso de um bandido ter fugido assimsem saber o que fez este sujeito do verdadeiro piloto.Aposto que o derrubou com uma paulada na cabeça.

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E acabou num bocejo.Era Barnard um homem alto e corpulento: no rosto

duro, os vincos pessimistas não apagavam por completo aexpressão de bom humor. Pouco se sabia dele em Baskul;viera da Pérsia, onde, ao parecer, se entregava ao comérciode petróleo.

Conway, por seu lado, ocupava-se numa tarefa práti-ca: reunia todos os pedacinhos de papel que seus compa-nheiros traziam e neles escrevia mensagens em várias lín-guas nativas para, de espaço a espaço, deixar cair umadelas. Em região de tão escassa população era magra aesperança, mas valia a pena tentá-la.

O quarto passageiro era uma mulher, Miss Brinklow.Toda tesa no assento, com os lábios apertados, poucoscomentários emitia — e nenhuma queixa. Era de baixaestatura e aparência coriácea. Dir-se-ia, ao observá-la, queassistia constrangida a uma reunião onde sucediam coisascontrárias aos seus princípios.

Conway falava menos que os outros dois, pois trans-mitir mensagens em vários dialetos é um exercício mentalque exige concentração. Respondia, ainda assim, às per-guntas que lhe dirigiam e concordara, a título de ensaio,com a teoria de rapto apresentada por Mallinson.Aquiescera também, até certo ponto, nas observações deBarnard sobre a Air Force.

 — . . . ainda que se compreenda facilmente como sedeu o fato. Na inquietação e tumulto do momento eramuito fácil tomar um homem, com o uniforme deaviador, por outro aviador. Ninguém vai lembrar-se de pôr em dúvida a boa fé de uma pessoa que se apresentacom o traje apropriado e parece conhecer a suaobrigação. E o sujeito devia conhecê-la — sinais e tudo

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mais. É evidente, além disso, que ele sabe voar. . .Todavia, não nego que seja uma dessas coisas que sempremetem alguém em complicações — posto que, a meu ver,ninguém teve culpa neste caso.

 — Muito bem, cavalheiro — replicou Barnard; — admiro a maneira como procura ver ambos os lados daquestão. É essa a atitude correta, não há dúvida, mesmoquando a gente está sendo seqüestrado.

Lá consigo pensava Conway que os americanos ti-nham o dom de dizer as coisas com ar protetor, sem ofen-der. Sorriu, tolerante, mas deixou cair a conversação. Sen-tia-se tão fatigado que perigo algum poderia abalá-lo.

Já no fim da tarde, quando Barnard e Mallinson, quediscutiam, apelaram para a sua opinião sobre um ponto,verificou-se que adormecera. E Mallinson comentou:

 — Prostrado. E não me admira, depois de tudo o quefez nestas últimas semanas.

 — É seu amigo? — indagou Barnard. — Trabalhava com ele no consulado. E por isso sei

que há duas noites que não se deita. O certo é que tivemosmuita sorte em tê-lo conosco neste aperto! Além deconhecer línguas, tem uma espécie de jeito especial paralidar com as pessoas. Se há algo que possa tirar-nos destaentaladela, ele o fará. E é muito calmo, além de tudo.

 — Pois bem, deixemo-lo dormir, então.E Miss Brinklow fez nesse momento uma de suas

raras observações: — Ele parece ser um homem muito valente.

Quanto a Conway, não tinha tanta certeza de ser defato um homem muito valente. Fechara os olhos de pura

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fadiga física, mas não dormia. Ouvia e sentia todos osmovimentos do avião, e ouvira também, com umasensação indefinida, o elogio de Mallinson. E foi entãoque teve suas dúvidas, reconhecendo em certa contraçãodo estômago a reação física a um exame mental nãomuito tranqüilizador. Não era — e sabia-o por experiência própria — daquelas pessoas que amam o perigo pela sensação do perigo. Havia neste certo aspectoque apreciava, na verdade, uma excitação, uma espéciede efeito catártico sobre as emoções ociosas, mas estavamuito longe de sentir prazer em arriscar a vida. Dozeanos antes começara a detestar os perigos da guerra detrincheira na França, e algumas vezes evitara a morteeximindo-se de tentar valentias impossíveis. Até suacondecoração devia-a menos à coragem física do que auma técnica de resistência não muito fácil de conseguir.E desde a guerra, onde quer que surgisse outra vez o perigo, encarava-o com crescente aversão, a não ser que prometesse uma quota extraordinária de emoção.

Continuava de olhos cerrados. Sentia-se tocado, e umtanto consternado também, pelo que ouvira de Mallinson.Era destino dele ver sempre sua equanimidade confundidacom bravura — quando era, de fato, uma coisa muitomenos apaixonada e menos viril.

Achavam-se todos numa situação terrivelmente ad-versa, segundo lhe parecia, e longe de se sentir cheio deardor, ao encará-la, desgostava-o profundamente a idéiadas dificuldades que poderiam surgir. Veja-se Miss Brink-low, por exemplo. Previa que, em determinadascircunstâncias, suas ações teriam de ser subordinadas aocritério de que ela sozinha tinha mais direito aconsideração do que eles todos juntos, por ser mulher. E

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tremia já, à perspectiva de uma situação em que seriainevitável semelhante falta de eqüidade.

Entretanto, quando deu sinal de despertar, foi com elaque primeiro falou. Via que não era jovem nem bonita — virtudes negativas, mas utilíssimas em transes como os queteriam talvez de enfrentar dentro em pouco. Sentia penadela, porque desconfiava que nem o americano nemMallinson gostavam de missionários, especialmente dosexo feminino. Quanto a ele próprio, não tinha preconceitos nesse sentido, mas receava que para elarepresentasse o seu espírito aberto um fenômeno poucofamiliar e quiçá ainda um pouco desconcertante.

Aproximando o rosto dela para lhe falar, disse: — Parece que estamos numa situação esquisita, mas

folgo de ver que a senhora encara o caso com serenidade.

Realmente, creio que não nos acontecerá nada de terrível. — Estou certa de que não, se o senhor puder evitá-lo. Não lhe pareceu muito consoladora a resposta. — A senhora me avisará se eu puder fazer alguma

coisa para seu conforto.Barnard apanhou a palavra e repetiu em voz rouca,

como um eco:

 — Conforto? Mas não há dúvida de que temosconforto. . . Estamos gozando a viagem. Lástima é que nãotenhamos um baralho. .. poderíamos até jogar bridge.

Ainda que não gostasse do jogo, Conway apreciou oespírito da observação.

 — Não creio que Miss Brinklow jogue — disse,sorrindo.

A missionária, porém, voltou-se vivamente e replicou: — Pois jogo, e não vejo mal nenhum nisso. Nada há

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contra as cartas na Bíblia.Riram todos, parecendo gratos à dama por lhes

 proporcionar uma escusa para tal. E lá consigo pensavaConway:

"Seja como for, ela não é muito nervosa".

Toda a tarde voara o avião a grande altura, por entre oesgarçado nevoeiro da atmosfera superior — muito alto para que se pudesse ter uma visão clara do que ficavaembaixo. De vez em quando, com longos intervalos, rasga-va-se por um momento o véu, deixando ver a silhuetadenteada de um pico ou a claridade de um riodesconhecido. Pelo sol era possível determinar mais oumenos a direção; seguiam ainda para leste, com algumasguinadas para o norte, de tempos a tempos; mas, quanto àregião em que se achavam, era coisa que dependia davelocidade do vôo, e esta não a podia Conway avaliar comsegurança. Parecia provável, entretanto, que já tivessemgasto boa porção de petróleo — o que, aliás, tambémdependia de certos fatores. Conway não possuíaconhecimentos técnicos de aviação, mas estava certo deque o piloto, quem quer que fosse, era de uma períciaincontestável. Provara-o aquela descida no vale eriçado de penhascos, além de outros incidentes posteriores. EConway não podia sopitar um sentimento natural nele,sempre que se via em presença de uma competênciasoberba e indiscutível. Estava tão habituado a receber  pedidos de auxílio que só o fato de saber que ia ali alguémque não o pedia, nem necessitava dele, era levementetranqüilizador, mesmo em meio às incertezas do futuro.

 Não esperava, contudo, que seus companheiros

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compartilhassem tão sutis emoções. Reconhecia que po-diam ter muito mais razões pessoais do que ele paraestarem ansiosos. Mallinson, por exemplo, tinha noiva naInglaterra; Barnard talvez fosse casado; Miss Brinklowtinha seu trabalho, vocação, ou como quer que ela o consi-derasse. Era Mallinson, aliás, o mais desassossegado detodos; à proporção que iam passando as horas mostrava-secada vez mais agitado — pronto, também, a lançar emrosto a Conway aquela mesma frieza que louvara às escon-

didas dele. E chegou um momento em que se levantouuma tempestade de questões, dominando o ronco domotor.

 — Escutem! — gritava Mallinson, furioso. — Iremosnós ficar aqui a olhar as moscas, enquanto esse maluco fazo que bem entende? Que é que nos impede de despedaçar aquele vidro e tirá-lo dali?

 — Nada — replicou Conway — a não ser que ele es-teja armado e nós não, e que em todo caso nenhum de nóssaberia levar o aparelho para terra.

 — Isso não há de ser muito difícil, com certeza. Nãoduvido que você possa fazê-lo.

 — Oh! Mas meu caro Mallinson, por que é que vocêhá de esperar sempre de mim semelhantes milagres?

 — Bem, o certo é que este negócio me está atacandoinfernalmente os nervos! Não poderemos obrigá-lo adescer?

 — E de que maneira acha você que poderemos fazê-lo?

Cresceu de ponto a agitação de Mallinson, queretrucou:

 — Escute, ele está ali, não é? Mais ou menos a doismetros de nós, e somos três contra um! Vamos ficar eter-namente a olhar para aquelas costas malditas? Ao menos

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 poderemos obrigá-lo a dar explicações! — Muito bem, vamos ver isso.E Conway deu alguns passos para a frente, rumo à

divisão entre a cabina e o assento do piloto, situado nafrente e um pouco acima. Havia uma lâmina quadrada devidro, de cerca de quinze centímetros, que se podia correr  para um lado, e pela qual o piloto, voltando a cabeça ecurvando-se levemente, podia comunicar-se com os passageiros. Conway bateu nela com os nós dos dedos. A

resposta veio, como ele esperava, de modo quase cômico.O quadrado de vidro deslizou para um lado e o cano deum revólver surgiu na abertura. Nem uma palavra: sóisso. Conway retirou-se sem discutir e a janelinha tornoua fechar-se.

Mallinson, que observara o incidente, ficou apenas parcialmente satisfeito e comentou:

 — Não creio que ele ouse atirar. É só fanfarronada. — Isso mesmo — concordou Conway; — mas deixo

a você o cuidado de averiguá-lo. — Pois me parece que devíamos lutar antes de nos

deixarmos derrotar assim.Conway olhou-o com simpatia. Não ignorava a con-

venção que, com todo o seu cortejo de soldados de túnica

vermelha e livros de leitura escolar, declara que o inglêsnão tem medo de nada, nunca se entrega, jamais é vencido.E disse:

 — Provocar um combate sem probabilidade de ven-cer é mau jogo, e eu não quero ser essa espécie de herói.

 — Muito bem, cavalheiro! — acudiu Barnardcalorosamente. — Quando alguém nos segura pelo cango-

te, é melhor a gente entregar-se de boa vontade e aceitar ofato. Pela minha parte, vou gozar a vida enquanto ela durae fumar um charuto. Creio que um pouquinho mais de

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 perigo não faz diferença, hem? — Não, pelo que me toca; mas pode aborrecer Miss

Brinklow.Barnard desfez-se em desculpas: — Perdão, madama. A senhora não se incomodará

muito se eu acender um charuto? — Não, não — respondeu ela amavelmente; — eu

não fumo, mas gosto do cheiro de charuto.E Conway refletiu que, entre todas as mulheres de

quem se poderia esperar semelhante declaração, era aquelaa mais típica.

Acalmara-se, entretanto, um pouco a excitação deMallinson, e, querendo demonstrar-lhe simpatia, Conwayofereceu-lhe um cigarro, posto que ele próprio não acen-desse nenhum. E disse amavelmente:

 — Compreendo o seu estado de ânimo, Mallinson. A

situação não é rósea, e o pior, em certo sentido, é que não podemos fazer grande coisa para sair dela.

E lá consigo acrescentava:"E o melhor, também, em outros sentidos".Porque ainda sentia uma fadiga extrema. Havia tam-

 bém na sua natureza um traço a que talvez algumas pes-soas chamassem preguiça, dado que não fosse o termo pró-

 prio. Ninguém era capaz de trabalhar mais rijo, quandonecessário, e poucos sabiam arcar com responsabilidadesmelhor do que ele. Isto não tira, contudo, que nãomorresse de amores pela atividade, e também que nãosentisse muito prazer na responsabilidade. Achavam-seambas as coisas incluídas na sua obrigação, que eleexecutava o melhor que podia; mas estava sempre pronto a

ceder o passo a quem a pudesse executar tão bem quantoele, ou melhor. E isto contribuirá, sem dúvida nenhuma, para atenuar consideravelmente o brilho do seu sucesso no

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serviço consular. Não era bastante ambicioso para abrir caminho à custa de outrem, nem para fazer parada deabstenção quando não havia realmente nada que fazer.

Seus despachos eram amiúde tão lacônicos que chega-vam a ser deficientes; e a serenidade que mostrava ememergências difíceis, conquanto admirada por todos, foimais de uma vez atribuída à frieza natural; as autoridadesgostam dos homens que se dominam, ainda que comalgum esforço, e cuja indiferença aparente não passa de

disfarce, encobrindo um mundo de emoções disciplinadas.Quanto a Conway, muita gente suspeitava que suatranqüilidade não era só aparente, e que não davaimportância a coisa alguma.

E contudo, era isto também, como a acusação de pre-guiça, interpretação errônea. É que a muitos observadores passava despercebida uma coisa tão simples que frustrava

a percepção: o amor ao sossego, à contemplação e aoisolamento.

 Neste momento, visto que se sentia tão inclinado aisso e não havia outra coisa a fazer senão isso mesmo,reclinou-se no assento e resolveu adormecer definitiva-mente. Ao acordar notou que os outros, a despeito de suas preocupações, tinham igualmente sucumbido. Miss

Brinklow, direita como uma seta, de olhos fechados, parecia um ídolo desbotado e fora de moda. Mallinson,inclinado para diante, apoiava o queixo na palma da mão.O americano até ressonava. Todos muito razoáveis, pensouConway; não valia a pena estarem a gastar energia emgritos.

 No mesmo instante, porém, tomou consciência de cer-

tas sensações físicas — uma leve vertigem, o coração aos pulos e a respiração difícil. Lembrou-se de ter sentido umavez sintomas semelhantes, na Suíça.

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Voltou-se para a janela e olhou para fora. O céu esta-va muito claro, e à luz da tarde agonizante a visão que sedescortinou aos seus olhos arrebatou, por um instante, oresto de alento que ainda tinha nos pulmões. Porque lálonge, no limite do firmamento, enfileiravam-se picosenevoados, festoados de geleiras e flutuando, ao que parecia, sobre vastas planícies de nuvens. Abrangiam todoo arco de círculo e para o ocidente fundiam-se numhorizonte de colorido intenso, quase espalhafatoso, como

um pano de fundo impressionista pintado por um gêniomeio louco.

E enquanto isso o avião, naquele palco estupendo, iazunindo por sobre um abismo, em frente de um paredão branco que parecia fazer parte do próprio céu — até o ins-tante em que o sol o atingiu. Então, como uma dúzia de Jungfraus empilhados, vistos de Mürren, ele chamejou

numa incandescência soberba e deslumbrante. Não era Conway facilmente impressionável e por via

de regra não se preocupava com "vistas" — principalmentecom as mais afamadas, para as quais as municipalidadessolícitas proporcionam cadeiras de jardim. Tendo ido umdia à colina do Tigre, perto de Darjeeling, para ver o solnascer sobre o Everest, achara a montanha mais alta do

mundo uma verdadeira decepção. Mas aquele espetáculo belíssimo que contemplava pela janela era de caráter diferente; não parecia exibir-se à admiração. Havia algo decru e monstruoso naqueles rochedos de gelo, longínquos eimpassíveis, e não faltava certa impertinência sublime aquem assim se aproximava deles.

Ia Conway fazendo considerações, recordando mapas,

calculando distâncias, estimando tempos e velocidades. Esó então notou que Mallinson também despertara. Tocou

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no braço do moço.

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CAPÍTULO II

Uma atitude que caracterizava Conway era a de dei-

xar que os outros fossem acordando por si mesmos. Quan-do o fizeram, deu respostas breves às suas breves exclama-ções de assombro. Entretanto, quando mais tarde Barnardlhe pediu opinião, ele a expôs com certa fluência desinte-ressada, como um professor de universidade que elucidaum problema. Achava provável — disse — que ainda esti-vessem na índia; tinham voado para o Oriente durante

algumas horas, a tão grande altura que não se podia ver muita coisa, mas parecia que seguiam o vale de algum rio — um rio que devia correr mais ou menos de leste paraoeste. E concluiu:

 — Oxalá tivesse outros meios para determiná-lo,além da simples memória; mas parece-me que istocoincide mais ou menos com o vale do Indo Superior. A

ser verdadeira a hipótese, devíamos estar a esta hora numaregião espetacular do mundo — e bem vê que assim é. — Reconhece, então, o lugar onde estamos? — inda-

gou Barnard. — Oh, não. . . nunca estive sequer perto daqui, mas

não me surpreenderia se aquela montanha fosse o NangaParbat, onde Mummery perdeu a vida. A estrutura e a apa-

rência geral parecem concordar com todas as descriçõesque tenho lido. — É também alpinista?

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 — Fui, e entusiasta, na mocidade. Mas apenas fiz asescaladas comuns na Suíça, é claro.

Mallinson interveio, impaciente: — Seria mais acertado procurarmos descobrir para

onde vamos. Quem dera que alguém no-lo pudesse dizer! — Pois bem, parece-me que vamos direto àquela

cordilheira — disse Barnard. — Não acha, Conway?Desculpe-me se o chamo assim; mas, se vamos tomar partenuma aventura comum, não vale a pena perder tempo comcerimônias, não é mesmo?

Conway achava muito natural que o chamassem pelonome simplesmente, e pareceu-lhe que aquelas desculpasde Barnard eram um tanto fora de propósito.

 — Certamente — concordou. E acrescentou: — Creio que aquela cadeia deve ser a de Caracorum. Há lámuitos desfiladeiros, para o caso de o nosso homem querer atravessá-la.

 — Nosso homem! — exclamou Mallinson. — Vocêquer dizer nosso maluco! Acho que já é tempo de abando-nar a teoria do rapto. Já passamos a região da fronteira, e por aqui não vivem tribos. A única explicação que meocorre é que o sujeito é um louco furioso. A não ser umlouco, quem poderia voar em semelhante país?

 — O que sei é que ninguém poderia fazê-lo, excetoum aviador exímio — retorquiu Barnard. — Não entendomuito de geografia, mas ouvi dizer que estas montanhassão consideradas as mais altas do mundo, e, se assim é,atravessá-las será um recorde estupendo.

 — Também será a vontade de Deus — encaixouinesperadamente Miss Brinklow.

Conway não deu opinião. Vontade de Deus ou loucu-ra do homem — parecia-lhe que cada um podia escolher o

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que quisesse, caso achasse necessário encontrar uma razão para todas as coisas. Ou, inversamente (continuou a refle-tir, enquanto contemplava a boa ordem da pequena cabina,contra o fundo recortado pela janela naquele cenáriodescomunal), a vontade do homem e a loucura de Deus.Devia ser coisa muito consoladora ter opinião assente.

E foi então, enquanto assim olhava e refletia, queocorreu uma estranha transformação. A luz tomara umacor azulada sobre toda a montanha, cujos socalcos mais baixos escureciam e se faziam violáceos. Sentiu brotar nasua alma alguma coisa mais profunda do que a habitualindiferença. Não era propriamente excitação, menos aindatemor, mas uma expectação aguda e intensa. E disse:

 — Tem razão, Barnard. Este caso está ficando cadavez mais notável.

 — Notável ou não — insistiu Mallinson —, não mesinto inclinado a propor um voto de agradecimento. Não pedimos que nos trouxessem aqui, e Deus sabe o que have-mos de fazer quando estivermos lá  — onde quer que sejaesse lá. E não acho menor a afronta por ser o sujeito umgrande aviador. Isso não impede que seja maluco. Já ouvicontar o caso de um piloto que enlouqueceu no ar. Estesujeito já devia estar louco quando começou. Aí está aminha teoria, Conway.

Conway ficou silencioso. Enfastiava-se de estar conti-nuamente a gritar entre o ruído do motor, e, além disto,não adiantava nada discutir sobre conjeturas. Entretanto,como Mallinson insistisse por uma opinião, disse:

 — Loucura muito bem organizada, como vê. Nãoesqueça aquela aterragem para tomar gasolina, e lembre-setambém de que este aparelho era o único que podia subir atamanha altura.

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 — Não prova que ele não seja louco. Podia ser bas-tante louco para arranjar tudo isso.

 — Sim, é possível, certamente. — Pois bem, vamos então assentar um plano de ação.

Que faremos quando o homem aterrar? Se não se chocar nos rochedos matando a nós todos, bem entendido... Quefaremos? Correr para ele e felicitá-lo pelo seu vôomaravilhoso, não?

 — Comigo não! exclamou Barnard. — Corra para elequem quiser, menos eu.

 Não sentia Conway nenhum desejo de prolongar adiscussão, tanto mais que o americano, com os seus grace- jos ponderados, parecia perfeitamente capaz de sustentá-lo. Conway estava já a pensar que o grupo poderia ser muito menos bem constituído. Somente Mallinson tinhatendência para aborrecer os outros; e isto podia dever-se,em parte, à altitude. O ar rarefeito produz efeitos diversossobre as pessoas; nele, por exemplo, o resultado era umaclareza de idéias combinada com uma apatia física, estadonão de todo desagradável. O certo é que aspirava o ar frioe límpido com verdadeira delícia. A situação, sem dúvida,era aterradora. Mas, por enquanto, não podia indignar-secontra uma coisa que se desenrolava de maneira tão metó-dica e despertava tão cativante interesse.

E ao contemplar aquelas montanhas soberbas sentiutambém uma ardente satisfação, por ver que ainda havia naterra lugares assim — distantes, inacessíveis, ainda virgensdo contato humano.

A muralha de gelo dos montes Caracorum aparecia,agora, mais nítida ainda contra o céu do norte, que tomaraum matiz ruço e sinistro. Os picos tinham um brilho géli-do, tão profundamente majestosos e remotos que até o seu

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anonimato se revestia de dignidade. Aquelas centenas demetros que lhes faltavam para alcançar os gigantes conhe-cidos podia livrá-los eternamente das escaladas: erammenos tentadores aos recordistas. Era Conway a antítesedeste tipo; inclinava-se a ver certa vulgaridade no idealocidental dos superlativos. Não o tentava o esforçoexcessivo, e as proezas sem finalidade aborreciam-no.

Enquanto ele continuava a contemplar o cenário caiuo crepúsculo, mergulhando as profundidades num negror aveludado que se estendia para cima, como uma tinta quese esbate. Então toda a cordilheira, muito mais próximaagora, empalideceu e revestiu-se de novo esplendor. Surgi-ra a lua cheia, ferindo os picos um a um, como umcelestial acendedor de lampiões. Por fim, toda a extensãodo horizonte cintilava contra o céu azul-ferrete. O ar esfriou e saltou um vento, sacudindo incomodamente oaparelho.

A estes novos aborrecimentos começaram os passa-geiros a desanimar; não contavam com a prolongação dovôo pela noite adentro, e agora só lhes restava a esperançade esgotar-se o combustível, o que, aliás, não devia tardar muito a suceder. Começou Mallinson a discutir este assun-to e Conway, meio relutante, pois de fato não sabia, deu oseu parecer. A distância máxima que podiam percorrer devia orçar por umas mil milhas, a maior parte das quais játeria ficado para trás.

 — Pois sim. E aonde nos pode isso levar? — indagouo moço, desalentado.

 — Não é fácil de julgar, mas provavelmente a algum ponto do Tibete. Se estes são os montes Caracorum, o Ti- bete fica além deles. Um desses cumes, por sinal, deve ser o K2, que é geralmente considerado a segunda montanha

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do mundo em altura. — O primeiro na lista, depois do Everest — comen-

tou Barnard. — Apre! Isto é que é panorama! — E, para um alpinista, muito pior do que o Everest.

O Duque de Abruzos renunciou a ele, considerando-oabsolutamente inacessível.

 — Oh! meu Deus! — murmurou Mallinson. demuito mau humor.

Barnard, porém, riu: — Vejo que você será o nosso guia oficial durante aviagem, Conway. Declaro que, se eu tivesse à mão umfrasco de café-conhaque pouco se me daria que isto fosse oTibete ou Tennessee!

 — Mas que havemos de fazer? — insistia Mallinson. — Por que estamos aqui? Qual será o propósito de tudo

isto? Não compreendo como podem caçoar de uma coisaassim!

 — Ora essa! Vale tanto como fazer cenas, jovem.Além disso, se o homem é mesmo louco, como você quer, provavelmente não terá propósito algum.

 — Ele tem de ser louco. Não posso achar outra expli-cação. E você, Conway?

Este sacudiu a cabeça.Miss Brinklow voltou-se para trás, como poderia ter 

feito durante um intervalo no teatro, e disse comesganiçada modéstia:

 — Como não pediram minha opinião, talvez nãodeva dá-la. Mas desejo dizer que sou do parecer de Mr.

Mallinson. Tenho certeza de que o pobre homem não podeestar regulando bem do juízo. Refiro-me ao piloto, é claro. Não haveria desculpa alguma para o seu procedimento,

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senão a loucura. E acrescentou, erguendo a voz acima do barulho

ensurdecedor: — E sabem? Esta é a minha primeira viagem de

avião! Absolutamente a primeira! Nunca me tinha resol-vido a voar, embora uma amiga tivesse feito o possível para me persuadir a tomar o avião de Londres a Paris.

 — E agora, vai a senhora voando da índia para o Ti-

 bete — disse Barnard. — Assim é o mundo. — Conheci um missionário que esteve no Tibete — continuou ela. — Dizia que os tibetanos eram muito esqui-sitos. Acreditam que descendemos dos macacos.

 — Dão prova de notável penetração! — Oh! não, não quero dizer no sentido moderno.

Essa crença lhes vem de séculos atrás. Nada mais que uma

de suas superstições. Claro que sou contrária a tudo isso, e para mim Darwin era muito pior que qualquer tibetano. Eume baseio na Bíblia.

 — "Fundamentalista", então?Mas parece que Miss Brinklow não compreendeu o

termo, porque gritou: — Eu pertencia à L. M. S., mas discordei deles na

questão do batismo das crianças.Muito depois de atinar com a significação das iniciais

 —  London Missionary Society  —, Conway ainda conti-nuava a achar cômica a observação de Miss Brinklow.Ponderando sempre os inconvenientes de uma discussãoteológica no recinto da sociedade missionária, começou a parecer-lhe que Miss Brinklow não era destituída de certafascinação. Pensou até em lhe oferecer alguma peça do seuvestuário para agasalhá-la durante a noite, mas afinal disse

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consigo que ela tinha uma constituição provavelmentemais rija do que a sua. Portanto, aconchegou-se no assentode vime, cerrou os olhos e adormeceu docemente.

E o vôo prosseguia.

De repente despertaram todos, sacudidos por umaguinada do aparelho. Conway bateu com a cabeça na jane-la, e por um momento sentiu-se atordoado. Nova guinadaem sentido contrário atirou-o aos encontrões entre as duasfilas de assentos.

O frio aumentara bastante. A primeira coisa que fezConway foi olhar maquinalmente para o seu relógio. Erauma e meia. Devia ter dormido algum tempo. Enchia-lheos ouvidos um som de bater de asas, que a princípio julgouimaginário; logo percebeu, porém, que o motor nãofuncionava e que o avião estava lutando com uma ventaniacontrária. Olhou então pela janela e viu a terra, muito pró-xima, vaga e acinzentada, que fugia ali embaixo.

 — Ele vai aterrar! — bradou Mallinson.E Barnard, que também fora arrojado do assento, res-

 pondeu com um soturno: "Se tiver sorte!"Miss Brinklow, que parecia a menos perturbada do

grupo, ajustava o chapéu com tanta calma como se esti-vesse à vista o porto de Dover.

Pouco depois o avião tocou em terra. Desta vez, porém, foi má a aterragem.

 — Oh ! meu Deus! Que horror! Que horror! — gri-tava Mallinson, durante os dez segundos de baques esolavancos.

Ouviu-se o som de alguma coisa que se retesava erebentava, e um dos pneumáticos explodiu.

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 — Pronto! — acrescentou ele, aflito. — Quebrou-seum dos patins da cauda. Vamos ter de ficar aqui, não hádúvida!

Conway, que falava pouco nos momentos críticos,esticou as pernas emperradas e apalpou a cabeça no lugar da pancada. Uma pequena escoriação, nada mais. Cum- pria-lhe fazer alguma coisa por aquela gente. Contudo,quando o avião estacou definitivamente, foi o último pas-sageiro que se levantou.

 — Prudência! — recomendou, vendo que Mallinson puxava com violência a porta da cabina, dispondo-se a sal-tar para terra. E, naquele silêncio relativo, a voz do moçorepercutiu de maneira esquisita:

 — Não é preciso. . . Isto parece o fim do mundo. . . Não se vê vivalma.

Um momento depois, tiritando no intenso frio, verifi-caram os outros que assim era. Não ouviam som algum, anão ser os uivos da ventania e o eco dos próprios passos.Sentiam-se à mercê de qualquer coisa implacável esinistramente melancólica — e esse espírito parecia saturar igualmente terra e ar. A lua parecia ter desaparecido atrásde umas nuvens, e só as estrelas iluminavam a vastidãoespantosamente vazia, agitada apenas pelo vento. Mesmosem conhecer o lugar, ter-se-ia adivinhado que aquelemundo gelado era o topo de uma montanha, e que asmontanhas que ali se erguiam eram montanhas acumuladassobre montanhas. No horizonte longínquo alvejava umacadeia delas, qual fila de dentes de cão.

Mallinson, entregue a uma atividade febril, dirigia-se já para a cabina de comando.

 — Em terra não tenho medo desse sujeito, seja elequem for! — gritava. — Vai entender-se comigo, e é para

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 já!...Os outros observavam-no, hipnotizados pelo

espetáculo daquela energia, embora também um poucoapreensivos. Conway correu empós dele, mas demasiadotarde para impedir a tentativa. Volvidos alguns segundos,todavia, o moço tornava a descer, segurando-lhe o braço emurmurando em frases destacadas, com voz grave e rouca:

 — Escute, Conway, é esquisito. . . Creio que o sujei-to está doente, morto, ou coisa parecida. . . Não pude

arrancar-lhe uma palavra. Venha ver. . . Em todo caso,tirei-lhe o revólver.

 — É melhor que mo dê, então.E Conway, embora estivesse ainda um pouco tonto

com a recente pancada na cabeça, aprestou-se para agir.De todas as situações imagináveis, esta lhe parecia combi-nar as circunstâncias mais horrivelmente adversas.

Encarapitou-se com dificuldade numa posição de onde podia ver — não muito bem — o interior do recintofechado. Como sentisse um forte cheiro de petróleo, não searriscou a acender um fósforo. Apenas pôde notar que o piloto, com o corpo caído para a frente, tinha a cabeça emcima do quadro de instrumentos. Sacudiu-o, afrouxou-lheo elmo, desabotoou-lhe a gola e o colarinho. Um momento

depois voltou-se para dizer aos outros: — É exato; aconteceu-lhe alguma coisa. Precisamostirá-lo daí.

Mas um observador poderia acrescentar que algumacoisa sucedera a Conway, também. Sua voz era mais forte,mais incisiva. Já não parecia pairar à beira de um abismode dúvida. A ocasião, o lugar, o frio, a fadiga — nada

disso tinha já tanta importância. Havia alguma coisa quefazer, e a parte convencional do seu ser, agora desperta, preparava-se para executá-la.

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Com o auxílio de Mallinson e Barnard, o piloto foitirado do assento e deitado no chão. Não estava morto,mas desfalecido. Conway não possuía conhecimentosespeciais de medicina, mas, como à maioria dos homensque viveram em terras estrangeiras, eram-lhe familiares osfenômenos da doença.

 — Talvez um ataque cardíaco, provocado pela alti-tude — diagnosticou, curvando-se sobre o desconhecido. — Não podemos fazer grande coisa por ele aqui. . . Não hámeio de abrigá-lo contra este vento infernal. É melhor irmos com ele para dentro da cabina. Não sabemos ondeestamos, e não há esperança de nos podermos orientar ames da alvorada.

Tanto a sugestão como o veredicto foram aceitos semdiscussão. Até Mallinson ajudou. Transportaram o homem para a cabina e o estenderam no corredor entre os assentos.

 Não era o interior mais quente que lá fora, mas oferecia proteção contra as rajadas de vento. E dentro em pouco eraele, o vento, a principal preocupação de todos — comoque o leitmotiv do drama daquela noite. Não era um ventocomum, um simples vento muito forte ou muito frio. Erauma espécie de fúria desencadeada em torno deles, umamo que vociferava e batia o pé no seu domínio. Inclinava

o aparelho com a sua carga, sacudindo-o raivosamente, e,quando Conway olhava pelas janelas, parecia-lhe que omesmo vento arrancava centelhas das estrelas e as faziaredemoinhar.

Jazia inerte o desconhecido, enquanto Conway, nãosem dificuldade naquele espaço exíguo, procurava exami-ná-lo. O exame, porém, não revelou muita coisa.

 — O coração está fraco — declarou afinal.Foi então que Miss Brinklow, remexendo na sua bolsa, disse em tom condescendente, provocando alguma

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sensação nos outros: — Quem sabe se isto faria bem ao homem? Nunca

 pus uma gota na boca, mas sempre trago uma garrafacomigo, para casos de acidente. E isto é uma espécie deacidente, não acham?

 — Creio que sim — respondeu Conway com gravi-dade. Retirou a tampa do frasco, cheirou-o e derramou um pouco de conhaque na boca do homem.

 — É justamente do que ele precisava. Obrigado.

Daí a pouco percebeu-se, à luz de um fósforo, levís-simo estremecimento das pálpebras. De súbito, Mallinsonteve um acesso de nervos.

 — Não posso mais! — dizia, rindo como um doido. — Parecemos uma turma de idiotas, riscando fósforossobre um cadáver... E ele não é nada bonito, hem? Creioque é chinês, se é que tem alguma nacionalidade!

 — É possível — tornou Conway, cuja voz era seca esevera. — Mas o homem ainda não é cadáver. Com um pouco de sorte, talvez possamos chamá-lo à vida.

 — Sorte? Será sorte para ele, não para nós. — Não se fie muito nisso. E, por enquanto, fique

calado!Embora mal se dominasse, Mallinson ainda tinha

muito de menino de escola e obedeceu à ordem lacônica deseu superior. E Conway, por muita pena que tivesse dele,estava mais preocupado com o problema imediato querepresentava o piloto, pois só este poderia dar algumaexplicação naquele apuro. Não se sentia inclinado a levar adiante a discussão no terreno puramente especulativo. Jáse haviam fartado disso durante a viagem. Sua inquietação

ia além da simples curiosidade intelectual, pois percebiaque a situação deixara de ser excitantemente perigosa parase transformar numa prova de resistência, que acabaria em

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catástrofe. Mantendo-se em vigília durante aquela noitetormentosa, não encarou os fatos menos francamente por não os enunciar aos outros. Adivinhava que o vôo se esten-dera muito além da cordilheira ocidental dos Himalaias, para as alturas menos conhecidas do Kuen-Lun. A ser assim, teriam já alcançado a parte mais elevada e maisinóspita da superfície da Terra — o planalto do Tibete,cujos vales mais baixos ficavam a mais de três mil metrosde altitude. Uma vasta região montanhosa, desabitada,

inexplorada em sua maior parte, varrida pelos ventos.Estavam perdidos ali, num ponto qualquer daquele país,com menos recursos do que no comum das ilhas desertas.E foi então que, como uma resposta que vinha aumentar ainda a sua curiosidade, sobreveio abruptamente uma tre-menda transformação. A lua, que lhe parecera oculta pelasnuvens, vinha topetando com a cumeada de alguma emi-

nência sombria e, posto que ainda não se mostrasse direta-mente, descerrava o véu da escuridão. Conway divisou oscontornos de um extenso vale, limitado de um lado e outro por outeiros arredondados, melancólicos, de pouca altura,e negros de azeviche contra o céu noturno, de um azul elé-trico. Era, porém, a cabeceira do vale que lhe atraíairresistivelmente os olhares, pois que ali, erguendo-se na

abertura, magnificente ao fulgor do luar, surgia umamontanha que lhe pareceu ser a mais bela do mundo. Eraum cone de neve quase perfeito, de perfil tão simplescomo se o tivesse desenhado uma criança, e impossível declassificar quanto à altura, tamanho ou distância. Era tãoradiante, tão serenamente equilibrado, que Conway perguntava consigo se seria real. Então, enquanto ele o

contemplava, um pequenino tufo branco velou a borda da pirâmide, dando vida à visão antes que viesse confirmá-loo rumor longínquo da avalancha.

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Ia acordar os outros para que participassem doespetáculo, mas, pensando melhor, achou que o efeito poderia não ser lá muito tranqüilizador. E de fato não oera, do ponto de vista do senso comum; aquelesesplendores virgens só podiam aumentar a sensação deisolamento e de perigo. Era bem provável que a mais próxima habitação humana ficasse a centenas de milhasdali. E não tinham alimento; como armas, apenas possuíam um revólver. O avião estava danificado e quase

sem combustível — além de ninguém saber dirigi-lo.Faltavam-lhes roupas apropriadas àquele frio e àquelevento terrível. Tanto a capa de couro de Mallinson como oseu impermeável eram insuficientes, e a própria MissBrinklow, toda envolvida em lãs e abafada em mantascomo para uma expedição polar — o que lhe pareceraridículo a princípio —, não podia sentir-se muito a gosto.

Além disto, achavam-se todos, salvo ele próprio, abalados pela altitude. Até Barnard sucumbira à melancolia.Mallinson resmungava consigo; era evidente o que lhesucederia se aquelas atribulações se prolongassem por muito tempo. Diante de tão angustiosa perspectiva, não seconteve Conway de lançar um olhar de admiração a MissBrinklow. Não era — disse ele consigo — uma pessoa

normal; nem se podia considerar normal uma mulher queensinava os afeganes a cantar hinos. Mas o fato é que ela-se mostrava, depois de cada calamidade, normalmenteanormal, e Conway lhe era profundamente grato por isso.

 — Espero que a senhora não se esteja sentindo muitomal — disse-lhe, com simpatia, quando os olhares deambos se cruzaram.

 — Os soldados durante a guerra suportaram coisas piores — replicou ela. Não lhe pareceu muito acertada a comparação. Na

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verdade, ele nunca passara nas trincheiras uma noite tãocompletamente desagradável como esta, conquanto issohouvesse acontecido, sem dúvida alguma, a outros. Con-centrou a atenção no piloto, que agora respiravaespasmodicamente e de vez em quando fazia um levemovimento. Com certeza Mallinson não errara supondo ohomem chinês. Tinha o nariz e os malares típicos dosmongóis, apesar de seu feliz disfarce de tenente-aviador  britânico. Mallinson chamara-lhe feio, mas Conway, que

tinha morado na China, achava-o um espécime passável,se bem que agora, à luz do fósforo que ele acendera,aquela pele descorada e a boca escancarada não parecessem nada belas.

Ia a noite arrastando-se, como se cada minuto fossealguma coisa pesada e tangível, que necessitasse de umempurrão para ceder lugar ao seguinte. Passado algum

tempo desapareceu o luar, e com ele o espectro distante damontanha. E a tríplice inclemência da escuridão, do frio eda ventania foi aumentando até o raiar da manhã. Aoaceno desta calou-se o vento, deixando o mundo imersonuma compassiva quietação. Emoldurada no pálido triân-gulo que tinham à frente, tornou a aparecer a montanha,cinzenta a princípio, depois prateada e afinal rósea, quando

os primeiros raios do sol lhe feriram o vértice. À pro- porção que ia esmaecendo a obscuridade, o próprio valetomava forma, revelando um fundo de rochedos e cascalhoque subia em encosta inclinada. Não era uma cena hospita-leira aquela, mas assumiu aos olhos de Conway, enquantoa contemplava, um toque esquisito de beleza — algumacoisa que, sem nenhum fascínio romântico, tinha no entan-

to uma qualidade rígida, quase intelectual. A pirâmide branca, lá longe, impunha-se ao espírito tãodesapaixonadamente como um teorema euclidiano; e

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quando, afinal, o sol surgiu num céu profundamente azul,ele quase tornou a sentir um certo bem-estar.

Já o ar estava mais tépido quando os outrosacordaram, e Conway lembrou que se levasse o piloto parafora, onde a luz do sol e o ar seco e vivo poderiam ajudá-loa voltar a si. Assim fizeram, e começaram uma segundavigia, desta vez mais agradável. Por fim o homem abriu osolhos e pôs-se a falar convulsivamente. Seus quatro passa-geiros curvaram-se para ele, prestando atenção àqueles

sons ininteligíveis para todos, exceto para Conway, querespondia de vez em quando. Depois de algum tempo ohomem foi ficando mais fraco, falando cada vez com maisdificuldade, e afinal expirou. Foi isso, mais ou menos, àsnove horas.

Voltou-se então Conway para os companheiros: — Sinto comunicar-lhes que ele disse muito pouco

 — isto é, pouco relativamente ao que desejaríamos saber.Apenas que estamos no Tibete, o que é evidente. Não deunenhuma explicação coerente do motivo por que nos trou-xe aqui, mas parecia conhecer o lugar. Falou um chinêsque eu não compreendo muito bem, mas creio que se refe-

riu a um mosteiro de lamas, próximo daqui (na costa dovale, parece), onde encontraríamos alimento e abrigo.Shangri-Lá foi o nome que ele disse.  Lá, em tibetano, quer dizer desfiladeiro. Insistiu muito para que fôssemos aomosteiro.

 — O que não me parece ser uma razão para irmos — acudiu Mallinson. — Afinal, ele sem dúvida estava fora de

si, não estava? — A este respeito, sei tanto quanto você. Mas, senão formos a esse lugar, aonde mais havemos de ir?

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 — Onde você quiser, isso não me importa. O que écerto é que esse Shangri-Lá, se fica naquela direção, deveestar mais algumas milhas afastado da civilização, e eu preferiria que fossemos encurtando, não aumentando adistância. Com mil diabos, homem! Você não nos vai levar de volta?

Conway respondeu com paciência: — Creio que você não compreende devidamente a

situação, Mallinson. Achamo-nos numa parte do mundo

sobre a qual pouco se sabe, a não ser que é difícil e perigo-sa, mesmo para uma expedição perfeitamente aparelhada.Considerando que provavelmente nos cercam por todos oslados centenas de milhas de território nas mesmas condi-ções, a idéia de voltar a Peshawar não me parece muito praticável.

 — Não acho que eu seja capaz de caminhar tanto

assim — disse Miss Brinklow com grande seriedade.Barnard concordou: — O que me parece é que teríamos muita sorte se de

fato esse convento ficasse ali na esquina. — Relativa sorte, talvez — tornou Conway. — Afi-

nal, não temos o que comer e a região não é daquelas emque a vida é fácil. Dentro de algumas horas estaremos

todos esfomeados. E esta noite, se ficarmos aqui, teremosde sofrer de novo o vento e o frio. A perspectiva não éagradável. Parece-me, pois, que a nossa única salvaçãoseria encontrarmos outros seres humanos; e onde maishavemos de procurá-los, a não ser onde nos disseram queexistem?

 — E se for uma ratoeira? — perguntou Mallinson.

 — Uma ratoeira bem quentinha — respondeu Bar-nard — com um pedaço de queijo dentro me encheria as

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medidas.Riram todos, menos Mallinson, que parecia agitado e

nervoso. Finalmente Conway prosseguiu: — Estamos todos mais ou menos de acordo, então? O

caminho lógico é pelo vale. Não me parece muitoescarpado, contudo teremos de andar devagar. Seja comofor, não podemos ficar aqui. Não nos seria possível sequer enterrar este homem, sem dinamite. Além disto, os mongesdo convento talvez nos forneçam carregadores para avolta. Vamos precisar de carregadores. Opino, portanto,que devemos ir imediatamente, porque, se não locali-zarmos o ponto até a tardinha, teremos tempo de voltar  para passar a noite no avião.

 — E no caso de localizarmos o ponto? — indagouMallinson, ainda intransigente. — Quem nos garante quenão seremos assassinados?

 — Ninguém. Mas creio que o risco é menor que o demorrer de frio ou de fome, e talvez seja preferível.

E, como sentisse que esta lógica desalentadora não eramuito apropriada à ocasião, acrescentou:

 — Na verdade, um assassinato é a coisa mais impro-vável do mundo num mosteiro budista. Mais improvável,mesmo, do que ser morto numa catedral inglesa.

 — Como São Tomás Becket — acudiu MissBrinklow, concordando com um gesto enfático de cabeça eanulando, sem dar por isso, o argumento de Conway.

Mallinson encolheu os ombros e replicou, melancó-lico e irritado:

 — Pois bem, então vamos para Shangri-Lá. Seja oque for, e esteja onde estiver, tentemos a aventura. Masesperemos que não fique a meia encosta daquela monta-nha.

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A esta observação fixaram todos o olhar no coneresplandecente que assomava na abertura do vale. Em plena luz do dia, era uma visão magnífica e puríssima. Daía um momento exprimiam esses olhares o maior pasmo:tinham avistado ao longe, descendo a encosta na direçãodeles, algumas figuras de homens.

 — A Providência! — murmurou Miss Brinklow.

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CAPÍTULO III

Com uma parte do seu ser, Conway era sempre umespectador, por mais ativas que estivessem as outras facul-

dades. Agora mesmo, enquanto esperava que os desconhe-cidos se aproximassem, não se deixou induzir a tomar umadecisão sobre o que cumpria fazer ou deixar de fazer nestaou naquela eventualidade. E isto não era bravura, nem frie-za, nem uma alta confiança na própria capacidade detomar resoluções sob o estímulo do momento. Era, seconsiderarmos a atitude sob o seu pior aspecto, uma forma

de indolência — uma relutância a abrir mão do seu inte-resse de mero espectador no que ia acontecer.

Quando as figuras chegaram mais perto, eles puderamdistinguir um grupo de doze ou mais homens, acompa-nhando uma liteira de capota. Dentro desta, um poucomais tarde, divisaram uma pessoa vestida de azul. Conwaynão podia imaginar aonde iriam, mas parecia certamente

 providencial, como dissera Miss Brinklow, que essa comi-tiva viesse passar justamente por ali e naquela ocasião.Assim que chegaram ao alcance da voz, adiantou-se a pas-sos vagarosos, pois sabia que os orientais apreciam muitoo ritual das saudações e gostam que elas sejam demoradas.Fazendo alto a alguns metros de distância, curvou-se coma devida cortesia. Com grande surpresa, viu o homem ves-

tido de azul descer da liteira, adiantar-se com uma resolu-ção cheia de dignidade e estender-lhe a mão. Enquanto aapertava, notou que era um chinês velho, ou pelo menos de

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idade madura, já grisalho, de rosto escanhoado, e palidamente decorativo na sua túnica de seda bordada. Por sua vez, o outro também parecia estar submetendo-o a umrápido exame. Então, num inglês preciso e quiçádemasiado gramatical, disse:

 — Pertenço ao convento lamaísta de Shangri-Lá.Curvou-se de novo Conway, e depois de uma pausa

conveniente pôs-se a explicar, em breves palavras, ascircunstâncias que o tinham trazido, com seus três compa-

nheiros, àquela parte pouco freqüentada do mundo. Ao fimda explicação o chinês fez um gesto de compreensão edisse, olhando pensativamente para o aeroplano avariado:

 — É na verdade notável!E acrescentou: — Chamo-me Tchang. Quer ter a bondade de me

apresentar aos seus amigos?

Conway tratou de sorrir com polidez. Estava assom- brado com esse fenômeno: um chinês que falava perfeita-mente o inglês e observava as formalidades sociais deBond Street nas montanhas bravias do Tibete. Voltou-se para os outros, que se haviam aproximado e observavam oencontro com maior ou menor espanto.

 — Miss Brinklow. . . Mr. Barnard, que é americano...

Mr. Mallinson... e eu chamo-me Conway. Todos sentimos prazer em vê-lo, embora este encontro seja quase tãoextraordinário quanto o fato de estarmos aqui. Na verdade,íamos justamente partir a caminho do seu mosteiro, desorte que o encontro é duplamente afortunado. Se o senhor  puder fornecer-nos indicações para a viagem. . .

 — Não é preciso. Dar-me-ei por feliz em lhes servir de guia.

 — Mas não posso permitir que se dê a tamanho

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incômodo. É extremamente gentil, mas se não fica muitolonge. . . 

 — Não fica longe, mas também o caminho não éfácil. Considero uma honra acompanhá-lo, e aos seusamigos. 

 — Mas realmente nós. — Devo insistir. Achou Conway que a discussão, naquele lugar e em

tais circunstâncias, corria algum perigo de se tornar ridícu-la. E respondeu:

 — Pois seja. Todos nós lhe ficamosagradecidíssimos.

Mallinson, que suportara com ar sombrio essas deli-cadezas, interveio então, no tom agudo e acerbo dascasernas:

 — Não ficaremos muito tempo — anuncioulaconicamente. — Pagaremos tudo que gastarmos, edesejamos alugar alguns dos seus homens para nosauxiliarem na viagem de volta. Queremos tornar o maisdepressa possível à civilização.

 — E tem tanta certeza de que está longe dela?A pergunta, formulada com a maior suavidade, exa-

cerbou ainda mais o moço: — Tenho toda a certeza de que estou muito longe de

onde desejo estar, e não só eu, como todos nós. Ficar-lhe-emos gratos por nos albergar temporariamente, mas anossa gratidão será ainda maior se o senhor nos fornecer meios para voltar. Quanto tempo julga que tomará a via-gem para a Índia?

 — Na verdade, não sei dizer. — Não importa; espero que não encontremos dificul-

dade nisso. Tenho alguma experiência de alugar 

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carregadores nativos, e esperamos que o senhor faça valer a sua influência para que sejamos bem servidos.

Parecendo-lhe tudo aquilo truculência desnecessária,ia Conway intervir quando veio a réplica, assentada sobreimensa dignidade:

 — Só lhe posso assegurar, Mr. Mallinson, que serátratado com toda a consideração, e em última análise nãoterá de que se arrepender.

 —   Em última análise?  — exclamou Mallinson,

arremetendo com a expressão. Não foi difícil, entretanto,evitar uma cena, pois que os tibetanos ofereciam já vinho efrutas, que tinham trazido. Eram homens sólidos, vestidosde couro de ovelha, com gorros de pele e botas de couro deiaque. O vinho tinha um agradável aroma, semelhando ode um bom vinho branco do Reno; entre as frutas haviamangas perfeitamente amadurecidas, quase pungentes de

tão saborosas, após tantas horas de jejum. Mallinsoncomeu e bebeu satisfeito, mas sem curiosidade. Conway, porém, livre de inquietações imediatas e não desejando buscar as mais distantes, perguntava consigo como seria possível cultivar mangas naquela altitude. Interessava-otambém a montanha que ficava além do vale; era, a todosos respeitos, um pico sensacional, e admirava-se de que

nenhum viajante fizesse menção dele num desses livrosque toda expedição ao Tibete faz invariavelmentesurgir. Enquanto o contemplava ia escalando-omentalmente, escolhendo caminho por gargantas e ravinas,quando uma exclamação de Mallinson o fez voltar à terra.Olhou em redor e viu que o chinês o encarava atentamente.

 — Estava contemplando a montanha, Mr. Conway?

 — Sim. É um belo espetáculo. Tem nome, comcerteza. — Chama-se Karakal.

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 — Não creio que o tenha ouvido. E é muito alta? — Mais de vinte e oito mil pés.1  — Sim? Não sabia que houvesse altura semelhante,

fora do Himalaia. Teria sido medida com exatidão? Quemfez os cálculos?

 — Quem havia de ser, meu caro senhor? Há algumaincompatibilidade entre a vida monástica e atrigonometria?

Conway saboreou a frase e replicou: — Oh! não, absolutamente nenhuma!Riu, polidamente. O gracejo parecia-lhe fraco, mas

talvez valesse a pena guardá-lo.Pouco depois iniciava a viagem para Shangri-Lá.Durou a ascensão toda a manhã; foi lenta e seguia

declives suaves, mas a tal altura o esforço físico era consi-derável, e a ninguém sobrava energia para falar. O chinês

viajava comodamente na sua liteira; isto poderia parecer  pouco cavalheiresco, se não fosse absurdo imaginar MissBrinklow em tão regia postura. Conway, o menos incomo-dado pela rarefação do ar, esforçava-se por apanhar as fra-ses que trocavam de vez em quando os carregadores.Entendia alguma coisa da língua tibetana, o bastante paracompreender que os homens estavam contentes por voltar 

ao mosteiro. Não poderia, mesmo que o quisesse, conti-nuar a conversar com o chefe, que, de olhos fechados ecom o rosto meio oculto atrás das cortinas, parecia mergu-lhado num sono exigente e muito oportuno.

Entretanto, ia o sol aquecendo. A fome e a sede ti-nham sido apaziguadas, se não satisfeitas; e o ar, límpidocomo se viesse de outro planeta, tornava-se mais precioso

1 8 400 metros. O Everest mede 29 141 pés, ou 8 889 metros. (N.do T.)

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a cada inalação. Era necessário respirar  conscienciosamente, refletidamente; e isto, que a princípio parecia atrapalhador, ao fim de certo tempo produzia umatranqüilidade de espírito quase extática. Todo o corpo semovia no ritmo único da respiração, do andar e do pensamento. Os pulmões, deixando de funcionar automáticos e ignorados, disciplinavam-se de maneira aharmonizar com o espírito e as pernas. Conway, em quemcerta tendência mística se casava de maneira curiosa com oceticismo, estava agradavelmente intrigado com asensação. Em uma ou duas ocasiões disse palavras joviaisa Mallinson, mas o jovem achava-se oprimido pelaascensão. Também Barnard resfolegava asmaticamente,enquanto que Miss Brinklow sustentava uma terrível luta pulmonar, que por alguma razão tratava de ocultar.

 — Já estamos perto do cimo — disse Conway paraanimá-la.

 — Uma vez corri para apanhar o trem — respondeuela — e senti a mesma coisa.

E ele pôs-se a refletir que também há gente que consi-dera a sidra a mesma coisa que o champanha. Questão de paladar.

Surpreendia-se de verificar que, além do assombro,tinha poucas apreensões, e nenhuma por si. Há momentosna vida em que a gente abre a alma inteira, exatamentecomo desataria os cordões da bolsa ao perceber que umdivertimento sai mais caro do que se espera, mas também possui algo de inédito. E foi assim que Conway, nessafadigosa manhã à vista do Karakal, respondeu com alívio e presteza, mas sem excitação, à oferta de uma experiêncianova. Após dez anos de residência em vários países daÁsia, tornara-se um tanto exigente na apreciação de sítios

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e acontecimentos; e esta aventura, tinha de admiti-lo, pro-metia ser fora do comum.

Após cerca de duas milhas de caminho costeando ovale, a subida tornou-se mais abrupta; mas já então otempo se enuviara e uma bruma prateada obscurecia a pai-sagem. Dos campos de neve, lá em cima, vinham sons detrovões e avalanchas; o ar esfriou e, com a violentamutabilidade das regiões montanhosas, o frio tornou-seintensíssimo. Rajadas de vento, acompanhadas de chuva eneve, encharcaram os viajantes, aumentando-lhesenormemente o desconforto. O próprio Conway sentiu, emdado momento, que seria impossível ir muito mais longe.Contudo, pouco depois lhe pareceu que deviam ter atingido o cume da serrania, pois os liteiros fizeram alto para reajustar a carga. O estado de Barnard e Mallinson,que padeciam grandemente, requeria maior repouso; masos tibetanos, evidentemente ansiosos por prosseguir,indicaram por sinais que o resto da viagem seria menosfatigante.

Depois disto, foi decepcionador vê-los desenrolar cor-das. E Barnard conseguiu exclamar, numa desesperadatentativa para fazer espírito:

 — O quê! Já nos vão enforcar?Mas os guias demonstraram logo que a sua intenção,

muito menos sinistra, era apenas ligar o grupo todo, comose costuma fazer nas escaladas. E quando viram que o ma-nejo das cordas era familiar a Conway, mostraram-semuito mais respeitosos, permitindo-lhe que ligasse oscompanheiros como bem entendesse.

Colocou-se ele logo atrás de Mallinson, comtibetanos à frente e atrás; vinham depois Barnard e MissBrinklow, e mais alguns tibetanos para fechar a

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retaguarda. Não tardara a notar que os homens, durante osono de seu chefe, estavam inclinados a entregar-lhe adireção. Sentiu a conhecida excitação do comando; sehouvesse qualquer dificuldade daria o que tinha para dar:confiança e autoridade. Fora, em tempo, um alpinista de primeira ordem, e achava-se ainda, sem dúvida alguma,em muito boas condições.

 — A senhora deve olhar por Barnard — disse a MissBrinklow, meio jocoso, meio sério.

Ao que ela respondeu, com a modéstia de uma águia: — Farei o que puder; mas o senhor sabe — nunca

tinha sido amarrada.A etapa seguinte, ainda que excitante por vezes, foi

menos árdua do que esperava, e livre do suplício que a su- bida representara para os pulmões. O caminho era por umcorte oblíquo na parede de rocha, cujo cimo o nevoeiroocultava. Talvez devessem agradecer a esse nevoeiro oesconder igualmente o abismo do lado oposto, masConway, que tinha boa vista para altitudes, bem gostariade ver onde estava. Em certos sítios a trilha media unsescassos dois pés de largura, e o modo por que oscarregadores conduziam a liteira nesses lugares despertounele quase tanta admiração quanto os nervos do passageiro, que dormindo conseguia fazer tal jornada.Eram os tibetanos bastante destros, mas pareciam maissatisfeitos quando o caminho se alargava e oferecia levedeclive. Começavam então a cantar toadas vivas e bárbaras, que Conway imaginava orquestradas por Massenet para algum balé tibetano.

Cessou a chuva e o ar aqueceu um pouco. — O fato é que nunca teríamos encontrado o cami-

nho sozinhos — observou Conway com ar alegre.

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Mallinson, porém, não achou na observação consoloalgum. Estava, na verdade, terrificado, e corria mais perigode se trair, agora que já passara o pior. Foi com amarguraque retorquiu:

 — Perderíamos muito com isso?O caminho descia agora com maior inclinação, e num

sítio encontrou Conway alguns edelvais; era o primeirosinal — e bem-vindo! — de altitudes mais hospitaleiras.Ao ser anunciado, porém, isto trouxe ainda menosconsolação ao seu jovem amigo.

 — Justos céus, Conway! Você pensa que anda fla-nando pelos Alpes? O que eu queria saber era para queinferno nos dirigimos. E qual será o nosso plano de ação,quando lá estivermos? Que faremos nós?

 — Se você tivesse a minha experiência — replicouConway serenamente —, saberia que há ocasiões na vidaem que o melhor é não fazer nada. Deixam-se correr ascoisas. Assim foi a guerra. E a gente ainda tem sortequando, como agora, um sabor de novidade vem temperar o que há de desagradável.

 — Você está se tornando filosófico demais paramim. Não era esta a sua atitude durante as comoções emBaskul!

 — Certamente que não, porque então havia alguma possibilidade de alterar os acontecimentos pela minha ação pessoal. Agora, porém, ao menos de momento, não vejosemelhante possibilidade. Estamos aqui porque estamosaqui, visto como quer uma razão. Tem-me parecidosempre uma razão tranqüilizadora.

 — Suponho que você faça uma idéia do trabalhoespantoso que teremos para voltar. Há uma hora quevamos resvalando pela encosta de uma montanha perpen-

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dicular — bem o notei! — Também eu. — Ah! você também viu isso? — expectorou

Mallinson, agitado. — Bem vejo que me estou tornandoaborrecido, mas não está em mim evitá-lo. Desconfiomuito de tudo isto. . . Estamos fazendo tudo o que essessujeitos querem de nós. Eles nos vão meter numa ratoeira!

 — Ainda que assim fosse, morreríamos se nãoentrássemos nela!

 — Sei que isso é lógico, mas não adianta nada. Re-ceio muito que não me acomode tão facilmente como vocêà situação. Não posso esquecer que anteontem ainda está-vamos no consulado de Baskul. . . E pensar em tudo o queaconteceu desde então me acabrunha! Desculpe-me, masestou exausto. Compreendo quão afortunado fui em ter escapado à guerra — creio que ficaria maluco. Parece-me

que todo o mundo, ao redor de mim, enlouqueceu. . . Masé preciso que eu mesmo esteja fora de mim para lhe dizer estas coisas. . .

 — Não, meu caro rapaz — respondeu Conway,sacudindo a cabeça —, não. Você tem vinte e quatro anose se acha a uns quatro mil metros de altitude — razõessuficientes para explicar o que pode estar sentindo no

momento. E acho até que se está saindo extraordina-riamente bem de uma prova difícil — melhor do que eu ofaria na sua idade.

 — Mas você não vê como tudo isto é louco? Aquelevôo por cima das montanhas, aquela horrível espera nomeio da ventania, enquanto morria o piloto, e depois oencontro destes sujeitos. . . Quando recorda tudo isso, não

lhe parece um pesadelo inacreditável? — Certamente que sim. — Pois então eu desejava saber como consegue man-

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ter-se tão frio diante de tudo! — Deseja realmente? Pois vou dizer-lhe, ainda que

me arrisque a parecer cínico. É porque tenho na memóriamuitas outras coisas que também parecem pesadelos. Nãoé este o único lugar louco no mundo, Mallinson. Afinal,visto que não quer deixar de pensar em Baskul. . . lembra-se do modo como os revolucionários torturavam os prisioneiros antes da nossa partida, para arrancar informa-ções? Uma simples prensa de lavar roupa. . . muito eficaz,

não há dúvida, mas creio que nunca vi coisa tão cômica ehorrível ao mesmo tempo. E lembra-se do últimotelegrama que recebemos, antes que fossem cortadas ascomunicações? Era uma circular de uma fábrica detecidos de Manchester, indagando se havia em Baskulmercado para espartilhos! Pois isso não lhe parece loucura bastante? Acredite-me, ao virmos para cá o pior que nos

 pode ter acontecido é trocarmos uma loucura por outra. Equanto à guerra, se você houvesse estado lá teria feito omesmo que eu — teria aprendido a esconder o medo sobuma aparência de bravura.

Ainda conversavam quando uma escarpada mas brevesubida lhes tirou o alento, concentrando em poucos passostodo o esforço anterior. Logo se aplainou o solo, e saíram

do nevoeiro para uma atmosfera clara e cheia de sol. Emfrente deles, a pouca distância, erguia-se o mosteiro deShangri-Lá.

Para Conway, o primeiro que o avistou, poderia pare-cer uma visão nascida daquele ritmo solitário em que a

falta de oxigênio submergira todas as suas faculdades. Era,na verdade, um espetáculo estranho, quase inacreditável.Um grupo de pavilhões coloridos pendurava-se à encosta

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da montanha, sem aquela sombria resolução dos castelosdo Reno, antes com a delicadeza aventurosa de pétalas deflor encravadas num penhasco. Era soberbo e encantador.Uma emoção austera arrebatava o olhar dos tetos azuisleitosos para o bastião de rocha cinzenta lá no alto, formi-dável como o Wetterhorn acima de Grindelwald. Maisalém, numa pirâmide deslumbrante, pairavam as encostasnevadas do Karakal. E Conway pensava consigo que bem podia ser aquela a mais terrífica paisagem montanhosa do

mundo inteiro; imaginava já a mole imensa de neve egelo contra a qual o rochedo servia de gigantesca barreira. Talvez um dia a montanha inteira desabasse, emetade do esplendor gelado do Karakal iria abater-se novale. E perguntava consigo se um risco tão remoto, aliadoao receio que inspirava, poderia proporcionar algumaexcitação agradável.

Quase não menos sedutora era a perspectiva de baixo, pois a muralha rochosa continuava a descer quase perpen-dicularmente, numa enorme fenda que só podia ter resul-tado de algum antigo cataclismo. O fundo do vale, distantee brumoso, alegrava os olhos com a sua verdura; abrigadodos ventos, mais vigiado que dominado pelo mosteiro,afigurou-se a Conway um lugar delicioso. Contudo, se era

habitado, sua população devia ficar completamente isolada pelas cordilheiras altíssimas e absolutamente inacessíveldo outro lado. A única subida viável parecia ser para omosteiro. O viajante sentiu ligeira apreensão enquantoobservava a cena; talvez não fossem destituídos de razãoos receios de Mallinson. Foi, porém, um sentimentomomentâneo, logo diluído na sensação mais profunda,

meio mística, meio visual, de ter afinal atingido uma meta,um termo qualquer.Jamais conseguiu recordar exatamente de que maneira

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ele e os outros chegaram ao convento, nem as formali-dades com que ali foram recebidos, desamarrados eintroduzidos no recinto. Aquele ar tão fino tinha umatextura de sonho, casando-se com o azul porcelana do céu.Bebia, a cada sorvo de ar, a cada olhar, uma tranqüilidade profunda e anestesiante, que o tornava igualmenteimpenetrável à inquietação de Mallinson, às piadas deBarnard, ao ar modesto de Miss Brinklow, a personificar uma dama preparada para as piores conjunturas.

Lembrava-se vagamente da sua surpresa ao encontrar uminterior espaçoso, aquecido e perfeitamente asseado; masapenas teve tempo de notar essas coisas, porque o chinêsdeixara a liteira e os ia guiando através de váriasantecâmaras. Mostrava-se agora muito afável:

 — Devo pedir desculpas de tê-los abandonado a si próprios durante o trajeto, mas é que essas viagens não me

fazem bem, e preciso ter cuidado comigo. Espero que nãoestejam muito fatigados.

 — Fizemos o possível. . . — respondeu Conway,com um sorriso de través.

 — Excelente! E agora, se quiserem acompanhar-me,eu lhes mostrarei os seus aposentos. Com certeza hão dequerer um banho. Nossa instalação é simples, mas espero

que nada lhes falte. Neste ponto Barnard, ainda arquejante, soltou uma ri-sada asmática.

 — Não posso dizer, por enquanto, que gosto do seuclima... o ar parece grudar-se um pouco aos pulmões. . .mas a verdade é que os senhores têm uma esplêndida vistadas janelas da frente. Teremos de fazer fila diante do quar-

to de banho, ou isto aqui é um hotel americano? — Creio que o senhor achará tudo a seu contento,Mr. Barnard.

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E Miss Brinklow concordou, com afetação: — Assim o creio, realmente. — E depois — continuou o chinês — sentir-me-ei

muito honrado se me fizerem companhia ao jantar.Conway respondeu polidamente. Só Mallinson não

dera sinal de vida diante dessas comodidades inesperadas.Como Barnard, sofria com a influência da altitude; masenfim, fazendo algum esforço, achou fôlego para replicar:

 — E depois, se isso não o incomoda, faremos nossos planos para a volta. No que me toca, quanto mais cedo,melhor!

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CAPÍTULO IV

 — Como vêem — dizia Tchang —, somos menos bárbaros do que esperavam. ..

E, ao cabo de algumas horas, Conway sentiu-se dis- posto a concordar com ele. Gozava aquela agradável mis-tura de bem-estar físico e agilidade mental — sensaçãoque lhe parecia, entre todas, a mais genuinamentecivilizada. Tudo o que vira até então em Shangri-Láenchia-lhe a medida dos desejos. Iam as instalações muitoalém do que esperara. Não era, talvez, de causar muita

admiração que um mosteiro tibetano possuísse calefaçãointerna, numa época em que até Lassa era provida detelefones; mas o que lhe parecia singularíssimo era aquelacombinação do aparelhamento da higiene ocidental comtudo mais que era tradicionalmente oriental. A banheiraem que acabava de se regalar, por exemplo, uma banheirade delicada porcelana verde, era, conforme dizia a marca

da fábrica, produto de Akron, estado de Ohio. E contudo ocriado nativo que lhe servira de camareiro tratara-o àmoda chinesa, limpando-lhe as orelhas e narinas e passando-lhe um pequeno esfregão de seda sob as pálpebras. Conway perguntara nessa ocasião a si mesmose os seus companheiros estariam recebendo os mesmoscuidados — e como os receberiam.

Vivera quase dez anos na China, nem sempre nasmaiores cidades, e, tudo bem considerado, parecia-lheaquele o período mais feliz da sua vida. Gostava dos

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chineses e dava-se bem com o seu sistema. Apreciava particularmente a cozinha chinesa, com suas sutisgradações de gosto. Por isso, a primeira refeição emShangri-Lá dera-lhe a grata impressão de uma coisa comque estava familiarizado. Suspeitava, aliás, que contivessealguma erva ou droga para aliviar a respiração, porque nãosó ele sentiu diferença, mas notou que seus companheirosestavam mais à vontade. Tchang, que apenas comeu pequena quantidade de salada crua, sem tomar vinho,

explicara a princípio: — Os senhores me desculparão, mas a minha dieta é

muito rigorosa. . . Vejo-me obrigado a cuidar da minhasaúde.

Já dera antes aquela mesma razão. Conway pergun-tava a si mesmo qual seria a enfermidade que o afligia.Examinando-o agora mais detidamente, viu que era difícil

determinar-lhe a idade; as feições miúdas e por assim dizer imprecisas, aliadas à tez de argila úmida, davam-lhe umaaparência indefinida que tanto podia ser a de um moçoenvelhecido antes do tempo como a de um velhoadmiravelmente conservado. Não lhe faltava, contudo,certo atrativo; uma como aura de cortesia formalista orodeava, qual perfume tão delicado que mal chama a

atenção e é depressa esquecido. A vestimenta de seda azul bordada, com a costumeira saia aberta ao lado e as calçasapertadas no tornozelo — toda a gama do azul-celeste —,dava-lhe um encanto metálico e frio que Conway achavaagradável, posto que soubesse não ser este o gosto dosoutros.

Era, na verdade, a atmosfera antes chinesa do que

especificamente tibetana; e isto, em si, já lhe dava umaaprazível sensação de estar em casa — outra coisa que não podia esperar fosse compartilhada pelos companheiros. A

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sala também lhe agradava; de admiráveis proporções, erasobriamente adornada com tapeçarias e uma ou duas bonitas peças de laca. A luz vinha de lanternas de papel,imóveis no ar parado. Sentia Conway um suave confortode corpo e espírito, e não se pode dizer que ficasseapreensivo ao pensar de novo na possibilidade de ter ingerido alguma droga. Fosse ela o que fosse (se é quehouvera droga), aliviara a falta de ar de Barnard, abrandaraa truculência de Mallinson. Ambos haviam jantado bem,

 preferindo comer a falar. Ele também se sentia faminto, enão lhe desagradava que a etiqueta exigisse a protelaçãodos assuntos importantes. Como jamais gostara de dar fima uma situação em si mesma agradável, aquela técnica lheconvinha maravilhosamente. Foi só ao acender o cigarroque fez uma leve concessão à curiosidade, observando aTchang:

 — Sua comunidade me parece muito feliz e muitohospitaleira com os estrangeiros. Não creio, contudo, queos recebam muito a miúdo.

 — Raramente, na verdade — replicou o chinês numtom comedidamente majestoso. — Esta parte do mundonão é muito freqüentada.

Isto provocou um sorriso em Conway.

 — O senhor usa de um eufemismo. Pareceu-me,quando aqui cheguei, o lugar mais isolado em que já pusos olhos. Aqui poderia florescer uma cultura original, semcontaminação alguma do mundo exterior.

 — Contaminação, diz o senhor? — Refiro-me ao jazz, cinemas, sinais luminosos, etc.

A sua rede de encanamento é tão moderna quanto possível

 — a única dádiva que, ao meu ver, o Ocidente tem paraoferecer ao Oriente. Tenho pensado muitas vezes que osromanos foram afortunados. Sua civilização chegou a

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conhecer os banhos quentes, sem contudo alcançar o fatalconhecimento da máquina.

Calou-se. Falara com uma fluência improvisada que, posto não fosse insincera, era destinada sobretudo a criar um ambiente e controlá-lo. E era exímio nesse jogo. Só odesejo de corresponder àquela polidez refinada o impediade se mostrar mais francamente curioso.

Miss Brinklow é que não tinha tais escrúpulos. Disselogo, começando com uma palavra de pedido que, todavia,

nada tinha de submissa: — Por obséquio, fale-nos do mosteiro, sim?Ergueu Tchang os supercílios em gentilíssimo pro-

testo contra esta entrada súbita na matéria. — Terei imenso prazer, minha senhora, desde que es-

teja em mim. Que é exatamente o que deseja saber? — Em primeiro lugar, quantos lamas vivem aqui, e a

que nacionalidade pertencem?Via-se que o seu espírito metódico funcionava não

menos profissionalmente do que na missão de Baskul.Tchang respondeu:

 — Os que se acham perfeitamente integrados naordem são cinqüenta. Há mais alguns, porém, que aindanão atingiram a completa iniciação — como eu. Espera-

mos lá chegar no devido tempo. Até então, somossemilamas. . . aspirantes, digamos. Quanto às origensraciais, há representantes de muitas nações entre nós, aindaque a maioria seja, como é natural, composta de tibetanose chineses.

Miss Brinklow não se furtava nunca a uma conclusão,ainda que fosse errada:

 — Compreendo. É então um verdadeiro conventonativo. Seu chefe é tibetano ou chinês? — Não.

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 — Há ingleses aqui? — Diversos. — Meu Deus!. . . É notável, na verdade!Calou-se, apenas para respirar, e continuou: — E agora, diga-me em que crêem os senhores.Conway recostou-se na cadeira, numa expectativa que

tinha o seu tanto de divertida. Sempre achara prazer emobservar o choque de duas mentalidades opostas. E prome-tia ser interessante aquela retidão de mentora de meninas

aplicada à filosofia lamaísta. Mas, como não desejava queseu hospedeiro se assustasse, disse com ar conciliador:

 — É uma pergunta muito importante.Miss Brinklow, porém, não estava para

contemporizações. O vinho, que tornara os outros maistranqüilos, parecia ter-lhe dado nova vivacidade. E disse,com um gesto magnânimo:

 — Eu, é claro, sou uma crente da verdadeira religião,mas tenho bastante largueza de vistas para admitir que ou-tras pessoas — isto é, estrangeiros — sejam absolutamentesinceras no seu modo de ver. E é natural que num mosteiroeu não espere aprovação.

Esta concessão suscitou uma cerimoniosa reverênciade Tchang, que replicou no seu inglês preciso e elegante:

 — Mas por que não, minha senhora? Então porqueuma religião é verdadeira, devemos sustentar que todas asoutras são forçosamente falsas?

 — Mas certamente! Isso é óbvio, pois não é?De novo interpôs-se Conway: — Na verdade, parece-me que seria melhor não

discutirmos. Mas Miss Brinklow compartilha a minhacuriosidade quanto à razão de ser deste estabelecimentoúnico.

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Foi quase num murmúrio, e muito lentamente, queTchang respondeu:

 — Para me exprimir em poucas palavras, meu carosenhor, direi que nosso principal artigo de fé é a modera-ção. Preconizamos a virtude de evitar excessos de todasorte — incluindo, com perdão do paradoxo, o próprioexcesso de virtude. Verificamos que este princípioconcorre em grau considerável para a felicidade doshabitantes do vale que viram lá embaixo, e onde vivem

alguns milhares de pessoas, sob o controle da nossa ordem.Governamos com moderado rigor e nos satisfazemos, emtroca, com uma obediência moderada. E creio poder afirmar que nossa gente é moderadamente sóbria,moderadamente casta e moderadamente honesta.

Conway sorriu, achando bem expostas aquelas idéias,que aliás agradavam ao seu temperamento.

 — Creio que compreendo. Com certeza, os homensque foram ao nosso encontro esta manhã pertencem ao povo do vale, não?

 — Sim. Espero que não tenham cometido falta algu-ma durante a viagem. . .

 — Oh! não, nenhuma. Alegro-me, entretanto, de ver que eles têm os pés mais que moderadamente firmes.

Segundo notei, o senhor teve o cuidado de dizer que amoderação se aplicava a eles; devo inferir que ela não seaplica também aos sacerdotes?.

A esta pergunta, porém, Tchang sacudiu a cabeça,declarando:

 — Lamento, senhor, que tenha tocado agora numassunto que não posso discutir. Só me é permitido acres-

centar que a nossa comunidade tem várias crenças e usos,mas a maioria de nós somos moderadamente heréticos notocante aos mesmos. Muito lastimo não poder dizer mais

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no momento. — Por favor, não se incomode. O senhor me deixa

entregue às mais agradáveis conjeturas.Qualquer coisa na própria voz, tanto como nas sensa-

ções corporais, reavivou no espírito de Conway aimpressão de que se achava submetido à ação benigna dealguma droga. Mallinson parecia estar sob uma influênciasemelhante; contudo, aproveitou a ocasião para observar:

 — Tudo isto é muito interessante, mas me parece que

é tempo de tratarmos dos planos de partida. Queremos vol-tar à Índia o mais depressa possível. Quantos carregadores podem fornecer-nos os senhores?

Esta pergunta prática e inflexível, rompendo a crostade suavidade, não encontrou, entretanto, fundo em quetomar pé. E foi somente após um intervalo um tanto longoque Tchang replicou:

 — Infelizmente, Mr. Mallinson, não é a mim que osenhor deve dirigir-se neste caso. Como quer que seja,creio que o assunto não poderá ser resolvido imediata-mente.

 — Entretanto, precisamos assentar alguma coisa!Todos nós temos algum trabalho a atender, e nossos ami-gos e parentes devem estar inquietos por nossa causa...temos positivamente de voltar! Estamos muito agradecidos pelo acolhimento que nos dispensou, mas não podemosficar aqui sem fazer nada. Se for possível, desejamos partir amanhã, ao mais tardar. Não há de faltar entre os seus ho-mens quem nos queira escoltar — trabalho que será bemremunerado, é claro.

As últimas palavras de Mallinson foram ditas comnervosismo, como se ele esperasse uma réplica mesmoantes de terminar. Não conseguiu, porém, arrancar a

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Tchang senão esta frase calma, que quase encerrava umacensura:

 — Mas tudo isso — sabe — não está na minhaalçada.

 — Não? Pois seja; mas ainda assim, talvez o senhor  possa fazer alguma coisa. Se nos arranjasse um mapagrande da região prestar-nos-ia serviço. Ao que parece,teremos de fazer uma viagem longa, razão de sobra para partir mais cedo. Os senhores têm mapas, suponho.

 — Sim, temos muitos. — Então, se não é incômodo, pediremos alguns

emprestados. Depois lhos devolveremos.. . porque supo-nho que hão de ter comunicação com o resto do mundo, devez em quando. E seria uma boa idéia mandar notícias, para tranqüilizar os nossos amigos. A que distância fica aestação telegráfica mais próxima?

O rosto enrugado de Tchang parecia ter-se revestidode infinita paciência — mas ele não respondeu. Após ummomento de espera, o moço continuou:

 — Bem, para onde recorrem os senhores quando pre-cisam de alguma coisa. . . quero dizer, alguma coisa dacivilização?

Assomava-lhe já ao olhar e à voz um toque de terror.

De repente repeliu a cadeira e ergueu-se. Estava pálido; passava a mão pela fronte, fatigado. E, correndo um olhar circular pela sala, gaguejou:

 — Estou tão cansado! Parece que ninguém me quer ajudar. . . Fiz apenas uma pergunta simples. É claro que osenhor há de poder responder-me. Quando instalaramtodos esses banheiros modernos. . . como vieram eles ter 

aqui?Seguiu-se novo silêncio.

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 — Então não quer responder? Certamente isto faz parte do mistério que cerca todas as coisas aqui. Conway,devo dizer que o considero um grande moleirão. . . Por queé que você não descobre a verdade? Por agora. . . não posso mais comigo. . . mas. . . amanhã, não esqueça. . .temos de ir embora amanhã. . . é indispensável. . .

 Não o tivesse Conway segurado, fazendo-o sentar,teria escorregado para o chão. Reanimou-se um pouco,mas não falou.

 — Amanhã ele estará muito melhor — disse Tchangsuavemente. — O ar aqui abala os forasteiros no começo;mas logo se aclimatam.

O próprio Conway tinha a sensação de despertar deuma hipnose.

 — A prova foi muito rude para ele — comentou comuma indulgência melancólica. E acrescentou, com mais

vivacidade: — Creio que nós todos sentimos mais oumenos a mesma coisa. . . Será melhor adiarmos esta dis-cussão e irmos dormir. Barnard, quer encarregar-se deMallinson? Tenho certeza de que também precisa dormir,Miss Brinklow.

Sem dúvida fora dado algum sinal, porque imediata-mente apareceu um criado. E Conway continuou:

 — Sim, sim, vamos todos. . . boa noite. . . boa noite...eu já os sigo.Quase os empurrava para fora da sala. Depois, com

uma sem-cerimônia que contrastava abertamente com suasmaneiras anteriores, voltou-se para o anfitrião. Sentira-seesporeado pela censura de Mallinson.

 — Bem, meu senhor, não desejo retê-lo muito tempo,

e por isso vou direto ao ponto. Meu amigo é impetuoso,mas eu não o censuro. . . Está no direito de querer as coi-sas bem claras. Temos de preparar o nosso regresso, e não

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quando meus amigos e eu o encontramos? Não tendo obtido resposta, prosseguiu Conway com

voz mais tranqüila: — Compreendo. Não foi, pois, um encontro casual.

 Na verdade, era o que eu pensava. Então é certo que o se-nhor foi até lá com o fim deliberado de interceptar-nos.Isto faz crer que tenham sido avisados com antecedênciada nossa chegada. E a questão mais interessante é — como?

Suas palavras punham uma nota de veemência na per-feita quietude da cena. A luz da lanterna fazia ressaltar otosto do chinês, sereno como o de uma estátua. Repentina-mente, com um pequeno gesto, Tchang desfez a tensão.Desviando um reposteiro de seda, descobriu uma janelaque deitava para um balcão. Tocando então no braço deConway, levou-o para o ar frio e cristalino.

 — O senhor é sagaz — disse com ar sonhador —,mas não acertou inteiramente. Por isso eu o aconselharia anão afligir os seus amigos com estas discussões abstratas.Acredite-me, nem o senhor nem eles correm perigo algumem Shangri-Lá.

 — Não é o perigo o que nos inquieta: é a demora. — Compreendo. E é claro que  poderá haver certa

demora. . . É absolutamente inevitável. — Se é apenas por pouco tempo, e de fato inevitável,então naturalmente havemos de suportá-la o melhor que pudermos.

 — Isso será muito acertado, porque nada mais dese- jamos senão que o senhor e seus companheiros achemagradáveis todos os momentos que aqui passarem.

 — Está muito bem então; e, no que me toca, já lhedisse — não posso dizer que isso me aborreça muito. Éuma experiência nova e interessante, e, afinal, nós precisa-

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mos de repouso.Olhava para cima, contemplando a pirâmide brilhante

do Karakal. Naquele momento, iluminada pelo luar, dava aimpressão de que se poderia tocá-la com a mão — tãofrágil parecia, assim recortada contra a azul imensidade.

 — Amanhã — disse Tchang — o senhor poderáachá-la ainda mais interessante. E quanto ao repouso, seestá fatigado, não há no mundo inteiro muitos sítios maisapropriados do que este.

 Na verdade, à medida que Conway continuava a olhar ia-se apoderando dele uma profunda sensação de repouso,como se o espetáculo se dirigisse não menos ao espírito doque aos olhos. Em contraste com o furacão da noiteanterior, não havia agora o menor sopro de vento; o valeinteiro, ele o percebia, era um porto terrestre, fechado,tendo a vigiá-lo, como um farol, o Karakal. Aumentou

ainda a semelhança quando viu iluminar-se o vértice — um clarão azulado de gelo, igualando o esplendor querefletia.

Alguma coisa lhe inspirou então o desejo de indagar qual a interpretação literal do nome, e a resposta murmu-rada de Tchang foi como um eco da sua própriameditação:

 — Karakal, no dialeto do vale, significa "Lua Azul".

 Não comunicou Conway aos outros a conclusão a quechegara, de que sua vinda a Shangri-Lá era de algumaforma esperada pelos habitantes do mosteiro. Parecia-lheque o devia fazer, e percebia tratar-se de um caso impor-

tante; no dia seguinte, contudo, essa certeza tão pouco o preocupava, a não ser teoricamente, que procurou evitar 

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maior inquietação aos outros. Uma parte do seu ser insistiaem ver algo de muito estranho naquele lugar; a atitude deTchang, na véspera, estava longe de ser tranqüilizadora e ogrupo achava-se virtualmente prisioneiro, pelo menos atéque as autoridades se resolvessem a vir-lhe em socorro. Eera seu dever evidente incitá-los à ação. Afinal, era umrepresentante do governo britânico, quando mais nãofosse, e era iníquo que os habitantes de um mosteirotibetano se recusassem a atender a um pedido justo que

fazia. . . Tal, sem dúvida alguma, a maneira normal eoficial por que se encararia a questão; e aquela parte doseu ser era tão normal como oficial. Ninguém melhor doque ele sabia fazer-se de homem forte quando a ocasião orequeria. Durante os dias difíceis que precederam aevacuação, seu procedimento fora de molde a granjear-lhe(e pensava nisto meio contrariado) nada menos que a

dignidade de cavaleiro e uma novela no estilo de Henty,2 

destinada a ser dada em prêmio nas escolas e intitulada Acompanhando Conway em Baskul. De fato, tomar sobreos ombros a direção de várias dezenas de civis de todas asclasses, incluindo mulheres e crianças; albergá-los todosnum pequeno consulado durante uma revolução violenta,chefiada por agitadores hostis a toda sorte de estrangeiros;

ameaçar e adular os revolucionários, até conseguir a permissão, para todos, de deixarem a cidade em aviões — não fora, bem o compreendia, pequena façanha. Talvezque, manejando os cordões e escrevendo relatóriosintermináveis, conseguisse abiscoitar alguma coisa nascondecorações do Ano Bom. De qualquer forma, isso lhevalera a fervorosa admiração de Mallinson. Infelizmente,

2 Jornalista inglês e autor de livros para meninos (1832-1902).(N. do T.)

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àquela hora devia o moço sentir-se bem desiludido. Era pena, sim; mas Conway já se habituara a ver pessoasgostarem dele só porque se enganavam a seu respeito. Nãoera verdadeiramente um desses construtores de impérioresolutos, vigorosos e violentos; a amostra que dava dissoera apenas uma pequenina peça de um só ato, repetida detempos em tempos, por arranjo especial com o destino e oMinistério das Relações Exteriores — e em troca de umsalário que qualquer um podia verificar nas páginas do

anuário Whitaker.O fato é que o enigma de Shangri-Lá e de sua pre-

sença ali começava a exercer sobre o seu espírito umafascinação não despida de encanto. Em todo caso, não sen-tia nenhum receio pessoal. Exposto pela própria profissãoa andar por estranhos sítios do mundo, quanto mais estra-nhos eram, em via de regra, menos se aborrecia neles; por 

que, pois, havia de se queixar por ter ido parar no maisestranho de todos os lugares, em virtude de um acidente,em vez de ser ali enviado por uma ordem do Ministério?

E na verdade estava muito longe de se queixar. Aosair da cama, de manhã, avistando pela janela o lápis-lazúli do céu, convenceu-se de que não desejaria estar emnenhum outro ponto da terra — fosse Peshawar ou Picca-

dilly. Alegrou-se de ver que a noite de repouso também produzira efeito tonificante nos outros. Barnard pilheriavaalegremente a propósito de camas, banhos, almoços e ou-tras doçuras da hospitalidade. Miss Brinklow confessavaque a mais tenaz pesquisa no seu aposento não logrararevelar uma só das falhas que estava certa de encontrar. O próprio Mallinson mostrava um pouco de complacência

um tanto soturna. — Afinal, creio que não poderemos partir amanhã — 

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resmungava —, a menos que alguém se resolva a deitar energias. . . Que estes sujeitos são tipicamente orientais. . . Não se consegue que façam coisa alguma depressa nemcom eficiência.

Conway aceitou a observação. Não havia ainda umano que Mallinson se encontrava fora da Inglaterra — tempo suficiente, sem dúvida, para justificar uma generali-zação que provavelmente havia de repetir quando tivessevivido vinte anos no estrangeiro. E até certo ponto eraverdade; não considerava, contudo, as raças orientais tãoextraordinariamente dilatórias — seriam, antes, os inglesese americanos que galopavam ao redor do globo sob a açãode uma febre contínua e um tanto absurda. Dificilmenteesperaria que outro ocidental compartilhasse aquele pontode vista, mas quanto mais crescia em anos e experiênciamais se apegava a ele. Por outro lado, não podia negar queTchang fosse um contemporizador sutil, e que aimpaciência de Mallinson era bem justificada. Sentia umleve desejo de poder ser também impaciente; teria sidomuito melhor para o rapaz.

 — Creio — disse ele — que conviria esperarmos para ver o que nos traz o dia de hoje. Era talvez otimismoexagerado supor que eles fizessem alguma coisa já ontemà noite.

Mallinson relanceou vivamente os olhos para ele. — Acha, então, que eu fiz papel ridículo com a

minha insistência? Não pude conter-me! Aquele chinês me parecia suspeitíssimo... e ainda penso assim. Conseguiuarrancar-lhe alguma coisa razoável depois que fui para acama?

 — Não ficamos muito tempo a conversar. Ele falouem termos vagos e não comprometedores sobre quase tudo

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que nos interessava. — Nós hoje havemos de obrigá-lo a pôr os pontos

nos ii! — Sem dúvida — concordou Conway, sem grande

entusiasmo. — Entrementes, este breakfast está excelente!Consistia a refeição, muito bem preparada e ainda

melhor servida, em pomelos, chá e bolos de farinha semlêvedo. Quando ia terminar entrou Tchang e, fazendo uma pequena reverência, começou aquela troca de

cumprimentos polidos e convencionais que, em línguainglesa, pareciam um tudo-nada pesado. Conway teria preferido falar chinês, mas até então não dera a perceber que conhecia algum idioma oriental. Seria útil guardar umtrunfo. Escutou com ar sério as cortesias de Tchang eassegurou-lhe que dormira bem e sentia-se muito melhor.Exprimindo sua alegria ao ouvir isto, o chinês acrescentou:

 — É bem verdade o que diz o seu poeta nacional: "Osono desata a meada das preocupações".

 Não foi muito bem acolhida esta mostra de erudição.Mallinson retrucou com aquele toque de desprezo que todo jovem inglês de espírito são deve sentir à simples mençãoda poesia:

 — Suponho que o senhor se refira a Shakespeare,

ainda que não reconheça a citação. Mas sei de outra quediz: "Não esperes a ordem de partida, mas segue imediata-mente". Não quero ser descortês, mas é o que todos nósdesejaríamos fazer. E eu pretendo ir em procura dessescarregadores. . . esta manhã mesmo, se o senhor não temobjeções a fazer.

Recebeu o chinês este ultimato com ar impassível e

afinal respondeu: — Lamento dizer-lhe que isso de pouco serviria. Re-ceio que não tenhamos homens em condições e que este-

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 jam dispostos a acompanhá-los tão longe dos seus lares. — Mas, homem de Deus! Pensará, porventura, que

nos vamos conformar com esta resposta? — Estou sinceramente pesaroso, mas não posso dar 

outra. — Parece que o senhor assentou tudo isso durante a

noite — interpôs Barnard. — Ontem, não parecia tãoseguro do caso.

 — Não queria desanimá-los, visto que estavam tão

fatigados da viagem. Agora, após uma noite de descanso,espero que vejam a questão sob uma luz mais razoável.

 — Escute — acudiu Conway com vivacidade. — Este sistema de confusão de palavras vagas não adiantanada. O senhor sabe que não podemos ficar aqui indefini-damente. Também é claro que não podemos sair daquisozinhos. Sendo assim, que é que propõe?

Teve Tchang um sorriso luminoso, que era, evidente-mente, só para Conway.

 — Meu caro senhor, é um prazer apresentar a suges-tão que tenho em mente. Para a atitude do seu amigo nãohavia resposta, mas para a pergunta do homem avisadosempre há uma. Deve estar lembrado de que ontem alguémobservou — creio ter sido este mesmo seu amigo — que

não podemos deixar de ter comunicações eventuais com oexterior. Isto é exato. De quando em quando necessitamosde certos artigos de entrepostos distantes, e é nosso costu-me obtê-los no devido tempo. . . Não preciso importuná-losdescrevendo os métodos e formalidades que empregamos.O ponto capital é que uma dessas encomendas está por chegar em breve, e como os homens que fazem a entrega

voltam depois para o lugar de onde vieram, acho que osenhor poderá entender-se com eles. Realmente, não posso

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imaginar plano melhor, e espero que, quando chegarem. . . — E quando chegarão? — perguntou Mallinson

abruptamente. — Seria impossível, é claro, prever a data exata. Os

senhores mesmos têm experiência das dificuldades delocomoção nesta parte do mundo. Podem surgir cem moti-vos de atraso. . . a incerteza do tempo. . .

De novo interveio Conway. — Vamos tirar isto a limpo. O senhor sugere que

 podemos empregar como carregadores uns homens quedeverão estar aqui dentro de pouco tempo, com encomen-das. Não é má idéia, em si; mas nós precisamos saber maisalguma coisa. Primeiro, e conforme já lhe foi perguntado:quando esperam esses homens? Segundo: aonde nos leva-rão eles?

 — Esta pergunta deve ser feita a eles mesmos.

 — Quererão conduzir-nos à Índia? — É-me difícil dizê-lo. — Bem, vejamos então a resposta à outra pergunta.

Quando estarão aqui? Não peço uma data, apenas quero ter uma idéia — se poderá ser na semana próxima, ou para oano.

 — Talvez daqui a um mês. Provavelmente, não mais

que dois meses. — Ou três, quatro, cinco meses — interrompeu

Mallinson com calor. — E pensa que nós vamos esperar aqui por esse comboio ou caravana, ou o que quer queseja, para nos levar sabe Deus aonde, numa épocacompletamente vaga do distante futuro?

 — Penso, senhor, que a expressão "distante futuro"

não é muito apropriada. A não ser que sobrevenha algumcontratempo inesperado, a espera não será mais longa do

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que apontei. — Mas dois meses! Dois meses neste lugar! É

absurdo! Conway, você com certeza não pode conceber isso! Duas semanas devia ser o limite!

Cingindo as roupas ao corpo, num gesto de quem punha termo à discussão, disse Tchang:

 — Sinto muito. Não tinha intenção de ofender. Omosteiro continua a oferecer a todos os senhores o melhor de sua hospitalidade, por todo o tempo em que tiverem o

infortúnio de permanecer aqui. É só o que posso dizer. — Nem é preciso mais — retorquiu Mallinson,

furioso. — E se pensa que é senhor da situação, vai ver que está muito enganado! Havemos de arranjar quantoscarregadores quisermos, não se aflija! Pode fazer quantasmesuras, quantos rapapés quiser, pode dizer tudo o que lheaprouver. . .

Conway pousou-lhe a mão no braço, para contê-lo.Mallinson num acesso de ira parecia uma criança; eracapaz de dizer tudo o que lhe viesse à cabeça, sem guardar conveniências nem decoro. Achava Conway que era perdoável aquilo, numa pessoa da sua constituição e emtais circunstâncias; mas receava que as palavras do rapazferissem a suscetibilidade mais delicada de um chinês. Por 

fortuna, Tchang retirara-se, com um tato admirável, emtempo de escapar ao pior.

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CAPÍTULO V

Discutiram o assunto toda a manhã. Sem dúvida, eraum choque para quatro pessoas que, a seguir a vida o seu

curso ordinário, deviam estar àquela hora expandindo-senos clubes e missões de Peshawar, verem-se assimameaçadas de passar dois meses num mosteiro tibetano.Mas estava na natureza das coisas que o choque inicial dachegada lhes deixasse escassas reservas de indignação oude assombro; o próprio Mallinson, passada a primeiraexplosão, mergulhara numa espécie de perplexidade

fatalista. E nervoso, irritadiço, tirando baforadas docigarro, dizia:

 — Já não tenho forças para discutir, Conway. Vocêsabe o que eu penso. Tenho sempre dito que há algo deestranho nisto tudo. Aqui há marosca. Quem me dera ver-me longe disto já, já!

 — Não o censuro por isso. Infelizmente, não se trata

de saber se gostamos ou não, mas sim do que teremos desuportar. Francamente, se esta gente diz que não pode ounão quer fornecer-nos carregadores, nada nos resta senãoesperar até que venham os outros. Custa-me admitir queestejamos de mãos atadas, mas parece ser a verdade.

 — Quer dizer que teremos de ficar dois meses aqui? — Não vejo outro recurso.

Mallinson sacudiu a cinza do cigarro com um gesto deindiferença forçada e disse: — Muito bem, então. Sejam dois meses. E agora,

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vamos todos dar vivas! — Não sei por que haveria de ser pior que dois meses

em qualquer outra parte isolada do mundo — prosseguiuConway. — As pessoas de nosso ofício estão habituadas aandar por lugares esquisitos — creio que posso dizê-lo denós todos, não é? Certamente, não é agradável para os quetêm parentes e amigos. Por mim, sou feliz nesse ponto. Não sei de ninguém que se inquiete muito por minhacausa; quanto ao meu trabalho, seja qual for, poderá ser 

executado por outra pessoa.Voltou-se para os outros, como a convidá-los a expor 

sua situação. Mallinson não disse nada, mas Conway sabiaque ele tinha os pais e a noiva na Inglaterra. Era bastanteduro.

Barnard, por seu lado, aceitava aquela conjuntura como bom humor habitual.

 — Enfim, reconheço que tenho sorte; passar doismeses num presídio não dá para matar. Quanto à minhagente, não estranhará, porque sempre tive preguiça deescrever cartas.

 — Esquece que nossos nomes vão aparecer nos jor-nais — lembrou Conway. — Todos nós seremos dadoscomo desaparecidos, e naturalmente as suposições serão as

 piores.Por um momento, pareceu que o americano se sobres-saltara; depois replicou, com uma leve careta:

 — Ah! sim, é exato. Mas isso não me preocupa,acredite.

Alegrou-se Conway de que assim fosse, ainda que o ponto permanecesse um tanto duvidoso. Voltou-se para

Miss Brinklow, que até então observava um silêncio notá-vel. Não emitira opinião alguma durante a conferênciacom Tchang. Imaginou Conway que as suas inquietações

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 pessoais também fossem pequenas. — Como disse Mr. Barnard — começou ela alegre-

mente —, dois meses aqui não é coisa para a gente se inco-modar. Para quem está a serviço do Senhor, pouco impor-tam os lugares. A Providência me enviou aqui e consideroisso como um chamado.

Achou Conway que, naquelas circunstâncias, era umaatitude muito conveniente. E disse, em tom animador:

 — Estou certo de que a sua sociedade missionária vai

ficar muito satisfeita com a senhora, quando voltar. Poderá prestar informações muito úteis. O fato é que todos nóslevaremos daqui alguma experiência. Já é uma pequenaconsolação.

Generalizou-se então a conversa. Conway estavaadmirado da facilidade com que Barnard e Miss Brinklowse acomodavam à nova perspectiva. Isso lhe trazia também

certo alívio, pois o deixava apenas com um desgosto paraaturar. Mesmo assim, após o esforço despendido em tantasdiscussões, experimentava Mallinson certa reação. Ainda perturbado, mostrava-se contudo mais disposto a encarar as coisas pelo lado melhor.

 — Só Deus sabe o que encontraremos para nos ocu- par aqui!

Entretanto, o mero fato de fazer tal observação reve-lava que já ia procurando reconciliar-se com a situação. — A primeira coisa que temos a fazer — disse Con-

way — é evitar de aborrecermos uns aos outros. Feliz-mente parece haver aqui muito espaço, e o lugar não estáde modo algum superlotado. A não ser os criados, atéagora vimos somente um dos habitantes.

Barnard encontrava outro motivo de otimismo: — E não havemos certamente de morrer de fome, a julgar pelas amostras de refeições que tivemos até agora.

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Sabe, Conway? Não é com pouca despesa que se dirige umlugar assim. Aqueles banheiros, por exemplo — aquilocusta muito dinheiro. E, pelo que tenho visto, ninguémganha nada aqui, a não ser que aqueles tipos lá do vale te-nham algum trabalho; e mesmo assim, não podem produzir  bastante para exportar. Eu queria saber é se eles extraemalgum minério.

 — Tudo aqui é misterioso, que o diabo os leve! — replicou Mallinson. — Calculo que eles tenham panelas de

dinheiro enterradas, como os jesuítas. Quanto aos banhei-ros, devem ter sido presente de algum protetor milionário.Enfim, é assunto que não me há de preocupar, uma vezque me veja longe daqui. Devo dizer, contudo, que a vistaé bonita, a seu modo. Daria um belo centro de esportes deinverno, se fosse bem situado. Será que se pode andar deesqui em alguma daquelas ladeiras?

Deitando-lhe um olhar perscrutador e levementedivertido, respondeu Conway:

 — Ontem, quando encontrei alguns edelvais, vocême lembrou que não estávamos nos Alpes. Agora, chegou-me a vez de dizer o mesmo. Não o aconselharia a experi-mentar nenhuma de suas proezas de Wengen-Scheideggnesta parte do mundo.

 — Não creio que alguém aqui já tenha visto um saltode esqui. — Nem sequer uma partida de hóquei no gelo — 

replicou Conway, gracejando. — Você podia ver se orga-nizava alguns quadros. . . Que diz de "Cavalheiros versusLamas"?

 — Isso certamente lhes ensinaria o jogo — disse

Miss Brinklow com cintilante seriedade.Seria difícil aduzir algum comentário acertado; nãofoi, porém, necessário, pois que já ia ser servido o almoço,

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cuja natureza e oportunidade se combinavam para produzir excelente impressão. Mais tarde, quando apareceuTchang, não os encontrou dispostos a reencetar a discus-são. Com muito tato, o chinês fez de conta que ainda seachava em bons termos com todos, e os quatro exiladosaceitaram o convênio. Na verdade, quando lembrou quetalvez desejassem ver mais alguma coisa do mosteiro, eque a ser assim teria prazer em guiá-los, o oferecimentofoi muito bem acolhido.

 — Mas claro! — disse Barnard. — Podemos perfei-tamente dar uma vista d'olhos enquanto estamos aqui.Imagino que há de se passar muito tempo antes que algumde nós faça outra visita.

Miss Brinklow fez uma observação digna de nota. Aosaírem todos em seguimento de Tchang, murmurou:

 — Quando partimos de Baskul naquele avião, certa-

mente eu nem sonhava que viríamos ter a um lugar comoeste.

 — E até agora não sabemos por que viemos — acrescentou Mallinson, inexorável.

 Não tinha Conway preconceitos de raça nem de cor, eera por pura afetação que fingia às vezes, quando estava

em algum clube ou viajava em carro de primeira classe,dar especial valor à "brancura" de uma cara cor de lagostatendo ao alto um chapéu de cortiça. Esta maneira de proce-der livrava de muito incômodo, principalmente na Índia, eConway era exímio em se furtar a aborrecimentos. NaChina, porém, era menos necessária; tivera muitos amigoschineses e jamais lhe ocorrera idéia de tratá-los como a

inferiores. Portanto, ao conversar com Tchang, fazia-ocom bastante isenção de ânimo para ver nele um velhocavalheiro maneiroso, que talvez não fosse digno de

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inteiro crédito, mas que era, sem dúvida, dotado de grandeinteligência. Quanto a Mallinson, inclinava-se a ver ochinês através das grades de uma prisão imaginária; MissBrinklow mostrava-se viva e alegre, como sempre fazia aotratar com os pagãos na sua cegueira, ao passo que a bonomia mordaz de Barnard era da espécie que ele teriausado com um mordomo.

Entrementes, aquele giro pelos domínios de Shangri-Lá era bastante interessante para sobrepor-se a todas estas

atitudes. Não era sem duvida a mais vasta e, independen-temente da sua situação, a mais notável. Só aquele passeio por salas e pátios tomavam uma tarde inteira, embora eletivesse notado que muitos aposentos iam ficando semexame — edifícios inteiros, mesmo, em que Tchang não seofereceu para entrar com eles. Viram, entretanto, o sufi-ciente para confirmar as impressões já formadas. Barnard

estava mais certo que nunca de que os lamas eram ricos;Miss Brinklow descobriu abundantes evidências de imora-lidade. Mallinson, passada a primeira impressão de novi-dade, não se sentia menos fatigado do que em outrasexcursões de turismo, em altitudes mais baixas; e láconsigo achava que, muito provavelmente, não escolheriaos lamas para seus heróis.

Somente Conway se abandonava a um encantamento profundo e sempre crescente. Não era tanto alguma coisa particular que o atraía, como a gradual revelação deelegância, de gosto sóbrio e impecável, de uma harmoniatão delicada que parecia satisfazer o olhar sem o prender.Precisou fazer um esforço consciente para trocar a atitudedo artista pela do conhecedor, reconhecendo então tesou-

ros que museus e milionários teriam cobiçado: deliciosascerâmicas de Sung azul pérola, pinturas em coresesbatidas, conservadas por mais de mil anos, laças em que

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a fria e adorável minuciosidade de país de fadas era antesorquestrada do que pintada. Um mundo de incomparáveisrefinamentos ainda a tremular indeciso em porcelana everniz, proporcionando um instante de emoção antes de sediluir no mais puro pensamento. Não havia ali ostentação,não havia busca de efeito nem assalto concentrado aossentimentos do espectador. Aquelas delicadas perfeiçõestinham o ar de surgir no mundo a flutuar como pétalas caí-das de uma flor. Teriam enlouquecido um colecionador.

Mas Conway não era colecionador; faltavam-lhe odinheiro e o instinto aquisitivo. Seu gosto pela arte chinesaera puramente espiritual; num mundo em que aumentamincessantemente o ruído e a vastidão das coisas, ele volta-va-se, no íntimo, para os objetos delicados, precisos eminiaturais. E enquanto ia passando de sala em sala teveuma remota sensação de mágoa à idéia da imensidade do

Karakal, pairando sobre tão frágeis encantos.Tinha o mosteiro, contudo, mais o que mostrar do que

uma coleção de chinesices. Salientava-se ali, por exemplo,uma agradável biblioteca, alta e espaçosa, contendo umamultidão de livros tão discretamente agasalhados nos des-vãos e reentrâncias das paredes, que todo o ambiente eramais de critério que de erudição, mais de distinção que de

seriedade. Um rápido olhar deitado a algumas prateleirasrevelou a Conway muita coisa que admirar; ali se encon-trava, segundo parecia, a melhor literatura do mundo,assim como muita matéria curiosa e abstrusa, que ele não podia avaliar. Abundavam os volumes em inglês, francês,alemão e russo, e era imensa a quantidade de escritos emchinês e outras línguas orientais.

Uma seção que o interessou particularmente era dedi-cada a assuntos tibetanos; notou diversas raridades, entreas quais o  Novo Descobrimento do Grão Cathayo ou dos

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 Reinos de Tibet,  pelo Padre Antônio de Andrade (Lisboa,1626); China, de Athanasius Kircher (Antuérpia, 1667); aVoyage à la Chine des Pères Grueber et d'Orville, de The-venot; e a  Relazione Inédita di un Viaggio al Tibet, deBeligatto. Examinava este último quando notou o olhar deTchang fixo nele, com expressão de suave curiosidade.

 — É talvez um erudito?Achou difícil responder. Aqueles dois anos de magis-

tério em Oxford conferiam-lhe certo direito ao título;sabia, porém, que o termo — o mais altamente lisonjeirona boca de um chinês — tinha, para ouvidos ingleses, umaleve nota de pedantismo. E, mais em consideração aos seuscompanheiros do que por outra razão, tergiversou:

 — Gosto de ler, sem dúvida, mas meu trabalho nestesúltimos anos não me tem deixado muitos vagares para umavida de estudos.

 — Contudo, deseja-a? — Oh! não direi tanto, mas certamente reconheço os

seus atrativos.Mallinson, que pegara num livro, interrompeu o

diálogo: — Aqui está alguma coisa para a sua vida de estu-

dioso, Conway. É um mapa do país. — Nossa coleção contém várias centenas — disse

Tchang. — Estão todos à disposição dos senhores, mas tal-vez possa poupar-lhes algum trabalho. Não encontrarãoShangri-Lá assinalado em nenhum deles.

 — É curioso — comentou Conway. — Eu gostaria desaber por quê.

 — Há para isso uma boa razão. Mas, infortunada-mente, é tudo que posso dizer. 

Conway sorriu; Mallinson, porém, mostrou-se de

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novo impertinente.  — Aumenta o mistério. Até agora não vimos por aqui

nada que fosse necessário ocultar.De repente Miss Brinklow saiu do mudo estupor em

que a mergulhara o passeio processional. — O senhor não nos vai mostrar os lamas traba-

lhando? — perguntou, naquela voz aflautada que devia ter intimidado muito guia da agência Cook. Estava fora de dú-vida, além disto, que tinha o espírito cheio de visões nebu-

losas de ofícios nativos — tecedura de tapetes de oração,ou alguma coisa pitorescamente primitiva, de que pudessedar notícia quando tornasse à pátria. Tinha o extraordi-nário vezo de nunca se mostrar muito surpreendida, masde parecer sempre um tanto ou quanto indignada — umcomplexo que a resposta de Tchang em nada perturbou:

 — Sinto dizer que é impossível. Os lamas nunca — 

ou, diria melhor, somente raras vezes — são vistos por gente estranha ao mosteiro.

 — Vejo então que teremos de passar sem eles — concordou Barnard. — Mas é uma pena. Eu gostaria tantode apertar a mão do seu chefe!

Tchang recebeu a observação com benévola serieda-de. Miss Brinklow, porém, ainda não se dava por vencida.

E continuou: — Que é que os lamas fazem? — Devotam-se à contemplação, minha senhora, e à

 pesquisa da sabedoria. — Mas isso não é fazer alguma coisa!  — Então, minha senhora, não fazem nada. — Era o que eu pensava.

Depois desta resposta, encontrou ensejo parasumariar 

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 — Pois, Mr. Tchang, é um prazer, sem dúvida, ver todas estas coisas; mas o senhor não me convence de queum estabelecimento como este faça algum bem verdadeiro.Eu preferiria alguma coisa mais prática. 

 — Quem sabe se gostaria de tomar chá?A princípio Conway ficou em dúvida sobre se havia

nisto uma intenção irônica. Mas logo viu que se enganara;a tarde se escoara rapidamente e Tchang, a despeito da suafrugalidade, possuía aquele gosto típico dos chineses pelochá, que costumam tomar com freqüentes intervalos. MissBrinklow, por seu lado, confessou que as visitas a museuse galerias de arte sempre lhe causavam alguma dor decabeça. Todo o grupo concordou com a sugestão e foiseguindo Tchang por vários pátios, até darem com umacena inesperada, de beleza sem igual. Partindo de umacolunata, descia uma escadaria para um jardim, onde seencravava um lagozinho, alimentado por algum artifíciodelicado de irrigação. Abrigava ele tamanha quantidade delotos que as folhas, unidas na superfície, davam a impres-são de um pavimento de tijolos verdes e úmidos. Ao redor do lago, como uma franja, pousava uma coleção de leões,dragões e unicórnios de bronze — cada um apresentandouma ferocidade estilizada que não só não perturbava,senão que antes acentuava a paz ambiente. Tão perfeitaseram as proporções de todo o quadro que o olhar se moviasem pressa de um lado para outro; não havia ali emulaçãonem vaidade, e até o vértice do Karakal, que se elevava,incomparável, acima dos telhados azuis, parecia ter-seencaixado, submissamente, naquela moldura de arteconsumada.

 — Lindo recanto! — observou Barnard, enquantoTchang os conduzia a um pavilhão aberto, onde, para

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maior alegria de Conway, havia um cravo e um pianomoderno, de cauda.

 Na sua opinião, era em certo sentido a surpresa cul-minante de uma tarde assombrosa. Respondeu Tchang atodas as suas perguntas com perfeita lisura, até certo limi-te. Os lamas, explicou ele, tinham em alta estima a músicado Ocidente, em particular a de Mozart. Possuíam umacoleção de todas as grandes composições européias e al-guns deles eram hábeis executantes em vários instrumen-tos.

Foi o problema do transporte que mais impressionouBarnard.

 — O senhor quer dizer que este piano veio dar aqui pelo mesmo caminho que seguimos ontem?

 — Não há outro. — Apre! Isto agora é o mais extraordinário! Com um

gramofone e um rádio, ficava tudo completo! E daí, quemsabe se ainda não conhecem a música moderna?

 — Oh! sim. Temos tido notícias, mas também nosinformaram que as montanhas impossibilitam a recepçãoradiofônica; e, quanto ao gramofone, já foi apresentada asugestão às autoridades, mas não têm pressa de ultimar oassunto.

 — Isto eu acreditaria, mesmo que o senhor não medissesse — replicou Barnard. — Calculo que o lema dasua sociedade seja: "Não há pressa!"

Riu alto, e continuou: — Bem, descendo aos detalhes, suponhamos que os

seus chefes resolvam no devido tempo adquirir o gramofo-ne; como fazem então? Os fabricantes não hão de fazer aentrega aqui, isso é claro. Imagino que tenham um agenteem Pequim, Xangai, ou noutra parte qualquer; e aposto

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que tudo isso, quando lhes chega às mãos, já está custandoum montão de dinheiro!

Mas Tchang, como das outras vezes, não se deixouapanhar:

 — Suas conjeturas são muito argutas, Mr. Barnard,mas lamento não poder discuti-las.

E assim achavam-se de novo, refletia Conway, bei-rando o limite invisível entre o que podia e o que não podia ser revelado. Julgava poder dentro em brevecomeçar a delinear mentalmente essa fronteira, mas surgiuuma nova surpresa que veio adiar o assunto. Já traziam oscriados as taças de chá rescendente e, ao mesmo tempoque os tibetanos ágeis, de membros flexíveis, entrara quasesem ser notada uma jovem vestida de chinesa. Foi diretoao cravo e pôs-se a tocar uma gavota de Rameau. Afascinação das primeiras notas despertou em Conway um prazer que suplantava o assombro; aquelas argentinas áriasfrancesas do século dezoito pareciam refletir a elegânciados vasos de Sung, das lacas delicadas e do lago dos lotos.Envolvia-as aquela mesma fragrância que desafiava amorte, conferindo a imortalidade através de uma épocaalheia ao seu espírito. Foi só então que reparou naclavecinista. Tinha o nariz longo e delgado, as maçãs dorosto salientes, o palor de casca de ovo dos manchus; ocabelo negro, muito puxado para trás e trançado; pareciauma miniatura bem acabada. A boca era como um pequenoconvólvulo rosado e sua dona mantinha-se perfeitamenteimóvel — menos as mãos de longos dedos. Terminada agavota, fez uma pequena reverência e retirou-se.

Acompanhou-a Tchang com o olhar, sorrindo; depois,com certo ar de triunfo pessoal, voltou-se para Conway:

 — O senhor gostou?

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 — Quem é ela? — indagou Mallinson, antes queConway pudesse responder. 

 — Chama-se Lo-Tsen. Toca com muita habilidade asmúsicas ocidentais para instrumentos de teclado. Como eu,ainda não atingiu a iniciação completa.

 — Suponho que não, com efeito! — exclamou MissBrinklow. — Não parece mais que uma criança. . . Entãohá também mulheres lamas aqui?

 — Entre nós não há distinção de sexo. — Que coisa extraordinária este seu monastério — 

observou Mallinson altaneiramente, ao cabo de uma pausa.Continuaram a tomar o chá sem mais conversar.

Parecia que ainda vibravam no ar os ecos do cravo, exer-cendo um estranho encantamento.

Momentos depois, guiando-os à saída do pavilhão,ousava Tchang supor que o passeio os tivesse divertido.Respondendo pelos demais, Conway reciprocou com ele ascortesias de costume. O chinês disse da sua própria satisfa-ção e pediu-lhes que considerassem os recursos da biblio-teca e da sala de música inteiramente à sua disposição,enquanto ali estivessem. Agradeceu-lhe de novo Conway,com alguma sinceridade, e disse:

 — Mas e os lamas? Não se utilizam nunca dessassalas?

 — Eles cedem o passo, e com muita alegria, aos seusdistintos hóspedes.

 — Oh! aí está o que eu chamo verdadeira gentileza — acudiu Barnard. — E demais, isso prova que os lamassabem realmente que nós existimos. Já é um progresso,afinal ! Faz com que eu me sinta muito mais à vontade. Ocerto é que têm aqui uma bela instalação, Tchang, e aquelamenina toca muito bem piano. Que idade terá ela, eis o que

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eu queria saber. — Infelizmente, não lho posso dizer. — Não quer revelar o segredo da idade de uma

senhora, hem? — disse Barnard, rindo. — Exatamente — respondeu Tchang, com a remota

sombra de um sorriso.

 Naquela noite, depois do jantar, achou Conway um

meio de se apartar dos outros e saiu a passear pelos pátiostranqüilos, lavados de luar. Shangri-Lá estava lindo então,tocado pelo mistério que jaz no âmago de tudo que é belo. No ar frio e sereno, a imponente pirâmide do Karakal parecia mais próxima, muito mais próxima do que vista àluz do sol. Conway experimentava grande bem-estar físico, sentia os nervos repousados e o espírito tranqüilo,

mas mordia-lhe a inteligência — o que não é a mesmacoisa — boa dose de inquietude. Estava intrigado. Afronteira do mistério, que ele começara a delinear, fazia-semais definida, mas revelava agora um fundo inescrutável.Como que se focalizava diante dos seus olhos a série deestranhas aventuras em que ele e seus companheiroscasuais se viram envolvidos; não conseguia explicá-las por 

enquanto, embora estivesse certo de que tinhamexplicação.Caminhando ao longo de um dos claustros, atingiu o

terraço que se debruçava sobre o vale. Assaltou-o umaroma de angélicas, despertando delicadas associações; naChina, chamavam-lhe o "aroma do luar". Se o luar tivessetambém uma voz, fantasiou ele, bem poderia ser a gavota

de Rameau que ouvira naquela tarde; e esta idéia lhe guiouo pensamento para a jovem manchu. Não lhe ocorrera a possibilidade de existirem mulheres em Shangri-Lá. Não se

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costuma associar a presença destas à prática domonasticismo. Entretanto, refletiu, talvez não fosse umainovação desagradável; mais ainda, uma clavecinista podiaconstituir elemento valioso numa comunidade que se permitia ser, na expressão de Tchang, "moderadamenteherética".

Inclinou-se sobre a borda para contemplar o vazionegro-azulado. A profundidade era fantástica; nada menosde uma milha, talvez. Ser-lhe-ia permitido visitar o vale e

observar a civilização de que lhe haviam falado? Comoestudioso de história, interessava-o esse singular núcleo decultura, encravado entre montanhas desconhecidas egovernado por um vago sistema teocrático, sem esquecer os segredos curiosos, mal talvez com ele aparentados, doconvento lamaico.

De súbito, trazidos pela brisa, chegaram-lhe sons lá de

 baixo. Prestando atenção pôde distinguir gongos etrombetas e também (ou seria apenas imaginação?) olamento confuso de muitas vozes. Os sons vinham e se iamao sabor dos caprichos do vento. Mas os sinais de vida ede agitação naqueles velados abismos só serviam pararealçar a austera serenidade de Shangri-Lá. Seus claustrosdesertos e seus pálidos pavilhões mergulhavam num

repouso do qual parecia ter fugido toda vibração deexistência, deixando após si um silêncio que parecia deter a própria marcha dos instantes. Percebeu então, numa janela muito acima do terraço, a luz rosada de umalanterna; seria ali que os lamas se entregavam àcontemplação e à busca da sabedoria? Estariam nessemomento praticando as suas devoções? O problema

 parecia ter solução bem simples: era entrar pela primeira porta e explorar galerias e corredores até descobrir a ver-dade. Sabia, porém, que tal liberdade era ilusória e que

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todos os seus movimentos estavam sendo vigiados. Doistibetanos tinham atravessado silenciosamente o terraço,aproximando-se do parapeito. Davam a impressão de indi-víduos bem-humorados, cobrindo negligentemente os om- bros nus com as capas coloridas. Elevou-se de novo orumor de gongos e trombetas, e Conway ouviu um dos ho-mens interrogar o companheiro. A resposta foi:

 — Eles sepultaram Talu.Conway, cujos conhecimentos de tibetano eram muito

superficiais, esperou que a conversa continuasse; aquelas palavras soltas não lhe revelavam quase nada. Depois deuma pausa, o interrogador, cuja voz era inaudível, reatou aconversação, recebendo respostas que Conway apanhou e.interpretou aproximadamente, como segue: 

 — Morreu fora do vale.  — Obedeceu às autoridades de Shangri-Lá.  — Veio pelo ar, por sobre as altas montanhas,

carregado por um grande pássaro.  — Também trouxe forasteiros consigo.  — Talu não temia o vento nem o frio dos espaços. — Embora tenha partido há muito tempo, o vale da

Lua Azul lembra-se dele ainda. Nada mais foi dito que Conway pudesse entender, e

após alguns minutos de espera voltou para o seu aposento.Ouvira, contudo, o suficiente para encontrar mais umachave do mistério, e esta chave ajustava-se tão bem que seadmirou de não a haver obtido por suas próprias deduções. Na verdade, isso lhe tinha passado pelo espírito, mas acha-ra-o tão absurdo e fantástico que não lhe dera acolhida.Agora via bem que o que lhe parecera fantástico e absurdo

tinha de ser aceito. Aquele vôo de Baskul para as monta-nhas não fora a façanha gratuita de um louco. Tinha sido planejado, preparado e posto em execução por ordem de

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Shangri-Lá. Os habitantes do vale conheciam pelo nome o piloto morto; tinha sido um deles, e lamentavam-lhe amorte. Tudo indicava a existência de uma mentalidadesuperior e dirigente, empenhada em realizar os seus pró- prios desígnios. Havia, por assim dizer, como que umúnico arco de intenção abarcando todas as inexplicáveishoras e distâncias. Qual era, porém, essa intenção? Por querazão concebível quatro passageiros quaisquer tinham sidotransportados, num avião do governo britânico, para estas

solidões de além-Himalaia?O problema causava leve terror a Conway, mas de

modo algum o aborrecia. Era um desafio e tomava a únicaforma sob a qual ele era sensível a desafios: apelando paracerta lucidez de raciocínio que só pede uma tarefa digna desi. Uma coisa decidiu desde logo: a emoção da descobertanão devia ser ainda comunicada, nem aos seus companhei-

ros, que em nada o poderiam ajudar, nem aos seus hospe-deiros, os quais seguramente não desejariam prestar-lheauxílio.

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CAPÍTULO VI

 — Há gente que tem se acostumado com lugares pio-res do que este — observava Barnard no fim da primeira

semana passada em Shangri-Lá; era, sem dúvida, uma dasmuitas lições que estavam aprendendo. Já se haviam afeitoa certa rotina cotidiana e graças a Tchang o tédio não eramaior do que em muita temporada de férias. Todos esta-vam aclimatados à altitude e sentiam-lhe a açãorevigorante, uma vez que evitassem todo exercíciodemasiado. Aprenderam que os dias eram tépidos e as

noites frias, que o mosteiro era quase completamenteresguardado dos ventos, que as avalanchas do Karakal setornavam mais freqüentes por volta do meio-dia, que ovale produzia excelente fumo, que certos alimentos e bebidas eram mais saborosos do que outros, e que cada umdeles mesmos tinha os seus gostos e idiossincrasias. Defato, haviam descoberto muita coisa acerca uns dos outros,

qual se fossem quatro novos alunos duma escola, de ondetodos os demais houvessem desaparecido misteriosamente.Tchang era incansável nos seus esforços para aplainar dificuldades. Organizava excursões, sugeria quefazeres,recomendava livros, falava com aquela sua fluência lenta ecuidadosa sempre que se produzia um silêncioconstrangedor durante as refeições e era sempre benévolo,

cortês e fértil em recursos. Era tão bem demarcado o limiteentre as informações prestadas de boa vontade e as que elerecusava polidamente, que a recusa já não causava

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ressentimento — salvo, por vezes, em Mallinson. Conwaycontentava-se em tomar nota, acrescentando mais umelemento à série de observações que ia constantementeacumulando. Barnard até caçoava com Tchang, de acordocom as maneiras e tradições rotarianas do Middle-West.

 — Fique sabendo, Tchang, que isto aqui é um pés-simo hotel. Nunca recebem jornal algum! Eu trocaria todosos livros da sua biblioteca pelo Herald-Tribune de hoje.

As respostas de Tchang eram sempre sérias, con-

quanto isto não fosse prova de que ele levasse a sério todasas perguntas:

 — Temos a coleção do Times, Mr. Barnard, até al-guns anos atrás. Mas, sinto dizê-lo, somente o Times deLondres.

Alegrou-se Conway por saber que o vale não lhes erainterdito, se bem que as dificuldades da descida tornassem

impossíveis as visitas sem escolta. Acompanhados por Tchang, passaram quase todo um dia percorrendo a pradaria verde, tão encantadora vista do alto do penhasco,e para Conway, ao menos, a excursão foi de absorventeinteresse. Viajavam em cadeirinhas de bambu, balançando-se perigosamente por cima de precipícios, enquanto oscarregadores, à frente e atrás, iam descuidosamente pelo

íngreme caminho. Não era um caminho para pessoas denervos delicados, mas, quando afinal alcançaram os planosmais baixos das florestas e colinas basilares, patenteou-se por toda parte a suprema boa fortuna dos lamas do mostei-ro. Era o vale nada menos que um paraíso fechado, deassombrosa fertilidade, onde a diferença de nível de algu-mas centenas de metros abrangia toda a distância que se-

 para o clima temperado do tropical. Plantações extraordi-nariamente variadas cresciam em profusão, umas ao pé das

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outras, sem que ficasse inaproveitada sequer uma polegadade terra. A área cultivada media talvez umas doze milhas,variando a largura de uma a cinco milhas, e, embora estrei-ta, tinha a ventura de receber sol durante as horas maisquentes do dia. A atmosfera, aliás, era agradavelmentetépida mesmo à sombra, mas eram frigidíssimos os cursosde água que desciam das neves da montanha. Conwaysentiu de novo, ao contemplar o portentoso paredão derocha, que um soberbo e sutil perigo envolvia a paisagem;

não fosse alguma barreira fortuita, e o vale inteiro seriaevidentemente um lago, alimentado pelas elevaçõesglaciais que o cercavam. Ao invés disto, sulcavam o soloumas poucas torrentes, enchendo reservatórios e irrigando prados e culturas com disciplinada regularidade, como sefossem obra de um engenheiro hidráulico. Toda essa redetinha uma disposição incrivelmente feliz — contanto que a

estrutura que a emoldurava não desmoronasse por força dealgum tremor de terra ou desabamento!

Mas essas vagas ameaças de cataclismo futuro sóconseguiam dar maior realce à beleza do presente. Maisuma vez Conway sentia-se cativado pelas mesmas qualida-des de engenho e graça que haviam feito dos anos vividosna China os mais ditosos de sua existência. O vasto maci-

ço, em torno, formava perfeito contraste com os pequeni-nos relvados e jardins expurgados de ervas, com as colori-das casas de chá à beira do regato e com as habitações tãoleves que pareciam de brinquedo. Afiguraram-se-lhe oshabitantes uma mescla feliz das raças chinesa e tibetana;eram mais claros e tinham mais belas feições do que ocomum de um e outro povo, e pareciam ter sofrido pouco

com os efeitos da endogamia inevitável numa sociedadetão limitada. Riam ou sorriam para os estrangeiros que passavam nas cadeirinhas e diziam uma palavra amiga a

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Tchang. Eram bem-humorados e levemente curiosos,corteses e despreocupados, ocupados em inúmerosmisteres, mas sem nenhum sinal de pressa. De um modogeral, Conway achou-os uma das mais felizescomunidades que já vira, e até Miss Brinklow, sempre deolho atento a qualquer sintoma de degradação paga, tevede reconhecer que tudo tinha muito boa aparência, "nasuperfície". Sentiu alívio ao constatar que os nativosestavam "completamente" vestidos, muito embora as

mulheres usassem calças chinesas, justas no tornozelo, e oexame meticuloso a que submeteu um templo budistaapenas revelou uns poucos objetos de duvidosasignificação fálica. Explicou Tchang que o templo tinhasacerdotes próprios, submetidos à fiscalização poucoexigente de Shangri-Lá, conquanto não pertencessem àmesma ordem. Disse que havia ainda na extremidade do

vale um templo taoísta e outro dedicado a Confúcio. — O brilhante tem numerosas facetas — acrescentou

 — e é possível que muitas religiões sejam moderadamenteverdadeiras.

 — Concordo consigo neste ponto — disse Barnard,com convicção. — Nunca aprovei rivalidades sectárias.Tchang, você é um filósofo. Hei de guardar na lembrança

essa sua frase: "Muitas religiões são moderadamenteverdadeiras". Imagino que vocês lá em cima devam ser unsgrandes sábios, para terem descoberto tal coisa. E têmrazão, disto estou absolutamente certo.

 — Mas nós — respondeu Tchang com ar sonhador  — estamos apenas moderadamente certos.

Miss Brinklow não deu importância a estas coisas,

que lhe pareciam ser apenas sinais de indolência. Preocu- pava-se, todavia, com uma idéia que lhe viera ao espírito.

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 — Quando regressar — articulou com os lábiosapertados —, pedirei à minha sociedade que mande ummissionário aqui. E se alegarem as despesas, teimarei comeles até que concordem.

Isto, sem dúvida, revelava um espírito muito maissão, e até Mallinson, que simpatizava pouco com asmissões estrangeiras, não pode conter a sua admiração.

 — Deviam enviar a senhora. Isto é, se um lugar assim lhe agradasse, naturalmente.

 — Não se trata de saber se agrada ou não — retorquiu Miss Brinklow. — Como poderia alguém gostar disto aqui? Mas trata-se de um dever a cumprir.

 — Creio — disse Conway — que, se eu fosse missio-nário e tivesse de escolher, preferiria este lugar a muitos.

 — Neste caso — atalhou Miss Brinklow —, é evi-dente que não haveria mérito algum.

 — Mas eu não estava pensando no mérito. — Maior lástima, então. Não há virtude em fazermos

uma coisa porque nos agrada. Veja este povo aqui! — Parecem ser muito felizes. —  Exatamente — respondeu ela, com certa violência.

E continuou: — Em todo caso, não vejo razão para quenão comece desde já por aprender a língua. Podeemprestar-me algum livro de estudo, Mr. Tchang?

Tchang assumiu o seu ar mais melífluo. — Mas certamente, minha senhora, com o maior 

 prazer. E se me permite dizê-lo, acho a idéia excelente. Nessa mesma tarde, quando subiram para Shangri-Lá,

tratou o assunto como sendo de importância imediata. A princípio, Miss Brinklow intimidou-se um pouco diante domaciço volume compilado por um laborioso alemão doséculo XIX — imaginara, provavelmente, uma obra mais

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leve, uma espécie de O Tibetano sem Mestre  —, mas, como auxílio do chinês e encorajada por Conway, atacou reso-lutamente a tarefa e não tardou a tomar-lhe gosto. 

Conway, por seu lado, encontrava muita coisa em quese interessar, afora o avassalante problema que impusera asi mesmo. Durante os dias tépidos de sol dedicou-se à biblioteca e à sala de música, confirmando-se nele a

impressão de que a cultura dos lamas era deverasexcepcional. Em todo caso, o seu gosto em matéria delivros era universal; Platão em grego vizinhava com Ornar Khayyam em inglês; Nietzsche era companheiro de Newton; encontravam-se ali Thomas Moore, bem comoHannah Moore, George Moore e até o velho John Moore.Calculou o número total de volumes entre vinte ou trinta

mil; e era interessante fazer conjeturas sobre o sistema deseleção e aquisição. Procurou também descobrir de quandodatavam as últimas aquisições; nada achou, contudo, maisrecente que uma edição barata de  Im Westen nichi Neues.Todavia, durante uma visita subseqüente, disse-lhe Tchangque haviam chegado outros livros publicados até meadosde 1930, e estes a seu tempo viriam para as estantes.

 — Como vê, estamos razoavelmente em dia — acrescentou. — Certas pessoas dificilmente concordariam com o

senhor — respondeu Conway sorrindo. — Como sabe, deum ano para cá ocorreu muita coisa no mundo. 

 — Nada de importância, meu caro senhor, que não pudesse ter sido previsto em 1920 ou que não possa ser 

melhor compreendido em 1940. — Não lhe interessam então os aspectos maisrecentes da crise mundial?

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 — Interessar-me-ão profundamente. . . no devidotempo.

 — Sabe, Tchang, que estou começando a compreen-dê-los? São constituídos de maneira diferente, aí está; paraos senhores, o tempo tem muito menos importância do que para a maioria das pessoas. Se eu estivesse em Londres,nem sempre me interessaria um jornal da hora, assimcomo aqui, em Shangri-Lá, não têm grande ansiedade deler um jornal do mesmo ano. Ambas as atitudes me

 parecem perfeitamente assisadas. Por falar nisso, háquanto tempo não aparecem visitantes aqui?

 — Infelizmente, Mr. Conway, não lho posso dizer.Era o costumeiro ponto final na conversa, e Conway o

achava menos irritante do que o fenômeno oposto, quemuito o fizera sofrer no seu tempo — a conversa que, por mais que a gente deseje, parece nunca ter fim. Começou a

afeiçoar-se a Tchang, à medida que os seus colóquios semultiplicavam, embora estranhasse encontrar tão poucas pessoas no convento; mesmo na suposição de que os lamasfossem inacessíveis, não haveria outros aspirantes além deTchang?

Havia, sem dúvida, a jovem manchu. Via-a de vez emquando na sala de música; ela, porém, não sabia inglês e

Conway até então não quisera revelar os seus conheci-mentos de chinês. Não poderia dizer se ela tocava unica-mente por prazer ou se de fato estudava. Sua música, comoaliás todo o seu procedimento, era refinadamente conven-cional, e escolhia sempre peças já consagradas — ascomposições de Bach, Corelli, Scarlatti e por vezesMozart. Preferia o cravo ao piano, mas quando Conway se

sentava ao piano escutava-o com atenção séria e quaseobediente. Era impossível saber o que tinha na mente; difí-cil adivinhar-lhe a idade. Duvidava que tivesse mais de

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trinta ou menos de treze anos; e contudo — coisa curiosa — nenhuma dessas improbabilidades manifestas podia ser eliminada como totalmente impossível.

Mallinson, que vinha às vezes ouvir música na faltade ocupação melhor, via nela um desnorteante problema.

 — Não posso saber o que essa pequena faz aqui — disse a Conway mais de uma vez. — Esta vida de mosteiro pode ser muito boa para um velho como Tchang; mas queatrativo oferece a uma moça? Quisera saber há quanto

tempo está aqui. — Esta mesma pergunta tenho feito a mim mesmo,

mas é uma coisa que jamais saberemos, decerto. — Você acredita que lhe agrade isto aqui? — Sou forçado a dizer que ao menos não parece

desagradar-lhe. — Dá a impressão de "não ter sentimentos de espécie

alguma, se formos a isso. Mais parece uma boneca de mar-fim do que um ser humano.

 — Uma encantadora semelhança, em todo caso. — Sim, até certo ponto.Conway sorriu. — E pensando bem, Mallinson, é o quanto basta.

Afinal de contas, a boneca de marfim tem boas maneiras,

 bom gosto no vestir, aspecto atraente, toca cravo commãos de fada e não anda numa sala como se estivesse jogando hóquei. Na Europa ocidental, se bem me lembro,não é comum encontrar essas virtudes reunidas numamulher.

 — Você é terrivelmente cínico no que toca às mulhe-res, Conway.

Conway estava habituado à acusação. Na realidadetivera muito pouco contato com o outro sexo, e durante asocasionais licenças nos postos de montanha, na Índia, a

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reputação de cínico era tão fácil de manter como qualquer outra. É verdade que havia mantido algumas deleitosasamizades com mulheres, que de bom grado casariam comele se as tivesse pedido em casamento — mas não as pedi-da. Certa vez, foi quase ao ponto de anunciar no  Morning  Post, mas a moça não queria viver em Pequim, nem ele emTunbridge Wells, mútuas relutâncias que foi impossívelvencer. Sua experiência com as mulheres tinha sidofortuita, intermitente e de certo modo inconclusiva. Mas,

com tudo isso, não era cínico a respeito delas. — Eu tenho trinta e sete anos — disse rindo — e

você tem vinte e quatro. Nisso consiste toda a diferença.Houve uma pausa e Mallinson perguntou de repente: — A propósito, que idade você dá a Tchang? — Qualquer — respondeu Conway sem hesitar — 

entre quarenta e nove e cento e quarenta e nove.

Tais conjeturas, entretanto, eram muito menos dignasde confiança do que outras informações ao alcance deles.O fato de nem sempre lhes ser satisfeita a curiosidadetinha por efeito obscurecer a quantidade realmente grandede dados que Tchang estava sempre disposto a fornecer.

Por exemplo, não se faria nenhum segredo em torno dosusos e costumes da população do vale, e Conway, queestava interessado em conhecê-los, obteve informaçõesque dariam para compor uma boa tese de formatura. Comoestudioso de política, interessava-lhe principalmente aforma por que era governado o vale. Vigorava ali, segundoconstatou, numa espécie de autocracia bastante folgada e

elástica, exercida pelo mosteiro com uma benevolênciaquase negligente. Era um regime bem sucedido e muitosólido, como ele tinha ocasião de verificar cada vez que

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descia àquele fértil paraíso. Intrigava-o o problema damanutenção da lei e da ordem, pois não parecia haver  polícia nem soldados. Contudo, devia por certo existir ummeio de reprimir os incorrigíveis. A isto respondia Tchangque o crime era muito raro, em parte porque só seconsideravam tais as faltas graves, e também em parte porque cada um possuía em quantia suficiente tudo o que pudesse desejar. Em último caso, os servidores domosteiro tinham o poder de expulsar do vale os infratores

 — se bem que este castigo, tido como extremo e terrível,fosse aplicado apenas de longe em longe. Mas o fator  principal no governo do vale da Lua Azul, disse Tchang,era a preconização das boas maneiras, fazendo-se sentir às pessoas que certas coisas "não se fazem" porquedesqualificam quem as comete.

 — É o mesmo sentimento que se inculca nas escolas

 públicas do seu país — disse Tchang —, mas não, receio,com relação às mesmas coisas. Por exemplo, os habitantesdo nosso vale cultivam o sentimento de que não se deveser hostil aos forasteiros, discutir com acrimônia ou querer sobressair-se um ao outro. A simples idéia de divertir-secom o que os mestres de suas escolas chamam a guerrasimulada dos jogos esportivos lhes pareceria um

 barbarismo, uma excitação indecorosa dos instintosinferiores.

Indagou Conway se não disputavam por causa demulheres.

 — Só muito raramente, pois não consideramdecoroso tomar uma mulher desejada por outro homem.

 — Mas suponhamos que um homem desejasse uma

mulher a tal ponto que pouco lhe importasse o decoro? — Então, meu caro senhor, seria o caso de o outro

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lhe ceder, e quanto à mulher, as boas maneiras lhe aconse-lhariam aceitar a situação. O senhor se admiraria de ver como uma pequena dose de cortesia por parte de todosfacilita a solução dessa sorte de problemas.

 Na verdade Conway, em suas visitas ao vale, encon-trava um espírito de boa vontade e contentamento que lhecausava tanto mais prazer porque, de todas as artes, sabiaser a do governo a que menos fora estudada e aperfeiçoadaaté o presente. Entretanto, quando ele fez uma observaçãoelogiosa sobre este ponto, Tchang replicou:

 — Sim, mas como sabe, nós acreditamos que paragovernar com perfeição é necessário não governar emdemasia.

 — E contudo não possuem nenhuma instituiçãodemocrática, como o voto, por exemplo?

 — De modo algum. Nossa gente não gostaria de ser forçada a apoiar uma política qualquer, considerada abso-lutamente boa, em detrimento de outra, tida como absolu-tamente má.

Conway sorriu. Simpatizava com este ponto de vista.

Entrementes, Miss Brinklow encontrava satisfação noestudo do tibetano, Mallinson impacientava-se e resmun-gava, e Barnard persistia numa equanimidade que não dei-xaria de ser notável, ainda que fosse apenas simulada.

 — Para dizer a verdade — observou Mallinson umdia —, o bom humor do sujeito está começando a mexer-me com os nervos. Compreendo que se esforce por encarar as coisas com calma, mas irritam-me esses gracejos a res- peito de tudo. Se não tomarmos cuidado com ele, dentroem pouco estará feito a alma e a vida do nosso grupo.

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Conway também se admirava da facilidade com que oamericano se aclimatara. E respondeu:

 — Não lhe parece que é uma felicidade para nós eleter tão bom gênio?

 — Pessoalmente, acho isso muito esquisito. Que sabevocê a respeito desse cidadão, Conway? Quem é ele e oque faz?

 — Não sei muito mais do que você. Disseram-meque tinha vindo da Pérsia, onde andava à procura de petró-

leo. É de seu natural levar as coisas em troça. Quando foida evacuação, custou-me convencê-lo de que era precisovir conosco. Só se decidiu quando eu lhe disse que um passaporte americano não servia de escudo contra as balas.

 — Por falar nisso, você viu alguma vez o tal passaporte?

 — Provavelmente vi, mas não me lembro. Por quê?

Mallinson pôs-se a rir. — Talvez não lhe pareça bem, mas a culpa não foi

minha propriamente. Além disso, dois meses de convívioneste lugar terão de pôr à mostra todos os nossos segredos,se é que os temos. Note que foi simples acaso e eu nãocontei nada a ninguém, está visto. Não tencionava falar nem mesmo a você, mas já que tocamos no assunto.. .

 — É lógico. Mas eu desejaria saber de que se trata. — Simplesmente isto: Barnard viaja com um passa- porte falso e o seu nome não é Barnard.

Conway ergueu as sobrancelhas com um interessemedíocre. O homem lhe era simpático até certo ponto, masnão lhe importava muito saber quem era e quem não era.

 — Quem pensa você que ele possa ser, então?

 — É Charmers Bryant. — Ora esta! Que é que o leva a pensar semelhantecoisa?

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 — Esta manhã deixou cair um livrinho de bolso eTchang entregou-mo, pensando que era meu. Não pudedeixar de ver que estava abarrotado de recortes de jornal.Alguns caíram no chão enquanto eu examinava o livrinho,e não se me dá de confessar que olhei para eles. Afinal decontas, recortes de jornais não são papéis particulares!Todos tratavam de Bryant e das diligências da polícia paraencontrá-lo, e um deles traz um retrato que é Barnard em pessoa, só com a diferença de ter bigode.

 — Mencionou isso a Barnard? — Não. Apenas lhe entreguei o objeto, sem nenhum

comentário. — De modo que tudo se baseia numa fotografia de

 jornal, identificada por você? — Sim, até agora é tudo. — Creio que eu não me atreveria a condenar alguém,

 baseado em tão pouco. Naturalmente, é possível que vocêtenha razão. Não afirmo que ele não possa ser Bryant,tanto mais que esse fato explicaria a sua satisfação em per-manecer aqui; com efeito, onde encontrar melhor esconde-rijo?

Mallinson pareceu levemente decepcionado com aserenidade do companheiro ante uma notícia que ele julga-

va sensacional. — Então, que é que você pretende fazer a respeito?Refletiu Conway um instante e respondeu: — Não sei exatamente o que se possa fazer. Talvez

nada. Em fim de contas, que se poderá fazer num casocomo este?

 — Mas, com o demônio, se ele é o tal Bryant. . .

 — Meu caro Mallinson, mesmo que se tratasse de Nero em pessoa, que importância teria isso no momento?Santo ou bandido, temos de suportar-lhe a companhia

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enquanto continuarmos aqui, e nada adianta tomar atitu-des. Se estivéssemos em Baskul, eu procuraria comunicar-me com Delhi a seu respeito. Seria um simples dever  público. Mas presentemente creio poder dizer que nãoestou de serviço.

 — Não lhe parece que há nisso certa dose deincúria?

 — Pouco me importa que haja, contanto que a atitudeseja razoável.

 — Deseja que eu esqueça o que descobri? — Provavelmente isso não lhe é possível, mas penso

que devemos guardar segredo sobre o fato. Não em consi-deração a Barnard ou Bryant, ou quem quer que seja, mas para evitarmos uma situação extremamente embaraçosa,quando nos formos daqui.

 — Quer dizer que devemos deixá-lo em liberdade?

 — Bem, eu me exprimiria de outro modo: acho quedevemos dar a outro o prazer de prendê-lo. Quando seviveu em boas relações com um homem por alguns meses, parece um tanto absurdo metê-lo em algemas tão depressase muda de lugar.

 — Não penso assim. Esse homem não passa de umladrão em grande escala. Conheço muitas pessoas que

foram roubadas por ele.Conway deu de ombros. Não deixava de admirar osimples código de Mallinson, todo em preto e branco. Essaética de escola pública pode ser rudimentar, mas ao menosé direita e franca. Quando um indivíduo viola as leis, éobrigação de todos os cidadãos que as respeitam deitar-lhea mão e entregá-lo à justiça — sempre na hipótese de se

tratar de uma dessas leis que não é permitido violar. E a leirelativa a cheques sem fundo, ações e balanços falsos ésem dúvida uma delas. Bryant a havia transgredido, e se

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 bem que Conway não tivesse tomado grande interesse nocaso, tinha a impressão de que fora dos mais escabrosos.Tudo que sabia era que a falência da gigantesca empresaBryant em Nova York causara prejuízos que montavam acerca de cem milhões de dólares — uma quebra-recorde,mesmo num país onde pululam os recordes. De umamaneira ou de outra (Conway não era entendido emfinanças), Bryant fizera trampolinagens em Wall Street e oresultado fora uma ordem de prisão contra ele, sua fuga

 para a Europa e pedidos de extradição dirigidos a meiadúzia de países.

 — Bem, se você quer ouvir o meu conselho — disseConway finalmente —, não diga nada por enquanto. Nãoem benefício dele, mas no nosso. Em todo caso, faça comoentender, contanto que não esqueça a possibilidade de nãoser ele o homem, afinal.

Mas era, e a revelação veio naquela mesma noite apóso jantar. Tchang se retirara. Miss Brinklow voltara à suagramática tibetana e os outros três exilados se defronta-vam, fumando charutos e sorvendo cafezinhos. Não fossea amabilidade e o tato do chinês, a conversação teria esmo-recido mais de uma vez durante a refeição. Ausente ele, penoso silêncio sobreviera. Pela primeira vez não estava

Barnard para gracejos. Bem sabia Conway que não era possível a Mallinson tratar o americano como se nada hou-vera acontecido, e era do mesmo modo evidente que Bar-nard percebia ter-se passado alguma coisa.

Súbito, o americano jogou fora o charuto e disse: — Suponho que os senhores saibam quem sou.Ficou Mallinson vermelho como uma virgem, mas

Conway respondeu com a mesma serenidade: — Sim, Mallinson e eu julgamos saber. — Imperdoável descuido, ter deixado cair aqueles

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recortes. — Todos nós estamos sujeitos a cometer descuidos. — Ainda bem que toma a coisa com calma!Houve novo silêncio, quebrado afinal pela voz aguda

de Miss Brinklow. — Quanto a mim, não sei quem é o senhor, Mr.

Barnard, mas devo dizer que suspeitei que estivesseviajando incógnito.

Miraram-na os outros interrogativamente e ela conti-

nuou: — Lembro-me de que, quando Mr. Conway disse que

os nossos nomes iriam aparecer nos jornais, o senhor respondeu que isso não o afetava nem um pouco. Refletientão que com certeza Barnard não era o seu verdadeironome.

O aventureiro sorriu vagarosamente enquanto acendia

outro charuto. — A senhora — disse afinal — não só mostra ser um

 bom detetive, como também encontrou um termoverdadeiramente polido para designar a minha situação presente. Estou viajando incógnito. A senhora o disse, e éverdade. Quanto aos amigos, não lamento, em certo senti-do, que tenham descoberto tudo. Enquanto não descon-

fiavam de nada as coisas marchavam bem, mas em vista dasituação em que nos achamos seria falta de camaradagemengrimpar-me com os senhores agora. Foram tão gentis para mim que não lhes quero dar incômodos. Pelo modo,os nossos destinos estão ligados por algum tempo, e con-vém que cada um faça o possível para ajudar os outros.Quanto ao que vier a acontecer depois, podemos deixar 

que tudo se resolva por si mesmo, acho eu.Tudo isto se afigurou a Conway tão altamente sensatoque passou a olhar Barnard com muito mais interesse e até

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 — embora parecesse talvez estranho em tal momento — com um toque de genuína admiração. Era curioso pensar que esse homem, grande e corpulento, bem-humorado, deexpressão paternal, era o mais formidável escroque domundo. Mais aparentava o tipo de indivíduo que, comcerta instrução, daria um excelente diretor de liceu. Sob asua jovialidade vislumbravam-se os sinais de tensãonervosa e recentes preocupações, mas nem por isso ela parecia forçada. Evidentemente, era o que o mundo chama

"um bom sujeito" — cordeiro por natureza, e só por  profissão um lobo.

 — Sim, penso que é o melhor que temos a fazer — disse Conway.

Barnard pôs-se a rir. Era como se possuísse reservasmais profundas de bom humor, às quais somente agora pudesse dar vazão.

 — Caramba, que coisa extraordinária! — exclamou,estirando-se na cadeira. — Refiro-me a toda essa história.Atravessei a Europa, passei pela Turquia e pela Pérsia evim parar naquele buraco. E todo o tempo com a políciano meu encalço, notem bem... por pouco não me apanha-ram em Viena! A princípio é bastante divertido estar sendo perseguido, mas cansa os nervos depois de algum tempo.

Afinal descansei um pouco em Baskul, e ali pensei queficaria em paz no meio da revolução. — Por certo que ficaria — aparteou Conway, com

um sorriso —, se não fossem as balas. — Sim, e foi isso que acabou por me inquietar.

Podem crer que foi uma escolha bem difícil: ficar em Bas-kul e correr o risco de levar chumbo, ou embarcar num

avião do seu governo e encontrar um par de algemas àminha espera, na chegada. Não tinha muita vontade defazer nem uma nem outra coisa.

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 — Sim, lembro-me de que não queria vir.Barnard tornou a rir. — Bem, pois foi assim, e como bem podem imaginar,

não me contrariou muito o acidente que nos trouxe aqui.Esse vôo continua a ser um mistério de primeira ordem,mas para mim, falando pessoalmente, não poderia haver coisa melhor. Não tenho o hábito de me queixar quandoestou satisfeito.

O sorriso de Conway fez-se mais acentuadamente

cordial. — Uma atitude muito razoável, se bem que me pare-

ça ter exagerado um pouco. Estávamos começando a ficar intrigados com o seu contentamento excessivo.

 — Estava de fato contente. Este lugar não é mau,uma vez que a gente se acostume a ele. É verdade que o ar é um pouco picante a princípio, mas não se pode ter tudo

como se quer. E, para variar, é muito sossegado. Todos osoutonos vou fazer uma cura de repouso em Palm Beach,mas a gente não encontra descanso nesses lugares. Conti-nua-se na mesma roda-viva. Ao passo que estou certo deter achado aqui justamente o que o médico me aconse-lhava, e me sinto radiante. Mudei de regime, não me preo-cupo com as cotações da bolsa e o meu corretor não me

 pode chamar ao telefone. — Bem que ele deve desejar fazê-lo! — Não duvido. Há de estar com uma boa bota para

descalçar!Disse isto com tanta simplicidade que Conway não

 pôde deixar de responder: — Não sou muito entendido nisso que se chama a

alta finança.Era uma deixa, e o americano a apanhou semrelutância.

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 — A alta finança — disse ele — é quase tudofarolagem.

 — É o que tenho suspeitado muitas vezes. — Olhe, Conway, dir-lhe-ei como é a coisa. Um

camarada continua fazendo o que fez durante anos e o quemuitos outros também fazem, quando de repente o merca-do se vira contra ele. Não pode remediar a coisa, só lheresta ganhar coragem e esperar pela volta. Mas desta vez avolta não vem na forma do costume, e depois de perder 

dez milhões de dólares ele lê num jornal que um professor sueco é de opinião que o fim do mundo está próximo.Agora eu pergunto, você acredita que uma coisa dessasajude o mercado? É claro que o abalo é grande, mas tam- bém não pode ser evitado. E lá fica o sujeito até que venhaa polícia... se ele esperar tanto tempo. Eu não esperei.

 — Quer dizer, então, que foi simples má sorte?

 — Bem, o fato é que minha perda foi grande. — E perdeu também o dinheiro de muita gente — 

atalhou Mallinson, com aspereza. — Sim. E por quê? Porque todos eles queriam ganhar 

dinheiro sem trabalho e não tinham inteligência bastante para fazê-lo por si mesmos.

 — Não concordo. É porque confiavam no senhor e

acreditavam que o dinheiro deles estivesse seguro. — Pois bem, não estava. Nem podia estar. Não existesegurança em parte alguma, e os que pensavam assim não passavam de imbecis, procurando abrigar-se de um tufãodebaixo de um guarda-chuva.

Conway interveio, conciliador: — Todos nós concedemos que o senhor não podia

evitar o tufão. — Nem sequer pude fingir que lutava, da mesmaforma como você não pôde opor-se ao que aconteceu de-

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 pois que deixamos Baskul. Foi o que me veio ao pensa-mento quando o vi conservar toda a calma no aeroplano,enquanto aqui o Mallinson não se podia conter. Comosabia que nada podia fazer, não se preocupou mais. Foiexatamente o que se deu comigo quando veio o crash.

 — Isto é um contra-senso! — gritou Mallinson. — Qualquer pessoa pode evitar de lograr outra. Basta obede-cer às regras do jogo.

 — É difícil obedecer às regras do jogo quando ele vai

 por água abaixo. Além disso, não há ninguém que conheçatais regras. Nem mesmo todos os professores de Harvard ede Yale lhe poderiam dizer quais são elas.

Mallinson replicou desdenhosamente: — Estou-me referindo às simples normas que regem

a conduta na vida ordinária. — Nesse caso, acho que a conduta ordinária não se

aplica à direção de trustes.Conway apressou-se a intervir. — É melhor não discutir. Quanto a mim, não levo a

mal que faça comparação entre as suas ocupações e asminhas. Na verdade, ultimamente temos voado às cegas, eisso em todos os sentidos. Mas agora estamos aqui, e é oque importa por enquanto. Concordo com o senhor em que

não temos muito motivo de queixa. Pensando bem, écurioso que, de quatro pessoas reunidas pelo acaso eseqüestradas a mil milhas de distância, três acabem por encontrar alguma satisfação na aventura. O senhor  precisava de uma cura de repouso e de um refúgio; MissBrinklow sente-se chamada a evangelizar os pagãos doTibete.

 — E qual a terceira pessoa? — atalhou Mallinson. — Espero que não seja eu. — Incluí a mim próprio — respondeu Conway —, e

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o meu motivo é, talvez, o mais simples de todos: estougostando daqui.

Pouco tempo depois foi fazer o seu passeio noturno esolitário, que se tornara habitual, ao longo do terraço ou junto ao lago dos lotos. Sentia extraordinário bem-estar fí-sico e mental. Era a pura verdade: ele gostava de Shangri-Lá. A atmosfera ali o aquietava, ao passo que o mistério oestimulava e a sensação resultante era agradável. Duranteos últimos dias viera aproximando-se gradualmente, às

tentativas, de uma conclusão a respeito do mosteiro e doshabitantes do vale. Ela lhe trabalhava ainda o espírito, semde nenhum modo o perturbar. Era qual um matemático àsvoltas com um problema abstruso: preocupava-se comeste, mas de um modo calmo e impessoal.

Com relação a Bryant, a quem resolvera continuar aconsiderar como Barnard e chamá-lo por este nome, a

questão de suas aventuras e de sua personalidade fora rele-gada sem demora ao segundo plano, exceto esta frase pronunciada por ele: "o jogo vai por água abaixo".Recordando-a, Conway lhe conferia uma significação maisampla do que lhe dera provavelmente o americano. Nãoera verdadeira somente em relação aos bancos e trustes daAmérica do Norte. Também se ajustava a Baskul, a Delhi e

a Londres, às guerras e ao desenvolvimento do império,aos consulados, às concessões comerciais e aos jantares derecepção nos palácios de governo. Havia um relento dedecomposição naquele mundo distante e talvez a queda deBarnard houvesse sido, apenas, mais bem dramatizada doque a sua. O jogo, indubitavelmente, ia por água abaixo,mas por sorte os jogadores não eram, de ordinário, respon-

sabilizados pelas peças que não conseguiam salvar. Nesse ponto, os financeiros eram mais infelizes.Aqui em Sangri-Lá, porém, tudo estava mergulhado

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em profunda tranqüilidade. No céu sem lua as estrelascintilavam em massa e um pálido clarão azulado nimbavao cume do Karakal. Veio então ao espírito de Conway que,se aparecessem carregadores para o levaremimediatamente dali, ele não ficaria de todo satisfeito com asupressão da espera. E nem Barnard tampouco, pensousorrindo interiormente. Na verdade, era divertido; e desúbito descobriu que ainda gostava de Barnard, ou nãoacharia divertido aquilo. De certo modo, a perda de cem

milhões de dólares era demasiado grande para justificar a prisão de um homem; seria muito mais fácil se ele tivessesimplesmente roubado um relógio. E afinal de contas,como era possível a um homem perder cem milhões dedólares? Talvez apenas no sentido em que um ministro podia anunciar jovialmente que "o haviam presenteadocom a Índia".

Em seguida, tornou a pensar na volta. Imaginou alonga e dura viagem, e a chegada eventual ao bangalô dealgum plantador em Sikkim ou Baltistan — momento quedevia ser de delirante alegria, mas que provavelmente seriatambém de desencanto. Viriam então os primeiros apertosde mão e as primeiras apresentações; os primeiros goles navaranda do clube, as faces bronzeadas cercando-o com

expressões de mal dissimulada incredulidade. Em Delhiteria sem dúvida entrevistas com o vice-rei e com ocomandante-chefe; salamaleques de criados com turbantes;intermináveis relatórios que deveria preparar e remeter.Talvez até voltasse à Inglaterra e para Whitehall; jogos noconvés de um paquete da "Peninsular and Oriental"; a mãoflácida de um subsecretário; entrevistas à imprensa; vozes

agudas, zombeteiras, sensuais, de mulheres perguntando:"É verdade mesmo, Mr. Conway, que esteve no Tibete?..."

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Duma coisa não tinha dúvida: com a narrativa da aventura,teria jantares garantidos ao menos para toda uma estação.Mas... e isso lhe agradaria? Lembrou-se da frase escrita por Gordon nos seus últimos dias em Cartum: Prefeririaviver como dervixe no séquito do Mahdi a ter de sair para jantar todas as noites em Londres". A aversão de Conwayera menos definida — previa, apenas, que contar a sua his-tória no pretérito não só lhe causaria aborrecimento comoo entristeceria um pouco.

De repente, no meio das suas reflexões, sentiu a apro-ximação de Tchang.

 — Meu senhor — começou este, com um leve tom dealvoroço na voz baixa —, estou orgulhoso por lhe trazer uma notícia importante. . .

"De modo que os carregadores chegaram mesmoantes do tempo", foi o primeiro pensamento de Conway.Era estranho que ainda há pouco estivesse pensando nisso.Sentiu o choque desagradável para o qual se havia preparado.

 — Bem? —fez ele.Tchang estava tão agitado quanto lhe era possível. — Meu caro senhor, eu o felicito. Sinto-me feliz ao

 pensar que sou até certo ponto responsável pelo aconteci-mento . . . Foi depois de minhas constantes recomendaçõesque o Lama Superior tomou esta decisão. Ele deseja vê-loimediatamente.

Conway fixou nele um olhar ironicamenteinterrogativo.

 — Está sendo menos coerente que de costume,Tchang. O que aconteceu?

 — O Superior mandou chamá-lo. — Entendi. Mas por que tanta agitação?

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 — Porque é uma coisa extraordinária e sem prece-dentes. Até eu, que procurava apressar o encontro, nãoesperava que se desse tão já. Ainda não faz quinze diasque chegou, e está para ser recebido por  ele! Jamais istoocorreu tão depressa!

 — Ainda estou um pouco confuso, sabe? Vou ver oseu Superior. . . isso percebo muito bem. Mas há algumacoisa mais?

 — Então não é suficiente?Conway riu. — Mais que suficiente, asseguro-lhe. Não pense que

estou sendo descortês. É que me havia passado pelo espí-rito uma coisa muito diferente. . . Bem, não tem importân-cia. Naturalmente, me sentirei honrado e encantado emfalar com o cavalheiro. Para quando é a entrevista?

 — Para agora. Mandou-me que viesse buscá-lo. — Mas não é um pouco tarde? — Não importa. Meu caro senhor, cedo irá com-

 preender muitas coisas. E permita-me acrescentar quesinto prazer em ver que esse intervalo, sempre tãoincômodo, tenha chegado a termo. Acredite que me foi penoso ter de lhe recusar informações tantas vezes. . .extremamente penoso. Rejubilo-me por saber que de agoraem diante essas desagradáveis reticências se tornarãodesnecessárias.

 — Você é um homem engraçado, Tchang — respon-deu Conway. — Mas vamos, não percamos mais tempo.Estou pronto e agradeço a sua delicadeza. Mostre-me ocaminho.

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CAPÍTULO VII

Guardava Conway uma aparência de calma, porém,no fundo, sentia uma ansiedade crescente enquanto acom-

 panhava Tchang pelos pátios desertos. Caso tivessemalgum sentido as palavras do chinês, devia estar às portasde uma revelação. Breve iria saber se a sua teoria, aindaincompleta, era menos absurda do que parecia.

À parte isto, não restava dúvida de que a entrevista prometia ser interessante. No seu tempo tivera encontroscom vários potentados originais. Sentira por eles um inte-

resse desprendido e era, em geral, arguto nas suas aprecia-ções. Isento de embaraço, tinha a valiosa habilidade dedizer gentilezas em idiomas que conhecia muito pouco. Nocaso presente, porém, talvez o seu papel fosse apenas deouvinte. Notou que Tchang o estava conduzindo através desalas que ainda não tinha visto, todas elas encantadoras àluz fosca das lanternas. Em seguida, uma escada de caracol

os levou a uma porta em que o chinês bateu. Foi aberta por um tibetano, com tal presteza que Conway suspeitouestivesse o homem atrás dela, esperando-os. Essa parte domosteiro, pertencente a um andar superior, não revelavamenos bom gosto que o resto do edifício, mas o que mais acaracterizava era a atmosfera quente e seca ao extremo,como se todas as janelas se achassem hermeticamente

fechadas e algum aparelho de aquecimento interno esti-vesse funcionando a toda pressão. A falta de ar aumentavaà medida que avançavam, até que por fim Tchang se

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deteve diante de uma porta que, a julgar pela sensaçãofísica, bem poderia dar acesso a um banho turco.

 — O Superior o receberá sozinho — murmurouTchang.

Tendo aberto a porta para que Conway entrasse,fechou-a depois tão silenciosamente que a sua retirada foiquase imperceptível. Deteve-se Conway hesitante, respi-

rando uma atmosfera que não só era abafada mas tambémsombria, de forma que foram necessários alguns segundos para que os seus olhos se habituassem à escuridão. Foientão distinguindo, pouco a pouco, uma sala baixa, reves-tida de cortinas escuras e mobiliada simplesmente de mesae cadeiras. Numa destas estava sentada uma pequena, páli-da e enrugada figura, imóvel na sombra, dando a impres-

são de um quadro antigo e descolorido, em claro-escuro.Se fosse possível imaginar uma presença destituída derealidade, ali estaria ela, revestida de uma dignidadeclássica que era mais emanação do que atributo. Conwaynotou com curiosidade a sua própria percepção intensa detudo aquilo e perguntou consigo se seria digna de crédito,ou simples reação ao ambiente penumbroso e quente.

Dava-lhe vertigens a mirada daqueles olhos antigos. Deualguns passos à frente e estacou. O ocupante da cadeiratornou-se agora menos vago. conquanto não parecessemuito mais concreto. Era um velhinho vestido à chinesa, eas amplas pregas da túnica lhe envolviam frouxamente ocorpo exíguo e emaciado.

 — É o senhor Conway? — murmurou em excelente

inglês.A voz era agradavelmente acariciadora e tocada deuma melancolia suave que encheu Conway de estranha

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 beatitude. . . embora o cético que havia nele estivessenovamente inclinado a atribuí-la à temperatura doaposento.

 — Sou — respondeu. A voz continuou: — É um prazer conhecê-lo pessoalmente, Mr. Con-

way. Mandei chamá-lo porque pensei que seria bomconversarmos um pouco. Tenha a bondade de sentar-se aomeu lado e nada receie. Sou um velho e nenhum mal possocausar a ninguém.

 — É uma assinalada honra ser recebido pelo senhor  — respondeu Conway.

 — Agradeço-lhe, meu caro Conway. Chamá-lo-eiassim, de acordo com o costume inglês. Este momento,como já disse, é de grande prazer para mim. Tenho a vistafraca, mas, acredite-me, sou capaz de vê-lo em espírito tão bem como se o fizesse com os olhos. Espero que se tenhasentido bem em Shangri-Lá desde a sua chegada.

 — Extremamente bem. — Isso me alegra. Tchang fez o melhor que pôde

 pelos senhores, sem dúvida. Para ele também tem sido umgrande prazer. Disse-me que o senhor lhe faz muitas per-guntas sobre a nossa comunidade e sua vida.

 — De fato, essas coisas me interessam. — Pois, se pode dedicar-me um pouco de tempo, gos-

tarei de lhe dar uma breve notícia desta instituição. — Nada me agradaria mais. — Era o que eu pensava, e contava com isso. . . Mas

em primeiro lugar antes de começarmos a discorrer. . .Fez um levíssimo aceno com a mão e imediatamente,

graças a um sistema de comunicações que ficou sendo ummistério para Conway, entrou um criado a fim de preparar o elegante ritual do chá. Numa bandeja de laca foram

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colocadas as taças de porcelana fina como casca de ovo,contendo um líquido quase incolor. Conway, que conheciaa cerimônia, acompanhou-a com ar apreciativo.

 — Então está ao corrente dos nossos costumes? — tornou a voz.

Obedecendo a um impulso que não pôde analisar nemdesejava reprimir, respondeu o hóspede:

 — Vivi alguns anos na China. — Não falou nisso a Tchang. — Não. — A que devo, então, a honra que me faz?Raramente se embaraçava Conway na explanação de

seus motivos de proceder, mas desta vez não lhe ocorriarazão alguma. Por fim replicou:

 — Para ser sincero, não tenho a menor idéia, a não ser que desejava dizê-lo ao senhor.

 — A melhor das razões, certamente, para aqueles quese vão tornar amigos. . . Agora diga-me, não acha delicadoeste aroma? Os chás que se colhem na China são variadose ricos em fragrância, mas na minha opinião este, que é um produto especial do nosso vale, não lhes fica atrás.

Conway levou a taça aos lábios e provou. O sabor eratênue, sutil e recôndito, o fantasma de um perfume a pairar sobre a língua.

 — É realmente delicioso, e também completamentenovo para mim.

 — Sim, como grande número de ervas do nosso vale,é único e precioso. Naturalmente, deve saborear-se commuito vagar, não só como sinal de reverência e carinho,mas para que se extraia dele todo o prazer que comporta. Éuma lição famosa que aprendemos de Kou Kai Tchou, queviveu há cerca de quinze séculos. Quando chupava cana-

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de-açúcar, sempre hesitava em chegar à medula suculenta, porque, como explicava, "queria penetrar gradualmente naregião das delícias". Já estudou algum dos grandes clássi-cos chineses?

Respondeu Conway que conhecia ligeiramente uns poucos. Sabia que essa conversação alusiva continuaria, deacordo com a etiqueta, até haverem terminado de beber ochá; mas isto estava longe de o irritar, não obstante suagrande curiosidade de ouvir a história de Shangri-Lá.

Havia nele, sem dúvida, um pouco da sensibilidade relu-tante de Kou Kai Tchou.

Finalmente foi dado o sinal, o criado surgiu e desapa-receu de modo tão misterioso como da primeira vez, e semmais preâmbulos o Lama Superior de Shangri-Lá pôs-se afalar:

 — Deve estar familiarizado, meu caro Conway, com a

história do Tibete em suas linhas gerais. Fui informado por Tchang de que fez largo uso da nossa biblioteca, e nãoduvido que tenha estudado os escassos mas muito interes-santes anais destas regiões. Deve ter verificado, pelomenos, que o cristianismo nestoriano esteve muito difun-dido na Ásia durante a Idade Média e sua memória persis-tiu muito tempo após sua queda. No século XVII deu-se

uma revivescência cristã, nascida na própria Roma e tendo por instrumentos aqueles heróicos missionários jesuítas,cujas viagens, se me permite a observação, formam umaleitura muito mais interessante do que as de São Paulo.Aos poucos a Igreja foi-se propagando sobre uma áreaimensa, e há um fato notável, ignorado por muitos euro- peus de hoje: durante trinta e oito anos existiu uma missão

cristã em Lassa. Não foi entretanto de Lassa, mas dePequim, que no ano de 1719 partiram quatro frades capu-chinhos em busca dos remanescentes da seita nestoriana

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que porventura ainda existissem no interior do continente."Viajaram muitos meses na direção de sudoeste, passando por Lanchow e pelo Koho-Nor, lutando com dificuldadesque o senhor bem pode imaginar. Três deles morreram emcaminho, e o quarto não estava longe de seguir a mesmasorte quando, por acaso, deu com o desfiladeiro que atéhoje é, praticamente, a única via de acesso ao vale da LuaAzul. Aqui, com grande alegria e surpresa, encontrou uma população amável e próspera que se apressou a aplicar o

que sempre considerei a nossa mais antiga tradição: ahospitalidade para com os estranhos. Bem depressarecobrou a saúde e deu início à sua missão. O povo era budista, mas escutou-o de bom grado e ele obteve conside-rável êxito. Existia então nesta mesma plataforma de pedraum velho convento lamaico, mas estava em plena deca-dência física e espiritual e, como fosse aumentando a

messe do capuchinho, concebeu ele a idéia de instalar nomesmo sítio magnífico um mosteiro cristão. Sob a suafiscalização, os velhos edifícios foram reparados e emgrande parte reconstruídos. Em 1734, quando contavacinqüenta e três anos de idade, ele próprio começou a viver aqui.

"Permita agora que me alongue um pouco a respeito

desse homem. Chamava-se Perrault e era natural doLuxemburgo. Antes de se dedicar às missões no ExtremoOriente havia estudado em Paris, Bolonha e outras univer-sidades, e era uma espécie de erudito. Conservaram-se poucos episódios da sua mocidade — sua vida nessa épocanão diferia muito da de outros jovens da sua idade e profissão. Apreciava a música e as artes em geral, tinha

especial aptidão para as línguas, e antes de estar seguro dasua vocação gozara todos os comuns prazeres mundanos.Era jovem quando se feriu a batalha de Malplaquet, e

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assim teve contato pessoal com os horrores da guerra e dainvasão. Era robusto; durante seus primeiros anos aqui,trabalhou como qualquer outro homem, cultivando o seu jardim e aprendendo com os habitantes do vale ao mesmotempo que lhes ensinava. Descobriu jazidas de ouro novale, mas não o tentaram; interessava-se muito mais pelas plantas e ervas do lugar. Era humilde e de nenhum modofanático. Censurava a poligamia, mas não via razão parainvectivar o gosto que tinham pela baga do tangatse, à

qual atribuíam propriedades medicinais, mas que deviasua popularidade sobretudo aos efeitos levementenarcóticos que tinha. Na verdade, o próprio Perraulttornou-se afeiçoado ao seu uso. Tinha por hábito aceitar das culturas nativas tudo o que lhe ofereciam de agradávele inofensivo, dispensando-lhes em troca os tesourosespirituais do Ocidente. Não era um asceta; apreciava as

 boas coisas do mundo e tinha o cuidado de ensinar aosseus conversos a arte culinária a par do catecismo. Queroque o senhor o veja como um homem sincero, trabalhador,instruído, simples e entusiasta que, sem esquecer as suasfunções sacerdotais, não se desdenhava de vestir o aventalde pedreiro e auxiliar na construção destas paredes queaqui vê. Foi, é claro, uma obra cheia de imensas

dificuldades, e que só o seu orgulho e a sua pertinácia podiam levar a cabo. Digo orgulho, porque este foi semdúvida o motivo dominante no princípio — o orgulho da própria fé, o qual o decidiu a mostrar que, se Gautama podia inspirar a homens a construção de um templo sobrea escarpa de Shangri-Lá, Roma não era capaz de menos.

"Mas, com o correr do tempo, era natural que esse

motivo fosse cedendo lugar a outros mais serenos. Afinal,a emulação é mais própria dos espíritos jovens e Perrault,quando o mosteiro ficou completamente instalado, era já

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entrado em anos. Deve ter presente no espírito que, a rigor,o seu procedimento não fora muito regular, embora sedevam fazer certas concessões a uma pessoa cujos superio-res eclesiásticos se acham tão longe que a distância deveser medida em anos de viagem. Mas o povo do vale e os próprios monges não tinham apreensões: amavam-no eobedeciam-lhe, e à medida que passavam os anos iamaprendendo a venerá-lo. Costumava enviar relatórios periódicos ao bispo de Pequim, mas muitos não chegaram

até ele, e como presumia que os mensageiros tivessemsucumbido aos perigos da viagem, Perrault foi-se tornandoavesso a que eles arriscassem suas vidas e nos meados doséculo cessou de todo a prática. Algumas de suas primeirasmensagens, entretanto, deviam ter chegado ao destino, esem dúvida surgiram suspeitas acerca da sua atividade, pois no ano de 1769 um desconhecido trouxe uma carta

escrita doze anos antes e chamando Perrault a Roma."Se o chamado chegasse sem atraso, encontrá-lo-ia já

um ancião de mais de setenta anos; sucedeu assim que,com a demora, contava oitenta e nove quando o recebeu. Não era possível pensar numa longa viagem por monta-nhas e planaltos; jamais teria resistido às rajadas ferozes eaos frios terríveis desses desertos. Por conseguinte, enviou

uma resposta cortês explicando a situação, mas ignora-sese a sua mensagem chegou a transpor as cordilheiras."De modo que Perrault permaneceu em Shangri-Lá,

não propriamente desobedecendo às ordens superiores,mas porque lhe era materialmente impossível atendê-las.Fosse como fosse, estava muito velho e provavelmente nãotardaria que a morte viesse dar cabo dele e da sua

insubmissão. Por esse tempo a instituição que fundaracomeçava a sofrer transformação sutil. Talvez fossedeplorável, mas não era realmente nada de espantar. Não

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seria lícito esperar que um homem só fosse capaz deextirpar para sempre os hábitos e tradições de umacomunidade. Não tinha companheiros ocidentais que lhe prestassem mão firme quando a sua principiava a fraquear,e talvez houvesse sido um erro instalar o mosteiro numlugar onde viviam recordações tão antigas e tão diferentes.Seria pedir demasiado. Mas não seria pedir mais ainda,esperar que um velho, que orçava pelos noventa anos,reconhecesse o seu próprio erro? Seja como for, Perrault

não atinou com ele. Estava já muito velho e era feliz. Seusdiscípulos lhe eram dedicados, embora lhe esquecessem osensinamentos, e os habitantes do vale o contemplavamcom tão reverente afeição que ele lhes perdoava comfacilidade crescente o retorno aos antigos costumes. Aindaera ativo e suas faculdades conservavam excepcionallucidez. Com a idade de noventa e oito anos iniciou o

estudo dos escritos budistas que seus predecessores tinhamdeixado em Shangri-Lá, e era intenção sua dedicar o restoda vida à composição de um livro atacando o budismo do ponto de vista da ortodoxia. Chegou a terminar o trabalho(nós temos o manuscrito completo), mas o ataque foi muitosuave, pois nesse tempo já havia atingido a conta redondadum século, idade em que até as mais profundas

animosidades estão sujeitas a extinguir-se."Entrementes, como deve supor, tinham morrido mui-tos de seus primitivos discípulos e, como poucos eramsubstituídos, o número dos que viviam sob as ordens dovelho capuchinho diminuía constantemente. De oitenta quechegara a somar, baixara para vinte, depois para uma dúziaapenas, a maioria deles também muito velhos. A vida de

Perrault por esse tempo tornara-se uma serena espera dofim. Estava demasiado velho para adoecer ou paramostrar-se rabujento; somente o sono eterno poderia

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reivindicá-lo agora, e ele não tinha medo. O povo do vale,com a sua bondade, fornecia-lhe alimento e roupa, e a biblioteca lhe dava ocupação. Enfraquecera bastante, masainda tinha energia suficiente para cumprir as mais impor-tantes cerimônias do culto. O resto do dia tranqüilo, passa-va-o com seus livros, suas recordações e os suaves êxtasesdo narcótico. Seu espírito permanecia tão extraordina-riamente lúcido que ainda se abalançou a começar um es-tudo sobre certas práticas místicas a que os hindus dão o

nome de ioga, e que se baseiam em vários métodos espe-ciais de respiração. Para um homem de tal idade a empresa bem poderia parecer arriscada, e a verdade é que poucotempo depois, naquele memorável ano de 1789, baixou aovale a notícia de que Perrault estava finalmente às portasda morte.

"Ele jazia nesta sala, meu caro Conway, de onde

 podia ver pela janela a mancha branca que era, aos seusolhos baços, o Karakal. Mas podia ver também com osolhos do espírito; podia imaginar aquela forma nítida eincomparável que meio século antes avistara pela primeiravez. E diante dele surgia também o estranho cortejo desuas muitas experiências, os anos de viagem por desertos emontanhas, as grandes multidões das cidades ocidentais, o

fragor e o brilho dos exércitos de Malborough. Seu espíritoconfinara-se numa calma branca como neve; estava pronto para morrer, sentia-se alegre e desejoso da morte. Mandouvir seus amigos e servidores e despediu-se de todos,depois, pediu-lhes que o deixassem só. Era nessa solidão,com o corpo a consumir-se devagarinho e o espírito em plena beatitude, que esperava entregar a alma. . . mas tal

não aconteceu. Jazeu durante muitas semanas sem fala esem movimento, e então começou a viver de novo. Tinha

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cento e oito anos."O murmúrio cessou por um momento, e a Conway,

que apenas se movia, pareceu que o Lama Superior estivera traduzindo fluentemente um remoto e secretosonho. Após um instante, ele recomeçou:

 — Como todos aqueles que esperaram longo temponos umbrais da morte, Perrault tinha recebido a graça deuma visão de certa importância, para trazer consigo devolta ao mundo; dessa visão falarei mais tarde. Por 

enquanto desejo limitar-me ao seu procedimento, que foina verdade notável. Porque, em vez de ter uma convales-cença inativa, como seria de esperar, ele mergulhou semdemora numa rigorosa autodisciplina, curiosamente com- binada com o uso do narcótico. Narcótico e exercíciosrespiratórios — não parece um regime muito próprio pararesistir à morte. Mas o fato é que quando morreu o último

monge, em 1794, Perrault ainda vivia."Seria quase motivo para sorrir, se houvesse alguém

em Shangri-Lá com espírito suficientemente desabusado.O engelhado capuchinho, não mais decrépito do que eradoze anos atrás, perseverava na prática dum ritual secretoque ele criara. Para a gente do vale, tornou-se logo um ser misterioso, um eremita dotado de poderes sobrenaturais e

vivendo solitário neste formidável penhasco. Mas persistiaainda a tradicional afeição por ele, e passaram a considerar um ato meritório e propiciador subirem a Shangri-Lá a fimde trazer-lhe um modesto presente, ou executar algum ser-viço manual que aqui fosse necessário. Perrault abençoavaa todos esses peregrinos, esquecendo, talvez, que eramovelhas perdidas e desgarradas. Porque agora o Te Deum

 Laudamus e o Om Mane Padme Hum eram ouvidosindistintamente em todos os templos do vale."À aproximação do novo século, a lenda desenvolveu-

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se num belo e fantástico folclore. Dizia-se que Perrault setornara um deus, e que fazia milagres e que em certasnoites voava ao cume do Karakal para acender uma veladiante do céu. Há sempre um pálido clarão no alto da mon-tanha durante a lua cheia, mas não preciso afirmar-lhe quenem Perrault nem outro homem qualquer jamais a escala-ram. Faço menção disto, embora pareça desnecessário por-que há numerosos testemunhos pouco fidedignos de quePerrault podia fazer, e fazia, toda sorte de coisas impossí-

veis. Acreditava-se, por exemplo, que ele praticava a arteda autolevitação, de que tanto falam os estudos sobre omisticismo budista. Mas a austera verdade é que ele tentouvárias experiências nesse sentido, sem nenhum êxito entre-tanto. Descobriu, contudo, que a decadência dos sentidosordinários pode ser compensada em certa medida pelodesenvolvimento de outros; assim, adquiriu uma perícia

talvez notável em telepatia, e, se bem não visasse anenhum poder específico de curar, a verdade é que a suasimples presença auxiliava a cura em certos casos.

"O senhor há de querer saber como ele passava otempo durante aqueles anos inauditos. A atitude de Per-rault pode ser definida dizendo-se que, como não morrerana idade normal, começou a sentir que não havia nenhum

motivo conhecido para que isso acontecesse em tal ou talépoca determinada do futuro. Havendo demonstrado já queera anormal, era-lhe tão fácil acreditar que a anormalidade persistiria como que ela poderia ter fim a qualquer momento. Assim sendo, começou a viver sem mais cogitar da iminência da morte, que por tanto tempo o havia preo-cupado; começou a viver como sempre desejara, sem que

isso lhe tivesse sido possível senão raramente; porque con-servava no fundo, através de todas as vicissitudes, os gos-tos tranqüilos do estudioso. Sua memória era espantosa;

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 parecia haver escapado às limitações físicas e atingido al-guma região superior, de imensa claridade; era como seagora fosse capaz de aprender  todas as coisas com maisfacilidade do que tinha em seu tempo de estudante paraaprender uma coisa só.  Naturalmente, não tardou a sentir falta de livros, mas trouxera alguns consigo ao vir para cá,e talvez lhe interesse saber que havia entre eles umagramática inglesa acompanhada de um dicionário e atradução de Montaigne por Florio. Munido desses poucos

livros pôs-se a trabalhar, conseguindo dominar asdificuldades do seu idioma, e ainda possuímos na nossa biblioteca o manuscrito de um dos seus primeirosexercícios lingüísticos, uma versão para o tibetano doensaio de Montaigne sobre a vaidade — certamente uma produção única.

Conway sorriu.

 — Teria interesse em vê-la algum dia, se fosse possível.

 — Com o maior prazer. Era, como pode supor, umarealização bem pouco prática, mas lembre-se de que Per-rault atingira uma idade que nada tinha de prática. Sentir-se-ia muito só sem uma tal ocupação — pelo menos até oquarto ano do século dezenove, data que assinala um

importante acontecimento na história da nossa instituição.Foi então que chegou ao vale da Lua Azul, vindo da Euro- pa, outro estrangeiro. Era um jovem austríaco chamadoHenschell, que lutara contra Napoleão na Itália — ummoço de alta estirpe, possuidor de grande cultura e encanto pessoal. Arruinado pelas guerras, atravessara a Rússia emdireção à Ásia, com a vaga intenção de refazer sua fortuna.

Seria interessante saber a maneira exata como alcançara o planalto, mas ele próprio não fazia disso uma idéia muitoclara. Na verdade, estava quase a morrer quando aqui che-

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gou, tal qual Perrault quase um século antes. Mais uma vezteve Shangri-Lá ocasião de dispensar a sua hospitalidade,e o estrangeiro restabeleceu-se — mas aí cessa o paralelo.Porque Perrault tinha vindo para pregar e converter, ao passo que Henschell tomou interesse imediato nas jazidasde ouro. Sua ambição principal era enriquecer e regressar àEuropa o mais cedo possível.

"Mas não regressou. Aconteceu uma coisa estranha — embora tenha acontecido tantas vezes depois que talvez

não devêssemos reputá-la tão estranha, afinal de contas. Ovale, com a sua quietude e absoluta isenção dos cuidadosmundanos, tentou-o a ir adiando sempre e sempre a parti-da, e um dia, depois de ouvir a lenda local, subiu aShangri-Lá e teve o primeiro encontro com Perrault.

"Esse encontro foi histórico, no mais exato sentido da palavra. Se bem que já um tanto alheado de sentimentos

humanos tais como a amizade e a afeição, Perrault era do-tado de uma grande benignidade, que foi para o moçocomo chuva para um solo abrasado. Não tentarei descrever as relações que se formaram entre ambos. Um tributava amaior adoração possível, enquanto que o outrocomunicava seus conhecimentos, seus êxtases e também osonho fantástico que se tornara para ele a única realidade

restante no mundo."Sobreveio uma pausa, e Conway falou suavemente: — Perdoe-me a interrupção, mas não compreendi bem

o final. — Eu sei — respondeu com simpatia a voz

sussurrante. — Seria na verdade notável secompreendesse. É um assunto que terei prazer em explicar 

antes que termine a nossa entrevista; mas por ora, se me permite, circunscrever-me-ei a coisas mais simples. Eis um pormenor que lhe interessará: foi Henschell quem iniciou

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nossas coleções de arte chinesa, fazendo também as primeiras aquisições para a biblioteca e para a sala demúsica. Empreendeu uma viagem memorável a Pequim etrouxe o primeiro lote no ano de 1809. Não tornou a sair do vale, mas foi ele quem concebeu o complicado eengenhoso sistema por meio do qual tem sido possível àcomunidade obter do mundo exterior tudo de quenecessita.

 — Suponho que lhes seja fácil efetuar os pagamentos

em ouro. — Sim, temos a sorte de possuir depósitos desse

metal tão estimado em outras partes do mundo. — Tão estimado, que têm sido muito felizes por 

escapar a uma invasão de exploradores.O Lama Superior inclinou a cabeça, no mais singelo

gesto de assentimento.  — Esse foi sempre, meu caro Conway, o receio de

Henschell. Tomava o cuidado de evitar que alguns doscarregadores que traziam livros e tesouros de arte se apro-ximassem muito das jazidas; mandava-os deixar os volu-mes a um dia de viagem daqui, para que a própria gente dovale fosse depois buscá-los. Ainda postava sentinelas quemantinham constante vigilância à entrada do desfiladeiro.

Mas pouco depois lembrou-se de um método mais fácil eseguro de defesa. — Sim?A voz de Conway era cuidadosamente velada. — O senhor compreende, não era de temer a invasão

de um exército. Isso jamais seria possível, dadas as distân-cias e a natureza da região. O mais que se poderia esperar 

seria o aparecimento de alguns viajantes perdidos, que,ainda que tivessem armas, chegariam provavelmente tãoextenuados que não constituiriam perigo algum. Ficou pois

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decidido que, de futuro, os forasteiros poderiam vir quando bem entendessem — mas com uma condição importante.

"E, durante muitos anos, vieram com efeito tais foras-teiros. Mercadores chineses, tentados a fazer a travessia do planalto, deparavam por vezes, casualmente, com esta passagem entre tantas outras. Tibetanos nômades, desgar-rados de suas tribos, chegavam aqui de quando em quando,como animais esgotados. Todos eram bem-vindos, emboramuitos só alcançassem o abrigo do vale para morrer. No

ano da batalha de Waterloo três missionários ingleses, quese dirigiam a Pequim por terra, cruzaram a cordilheira por uma passagem desconhecida e tiveram a felicidadeextraordinária de chegar calmamente, como se viessem emvisita. Em 1820 um negociante grego, acompanhado decriados doentes e famintos, foi encontrado moribundo nosítio mais alto do desfiladeiro. Em 1822 três espanhóis,

que tinham ouvido falar vagamente em ouro, chegaramaqui depois de muitos descaminhos e desilusões. E denovo, em 1830, houve um largo afluxo de gente. Doisalemães, um russo, um inglês e um sueco fizeram a perigosa travessia dos Tian-Shans, impelidos por ummotivo que se foi tornando cada vez mais comum: aexploração científica. Ao tempo da sua vinda, tinha-se

dado uma ligeira modificação na atitude de Shangri-Lá para com os visitantes: não eram apenas bem recebidosquando tinham a sorte de encontrar o caminho do vale,como também se tornou hábito ir ao seu encontro se seaventuravam dentro de certo raio. Tudo isso, por umarazão de que tratarei mais adiante; mas o ponto é deimportância, por mostrar que a comunidade deixara de ser 

indiferente na sua hospitalidade. Precisava agora de novoselementos e os desejava. E, com efeito, nos anos que seseguiram aconteceu que mais de uma expedição de

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exploradores, fascinados pelo primeiro e distantevislumbre do Karakal, encontrou mensageiros que lhestransmitiam cordial convite raras vezes recusado.

"Durante esse tempo o mosteiro foi adquirindo muitasde suas atuais características. Devo acentuar que Henschellera excepcionalmente capaz e talentoso, e que o Shangri-Lá de hoje lhe deve tanto quanto ao seu fundador. Sim,tanto ou mais, penso muitas vezes. Porque foi ele a mãofirme, embora suave, de que toda instituição necessita em

certa fase do seu desenvolvimento, e a perda desse homemteria sido irreparável se não houvesse completado a sua ta-refa quase sobre-humana antes de morrer."

Conway alçou a cabeça, mais para ecoar esta última palavra do que para interrogar:

 —  Morreu! — Sim. Foi muito repentino. Mataram-no. Isso acon-

teceu no ano da revolta dos cipaios. Pouco antes da suamorte um artista chinês desenhou-lhe o retrato, e possomostrar-lho agora — está na sala.

Fez novamente aquele leve gesto de mão, e uma vezmais entrou o criado. Como um espectador hipnotizado,Conway viu o homem afastar uma cortinazinha no fundoda sala e acender uma lanterna que ficou a oscilar no meio

das sombras. Depois ouviu o murmúrio que o convidava aaproximar-se — o murmúrio que já se lhe tornara músicafamiliar.

Levantou-se, tropeçando, e caminhou para o trêmulocírculo de luz. O desenho era pequeno, pouco mais queuma miniatura em tintas coloridas, mas o artista conse-guira dar aos tons de carne uma delicadeza de figura de

cera. As feições eram de grande beleza, quase femininas, eConway sentiu-se fortemente atraído por elas, não obstanteas barreiras do tempo, da morte e do artifício. O mais

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estranho de tudo, porém, era uma particularidade que elesó notou depois da primeira arfada de admiração: o rostoera o de um homem jovem.

Afastando-se um pouco, tartamudeou: — Mas... o senhor tinha dito... que esse retrato foi

feito pouco antes da morte dele? — Sim. Está muito parecido. — Mas, se ele morreu no ano que disse. . . — Morreu.

 — E veio para cá em 1803, segundo contou, quandoera jovem?

 — Sim.Esteve Conway um momento sem falar. Fez então um

esforço e perguntou: — E morreu assassinado, como ia dizendo? — Sim. Foi ferido a bala por um inglês, poucas

semanas após a chegada deste a Shangri-Lá. Era um dostais exploradores.

 — E qual foi a causa? — Houve um desentendimento a respeito de certos

carregadores. Henschell acabava de informá-lo sobre aimportante condição a que estava sujeita a nossa hospitali-dade. É uma missão algo difícil e desde então, a despeito

da minha debilidade, vejo-me obrigado a cumpri-la pessoalmente.O Lama Superior fez outra pausa mais longa, e havia

um quê de interrogação no seu silêncio. Finalmente prosseguiu:

 — Talvez, meu caro Conway, esteja perguntando a simesmo qual poderá ser essa condição.

Conway respondeu pausadamente e em voz baixa: — Penso que já adivinhei. — Deveras? E, depois de ter ouvido esta minha longa

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e curiosa história, não adivinha também outra coisa?Sentiu-se Conway aturdido enquanto procurava uma

resposta. A sala era agora um remoinho de sombras, tendono centro aquele ancião benevolente. Escutara a narrativacom uma atenção que o impedira, talvez, de perceber tudoo que ela implicava. Agora que procurava uma expressãoadequada, mergulhava em assombro e a certeza que se iaconcretizando no seu espírito relutava em manifestar-se por palavras.

 — Parece impossível — balbuciou. — E contudo,não posso deixar de pensar nisso. . . é espantoso,extraordinário... de todo incrível. . . e todavia não estáabsolutamente fora da minha capacidade de acreditar. . .

 — O que, meu filho?E Conway respondeu, sacudido por uma emoção para

a qual não encontrava nenhum motivo e que não procurava

ocultar: —  Que o senhor ainda está vivo, Padre Perrault!

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CAPÍTULO VIII

Seguiu-se um silêncio obrigatório, em razão de ter oLama Superior pedido mais chá. Conway não estranhou

isto, pois devia ser considerável a fadiga causada por tãolonga narrativa. Ele próprio se sentia grato por esse inter-valo de repouso. Compreendia que ele era desejável sobtodos os pontos de vista, inclusive o artístico; os sorvos dechá, com o seu acompanhamento de cortesias convencio-nalmente improvisadas, preenchiam a mesma função dacadência na música. Esta reflexão fez surgir (a não ser que

se tratasse de mera coincidência) um curioso exemplo dos poderes telepáticos do Lama Superior, pois este começouimediatamente a falar de música, dizendo alegrar-se com ofato de os gostos musicais de Conway não ficarem de todoinsatisfeitos em Shangri-Lá. Respondeu Conway com ade-quada polidez e mencionou a sua surpresa por ver que acomunidade possuía tão rica coleção de compositores

europeus. O elogio foi agradecido entre vagarosos sorvosde chá. — Ah! meu caro Conway, temos a fortuna de contar 

entre nós um músico talentoso — foi mesmo aluno deChopin —, e somos felizes em lhe confiar a direção donosso salão de música. Precisa conhecê-lo.

 — Estimaria muito. A propósito, disse-me Tchang

que o seu compositor ocidental preferido é Mozart. — É verdade. Mozart possui uma elegância austeraque muito nos satisfaz. Constrói uma casa que não é

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demasiado grande nem demasiado pequena, e a mobíliacom um bom gosto perfeito.

Prosseguiu a troca de comentários até que vieram tirar a mesa. Já então se achava Conway em estado de observar calmamente:

 — De modo que, para voltar à nossa conversa ante-rior, o senhor pretende reter-nos aqui? Esta, suponho, é acondição importante e invariável a que se referiu?

 — Sua suposição é certa, meu filho.

 — E vamos realmente ficar aqui para sempre? — Preferiria empregar o seu excelente idiomatismo

inglês, dizendo que todos nós permanecemos aqui  for  good, para o bem.

 — O que me intriga é o fato de, entre todos os habi-tantes da Terra, termos sido nós quatro os escolhidos.

Voltando à sua maneira anterior, mais discursiva, res-

 pondeu o Superior: — É uma história intricada, como verá se se der ao

trabalho de ouvi-la. Deve saber que sempre procuramos,tanto quanto possível, manter o nosso número por meio deum recrutamento constante — pois que, além de outrosmotivos, é agradável ter entre nós pessoas de diversas ida-des e representativas de diferentes épocas. Infelizmente, a

 partir da última guerra européia e da revolução russa, asviagens ao Tibete e as explorações desta parte do globoforam quase completamente interrompidas. Com efeito,nosso último visitante, um japonês, chegou em 1912 e nãofoi, para ser franco, uma aquisição muito valiosa.Compreende, meu caro Conway, nós não somosimpostores nem charlatães. Não damos nem podemos dar 

garantias de êxito. Alguns dos nossos visitantes não obtêmnenhum beneficio com sua permanência aqui.Outros somente alcançam o que se pode chamar uma

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idade normalmente avançada e morrem em conseqüênciade algum mal insignificante. Descobrimos que, de ummodo geral, os tibetanos, por estarem habituados tanto àaltitude como a outras condições, são muito menossensíveis do que os indivíduos de outras raças. É umagente encantadora, e admitimos muitos deles, mas duvidoque ultrapassem, a não ser bem poucos, a idade de cemanos. Os chineses são um pouco superiores, mas mesmoentre eles há uma porcentagem elevada de fracassos. Os

nossos melhores objetos de experiência são os nórdicos eos latinos da Europa; talvez os americanos não fossemmenos adaptáveis, e considero uma grande ventura termosfinalmente entre nós, na pessoa de um de seuscompanheiros, um cidadão daquele país. Mas devo prosseguir na resposta à sua pergunta. Como vinhaexplanando, a situação era esta: havia já três décadas que

não chegava nenhum visitante; e, como durante esse tempohaviam ocorrido muitos falecimentos, criou-se um problema. Entretanto, poucos anos faz, um dos nossosapresentou uma idéia original. Era um moço, natural dovale, merecedor de absoluta confiança e completamenteidentificado com os nossos ideais. Mas, como a todos oshabitantes do vale, privava-o a própria natureza das vanta-

gens concedidas aos que vêm de outras terras. Ofereceu-se para nos deixar, demandando algum país vizinho, a fim deangariar novos colegas por um processo que teria sidoimpraticável noutra época. Era a muitos respeitos umaidéia revolucionária, mas obteve o nosso consentimento,após as devidas deliberações. Porque, como deve com- preender, nós também, em Shangri-Lá, devemos acertar o

 passo com a época. — Quer dizer então que ele foi enviado de propósito para trazer alguém pelo ar?

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 — Bem, como vê, era um rapaz inteligente e deiniciativa e nós depositávamos nele grande confiança. Foiidéia dele e nós lhe demos inteira liberdade de ação. Aúnica coisa que sabíamos de maneira definida era que oseu plano compreendia um período de instrução numa es-cola americana de aviação.

 — Mas como podia arranjar-se para executar o restodo plano? Foi só por acaso que encontrou aquele avião emBaskul.

 — Tem razão, meu caro Conway. Muitas coisasacontecem por acaso. Mas sucedeu, afinal de contas, justa-mente o que Talu esperava. Se não tivesse encontrado essaoportunidade, encontraria outra dentro de um ano ou dois — ou talvez nunca, está claro. Confesso que me surpreendiquando as sentinelas trouxeram a notícia da sua descida no planalto. O progresso da aviação tem sido rápido, mas a

mim me parecia que teria de progredir ainda muito mais,antes que uma máquina comum pudesse voar sobre as nos-sas montanhas.

 — Não era um avião comum. Era um tipo especial,construído para voar sobre montanhas.

 — Outra coincidência? Nosso jovem amigo tinharealmente boa estrela. É pena não podermos conversar 

sobre o assunto com ele... Todos lamentamos sua morte.Tenho certeza de que iria gostar dele, Conway.Conway inclinou levemente a cabeça. Achava que

seria muito possível. — Mas qual é o desígnio que há no fundo de tudo

isso? — perguntou, ao cabo de um silêncio. — Meu filho, o seu modo de fazer a pergunta me

causa infinito prazer. Jamais ninguém, no curso de tãolonga vida, me formulou num tom de tamanha calma.Minha revelação tem sido recebida de todas as maneiras

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concebíveis: com indignação, consternação, fúria,incredulidade, histerismo — mas nunca, até esta noite,com simples interesse. É todavia uma atitude que euacolho cordialmente. Hoje se interessa, amanhã se preocupará; pode ser que ainda venhamos a pedir suainteira devoção.

 — Isto vai além do que eu poderia prometer. — Até essa dúvida me agrada. É a base de uma fé

 profunda e valiosa. . . Mas não discutamos. Está interes-

sado, e isto, partindo do senhor, já é muito. Apenas lhe peço que não comunique por enquanto aos seus trêscompanheiros o que lhe estou dizendo agora.

Conway guardou silêncio. — Chegará o momento em que o saberão, como o

senhor, mas para bem deles mesmos não convém precipitar esse momento. Estou tão convicto da sua

 prudência neste assunto que não lhe peço nenhuma promessa; sei que procederá do modo que nós ambosconsideramos o melhor. . . Agora deixe-me esboçar umquadro deveras atraente. Segundo os padrões do mundo, osenhor ainda é moço. Tem, como se costuma dizer, a vidadiante de si. De acordo com o curso normal das coisas, poderá esperar uns vinte ou trinta anos de atividade, que

irá decrescendo imperceptível e gradualmente. Não é emabsoluto uma perspectiva desalentadora, e não possoesperar que a olhe como eu a olho: como um entreato brevíssimo e por demais agitado. Viveu sem dúvida o primeiro quartel de sua existência sob a nuvem deexcessiva juventude, enquanto que os últimos vinte e cincoanos serão provavelmente obscurecidos pela nuvem ainda

mais escura da demasiada velhice; e entre essas duasnuvens, como são fracos e escassos os raios de sol queiluminam uma vida humana! Mas o senhor pode estar 

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destinado a ser mais feliz, pois, de acordo com os padrõesde Shangri-Lá, mal começaram ainda os seus anos de sol.Poderá acontecer que, dentro de algumas décadas, não sesinta mais velho do que hoje — que conserve, comoHenschell, uma longa e esplêndida juventude. Mas essa,acredite-me, será apenas uma fase inicial e superficial.Tempo virá em que comece a envelhecer como os outros,embora com muito mais lentidão e em condiçõesinfinitamente mais nobres. Aos oitenta anos poderá ainda

subir ao desfiladeiro com a agilidade de um moço, masquando contar o dobro dessa idade não deve esperar que omesmo vigor ainda persista. Não fazemos milagres, nãovencemos a morte e nem sequer a decadência. Tudo que podemos fazer e temos feito algumas vezes é retardar amarcha desses breves momentos que constituem a vida.Logramos isso mediante métodos tão simples aqui quanto

impossíveis em outros lugares. Mas não se iluda; o mesmofim aguarda a nós todos.

"Ainda assim, é uma perspectiva sedutora a que lheofereço: longos dias tranqüilos, durante os quais contem- plará o pôr do sol como um homem de outra parte domundo ouve um relógio dar horas, mas com muito menosansiedade. Virão e ir-se-ão os anos, e o senhor passará dos

 prazeres materiais a outros mais austeros, porém nãomenos satisfatórios. Poderá perder o gume do apetite e arijeza dos músculos, mas desfrutará vantagens quecompensarão essa perda. Adquirirá calma e profundeza,madureza, sabedoria e o cristalino encanto da memória. E,mais precioso que tudo, terá o tempo, esse dom tão raro,tão desejado, que os países ocidentais foram perdendo à

medida que o buscavam com mais ardor. Reflita uminstante. Terá tempo para ler, nunca mais precisará saltar  páginas a fim de poupar minutos, nem deixar de lado

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nenhum estudo porque seja demasiado longo. Tambémtem gosto pela música: aí, pois, estão os seus instrumentos,as suas composições, e sobretudo o tempo, sem medida esem pressa, para extrair deles o máximo encanto. É, alémdisso, diremos, um homem de boa companhia: não seextasia ao pensar que poderá fazer sábias e serenasamizades, e gozar um longo e profundo comércioespiritual, sem temor de que a morte o venha chamar com asua costumeira pressa? Ou, se prefere a solidão, não poderia

utilizar um dos nossos pavilhões para enriquecer a doçuradas meditações solitárias?"

A voz fez uma pausa que Conway não pensou emaproveitar.

 — Não faz nenhum comentário, meu caro Conway.Perdoe-me a eloqüência. Pertenço a uma época e a umanação em que nunca se considerou de mau tom expressar-

se com fluência. . . Mas talvez esteja pensando na esposa,nos pais e nos filhos que porventura tenha deixado nomundo. Ou terá ambições que pensa ver realizadas?Creia-me, se bem que a princípio a separação possa ser dolorosa, dentro de dez anos nem a sombra disso tudoexistirá para o senhor. Digo isto embora o senhor — se éque leio certo no seu espírito — não tenha

semelhantes preocupações.Surpreendido com a agudeza da observação, Conwayreplicou:

 — É verdade. Não sou casado, tenho poucos amigosíntimos e nenhuma ambição.

 — Nenhuma ambição? E como se arranjou paraescapar a essa doença tão comum?

Só agora tinha Conway a impressão de tomar partenuma conversa. — Sempre me pareceu — disse — que boa porção

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daquilo que na minha profissão se chama "êxito" é bas-tante desagradável, sem contar que exige mais esforço doque eu desejaria despender. Era cônsul, um posto bemsubalterno mas muito do meu agrado.

 — Mas não pusera a alma nele? — Nem a alma, nem o coração, nem tampouco me-

tade de minhas energias. Sou um tanto preguiçoso por natureza.

As rugas tornaram-se mais acentuadas e sinuosas, e

Conway compreendeu que o Lama Superior devia estar sorrindo.

 — A preguiça na realização de certas coisas pode ser uma virtude — sentenciou o murmúrio. — Em todo caso,nós é que não nos mostraremos exigentes nesse particular.Creio que Tchang já lhe explicou o nosso princípio demoderação, e uma das coisas em que sempre somos mode-

rados é a atividade. Eu, por mim, aprendi dez idiomas, masestes poderiam ter sido vinte se houvesse estudadoimoderadamente. Não o fiz, contudo. Acontece o mesmoem outros sentidos. Verá que não somos gozadores nemtampouco ascetas. Enquanto não alcançamos uma idadeem que se impõe a prudência, aceitamos de bom grado os prazeres da mesa, ao passo que, para ventura dos nossos

companheiros mais jovens, as mulheres do vale aplicam o princípio de moderação à sua própria castidade. Tudo bem pensado, tenho certeza de que se adaptará aos nossos cos-tumes sem muito esforço. Tchang, na verdade, mostrou-semuito otimista a esse respeito — e também eu, depoisdesta entrevista, não o estou menos. Mas há no senhor,reconheço-o, uma estranha qualidade que jamais encontrei

em qualquer outro dos nossos visitantes. Não é propria-mente cinismo, muito menos amargura. Talvez seja em parte desilusão, mas também uma clareza de espírito que

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eu não esperaria encontrar num homem com menos de...cem anos, digamos. Se tivesse de exprimi-lo por umaforma concisa, diria que é falta de paixão.

 — O termo é bem aplicado — replicou Conway. —  Não sei se costumam classificar as pessoas que aqui vêm,mas, se o fazem, podem colocar-me este rótulo "1914-1918". Penso que isto fará de mim um espécime único noseu museu de curiosidades, pois os outros três que vieramcomigo não entram nessa categoria. Gastei a maior parte

de minhas paixões e energias durante aqueles quatro anose, embora não costume falar nisso, a principal coisa quetenho pedido ao mundo desde então é que me deixe em paz. Encontro neste lugar certo encanto e certa quietudeque me atraem e não duvido que, como observou, me acos-tume a ele facilmente.

 — Isso é tudo, meu filho?

 — Espero que eu esteja sendo fiel à sua regra demoderação.

 — É inteligente, como me disse Tchang. .. muitointeligente. Mas no que lhe expus não haverá nada que lhedesperte algum sentimento mais forte?

Permaneceu Conway algum tempo calado antes deresponder:

 — Causou-me profunda impressão a sua narrativa do passado, mas, para ser franco, o esboço que traçou dofuturo me interessa apenas dum modo abstrato. Não possoolhar tão longe. Ficaria sem dúvida pesaroso se tivesse quedeixar Shangri-Lá amanhã, ou na próxima semana, ou tal-vez mesmo no próximo ano; mas o que irei sentir daqui acem anos, se é que viverei tanto, é coisa que não posso

 predizer. Posso fazer-lhe frente, como a qualquer outraespécie de futuro, mas para que eu o almeje é preciso quetenha alguma razão de ser. Duvidei algumas vezes de que

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a própria vida a tenha. E, se não a tem, uma vida longa tê-la-á ainda menos.

 — Meu amigo, as tradições desta casa, a um tempo budista e cristã, são muito confortadoras.

 — Pode ser. Mas, infelizmente, continuo a desejar uma razão mais definida para invejar os centenários.

 — Existe uma razão, e na verdade bem definida. É omotivo único desta colônia de estrangeiros reunidos aoacaso, que aqui vivem os seus longos anos. Não estamos

realizando uma experiência vã, não seguimos um merocapricho. Temos um sonho e uma visão para nos guiar. É avisão que pela primeira vez apareceu ao velho Perraultquando jazia moribundo nesta sala, no ano de 1789. Eleconsiderou então o curso da sua longa existência, como jálhe contei, e pareceu-lhe que as coisas mais belas eramtransitórias e perecíveis, e que a guerra, a luxúria e a bruta-

lidade poderiam acabar por expeli-las um dia da face domundo. Recordou coisas que tinha visto com os própriosolhos e esboçou outras com a imaginação. Viu as naçõesfortalecendo-se, não em sabedoria, mas em vulgares pai-xões e no desejo de destruir. Viu o poder de suas máquinasmultiplicar-se a tal ponto que um só homem poderia fazer frente a todo um exército do Grande Monarca. E percebeuque, quando enchessem de ruínas a terra e o mar, procura-riam dominar os ares. . . Pode afirmar que essa visão não éverdadeira?

 — Bem verdadeira, com efeito. — Mas isto não é tudo. Previu a chegada de um

tempo em que os homens, embriagados com a sua técnicahomicida, assolariam o mundo com tal furor que todacoisa preciosa estaria em perigo, todos os livros, quadros ecomposições musicais, todo o tesouro acumulado durante

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dois mil anos, o pequeno, o delicado, o indefeso — tudo se perderia como perdidos foram os livros de Tito Lívio, ouseria destruído como os ingleses destruíram o Palácio deVerão em Pequim.

 — Concordo com esta sua opinião. — Naturalmente. Mas que valem as opiniões dos ho-

mens razoáveis diante do ferro e do aço? Acredite-me,essa visão do velho Perrault se tornará realidade. E esse,meu filho, é o motivo por que eu e o senhor estamos aqui,e por que podemos rogar a graça de sobrevivermos àdestruição que ameaça por todos os lados.

 — Sobreviver a isso? — Há uma possibilidade. Todas essas coisas aconte-

cerão antes que seja tão velho como eu. — E pensa que Shangri-Lá se salvará? — Talvez. Não podemos esperar nenhuma mercê, mas

há uma tênue esperança de que sejamos esquecidos. Aquificaremos com nossos livros, nossa música e nossasmeditações, conservando as frágeis elegâncias de umaépoca moribunda e buscando a sabedoria de que os ho-mens hão de precisar quando tiverem esgotado todas assuas paixões. Temos uma herança a preservar e transmitir.Tiremos dessas coisas todo o prazer que pudermos, até quevenha esse dia.

 — E então? — Então, meu filho, quando os fortes se houverem

devorado uns aos outros, poderá finalmente ser posta em prática a moral cristã, e os mansos herdarão a terra.

Revestira-se o murmúrio de uma sombra de ênfase.Conway rendeu-se à beleza de tudo aquilo. Uma vez maissentiu crescer a escuridão em torno, mas agora simbolica-mente, como se lá fora já se estivesse preparando a

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tormenta. E então percebeu que o Lama Superior deShangri-Lá se punha em movimento, que se levantara dacadeira e permanecia de pé, qual um fantasmasemimaterializado. Por mera polidez procurou Conwayajudá-lo, mas de súbito um impulso mais profundo seapossou dele, e fez o que jamais fizera diante de nenhumhomem: ajoelhou-se, sem ter consciência clara do motivo por que o fazia.

 — Eu o compreendo, pai. Nunca soube direito de que modo se despediu. Estava

mergulhado num sonho, do qual não saiu senão muitotempo depois. Lembrava-se do ar gelado da noite após ocalor daqueles aposentos, e da presença de Tchang, silen-ciosa serenidade, quando atravessaram juntos os pátios ilu-minados pela luz das estrelas. Jamais Shangri-Lá ofereceraaos seus olhos uma beleza tão intensa. Apenas adivinhado, jazia o vale além da borda do penhasco, e sua imagem eraa de um lago profundo cuja tranqüilidade se casava à pazde seus próprios pensamentos. Porque Conway já se curarado assombro. A longa conversação, com suas várias fases,o deixara vazio de tudo, exceto de uma satisfação que eratanto do intelecto como do sentimento, e não menos doespírito que de ambos. Até suas dúvidas já não eramatormentadoras, mas, ao contrário, faziam parte de umasutil harmonia. Tchang não falava, nem ele. Era muitotarde e estava satisfeito por saber que seus companheirostinham ido dormir.

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CAPÍTULO IX

 Na manhã seguinte perguntou a si próprio se tudo oque lhe vinha ao espírito fazia parte de uma visão desperta

ou de um sonho.Logo o fizeram lembrar-se. Recebeu-o um coro de

 perguntas quando apareceu para o almoço. — Que conversa comprida teve com o chefão, ontem

à noite! — começou o americano. — Fazíamos tenção deesperá-lo, mas acabamos cansando. Que espécie de sujeitoé ele?

 — Disse alguma coisa sobre os carregadores? —  perguntou Mallinson ansiosamente.

 — Espero que lhe tenha falado na possibilidade de semandar para cá um missionário — disse Miss Brinklow.

Este bombardeio fez com que Conway recorresse àssuas habituais armas de defesa.

 — Receio que vá desapontá-los a todos — respon-

deu, entrando com facilidade na disposição de ânimo ade-quada. — Não discutimos a questão das missões; ele nãofez nenhuma referência aos carregadores; e, quanto à suaaparência, só lhes posso dizer que se trata de um anciãomuito inteligente e que fala excelente inglês.

Mallinson atalhou com irritação: — O que interessa é saber se ele é digno de confiança

ou não. Acha que o homem pretende enganar-nos? — Não me deu a impressão de ser uma pessoaindigna.

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 — Mas por que não insistiu com ele a respeito doscarregadores?

 — Não me lembrei.Mallinson encarou-o com ar de incredulidade. — Não o entendo, Conway. Portou-se tão bem em

Baskul que mal posso crer seja o mesmo homem. Pareceter perdido a resolução.

 — Sinto muito. — Nada adianta lastimar-se. Devia cobrar ânimo e

mostrar mais interesse no que se está passando. — Você compreendeu mal. Eu queria dizer que sinto

tê-lo desapontado.Disse isto num tom de voz quase rude. Era uma más-

cara destinada a ocultar os seus verdadeiros sentimentos,os quais eram, na verdade, tão complicados que dificil-mente poderiam os outros adivinhá-los. Estava um pouco

surpreso ante a facilidade com que tergiversara. Era evi-dente que desejava observar a recomendação do Lama,guardando segredo. Estranhava igualmente a naturalidadecom que aceitava uma situação que os seus companheiroscertamente, e não sem motivo, tachariam de traição. Comodissera Mallinson, não era o que se esperava de um herói.Conway sentiu uma afeição súbita e meio compadecida

 pelo rapaz. Retemperou-se depois, refletindo que quem de-dica culto aos heróis deve estar preparado para as desilu-sões. Mallinson em Baskul era como o jovem calouro ado-rando o belo diretor de esportes, e agora o diretor deesportes começava a vacilar, se é que já não caíra do pedestal. Há sempre algo de patético na destruição de umideal, embora seja este falso; e a admiração de Mallinson

 poderia ter sido pelo menos um refrigério ao esforço deaparentar o que não era. Mas, de qualquer modo, seriaimpossível simular. Havia qualquer coisa na atmosfera de

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Shangri-Lá — talvez devido à altitude — que vedava qual-quer tentativa de contrafazer emoções.

 — Olhe, Mallinson — disse ele —, é inútil fazer continuamente alusões a Baskul. Está claro que eu eradiferente então, pois a situação era completamente outra.

 — E muito mais limpa também, na minha opinião.Pelo menos sabíamos o que íamos enfrentar.

 — Assassínio e estupro, para sermos exatos. Podechamar a isso de limpo, se lhe aprouver.

Subiu de tom a voz do rapaz enquanto retorquia: — Pois bem, ainda considero isso mais limpo... em

certo sentido. Prefiro enfrentar tais coisas a todo este mis-tério que nos cerca.

E abruptamente acrescentou: — Essa rapariga chinesa, por exemplo. . . De que

modo veio parar aqui? O tal sujeito lhe disse?

 — Não. Por que havia de dizer? — E por que não? E por que não havia você de per-

guntar, se tivesse algum interesse no assunto? É naturalencontrar-se uma donzela vivendo entre monges?

Este ponto de vista ainda não se havia apresentado aConway.

 — Este não é um mosteiro comum — foi a melhor 

resposta que encontrou, depois de refletir um pouco. — Meu Deus, bem sei que não é!Seguiu-se um silêncio, pois a discussão chegara

evidentemente a um ponto morto. Afigurava-se a Conwayque a vida de Lo-Tsen não vinha ao caso. A pequenamanchu repousava tão suavemente no seu espírito que malsabia de sua presença ali. Mas ao ouvir mencionar o nome

dela Miss Brinklow ergueu repentinamente os olhos dagramática tibetana, que não deixava nem durante asrefeições (como se — pensava Conway com intenção

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oculta — não tivesse para isso todo o resto da sua vida). Areferência a donzelas e monges trouxe-lhe à lembrançaaquelas histórias sobre os templos da índia, que osmissionários contam às suas mulheres e que estastransmitem às colegas solteiras.

 — Naturalmente — disse, comprimindo os lábios — o moral desta casa é horripilante. É o que seria de esperar.

E voltou-se para Barnard, como pedindo apoio; mas oamericano limitou-se a arreganhar os dentes.

 — Não creio que dêem muito valor à minha opiniãoem assunto de moral — observou secamente. — Mas,quanto a mim, diria que viver às disputas não é menosmau. Já que teremos de ficar ainda algum tempo aqui,devemos dominar o gênio e tratar bem uns aos outros.

Conway achou bom o conselho. Mallinson, porém,ainda não se aplacara.

 — Bem posso crer que ache isto aqui mais agradáveldo que Dartmoor — disse significativamente.

 — Dartmoor? Oh! refere-se à grande penitenciária doseu país? Percebo. Bem, certamente não invejo oscamaradas que estão em lugares como aquele. E há outracoisa que lhe devo dizer: não me fere com essas alusões.Couro duro e coração tenro — eis aí como sou feito.

Conway dirigiu-lhe um olhar de aprovação e outro deleve censura a Mallinson. Mas de repente sentiu que todos,ali, eram atores num palco imenso, cujo pano de fundo sóele avistava, e, como não pudesse comunicar o que sabia,assaltou-o repentino desejo de estar só. Despediu-se delescom um aceno de cabeça e saiu para o pátio. À vista doKarakal desvaneceram-se as apreensões, e os escrúpulos arespeito de seus três companheiros se dissolveram na acei-tação mística de um mundo novo que demorava muito

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longe das conjeturas daqueles três. Há ocasiões, pensou,em que a estranheza de tudo torna cada vez mais difícil perceber a estranheza dos objetos particulares — e équando se aceitam as coisas tais quais são, simplesmente porque assombrar-nos seria tão fastidioso para nós próprios como para os outros. Havia chegado a esse pontoem Shangri-Lá, e lembrava-se de ter atingido um estado deânimo semelhante, embora muito menos agradável, duran-te os anos passados na guerra.

Precisava de tranqüilidade, quando mais não fossesenão para acomodar-se à dupla vida que seria forçado aviver durante algum tempo. De agora em diante, iria viver com os seus companheiros de exílio na expectativa dachegada dos carregadores e do regresso à índia; longedeles, o horizonte se abriria como uma cortina. O tempoexpandia-se e contraía-se o espaço. O futuro, tão

sutilmente plausível, afigurava-se uma dessas coisas quesó ocorrem uma vez cada dez mil anos. Às vezes perguntava a si mesmo qual das duas vidas era mais realdo que a outra, sem que, no entanto, o problema fosse premente. E de novo recordava os dias da guerra, poisdurante os bombardeios ele tinha a mesma sensaçãoconfortadora de possuir muitas vidas, das quais tão-só

uma podia ser reclamada pela morte.Tchang, é claro, falava-lhe agora sem nenhuma reser-

va, e tinham muitas conversas sobre as regras e oscostumes do mosteiro. Soube então Conway que duranteos primeiros cinco anos viveria uma vida normal, semestar sujeito a nenhum regime especial. Era o que se faziasempre, segundo dizia Tchang, "para que o corpo se

habituasse à altitude e também para dar tempo a que sedissipassem as nostalgias intelectuais e sentimentais".

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 — Tem certeza, então — observou Conway com umsorriso —, de que nenhuma afeição humana pode resistir acinco anos de ausência?

 — Pode, sem dúvida — replicou o chinês —, masapenas como uma fragrância cuja melancolia nos é grata.

Após esses cinco anos de prova, explicou Tchang,tinha início o processo de retardamento da velhice, e, setivesse êxito, Conway poderia contar com meio século deestacionamento na idade aparente de quarenta anos — oque não era uma idade desagradável para nela seestacionar.

 — Mas no seu caso — perguntou Conway — comose operou a coisa?

 — Ah! meu caro senhor, eu tive a sorte de chegar aqui muito jovem, apenas com vinte e dois anos. Era mili-tar, embora isso talvez não lhe pareça. Comandava umastropas em operações contra certas tribos de salteadores, noano de 1855. Estava fazendo o que chamaria um reconhe-cimento, caso tivesse voltado e transmitido aos meus supe-riores o resultado da missão; mas a verdade ê que me perdinestas montanhas e dos meus cento e tantos comandadossomente sete sobreviveram aos rigores do clima. Quandoafinal fui socorrido e trazido para Shangri-Lá, estava tãomal que só a minha extrema juventude e vitalidade mesalvaram.

 — Vinte e dois — repetiu Conway, fazendo as con-tas. — De modo que está agora com noventa e sete?

 — Sim. Muito em breve, se os lamas derem o seuconsentimento, receberei a iniciação completa.

 — Compreendo. É preciso inteirar o número redon-do?

 — Não, nós não temos limite estabelecido para isso,

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mas consideramos que um século é a idade em que as pai-xões e os caprichos da vida ordinária já desapareceram.

 — Penso também que sim. E que acontece depois?Quanto tempo espera viver ainda?

 — Dadas as perspectivas que Shangri-Lá oferece, hárazões para esperar que eu viva ainda um século, ou talvezmais.

Conway balançou a cabeça. — Não sei se devo felicitá-lo, mas parece que lhe foi

concedido o melhor dos dois mundos, uma longa e agradá-vel mocidade para recordar e a perspectiva de uma velhicenão menos longa e agradável. Com que idade começou aenvelhecer exteriormente?

 — Depois dos setenta. É o que muitas vezes sucede,embora eu creia poder afirmar que não represento a idadeque tenho.

 — De modo algum. E, supondo que deixasse o valeagora, que aconteceria?

 — Morreria se permanecesse fora daqui mais que uns poucos dias.

 — A atmosfera, então, é essencial? — Há só um vale da Lua Azul, e quem esperasse

encontrar outros pediria demasiado à natureza. — Bem, mas o que sucederia se tivesse deixado o

vale uns trinta anos atrás, suponhamos, durante a sua pro-longada juventude?

 — Provavelmente teria morrido mesmo assim — res- pondeu Tchang. — Em todo caso, teria adquirido muitorapidamente a aparência da minha idade real. Faz algunsanos, houve um curioso exemplo desse fato embora tivessehavido vários outros antes. Um dos nossos deixou o vale para auxiliar um grupo de viajantes, de cuja aproximação

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tínhamos sido avisados. Esse homem, de nacionalidaderussa, chegara aqui no vigor dos anos e tão bem vingaramcom ele os nossos processos que, quase a completar oitenta anos, ninguém lhe daria mais de quarenta. Nãodevia ficar ausente mais que uma semana, o que não terianenhuma importância. Mas, desgraçadamente, foiaprisionado por tribos nômades e conduzido a certadistância daqui. Suspeitamos de um acidente econsideramo-lo perdido. Entretanto, três meses depois,

logrou escapar e voltou para o vale. Mas era agora umhomem bem diferente. Tinha os seus oitenta anos gravadosno rosto e nas maneiras, e pouco depois morreu, comomorre um velho.

Pelo espaço de uns minutos Conway não fez nenhumaobservação. Conversavam na biblioteca e durante a maior  parte da narrativa estivera olhando pela janela o

desfiladeiro que conduzia ao mundo exterior. Umanuvenzinha deslizava sobre o topo da cordilheira.

 — A sua história é um tanto sinistra, Tchang — disse por fim. — Dá a impressão de que o Tempo é um monstroludibriado, esperando lá fora para atirar-se sobre osindolentes que conseguiram iludi-lo por muito tempo.

 —  Indolentes?

 — Em sentido figurado, é claro.Ficou Tchang uns instantes a refletir, e disse: — É significativo que os ingleses considerem a indo-

lência um vício. Nós, pelo contrário, lhe damos grande preferência sobre a pressa. Não é verdade que há dema-siada pressa no mundo atualmente, e não seria talvez me-lhor se houvesse mais pessoas indolentes?

 — Inclino-me a concordar consigo — respondeuConway com divertida solenidade. Dentro da semana que se seguiu à entrevista com o

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Lama Superior, Conway fez conhecimento com muitos deseus futuros colegas. Não se mostrava Tchang nem muitoansioso nem pouco desejoso de fazer as apresentações, eConway sentiu-se envolto numa nova atmosfera, assazatraente para ele, em que não reinava a pressa clamorosanem a lentidão decepcionadora.

 — Na verdade — explicava Tchang —, alguns doslamas só poderão travar relações com o senhor depois deum tempo considerável, talvez anos, mas isto não lhe deve

causar estranheza. Estão preparados para dispensar-lheacolhimento logo que se apresente a ocasião, e a falta de pressa não implica de nenhum modo ausência de interesse.

Conway, que muitas vezes tivera impressão seme-lhante quando ia visitar colegas recém-chegados aos con-sulados estrangeiros, achou muito compreensível a atitude.

Os encontros que teve, contudo, foram plenamente

satisfatórios, e a conversação com homens que tinham trêsvezes a sua idade não lhe causou os embaraços comuns nasociedade de Londres ou Delhi. A primeira entrevista foicom um afável alemão chamado Meister, que ingressarana comunidade em oitenta e tantos, tendo sido o únicosobrevivente de um grupo de exploradores. Falava bem oinglês, embora com certo sotaque. Um ou dois dias depois

foi feita segunda apresentação, e Conway gozou a primeira palestra com um homem que o Lama Superior lhe mencionara de modo especial: Alphonse Briac, pequeno e vigoroso, de nacionalidade francesa, nãoaparentava ser demasiado velho embora dissesse ter sidodiscípulo de Chopin. Pareceu a Conway que a companhiadele e a do alemão seriam muito agradáveis. Já os estava

analisando subconsciente-mente, e depois de uns poucosencontros formulou uma ou duas conclusões gerais.Percebeu que os lamas com quem tratara, se bem que

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tivessem suas diferenças individuais, possuíam emcomum uma qualidade difícil de definir, para a qual nãoencontrava denominação melhor do que "ausência deidade". Além disso, eram todos dotados de uma serenainteligência que se manifestava agradavelmente por meiode opiniões comedidas e bem meditadas. Sentia Conwayuma simpatia instantânea por essa espécie de gente enotava que eles o percebiam e lhe eram gratos. Achou-lhes o trato tão agradável como o de qualquer outra roda

de pessoas cultas com quem pudesse ter feitoconhecimento, embora lhe viesse muitas vezes umasensação de estranheza, quando os ouvia aludir com tantanaturalidade a remotas recordações. Um homem decabelos brancos e expressão benévola, por exemplo, lhe perguntara após ligeira palestra se lhe interessavam asirmãs Brontë. Respondeu Conway que sim até certo

 ponto, e o outro prosseguiu: — Pois sucede que eu fui cura no West Riding, lá

 por 1840, e uma vez visitei Haworth, hospedando-me no"Parsonage". Depois de me achar aqui iniciei um estudosobre o problema Brontë, e estou mesmo escrevendo umlivro. Talvez queira examinar comigo o assunto qualquer dia destes?

Conway deu uma resposta cordial e depois, quandoficou a sós com Tchang, fez comentários em torno davividez com que os lamas pareciam recordar a suaexistência anterior à vinda para o Tibete. RespondeuTchang que isto fazia parte dos seus exercícios habituais.

 — Veja, meu caro senhor: um dos primeiros passosno sentido de clarificar a mente é a obtenção de um pano-

rama da própria vida passada, e este, como qualquer outro panorama, é mais nítido em perspectiva. Quando tiver  permanecido bastante tempo entre nós, verá a sua vida

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 passada focalizar-se pouco a pouco, como um objeto visto por um telescópio a que se ajustam as lentes. Tudo se lheapresentará tranqüilo e claro, nas devidas proporções ecom sua verdadeira significação. Seu novo amigo, por exemplo, percebe que o grande momento da sua existênciaocorreu na mocidade, quando ele visitou uma casa ondevivia um velho ministro em companhia de três filhas.

 — Suponho, então, que deverei tratar de recordar osmeus grandes momentos?

 — Não será necessário nenhum esforço. Eles virãonaturalmente.

 — Não sei se os receberei com muita satisfação — respondeu Conway com melancolia.

Mas, fosse qual fosse o passado, a verdade é quecomeçava a sentir-se feliz no presente. Quando se distraíalendo na biblioteca ou tocando Mozart no salão de música,

sentia muitas vezes invadi-lo profunda emoção espiritual,como se Shangri-Lá fosse uma essência viva, destilada noalambique mágico dos séculos e milagrosamente preser-vada do tempo e da morte. Em tais momentos lhe vinha aoespírito, de maneira memorável, sua conversação com oLama Superior. Sentia que uma calma inteligência vigiavacom bondade cada uma de suas diversões, confiando-lhe

ao ouvido e à vista mil segredos tranqüilizadores. Assim, punha-se a escutar enquanto Lo-Tsen dominava algumafuga complicada, imaginando o que se ocultaria no fundodo sorriso vago que lhe agitava os lábios como uma flor que se abrisse. Ela falava muito pouco, embora já soubesseque Conway conhecia o seu idioma. Diante de Mallinson,que por vezes visitava a sala de música, ficava quase sem-

 pre calada. Mas Conway distinguia o encanto que os seussilêncios exprimiam com perfeição.Uma vez interrogou Tchang sobre o seu passado e

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soube que ela descendia da família real manchu. — Era a prometida de um príncipe do Turquestão e

viajava para Kashgar a fim de encontrar-se com ele, quan-do seus carregadores se perderam nas montanhas. Todosteriam sem dúvida perecido se os nossos emissários nãolhes houvessem saído ao encontro, como habitualmentefaziam.

 — Quando sucedeu isso? — Em 1884. Ela contava dezoito anos.

 — Dezoito anos naquele tempo?Tchang fez uma cortesia. — Sim, tivemos muito êxito com ela, como o senhor 

mesmo pode verificar. Seus progressos têm sidoconstantes e excelentes.

 — Como encarou a situação quando aqui chegou? — Talvez lhe houvesse custado mais do que a outros

aceitá-la. Não que protestasse, mas percebemos que ficou perturbada por algum tempo. Era, já se vê, um aconteci-mento nada comum: interceptar uma moça que iacasar. . . Todos nós tínhamos particular interesse em queela fosse feliz aqui.

Tchang sorriu docemente e acrescentou: — Receio que a excitação do amor não se deixe ven-

cer facilmente, mas cinco anos foram mais que bastantes para isso. — Devia ser muito afeiçoada ao homem com quem ia

casar. — Não se pode dizer que fosse isso, meu caro

senhor, pois nunca o tinha visto. Tal era o costume antigo,como sabe. Sua afeição era completamente impessoal.

Conway concordou e sentiu uma leve ternura por Lo-Tsen. Imaginou-a como devia ter sido meio século atrás,escultural na sua liteira decorativa que os carregadores

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conduziam pelo planalto em fora, os olhos fixos nas mon-tanhas varridas pelos ventos e que lhe deviam parecer aspérrimas em comparação com os jardins e os lagos delotos que deixara no nascente.

 — Pobre criança! — disse, pensando naquela frágilelegância, prisioneira por tão longos anos. Agora que lheconhecia a história, mais o deleitava sua tranqüilidade eseus silêncios. Era como um lindo vaso, precioso e frio,sem outro adorno que um raio de luz fugitivo.

Sentia-se também deleitado, embora com menos enle-vo, quando Briac lhe falava em Chopin e tocava commuito brilho as velhas melodias. Verificou que o francêsconhecia diversas composições de Chopin que não tinhamsido publicadas e, como ele as houvesse escrito, Conwaydedicava agradáveis horas a decorá-las. Achava certosabor picante em refletir que nem Cortot nem Pachmann

haviam sido tão felizes. Não acabavam aí, porém, as recor-dações musicais de Briac; continuamente lhe vinham àmemória trechos que o compositor lançara fora ou impro-visara em determinadas ocasiões. Punha-os em pauta à me-dida que os ia recordando, e alguns deles eram fragmentosdeliciosos.

 — Briac — explicou Tchang — iniciou-se há pouco

tempo. Deve desculpá-lo, pois, se fala tanto em Chopin.Os lamas mais jovens preocupam-se naturalmente com o passado; é um passo necessário à contemplação do futuro.

 — E esta, suponho, é a tarefa dos mais velhos. — Sim. O Lama Superior, por exemplo, leva quase

toda a sua existência em meditações clarividentes.Conway refletiu um instante e disse:

 — A propósito, quando pensa que voltarei a vê-lo? — Sem dúvida no fim dos seus primeiros cinco anosaqui, meu caro senhor.

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Enganava-se Tchang, porém, nesta confiante profecia;menos de um mês depois de sua chegada a Shangri-Lá foiConway novamente chamado à tórrida sala. Tchang lhedissera que o Lama Superior nunca saía dos seus aposen-tos, cuja atmosfera quente lhe era necessária à vida corpo-ral. Assim prevenido, Conway achou menos incômoda queantes a mudança de temperatura. Na verdade, começou arespirar com facilidade logo depois de saudá-lo e de rece- ber em resposta uma cintilação mais viva daqueles olhos

fundos. Sentia-se em comunhão com o espírito que moravaatrás deles, e, embora soubesse que esta segundaentrevista, tão próxima da primeira, era uma honra sem precedentes, não estava em absoluto nervoso nemsucumbia à solenidade do momento. O fator da idade nãotinha para ele mais importância que o da classe ou da cor,e jamais fora obstáculo à sua amizade por uma pessoa o

fato de ser esta demasiado jovem ou demasiado velha. OLama Superior lhe inspirava sincero respeito, mas não via por que suas relações deixassem de ser cordiais.

Trocaram as habituais cortesias e Conway respondeua muitas perguntas amáveis. Disse que estava gostandomuito daquela vida e já fizera amizades.

 — E não revelou os nossos segredos aos seus três

companheiros? — Não, até agora. Foi difícil algumas vezes, mas provavelmente muito menos do que se eu lhes tivessefalado.

 — Justamente como eu presumia. O senhor procedeuda maneira que achou melhor. Esta situação difícil, afinalde contas, é apenas temporária. Disse-me Tchang que,

segundo pensa, dois deles darão poucos cuidados. — Acho que é verdade. — E o terceiro?

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 — Mallinson é um rapaz excitável, só pensa em vol-tar — respondeu Conway.

 — Gosta dele? — Sim, quero-lhe bem. Neste momento apareceram as taças de chá e a con-

versa tornou-se menos grave entre os goles de líquido per-fumado. Era uma acertada convenção que permitia dar à palestra um tom de deliciosa frivolidade, ao qual seconformava de bom grado. Quando o Lama Superior 

 perguntou se Shangri-Lá não lhe era uma experiênciainédita e se o mundo ocidental podia oferecer algosemelhante, respondeu com um sorriso:

 — Creio que sim. Para ser franco, lembra-me muitoligeiramente Oxford, onde fiz preleções. O cenário émenos belo, mas os temas de estudo também são muitasvezes destituídos de senso prático, e embora o mais antigo

dos mestres não seja tão velho, parece chegar à velhice por um caminho semelhante.

 — O senhor tem senso de humor, meu caro Conway — observou o Lama Superior —, e nós lhe seremos gratos por essa qualidade durante os anos que hão de vir.

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CAPÍTULO X

 — Extraordinário — foi o comentário de Tchang aosaber que Conway tivera nova entrevista com o Lama

Superior. Vindo de uma pessoa tão refratária ao uso desuperlativos, a palavra era significativa. Jamais havia issoacontecido, acentuou, desde que se estabelecera a praxe dacomunidade. Jamais o Lama Superior desejara um segundoencontro, antes que os cinco anos de provação tivessemexpurgado todas as emoções do exilado.

 — Porque, como pode compreender, o falar com

recém-chegados em geral exige-lhe grande esforço. A sim- ples presença das paixões humanas lhe é desagradável e,na sua idade, torna-se um aborrecimento quase intolerável. Não que eu duvide da sabedoria do seu procedimento. Elenos dá uma lição de grande valor, qual seja, a de quemesmo as regras fixas da nossa comunidade são apenasmoderadamente fixas. Mas, de qualquer modo é extraordi-

nário.Para Conway, naturalmente, isso não era maisextraordinário do que tudo mais ali, e depois de visitar oLama Superior uma terceira e quarta vez começou a achar que não era de nenhum modo extraordinário. Parecia, naverdade, haver qualquer coisa de predestinado na facili-dade com que se harmonizavam os espíritos de ambos.

Dir-se-ia que todas as secretas agitações de Conway seacalmavam, deixando-lhe, quando se retirava, uma ricaserenidade. Por vezes tinha a sensação de estar 

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completamente subjugado pela força daquela inteligênciadiretriz, e diante das pequenas taças azul-pálidas otrabalho do cérebro se estremecia numa vivacidade tãodelicada e miniatural que lhe dava a impressão de umteorema a dissolver-se limpidamente num soneto.

Suas conversas abrangiam destemidamente todos osassuntos. Filosofias inteiras eram esmiuçadas; as longasavenidas da história desdobravam-se e adquiriam nova perspectiva. Para Conway era uma experiência maravi-

lhosa, mas nem por isso se desprendia do senso crítico, ecerta vez, tendo ele argüido sobre um ponto, o Lama Supe-rior replicou:

 — Meu filho, é jovem nos anos, mas percebo que oseu discernimento tem a madureza da velhice. Por certohão de ter-lhe ocorrido coisas extraordinárias na vida.

Conway sorriu.

 — Não mais extraordinárias do que as que sucederama muitos outros da minha geração.

 — Ainda não encontrara um homem como o senhor.Conway respondeu após um intervalo: — Não há grande mistério nisso. O que em mim lhe

 parece próprio de um velho corre por conta de uma intensae prematura experiência. Minha vida entre os dezenove e

os vinte e dois anos foi uma educação incomparável, nãoresta dúvida, mas algo exaustiva. — Foi muito infeliz na guerra? — Muito, não. Excitava-me, tinha impulsos suicidas,

sentia medo, era temerário, e às vezes ficava possuído deuma fúria terrível. Como milhões de outros, aliás.Emborrachava-me, matava e gozava por atacado. Era o

abuso de todas as emoções, e saímos de lá, os queconseguiram escapar, sob o domínio de um fastio e umaagitação desmedidos. Foi isso que fez tão difíceis os anos

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que se seguiram. Não creia que esteja exagerando atragédia. Tudo considerado, fui bastante feliz depois. Mastem sido qualquer coisa comparável a estar numa escolasob a direção dum brutamontes: há muito que divertir-se para quem se sente inclinado a isso, mas arruína os nervose em suma não é muito satisfatório. Creio que verifiqueiisso com mais clareza do que muita gente.

 — E foi assim que continuou a sua educação?Conway encolheu os ombros.

 — Talvez a exaustão das paixões seja o começo dasabedoria, se me permite alterar a máxima.

 — Essa, meu filho, é também a doutrina deShangri-Lá.

 — Eu sei. É por isso que me sinto como em casa.

Tinha dito a pura verdade. À medida que passavam osdias e as semanas, ia experimentando um contentamento profundo que unia corpo e espírito num só todo. ComoPerrault, Henschell e os outros, estava sendo dominado pelo feitiço. A Lua Azul tomara posse dele e não haviacomo escapar. Cintilavam as montanhas ao redor, for-mando um muro de inacessível pureza, de onde seus olhos

deslumbrados baixavam para o abismo verde do vale. Oquadro todo era incomparável e, quando ouvia, na outramargem do lago, a argentina monotonia do cravo,afigurava-se-lhe que era ele que tecia aquela harmonia perfeita da vista e do som.

Estava, e bem o sabia, serenamente enamorado da pequena manchu. Seu amor nada pedia, nem sequer ser 

correspondido. Era um tributo do espírito, ao qual os senti-dos apenas emprestavam um sabor. Lo-Tsen era para ele osímbolo de todas as coisas delicadas e frágeis. Suas

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cortesias estilizadas e o leve toque de seus dedos noteclado lhe davam uma sensação de intimidadecompletamente satisfatória. Algumas vezes lhe falava numtom que os poderia levar, se ela o desejasse, a umaconversa menos cerimoniosa. Mas as respostas de Lo-Tsennunca revelavam o delicado segredo dos seus pensamentose, em certo sentido, ele não desejava que assim fosse.Conhecia já uma das facetas da jóia prometida; para omais que desejasse dispunha do Tempo, tanto tempo que o

 próprio desejo se apagava na certeza da realização. Dentrode um ano, de uma década, teria ainda tempo. A visãoganhava intensidade e ele se sentia feliz.

Também às vezes se voltava para a sua outra vida eenfrentava a impaciência de Mallinson, a jovialidade deBarnard e a firme intenção de Miss Brinklow. Havia dealegrar-se quando todos soubessem o que ele sabia; e,

como Tchang, tinha a impressão de que nem o americanonem a missionária seriam difíceis de persuadir. Achoumesmo graça uma ocasião que Barnard disse:

 — Sabe, Conway? Quer-me parecer que isto nãoseria tão mau lugar para fixar residência nele. No começo pensei que ia sentir falta dos jornais e do cinema, masagora vejo que a gente pode se acostumar a tudo.

 — Também penso assim — concordou Conway.Soube depois que Tchang tinha levado Barnard aovale, atendendo a um pedido dele, para gozar tudo o que osrecursos da localidade ofereciam a quem quisesse passar "uma noite fora". Mallinson, quando teve conhecimentodisto, encheu-se de desdém.

 — Com certeza andou bebendo — disse a Conway.

E para o próprio Barnard comentou: — Naturalmente, nada tenho que ver com isso, mas,como sabe, você precisa conservar-se em muito boa forma

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 para a jornada. Os carregadores devem vir dentro de unsquinze dias, e pelo que inferi a volta não será propriamenteuma viagem de recreio.

Barnard concordou de boa sombra: — Nunca acreditei que a volta seria fácil. Quanto a

conservar-me em forma, acho que há muitos anos não mesentia tão bem disposto como agora. Faço o meu exercíciodiário, não tenho nada que me aborreça e os donos desses botecos lá do vale não deixam a gente se exceder. Modera-

ção, já sabe. . . É o lema da firma. — Sim, não duvido que se tenha divertido moderada-

mente — disse Mallinson com acrimônia. — Claro que sim. Este estabelecimento atende a

todos os gostos. Há quem tenha mais prazer em ouvir chinesinhas tocar piano, não é verdade? Não se pode cen-surar as pessoas pelas preferências.

Conway não se deu por achado. Mallinson, porém,enrubesceu como um colegial.

 — Mas pode-se mandar para a cadeia quando mos-tram preferência pela propriedade alheia — retorquiu. Afúria o tornava mordaz.

 — Sim, quando se consegue apanhá-las.O americano arreganhou os dentes afavelmente e

 prosseguiu: — E isto me lembra uma coisa que é melhor dizer-lhes de uma vez, já que tocamos no assunto. Resolvi lograr esses carregadores. Acho que eles vêm aqui regularmente.Esperarei pela próxima vinda — ou talvez pela terceira.Isso, bem entendido, se os monges me derem crédito paraas despesas de hospedagem. . .

 — Quer dizer que não irá conosco? — Isso mesmo. Decidi ficar algum tempo aqui. Paraos senhores está tudo muito bem. Serão recebidos com

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 bandas de música, mas eu... só tenho a polícia à minhaespera. E quanto mais penso nisso mais me desagrada. . .

 — Por outras palavras, tem medo de enfrentar aorquestra?

 — De fato, jamais gostei de orquestras. — Isto é assunto seu — tornou Mallinson com frio

desdém. — Ninguém pode impedi-lo de enterrar-se aqui para toda a vida se esse é o seu desejo.

E, olhando em torno como a pedir o apoio dos outros:

 — Nem todos pensarão assim, mas reconheço que osgostos diferem. Que diz você, Conway?

 — Concordo. Os gostos diferem.Voltou-se Mallinson para Miss Brinklow, que subita-

mente deixou o livro de lado e declarou: — O caso é que eu também penso ficar. — O quê? — gritaram todos a um tempo.

Ela prosseguiu, com um claro sorriso que mais pare-cia um reflexo do que uma iluminação interior:

 — Pois é, estive meditando sobre os acontecimentosque nos trouxeram aqui e pude chegar apenas a umaconclusão: há algum poder misterioso atrás dos bastidores. Não lhe parece, Mr. Conway?

Talvez Conway experimentasse dificuldade em res-

 ponder, se Miss Brinklow não se tivesse apressado acontinuar: — Quem sou eu para discutir os ditames da Provi-

dência? Fui trazida aqui para algum fim, e aqui ficarei. — Espera fundar uma missão neste lugar? — per-

guntou Mallinson. — Não só espero como tenho a firme intenção. Sei

tratar com esta gente. Hei de impor a minha vontade, nãotenham receio. Nenhum deles possui verdadeira fibra. — E pretende dar-lhes alguma?

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 — Pretendo, sim, Mr. Mallinson. Oponho-me decidi-damente a esta idéia de moderação sobre a qual tantotemos ouvido falar. Podem chamar-lhe largueza de vistasse quiserem, mas na minha opinião ela conduz à pior espé-cie de licenciosidade. Todo o mal desta gente é a tal lar-gueza de vistas, e tenciono combatê-la com todas as mi-nhas forças.

 — E eles têm vistas tão largas que lhe permitirãoisso? — interpôs Conway, sorrindo.

 — Ou então ela é tão resoluta que não são capazes delhe resistir — acudiu Barnard. E acrescentou numa risada: — É justamente como eu disse: este estabelecimentoatende a todos os gostos.

 — É possível, se você  gosta da prisão — repontouMallinson.

 — Bem, até sobre este assunto há dois modos de ver.

Meu Deus, quando se pensa em toda a gente que dariatudo o que tem para sair da balbúrdia e vir descansar numlugar como este, e não pode sair! Seria o caso de perguntar quem está preso: nós ou eles?

 — Consoladora reflexão para um macaco encerradonuma jaula — replicou Mallinson, sempre furioso.

Mais tarde encontrou-se a sós com Conway.

 — Esse sujeito me rói os nervos — dizia, passeando pelo pátio. — Não sentirei a falta da sua companhia quan-do voltarmos. Você me pode julgar demasiado suscetível,mas não achei graça naquela indireta sobre a chinesa.

Conway tomou-lhe o braço. Tornava-se-lhe cada vezmais claro que tinha muita afeição ao rapaz, e as últimassemanas de convívio haviam tornado mais profundo esse

sentimento, apesar das discordâncias de gênio. — Julguei que ele visasse a mim, e não a você — respondeu.

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 — Não, tenho certeza de que era comigo. Ele sabeque estou interessado nela. Estou mesmo, Conway. Não posso descobrir por que vive aqui e se lhe agradarealmente viver aqui. Meu Deus, se eu falasse como vocêo idioma dela, já teria posto tudo em pratos limpos.

 — Será mesmo que o faria? Ela não é de muita con-versa, como sabe.

 — O que me espanta é que você não lhe tenha feitotoda sorte de perguntas.

 — Não creio que gostasse muito de passar por maçante.

Teve vontade de dizer mais alguma coisa, mas reteve-o de súbito aquele sentimento de piedade e de ironia, que oenvolveu à maneira de uma névoa fina. O ardente e impe-tuoso rapaz não se conformaria tão facilmente. E Conwaylimitou-se a acrescentar:

 — No seu lugar, eu não me preocuparia tanto comLo-Tsen. Ela é bastante feliz.

A decisão que tinham tomado Barnard e MissBrinklow de ficar atrás afigurou-se excelente a Conway,embora parecesse colocá-los, a ele e a Mallinson,

temporariamente, num mesmo campo oposto. Era umasituação extraordinária e não tinha plano definido paraenfrentá-la.

Felizmente, parecia não haver necessidade de tomar qualquer atitude por enquanto. Até que decorressem doismeses não poderia suceder coisa de maior. E depois, quan-do sobreviesse a crise, não seria menos aguda por ter ele

tentado preparar-se para recebê-la. Por esta e por outrasrazões, não desejava inquietar-se com o inevitável, emborativesse dito uma ocasião:

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 — Sabe, Tchang? Esse jovem Mallinson me deixa preocupado. Temo que receba muito mal as coisas quandovier a sabê-las.

Tchang concordou, com alguma simpatia: — Realmente, não será fácil persuadi-lo de sua boa

fortuna. Mas a dificuldade será, em suma, apenas temporá-ria. Dentro de vinte anos o nosso amigo estará inteira-mente conformado.

Pareceu a Conway que isto era encarar o assunto com

demasiada filosofia. — O que eu desejaria saber é como a verdade lhe

será revelada. Está contando os dias à espera dos carrega-dores, e se estes não vêm. . .

 — Mas virão. — Ah, sim? Eu imaginava que o que diziam sobre a

sua vinda fosse uma fábula amável destinada a entreter-

nos. — De modo algum. Embora não sejamos fanáticos

nesse ponto, é costume em Shangri-Lá ser moderadamenteverídico, e posso assegurar-lhe que as minhas informaçõesacerca dos carregadores eram quase exatas. De qualquer forma, nós os esperamos mais ou menos na época que eudisse.

 — Nesse caso, acharão difícil impedir que Mallinsonse vá com eles. — Mas não é nossa intenção impedi-lo. Ele desco-

 brirá simplesmente — sem dúvida por experiência própria — que os carregadores não estão dispostos a levar em suacompanhia a quem quer que seja, nem se acham em condi-ções de fazê-lo.

 — Compreendo. Esse é o método, então? E que espe-ram venha a acontecer depois? — Então, meu caro senhor, após um período de desi-

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lusão, ele começará — visto como é moço e otimista — aesperar que os novos carregadores, que deverão vir daqui anove ou dez meses, se mostrem mais tratáveis. E nós,como aconselha a prudência, não começaremos por dissuadi-lo dessa esperança.

Conway observou abruptamente: — Não estou muito seguro de que ele se acalmará

desse modo. Acho mais provável que procure um meio defugir.

 —   Fugir? Será esse realmente o termo apropriado?Afinal, o desfiladeiro está aberto a todos e em qualquer tempo. Não temos carcereiros, a não ser os que a próprianatureza instituiu.

 — Bem — respondeu Conway com um sorriso —,deve confessar que a natureza fez muito bem o trabalho.Mas, ainda assim, suponho que não confiem nela em todos

os casos. Que foi feito das diversas expedições que aquivieram ter? O desfiladeiro estava igualmente aberto paraelas quando desejavam regressar?

Tocou agora a Tchang a vez de sorrir. — Circunstâncias especiais, meu caro senhor, exigem

algumas vezes especial atenção. — Magnífico. De modo que só dão ensejo de fugir às

 pessoas quando sabem que seria loucura aproveitá-lo?Mesmo assim, alguns devem fazer a tentativa, não éverdade?

 — Bem, isso tem acontecido umas poucas vezes, mas por via de regra os que se ausentam voltam de bom grado,após uma noite passada no planalto.

 — Sem abrigo e sem roupas adequadas? Neste caso,

compreendo muito bem que os métodos suaves dos senho-res sejam tão eficazes quanto a mais rigorosa disciplina.Mas quanto aos casos mais raros daqueles que não

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voltam?  — O senhor mesmo respondeu à sua pergunta — 

replicou Tchang. —  Não voltam.Deu-se pressa, contudo, em acrescentar: — Posso assegurar-lhe, entretanto, que poucos foram

tão infortunados, e confio em que seu amigo não seja bas-tante temerário para lhes aumentar o número.

 Não achou Conway a resposta de todo tranqüilizadorae o futuro de Mallinson continuou sendo uma preo-

cupação. Desejava que fosse possível ao rapaz regressar com o consentimento dos lamas. Não era um fato sem precedentes, à vista do recente caso de Talu, o aviador.Tchang admitiu que as autoridades do mosteiro estavamarmadas de poderes suficientes para fazer tudo o queconsiderassem avisado.

 — Mas seria avisado, meu caro senhor, confiar-nos e

confiar o nosso futuro aos sentimentos de gratidão do seuamigo?

Compreendeu Conway que a objeção era procedente, pois a atitude de Mallinson poucas dúvidas deixava quantoao que faria tão logo regressasse à índia. Era o seu tema predileto e várias vezes discorrera sobre ele.

Mas tudo isso, é claro, pertencia à existência mundana

que pouco a pouco ia sendo expelida do seu espírito pelorico e penetrante mundo de Shangri-Lá. Salvo no que diziarespeito a Mallinson, sentia um contentamentoextraordinário. A estrutura lentamente revelada deste novomundo continuava a assombrá-lo pela sua complexaconformidade com os seus próprios gostos e necessidades.

Certa ocasião disse a Tchang:

 — A propósito, como é que os senhores encaixam oamor no seu plano de existência? Suponho que, às vezes,os que vêm para cá concebam afeição por alguém.

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 — Freqüentemente — respondeu Tchang com umvasto sorriso. — Os lamas, bem entendidos, são imunes, etambém todos os que atingimos certa idade, mas afinal decontas somos iguais aos outros homens — salvo, penso eu,no fato de sermos mais razoáveis do que eles. E isto mefornece um ensejo, Mr. Conway, para lhe assegurar que ahospitalidade de Shangri-Lá é muito compreensiva. O seuamigo Barnard já tirou proveito disso.

Conway devolveu-lhe o sorriso, mas respondeu

secamente: — Obrigado. Não duvido de que ele o tenha feito,

mas as minhas inclinações, ao menos por ora, não são tãoardentes. É antes o aspecto emocional do que o físico quedesperta a minha curiosidade.

 — Acha fácil separá-los um do outro? Será possívelque se esteja enamorando de Lo-Tsen?

Conway ficou um tanto confuso, mas julgou não o ter demonstrado.

 — Por que pergunta isso? — Porque, meu caro senhor, seria muito conveniente

que se enamorasse dela — uma vez, é claro, que o fizessecom moderação. Lo-Tsen não lhe iria corresponder apaixo-nadamente — isto seria esperar demasiado —, mas garan-

to-lhe que acharia deleitosa a experiência. Falo comautoridade, pois eu mesmo estive enamorado dela quandoera mais jovem.

 — Deveras? E correspondeu-lhe? — Apenas com a mais encantadora aceitação da

minha homenagem e com uma amizade que se tem tornadomais preciosa com o correr do tempo.

 — Por outras palavras, não lhe correspondeu? — Se prefere dizer assim. . .E Tchang acrescentou, um pouco sentenciosamente:

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 — Sempre foi seu costume poupar aos apaixonados omomento de saciedade que sobrevém a toda realizaçãoabsoluta de um desejo.

Conway riu. — Isto estará muito bem no seu caso e talvez no meu,

mas qual seria a atitude de um rapaz de sangue ardentecomo Mallinson?

 — Meu caro senhor, seria esse o mais auspicioso dosacontecimentos possíveis! Não seria a primeira vez, asse-

vero-lhe, que Lo-Tsen consolaria o exilado cheio de deses- pero por saber que daqui não sairá mais.

 —  Consolaria? — Sim, mas não deve tomar o termo em mau sentido.

Lo-Tsen não dispensa carícias, salvo aquelas que tocam ocoração dolorido e emanam da sua própria presença. Quediz o seu Shakespeare de Cleópatra? "Ela deixa faminto

quando mais satisfaz." Um tipo comum, sem dúvida, entreas raças apaixonadas, mas garanto-lhe que uma mulher assim estaria completamente desolada em Shangri-Lá. Lo-Tsen, se me permite emendar a passagem, elimina a fomequando menos satisfaz. É um efeito mais delicado e maisduradouro.

 — E ela deve ter grande habilidade em consegui-lo,

segundo presumo. — Oh! sem dúvida. Temos muitos exemplos disso.Seu hábito é acalmar a palpitação do desejo até reduzi-lo aum murmúrio que não deixa de ser agradável, mesmoquando não correspondido.

 — Nesse sentido, então, poderia ser consideradacomo fazendo parte do aparelhamento educativo do

estabelecimento? — Pode considerá-la assim, se deseja — replicouTchang em tom de brando protesto; — mas seria muito

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mais gracioso, e não menos verdadeiro, compará-la aoarco-íris refletido num vaso de cristal, ou à gota de orvalhodepositada na flor da macieira.

 — Concordo plenamente consigo, Tchang. Isso seriamuito mais gracioso.

Conway apreciava as réplicas ágeis e comedidas queo chinês opunha muitas vezes às suas bem-humoradas provocações.

Mas na próxima vez que se encontrou a sós com a

 pequena manchu verificou que eram muito sagazes asobservações de Tchang. Emanava dela certa fragrância quese comunicava às emoções de Conway, ativando as cinzasde um fogo que não queimava mas apenas aquecia. E desúbito compreendeu que Shangri-Lá e Lo-Tsen eram per-feitos, e não desejou outra coisa senão despertar uma páli-da e eventual correspondência em toda aquela tranqüili-

dade. Durante anos, suas paixões tinham sido como umnervo que o mundo arranhava; agora, a dor se acalmava por fim e ele podia abandonar-se a um amor que não eratortura nem aborrecimento. Quando passava às vezes pelolago dos lotos, imaginava-a nos seus braços, mas a cons-ciência do tempo apagava-lhe a visão, acalmando-a,inspirando-lhe uma infinita e terna relutância.

Pensava que jamais fora tão feliz, mesmo durante osanos de sua vida que ficavam atrás da grande barreira daguerra. Amava o mundo sereno que lhe oferecia Shangri-Lá, mundo mais pacificado que dominado por aquela idéiaúnica e tremenda. Agradava-lhe aquela disposição deânimo predominante, na qual os sentimentos eramenvoltos em pensamentos e estes se transformavam em

felicidade pelas simples expressão verbal. Conway, aquem a experiência ensinara que a rudeza não é emabsoluto uma garantia de boa fé, era ainda menos

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inclinado a ver nas frases bem torneadas uma prova deinsinceridade. Apreciava o ambiente pausado e maneiroso,em que a conversa era uma arte, e não mero hábito. Ecomprazia-se em pensar que as coisas mais frívolasestavam agora livres da ameaça do tempo perdido, e oespírito podia acolher os sonhos mais frágeis.

Shangri-Lá era sempre tranqüilo, embora não dei-xasse de ser uma colméia de compassadas atividades. Vi-viam os lamas, na verdade, como se levassem o tempo em

conta, mas este, na sua balança, pesasse tanto como uma pluma. Sem que fizesse novos conhecimentos entre eles,Conway foi aos poucos verificando, no entanto, aextensão e a variedade das suas ocupações. Além do seusaber lingüístico, alguns deles, segundo pôde ver,navegavam em pleno mar da ciência, de um modo que provocaria assombro no mundo ocidental. Muitos

escreviam obras manuscritas, de várias espécies. Umdeles, conforme disse Tchang, realizara valiosas pesquisasno domínio da matemática pura. Outro estavacoordenando Gibbon e Spengler na formação de umavasta tese sobre a história da civilização européia. Masnem todos se entregavam a essa espécie de estudos, nemse ocupavam neles todo o tempo. Havia muitos canais

estanques em que se metiam por mero capricho,registrando, como Briac, fragmentos de velhas melodiasou, como o ex-cura inglês, elaborando nova teoria sobre ocaso de O Morro dos Ventos Uivantes. E havia coisasainda menos práticas do que estas. Certa vez, quandoConway fez um reparo nesse sentido, contou-lhe o LamaSuperior, em resposta, a história de um artista chinês que

viveu no terceiro século antes de Cristo e que, tendo des- pendido muitos anos em esculpir dragões, pássaros ecavalos num caroço de cereja, ofereceu o trabalho

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concluído a um príncipe real. De início, o príncipe nada podia ver senão um caroço, mas o artista o aconselhou a"mandar construir um muro e neste abrir uma janela, eobservar o caroço através da janela, no esplendor damanhã". Assim fez o príncipe, e percebeu então que ocaroço era na verdade belíssimo.

 — Não é uma história encantadora, meu caroConway, e não lhe parece que encerra uma preciosa lição?

Conway concordou. Era-lhe grato constatar que a se-

rena finalidade de Shangri-Lá abrangia um número infinitode ocupações estranhas e aparentemente triviais, pois elemesmo sempre tivera gosto por tais coisas. Quandocontemplava o seu passado, via-o povoado de idéias detrabalhos, ou muito vagos ou demasiado grandes para serealizarem, mas que agora se faziam possíveis, mesmocomo meio de ocupar o ócio. Deleitava-se com esta pers-

 pectiva e não se sentiu disposto a mofa quando Barnardlhe confiou que também encarava com interesse o seufuturo em Shangri-Lá.

Ao parecer, as excursões de Barnard no vale, que por último se haviam tornado mais freqüentes, não eram intei-ramente dedicadas à bebida e às mulheres.

 — Veja, Conway, eu lhe digo isto porque você é

diferente de Mallinson... Ele tem raiva de mim, como provavelmente já observou. Mas acho que você poderácompreender melhor a situação. Coisa esquisita. . .os funcionários ingleses parecem tão formalistas, tãoengomados, a princípio, mas afinal a verdade é que se pode ter inteira confiança em homens assim.

 — Não lhe garanto — redargüiu Conway, sorrindo.

 — Olhe que Mallinson é tão funcionário inglês quanto eu. — Sim, mas é uma criança ainda. Não encara os fatosde um modo razoável. Você e eu somos homens do

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mundo, tomamos as coisas como elas vêm. Esta casa aqui por exemplo. . . Ainda não compreendemos nada de tudoisto, nem sabemos por que nos trouxeram aqui, mas afinalde contas não são assim todos os caminhos da vida? Acasosabemos por que estamos neste mundo?

 — Talvez muitos dentre nós não o saibam. Masaonde quer chegar?

Barnard baixou a voz, que se fez um murmúrio umtanto rouco.

 — Ouro, meu amigo — respondeu, meio extático. —  Nem mais nem menos. Toneladas de ouro, literalmentetoneladas, no vale! Em moço fui engenheiro de minas enão me esqueci de como se reconhece um veio. Acredite-me, este é tão rico como o Rand e dez vezes mais fácil deexplorar. Com certeza você pensava que eu ia para a pân-dega todas as vezes que lá descia na cadeirinha. Qual

nada! Sabia o que estava fazendo. Olhe, eu vinharuminando há muito que estes camaradas não podiamadquirir tudo o que lhes vem de fora sem pagar um preçoelevadíssimo; e com que haviam de pagar, a não ser comouro, prata, diamantes ou qualquer coisa desse jaez?Lógica simples, não é? Comecei então a bisbilhotar por aíe não tardei muito a desvendar o mistério.

 — Desvendou-o sozinho? — Bem.. . não de um todo, mas fiz as minhasconjeturas e então expus a coisa a Tchang — francamente,ouça bem, de homem a homem. E creia-me, Conway, essechim não é um sujeito tão mau como seria de pensar.

 — Por minha parte, nunca o considerei mau sujeito. — Sim, sei que você sempre simpatizou com ele, e

não estranhará que nos tenhamos entendido bem. A verda-de é que nos acertamos maravilhosamente. Mostrou-metodas as instalações da mina, e você há de ter interesse em

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saber que as autoridades me deram permissão de inspe-cionar todo o vale à vontade e preparar um relatóriocompleto. Que lhe parece, meu amigo? Pareceram muitosatisfeitos por dispor dos serviços de um perito, principalmente quando lhes disse que podia sugerir meiosde aumentar produção.

 — Vejo que você vai sentir-se como em sua casaaqui — disse Conway.

 — Bem, o fato é que encontrei uma ocupação, e isto

não é pouco. E a gente nunca sabe como vai acabar umacoisa. Pode ser que o pessoal lá na terra não faça tantaquestão de me meter na cadeia quando souberem que eulhes posso indicar uma nova mina de ouro. A única dificul-dade é esta: eles acreditariam na minha palavra?

 — Pode ser. A boa fé da humanidade é extraordi-nária.

Barnard assentiu com entusiasmo. — Alegra-me que você tenha compreendido, Conway.

E é sobre este ponto que podemos entrar num entendi-mento. Metade por metade em tudo, bem entendido. Tudoo que quero de você é que aponha a sua assinatura no meurelatório. Cônsul inglês et cetera e tal. Isso vale muito.

Riu-se Conway.

 — Havemos de tratar disso. Primeiro faça o seurelatório.Divertia-o a idéia desse negócio cuja realização era

tão improvável e ao mesmo tempo sentia-se contente por haver Barnard encontrado uma ocupação tão satisfatória.

Compartilhava desse sentimento o Lama Superior, aquem Conway visitava cada vez mais amiúde. Não raro iavê-lo a horas adiantadas da noite e ficava largo tempo, até

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muito depois de retirarem os criados as últimas taças dechá e serem mandados dormir. Nunca deixava o LamaSuperior de interrogá-lo sobre os progressos e o bem-estar de seus companheiros, e certa vez o inquiriu particular-mente acerca de suas profissões, forçosamente interrom- pidas desde a chegada a Shangri-Lá.

Conway respondeu em tom refletido: — Mallinson poderia ter uma bela carreira. É enér-

gico e tem ambição. Quanto aos outros dois... — ajuntou,

encolhendo os ombros — o fato é que lhes convém aestada aqui, pelo menos durante algum tempo.

 Notou um bruxuleio de luz através da janelaencortinada. Percebera um rumor de trovões ao atravessar os pátios em direção à sala, que se lhe tornara já tãofamiliar. Não ouvia, agora, som algum, e os grossosreposteiros amorteciam os relâmpagos reduzindo-os a

 pálidos vislumbres de claridade. — Sim — respondeu o Lama Superior. — Fizemos o

 possível para que ambos se sintam à vontade. MissBrinklow deseja converter-nos, e Mr. Barnard tambémgostaria de nos converter. . . numa companhia deresponsabilidade limitada. Projetos inofensivos, que osajudarão a passar agradavelmente o tempo. Mas quanto ao

seu jovem amigo, a quem nem o ouro nem a religião podem oferecer conforto —, que faremos dele? — Sim, vai tornar-se um problema. — Receio que se torne o seu problema. — Porque meu? Não teve Conway resposta imediata. O serviço de chá

foi introduzido naquele momento e o Lama Superior assu-

miu as maneiras de uma débil e ressequida hospitalidade. — O Karakal nos envia tormentas nesta época do ano — observou, adornando a conversação de acordo com o

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ritual. — O povo da Lua Azul acredita que elas são cau-sadas por demônios enraivecidos que andam soltos nosvastos espaços além do desfiladeiro. "Lá fora", dizem eles.Talvez tenha notado que no seu dialeto a expressãodesigna todo o resto do mundo. É claro que nada sabem de países como a França, a Inglaterra, ou mesmo a Índia.Imaginam que o terrível altiplano não tem fim. Para eles,tão abrigados no seu vale quente e sossegado, pareceinconcebível que um morador daqui deseje ir embora.

Supõem mesmo que todos os infelizes "forasteiros" anseiem por vir para cá. É uma simples questão de ponto de vista,não acha?

Conway recordou-se das observações semelhantes deBarnard e referiu-as.

 — Como ele é sensato! — comentou o Lama Supe-rior. — E é o primeiro americano que temos entre nós.

Fomos realmente felizes.Conway achou graça ao pensar que era uma felicidade

 para o mosteiro a aquisição de um homem que a polícia dedoze países procurava ativamente. Gostaria de comunicar o chiste, mas pareceu-lhe que seria preferível contar o próprio Barnard a sua história na ocasião azada. Limitou-se, pois, a dizer:

 — Não resta dúvida de que ele tem toda a razão, e háhoje em dia no mundo muita gente que teria satisfação emvir para cá.

 — Gente demais, meu caro Conway. Nós somos umúnico bote salva-vidas, afrontando os mares numa borrasca; podemos recolher alguns sobreviventes que oacaso nos depara, mas se todos os náufragos nos

alcançassem subissem a bordo correríamos risco de ir aofundo também. . . Mas deixemos de pensar nisso agora.Soube que tem discreteado com o nosso excelente Briac.

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Um encantador compatriota meu, embora não compartilhea sua opinião de que Chopin é o maior dos compositores.Quanto mim, como sabe, prefiro Mozart. . .

Somente depois de retirado o serviço de chá e deserem finalmente despedidos os criados foi que Conway seaventurou a repetir a sua pergunta que ficara sem resposta:

 — Falávamos a respeito de Mallinson e o senhor disse que ele seria o meu problema. Por que meu?

Então o Lama Superior respondeu muito simples-

mente: — Porque estou prestes a morrer, meu filho.A declaração parecia extraordinária, e por algum

tempo Conway não pôde articular uma palavra. Finalmenteo Lama Superior continuou:

 — Ficou surpreso? Mas é claro, meu amigo, quetodos somos mortais.. . mesmo em Shangri-Lá. E é possí-

vel que ainda me restem alguns momentos, ou quem sabealguns anos. . . Apenas lhe participo a singela verdade deque já vejo próximo o fim. É muito gentil em mostrar-seassim compungido, e não pretendo ocultar que, mesmo naminha idade, contempla-se a morte com certa melancolia.Por felicidade, pouco sobra de mim para morrer fisica-mente, e, quanto ao resto, todas as nossas religiões pos-

suem em comum um agradável otimismo. Sinto-mecontente, mas devo acostumar-me a uma estranhasensação durante as horas que me restam: devocompreender que só tenho tempo para uma coisa mais. Não imagina o que seja?

Conway permaneceu calado. — Ela te diz respeito, meu filho.

 — Faz-me uma grande honra. — Tenho em mente fazer muito mais do que isto.Inclinou-se Conway levemente, sem falar, e o Lama

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Superior, depois de aguardar por um momento, continuou: — Talvez saibas que a freqüência destas conversa-

ções não é usual aqui. Mas é da nossa tradição, se me permites o paradoxo, não sermos escravos da tradição. Não temos normas rígidas, nenhuma regra inflexível.Fazemos o que nos parece justo, guiados um tanto peloexemplo do passado, porém muito mais pela nossasabedoria presente e pela clarividência do futuro. E eis por que me sinto com ânimo de levar a cabo este último

intento.Conway guardava o mesmo silêncio. — Deponho em tuas mãos, meu filho, a herança e o

destino de Shangri-Lá.Relaxou-se por fim a tensão, e Conway sentiu atrás

dela o poder de uma persuasão suave e benigna. Os ecosmergulharam no silêncio, e só ficaram as pancadas do seu

coração, que batia como um gongo. Depois, interceptandoo ritmo, vieram as palavras:

 — Esperei-te, meu filho, durante longo tempo. Senta-do nesta sala, olhava a fisionomia dos recém-chegados, perscrutava-lhes os olhos e ouvia-lhes a voz, sempre naesperança de algum dia encontrar-te. Meus colegas enve-lheceram e adquiriram sabedoria, mas tu ainda tão jovem,

 possuis já a mesma sabedoria. Meu amigo, não é árdua atarefa que te lego, pois a nossa ordem só conhece cadeiasde seda. Ser brando e paciente, velar pelos tesouros doespírito, presidir com sabedoria e sigilo enquanto atempestade ruge lá fora — tudo isso te será muito simplese agradável, e sem dúvida encontrarás nessas coisas grandefelicidade.

De novo tentou Conway replicar, mas não pôde. Afi-nal, um forte relâmpago fez empalidecer as sombras e oincitou a exclamar:

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 — A tormenta. . . essa tormenta de que fala.. . — Será uma tormenta, meu filho, como jamais o

mundo viu outra igual. Não haverá segurança pelas armas,nem auxílio dos poderosos, nem resposta de ciência.Rugirá até que todas as flores da cultura tenham sidoespezinhadas e todas as coisas humanas se nivelem numvasto caos. Tal foi a minha visão quando Napoleão eraainda um nome desconhecido. E continuo a vê-la, maisclara a cada hora que passa. Podes dizer que me engano?

Conway respondeu: — Não, penso que pode ter razão. Uma catástrofe

semelhante aconteceu uma vez, e veio então a Idade dasTrevas, que durou quinhentos anos.

 — O paralelo não é inteiramente exato, porque essaIdade das Trevas não foi na realidade tão escura. Havia por toda parte clarões de lanternas, e, ainda que a luz sehouvesse apagado por completo na Europa, existiam ou-tros lumes, da China ao Peru, nos quais poderia ser denovo acesa. Mas a Idade das Trevas que está por vir cobri-rá o mundo todo como uma única mortalha. E não haveráescapatória nem refúgio, salvo os que forem demasiadosecretos para ser encontrados, ou tão humildes que nin-guém lhes dê atenção. E Shangri-Lá pode talvez ser ambasas coisas. O aviador que demanda as grandes cidades coma sua carga mortífera não passará por aqui, e, se o fizer,talvez não nos considere dignos de uma bomba.

 — E pensa que tudo isso acontecerá no meu tempo? — Acredito que sobreviverás à tormenta. E ainda

depois, através da longa época de desolação, poderás con-tinuar a viver, tornando-te mais velho, mais sábio e mais paciente. Conservarás a fragrância da nossa tradição eacrescentar-lhe-ás o toque do teu próprio espírito.

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Acolherás o estranho e lhe ensinarás as regras da sabedoriae da longa vida; e poderá acontecer que um dessesestranhos venha a suceder-te quando estiveres muitovelho. Para além desse ponto minha visão se turva, masainda vislumbro, a grande distância, um novo mundo quenasce das ruínas, agitando-se desajeitado, mas cheio deesperança, à procura dos legendários tesouros que perdeu.E estarão todos aqui, meu filho, ocultos por detrás dasmontanhas, no vale da Lua Azul, preservados como por milagre para um novo Renascimento. . .

Cessou a fala e sob os olhos de Conway o rosto banhou-se de remota beleza. Então desapareceu oresplendor e não quedou senão uma máscara, mergulhadana sombra e esfarelando-se como madeira velha. Estavacompletamente imóvel e tinha os olhos fechados.Observou-o Conway durante algum tempo e afinal, comose fosse num sonho, compreendeu que o Lama Superior estava morto.

Pareceu-lhe necessário referir a situação a uma reali-dade qualquer, a fim de que não se tornasse demasiadoestranha para ser acreditada, e com instintivo movimentode mão e olhos, consultou o relógio de pulso. Passava umquarto da meia-noite. Subitamente, quando atravessava asala dirigindo-se para a porta, ocorreu-lhe que não sabiasequer onde e como iria pedir auxílio. Os tibetanos, segun-do o costume, já se haviam todos recolhido e ele não tinhaidéia de como encontrar Tchang ou qualquer outro.Deteve-se indeciso no limiar do escuro corredor. Por uma janela pôde ver que o céu estava claro, embora asmontanhas ainda resplandecessem à luz dos relâmpagos,como um afresco prateado. E então, no meio daquelesonho sereno e envolvente, sentiu-se senhor de Shangri-

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Lá. Eram suas essas coisas amadas que o cercavam, essascoisas recônditas do espírito, entre as quais vivia comcrescente intensidade, longe da agitação do mundo. Seusolhos mergulharam nas sombras e prenderam-se aos pontinhos de ouro que faiscavam nas lacas soberbas eondulantes; e o aroma das angélicas, tão tênue que malchegava a ser uma sensação, atraía-o de peça em peça. Por fim deparou com a porta dos pátios e pôs-se a errar à beirado lago. A lua cheia singrava o céu por detrás do Karakal.Faltavam vinte minutos para as duas.

Mais tarde percebeu que Mallinson estava junto dele,que o tomava pelo braço e o levava dali com grande pres-sa. Não compreendia de que se tratava. Apenas ouvia avoz do rapaz, que falava muito agitado.

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CAPÍTULO XI

Chegaram à sala com sacadas, onde lhes eram servi-das as refeições. Mallinson ainda lhe apertava o braçoquase arrastando-o para diante.

 — Venha, Conway, temos tempo até o amanhecer  para arrumar as nossas coisas e ir embora. Grande notícia,homem! Imagino o que dirão amanhã o velho Barnard eMiss Brinklow, quando derem pela nossa falta. . . Enfim,ficam porque querem, e provavelmente viajaremos muitomelhor sem eles... Os carregadores estão a cerca de cincomilhas do desfiladeiro. Chegaram ontem com uma remessade livros e outras coisas. . . Amanhã vão voltar. . . Mostraque esses indivíduos tinham a intenção de nos enganar . . .nem nos avisaram. . . íamos ficar presos aqui até sabeDeus quando. , . Mas que tem você? Está doente?

Afundara-se Conway numa cadeira e estava inclinado para a frente, com os cotovelos na mesa. Passou a mão pelos olhos.

 — Doente? Não, penso que não. Talvez um pouco. . .cansado.

 — Deve ser a tormenta. Onde esteve todo essetempo? Há horas que estava à sua espera.

 — Estive. . . visitando o Lama Superior. — Ah, esse! Bem, em todo caso foi a última vez,

graças a Deus! — Sim, Mallinson, a última vez.

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Algo na voz de Conway e ainda mais no silêncio quese seguiu provocou irritação no moço.

 — Seria bom que não ficasse nessa moleza. Temosmuito que fazer, como sabe!

Conway retesou-se no esforço que fez para voltar à plena consciência.

 — Sinto muito — disse.Para experimentar seus nervos e a realidade de suas

sensações, acendeu um cigarro. Verificou que tanto as

mãos como os lábios estavam trêmulos. . — Receio não ter entendido bem. . . Diz você que os

carregadores. . .  — Sim, os carregadores, homem! Por favor, caia em

si! — Está pensando em ir com eles? —   Pensando?! Vou com eles, com o demônio! Estão

 pouco além da cordilheira. E temos de nos pôr em marchaimediatamente.

 —  Imediatamente? — Sim, sim, por que não?Conway fez nova tentativa para se transportar de um

mundo para o outro. Como o conseguisse em parte, dissefinalmente:

 — Você compreende, sem dúvida, que isso talveznão seja tão simples como parece?Mallinson estava amarrando umas botas tibetanas de

montanha e respondeu em frases entrecortadas: — Compreendo tudo. . . mas trata-se de uma coisa

que temos de fazer. . . e faremos, com a ajuda da sorte. . .se não perdermos tempo.

 — Não vejo como. . . — Ó Senhor! Conway, será que você recua diante detudo? Por acaso perdeu toda a fibra?

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A interpelação, um tanto apaixonada e um tantosardônica, ajudou Conway a tomar acordo de si.

 — Se perdi ou não, não vem ao caso; mas, se desejaque me explique, eu me explicarei. Quero expor-lhe deta-lhes importantes. Suponhamos que você atravesse odesfiladeiro e encontre os carregadores. Como sabe se elesquererão levá-lo? De que modo os induzirá a isso? Não lheocorreu que, ao contrário do que imagina, eles talvez semostrem pouco dispostos? Não pode apresentar-se diante

deles e pedir-lhes que o conduzam. É necessário entrar emnegociações, fazer um ajuste prévio. . .

 — Ou qualquer outra coisa que acarrete nova demora — exclamou Mallinson com violência. — Meu Deus, quehomem! Felizmente, não preciso contar com você paraarranjar as coisas. Porque elas estão arranjadas; os carre-gadores foram pagos adiantado e concordaram em nos

levar. E aqui estão as roupas e o equipamento para a via-gem, tudo pronto. Assim, a sua última escusa desaparece.Venha daí, façamos alguma coisa!

 — Mas... eu não compreendo. . . — Eu sei disso, mas não importa. — Quem foi que organizou todos esses planos?Mallinson respondeu com brusquidão:

 — Pois se faz questão de saber, foi Lo-Tsen. Já estácom os carregadores à nossa espera. — À nossa espera? — Sim, ela vai conosco. Creio que você não se opõe.

À menção de Lo-Tsen, os dois mundos entraram em

contato e fundiram-se instantaneamente no espírito deConway. Gritou vivamente quase com desprezo: — Isto é um disparate. É impossível!

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Mallinson, por sua vez, perguntou cortante: — Por que impossível? — Porque. . . bem, porque é. Há uma série de

razões. Creia-me, isso não pode dar certo. Já é bastanteincrível que ela esteja lá fora neste instante. . . espantou-me o que você disse. . . mas a idéia de Lo-Tsen ir conoscoé simplesmente absurda. 

 — Não vejo por que possa ser absurda, afinal decontas. É tão natural que ela queira ir! É aí que você se

engana.Mallinson sorriu nervosamente. — Você pensa que a conhece muito melhor do que

eu. Mas talvez não conheça, apesar de tudo. — Que quer dizer? — Há outros meios de entender as pessoas, sem que

seja preciso aprender dúzias de línguas.

 — Em nome do céu, aonde quer você chegar?E, mais calmo, Conway acrescentou: — Isto não tem pés nem cabeça. Não devemos discu-

tir. Diga-me, Mallinson, o que significa tudo isso? Atéagora não entendi nada.

 — Então por que está fazendo tamanho barulho? — Diga-me a verdade; por favor, diga-me a verdade!

 — Bem, é bastante simples. Uma garota dessa idade,encerrada aqui entre velhos excêntricos. . . é natural quequeira ir embora se lhe dão um ensejo. Até agora não seapresentara nenhum.

 — Não imagina que possa estar enganado, atribuin-do-lhe uma situação que é puramente sua? Como semprelhe tenho dito, ela é perfeitamente feliz.

 — Então por que concordou em ir embora? — Disse isto? Como podia fazê-lo, se não sabeinglês? 

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de um inferno, não se costuma indagar se esse alguém tem para onde ir.

 — E considera um inferno Shangri-Lá? — Positivamente. Há neste ambiente qualquer coisa

de tenebroso e diabólico. Nosso próprio caso demonstra-o bem, desde o princípio; a maneira como fomos trazidos para cá, sem o menor motivo, por algum maluco, e o modocomo nos foram retendo, sob um pretexto ou outro. Porémo mais assustador de tudo, a meu ver, foi o efeito que pro-duziu em você.

 — Em mim? — Sim, em você. Você deu para andar na lua, como

se nada lhe importasse e como se estivesse conformado aficar aqui para sempre. Pois se chegou a reconhecer queeste lugar lhe agradava!. .. Que foi que lhe sucedeu,Conway? Será que não pode voltar a ser como era antes? Nós nos entendíamos tão bem em Baskul. . . Você eracompletamente outro, então.

 — Meu bom rapaz!Conway estendeu a mão a Mallinson, que a apertou

com afeição veemente e impetuosa, prosseguindo: — Suponho que não o tenha notado, mas me senti

terrivelmente só estas últimas semanas. Ninguém pareciaimportar-se com a única coisa que era realmente importan-te... Barnard e Miss Brinklow tinham lá seus motivos, masfiquei aterrado quando descobri que você também estavacontra mim.

 — Lamento-o deveras. — Você repete sempre isto, mas de que serve?Conway replicou, levado por um impulso repentino: — Bem, deixe-me ajudá-lo, se for possível,

contando-lhe certas coisas. Depois de ouvi-las, estou certo

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de que compreenderá grande parte do que agora lhe pareceestranho e obscuro. Pelo menos, compreenderá por queLo-Tsen não pode voltar em sua companhia.

— Creio que não há nada que me possa convencer disso. E abrevie o mais possível o que tem para dizer, poisnão podemos perder tempo.

Conway então contou, o mais resumidamente que pôde, toda a história de Shangri-Lá tal como a ouvira doLama Superior, acrescida de novos detalhes colhidos nasconversações com este e com Tchang. Era uma coisa quenão pretendia fazer, mas sentia que nas atuais circuns-tâncias isso era justificável e até necessário. Mallinsontornara-se, na verdade, o seu problema, e estava empe-nhado em resolvê-lo. Narrou tudo com rapidez e fluência,e ao fazê-lo caiu de novo sob o sortilégio daquele estranhomundo exterior ao tempo. A beleza desse mundo o subju-gava enquanto ia falando, e mais de uma vez teve aimpressão de estar lendo uma página impressa namemória, tão nitidamente se haviam gravado as idéias e asfrases. Só uma coisa omitiu, e isto para poupar a si própriouma emoção que não poderia ainda dominar: a morte doLama Superior naquela noite e o fato de que iria suceder-lhe.

Ao se aproximar do fim sentiu-se aliviado. Estavasatisfeito por haver vencido a dificuldade, e esta, enfim,era a única solução. Ergueu os olhos calmamente assimque terminou, na certeza de que havia procedido bem.

Entretanto, Mallinson não fazia mais do quetamborilar na mesa com os dedos. Ao cabo de uma longaespera falou:

 — Francamente, não sei o que dizer, Conway... a nãoser que você deve estar completamente louco. ..

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Seguiu-se um largo silêncio, durante o qual os doishomens se encararam com sentimentos bem diversos:Conway alheado e desapontado, Mallinson num violento einquieto mal-estar.

 — Então você me julga louco? — disse Conwayafinal.

Mallinson desatou num riso nervoso. — Bem, que outra coisa poderia dizer, depois de uma

história como esta? Quer dizer. . . ora, com franqueza. . .

um absurdo tão evidente. . . parece-me que não vale a pena discutir.

A expressão e a voz de Conway eram de imensoassombro.

 — Acha que é absurdo? — Pois que nome daria você a isso? Desculpe-me,

Conway. . . o que vou dizer é um pouco forte. . . mas não

vejo como uma pessoa de juízo são possa ter dúvidas arespeito.

 — Então continua acreditando que viemos ter aquidevido a um simples acaso, por obra de um lunático que preparou cuidadosamente o plano de fuga num aeroplano evoou milhas por mera brincadeira?

Conway ofereceu um cigarro, que o outro aceitou. A

 pausa que se seguiu pareceu ser do agrado de ambos.Finalmente Mallinson respondeu: — Olhe, não convém discutir isso ponto por ponto.

 Na verdade, a sua teoria de que esta gente daqui envioualguém a vaguear pelo mundo, à caça de estrangeiros, eque esse sujeito fez curso de piloto e ficou à espera de queum aparelho apropriado aos seus intuitos deixasse Baskul

com quatro passageiros. . . bem, não direi que isso seja detodo impossível, embora me pareça ridiculamente forçado.Se a coisa parasse aí, poderia ser digna de consideração,

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mas quando você a prende a toda aquela série de detalhesabsolutamente impossíveis. . . isso de os lamas terem cen-tenas de anos de idade, e que descobriram uma espécie deelixir da juventude ou coisa que o valha. . . bem, issosimplesmente me faz perguntar aos meus botões que sortede micróbio o mordeu, eis tudo.

Conway sorriu. — Sim, não é de estranhar que ache difícil acreditar 

nisso. Talvez eu mesmo tenha duvidado no princípio. . .

 Não me recordo bem. Sem dúvida é uma históriaextraordinária, mas deve ter verificado com os seus próprios olhos que este lugar também é extraordinário.Pense em tudo o que até agora vimos: um vale perdidoentre montanhas inexploradas, um mosteiro com uma biblioteca de livros europeus. . .

 — Oh! sim, e calefação interna, e encanamentos

modernos, e chá da tarde, e tudo mais. . . Tudo isto é real-mente maravilhoso, eu sei.

 — Bem, e como o explica, então? — Confesso que não posso fazer idéia. É um com-

 pleto mistério. Mas isso não é motivo para aceitar históriasque são materialmente impossíveis. Acreditar em banhosquentes que a gente toma é muito diferente de acreditar na

existência de homens com mais de duzentos anos, só por-que eles o dizem.

Mallinson riu outra vez, ainda contrafeito. — Olhe aqui, Conway, este lugar afetou-lhe os ner-

vos, e isso não me admira. Arrume as suas coisas e vamos.Terminaremos esta discussão daqui a um mês ou dois,diante de um bom jantar no Maiden.

Conway respondeu tranqüilamente: — Não tenho nenhum desejo de voltar a essa vida.

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 — Que vida? — A vida em que você está pensando. Jantares, bai-

les, pólo. . . e mais o que se segue. — Mas eu não falei em bailes nem em pólo! Em todo

caso, que há de mal nisso? Quer dizer que não pretende vir comigo? Prefere ficar aqui como os outros dois? Mas pelomenos não há de impedir que eu me safe o quanto antes!

Mallinson deitou fora o cigarro e enveredou em dire-ção à porta, despedindo chispas pelos olhos.

 — Você está fora do juízo! — gritou, exasperado. — Está louco, essa é a verdade, Conway! Sei que sempre foicalmo e eu sou irritável, mas com tudo isso tenho o juízo perfeito, e você não tem! Preveniram-me antes que eu me juntasse a você em Baskul, e eu pensei que se enganavam,mas agora vejo que tinham razão. . .

 — De que o preveniram?

 — Disseram-me que você foi atingido por umaexplosão de granada durante a guerra, e que desde entãofica tresloucado às vezes. Não o estou censurando por isso.Sei que não tem culpa, e Deus sabe o que me custa falar assim... Oh, vou-me embora! Tudo isto é horrível edesalentador, mas tenho de ir. Dei a minha palavra.

 — A Lo-Tsen?

 — Sim, já que deseja saber.Conway ergueu-se e estendeu a mão. — Adeus, Mallinson. — Pela última vez, não vem conosco? — Não posso. — Adeus, então.Apertaram-se as mãos e Mallinson afastou-se.

Quedou-se Conway sozinho à luz das lanternas. Pare-

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ceu-lhe, de acordo com uma frase gravada na memória,que as coisas mais belas eram transitórias e perecíveis, queos dois mundos afinal eram irreconciliáveis e que umdeles, como sempre, estava suspenso por um fio. Depoisde meditar por algum tempo, olhou o relógio. Faltavamdez minutos para as três.

Estava ainda junto à mesa, fumando o último cigarro,quando Mallinson voltou. O rapaz entrou tomado de certaemoção e, vendo-o ali, permaneceu na sombra, como tra-

tando de se dominar. Estava calado, e depois de esperar um momento Conway começou:

 — Olá, que aconteceu? Por que voltou?A pergunta tão natural fez com que Mallinson desse

alguns passos à frente. Tirou a pesada capa de pele de ove-lha e sentou-se. Tinha o rosto cor de cinza e todo o seucorpo tremia.

 — Não tive ânimo! — exclamou, quase soluçando. — Aquele lugar em que fomos amarrados, lembra-se?Cheguei até lá... mas não pude continuar! Não tenho ca- beça para as alturas, e ao luar aquilo é medonho. Estúpido,não acha?

Abateu-se por completo. Sobreveio-lhe uma crise denervos e por fim, depois de tê-lo Conway acalmado,

acrescentou: — Não precisam preocupar-se estes sujeitos da-qui . . . Nunca serão ameaçados por terra. Mas, meu Deus,quanto eu daria para voar por cima disto com uma carga de bombas!

 — Por que desejaria fazer isso, Mallinson? — Porque este lugar precisa ser destruído, seja ele o

que for. É um lugar sórdido e nefasto. . . e, se fossemverdadeiras as histórias incríveis que você me contou,seria mais odioso ainda! Dúzias de velhos encarquilhados,

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agachados aqui como aranhas à espreita do primeiro quelhes passe perto. . . é asqueroso! E afinal quem desejariaviver tanto assim? E quanto ao seu rico Lama Superior, setem metade da idade que você diz, já é tempo de alguémlivrá-lo dessa miséria. . . Oh! por que não quer vir comigo,Conway? Detesto implorar-lhe a minha própria salvação,mas, que diabo, sou moço e temos sido tão bons amigos!Minha vida nada vale então para você comparada com as patranhas dessas criaturas hediondas? E Lo-Tsen, então. . .Ela é jovem; não merece ser levada em conta?

 — Lo-Tsen não é jovem — disse Conway.Mallinson alçou os olhos e pôs-se a rir histericamente. — Oh! não, não é jovem! Absolutamente! Parece ter 

uns dezessete anos, mas você me vai dizer com certeza queela anda pelos noventa, bem conservados.

 — Mallinson, ela veio para cá em 1884. — Você está delirando, homem! — Sua beleza, Mallinson, como toda beleza no

mundo, jaz à mercê daqueles que não lhe sabem dar odevido valor. É uma coisa frágil que só pode viver onde ascoisas frágeis são amadas. Tire-a deste vale e vê-la-ádesvanecer-se como uma miragem.

Mallinson teve um riso áspero, como se haurisse con-fiança nos seus pensamentos.

 — Não receio tal coisa. Aqui é que ela é apenas umamiragem, e não em qualquer outro lugar.

Fez uma pausa e acrescentou: — Mas esta conversa não resolve nada. Seria melhor 

que deixássemos de lado o poético e descêssemos àrealidade. Conway. desejo ajudá-lo. Sei que tudo isso é puro disparate, mas estou disposto a discuti-lo se dadiscussão lhe resultar algum bem. Farei de conta que se

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trata de coisas possíveis e que requerem exame. Agoradiga-me seria mente: que provas tem da veracidade dahistória que me contou ?

Conway permaneceu calado. — Apenas a palavra de quem lhe impingiu essa

fantástica conversa fiada. Ainda que se tratasse de uma pessoa merecedora de toda a confiança, e que você tivesseconhecido a vida inteira, não aceitaria tais coisas sem prova. E que provas tem no caso presente? Absolutamentenenhuma, que eu veja. Lo-Tsen lhe contou alguma vez asua vida?

 — Não, mas. . . — Então por que acreditar na versão de um outro? E

toda essa fábula de longevidade. . . pode apresentar algumfato que venha em seu apoio?

Conway refletiu por um momento e mencionou ascomposições inéditas de Chopin, que Briac tocara.

 — Bem, este é um assunto que não me diz nada, poisnão conheço música. Mas, mesmo que fossem autênticas,não seria possível que ele as tivesse ouvido de alguém,sem que essa história seja verdadeira?

 — Perfeitamente possível, sem dúvida.

 — E esse método que você diz existir. . . conservaçãoda juventude, e tal e coisa. Em que consiste ele? Vocêdisse que se trata de uma certa droga. . . Mas eu querosaber que droga é. Viu-a por acaso, ou provou-a? Porven-tura alguém lhe apresentou algum fato positivo quedemonstrasse a sua eficácia?

 — Não em detalhe, é verdade. — E você nunca pediu detalhes? Não lhe ocorreu que

semelhante coisa exigia confirmação? Engoliu tudo sem

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 pestanejar?E, tirando proveito da sua vantagem, Mallinson

continuou: — Que sabe de positivo acerca deste lugar, além do

que lhe disseram? Falou com meia dúzia de velhos, eistudo. Fora disso, só podemos dizer que o lugar está bemaparelhado e reina aqui certa atmosfera de cultura. Agora,quanto a saber como e por que isso veio a ter existência,não fazemos a menor idéia. Também é um mistério o moti-

vo por que nos querem prender aqui, se é que têm essaintenção. Mas por certo isso não é razão para dar crédito à primeira lenda que lhe contam! Afinal, homem, você éuma pessoa dotada de senso crítico! Não acreditaria emqualquer coisa que lhe dissessem, mesmo num mosteiroinglês. Francamente, não compreendo como aceita tudosem hesitar, só porque está no Tibete!

Conway moveu a cabeça em sinal de assentimento.Embora a sua percepção fosse mais profunda, não podia;negar aprovação a um argumento bem apresentado.

 — A observação é fina, Mallinson. A verdade,suponho, é que quando se trata de acreditar nas coisas sem provas reais, todos nós nos inclinamos para aquilo quemais nos agrada.

 — Arre, que me enforquem se vejo alguma coisa deagradável em continuar vivendo quando já se está meiomorto! Antes uma vida curta, mas alegre. E isso dumaguerra futura me parece muito fantasioso. Quem poderásaber quando vai dar-se a próxima guerra e como será ela?Por acaso não se enganaram todos os profetas da últimaguerra?

Calou-se à espera de uma resposta, mas, como estanão viesse, prosseguiu: — Como quer que seja, não acredito que essas coisas

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A discussão parecia navegar agora em águas maistranqüilas, depois de tantos embates. Conway acrescentou:

 — Eu também não posso evitar os meus sentimentos.Sucede que você e essa moça são as duas pessoas por quem mais me interesso no mundo, embora isto possa parecer-lhe singular.

Ergueu-se abruptamente e entrou a passear pela sala. — Já dissemos tudo o que podíamos, não é verdade? — Suponho que sim — respondeu Mallinson, que no

entanto prosseguiu, num ímpeto repentino: — Oh! como éestúpido dizer que ela não é jovem! Estúpido e abominá-vel. Conway, você não pode acreditar nisso! Pois não vêque é uma coisa ridícula? Como será isso possível?

 — Como pode você saber que ela é realmente jovem?Mallinson desviou parcialmente o rosto, com uma

expressão de timidez grave.

 — Porque sei... Talvez venha a me estimar menos por causa disto. . . mas eu sei. Receio que você nunca atenha compreendido bem, Conway. Ela era fria na aparên-cia, devido a este ambiente que lhe gelou todo o ardor.Mas o ardor existia.

 — Pronto para ser reavivado? — Sim... se quer exprimir-se desse modo.

 — E ela é jovem, Mallinson. . . está seguro disso?Mallinson respondeu suavemente: — Meu Deus, sim. . . é uma simples menina. Eu

tinha imensa pena dela e creio que nos sentíamos atraídosum pelo outro. Não vejo por que me envergonhar disso.Mesmo num lugar como este, acho que jamais aconteceucoisa mais decente. . .

Dirigiu-se Conway para a sacada e pôs-se a contem- plar o deslumbrante penacho do Karakal. A lua vogava noalto, sobre um mar sem ondas. Sentiu então que um sonho

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se havia desvanecido, como todas as coisas demasiado belas, ao primeiro contato da realidade; e que todo o futurodo mundo pesa tanto como o ar em confronto com amocidade e o amor. Compreendeu, além disto, que o seuespírito habitava um mundo próprio — Shangri-Lá — emminiatura, e que esse mundo também estava em perigo.Porque, no mesmo instante em que se enchia de ânimo, viuos corredores de sua imaginação torcerem-se e retesarem-se sob o impacto; os pavilhões desmoronavam; tudo se ia

reduzir a escombros. Não se sentia de todo infeliz, masmergulhara numa perplexidade infinita e tocada detristeza. Não sabia se estivera louco e acabava de recobrar a razão, ou se, depois de um período de lucidez, tornara aenlouquecer.

Quando voltou para dentro da sala, já não era omesmo. Sua voz estava mais viva, quase brusca, e o rosto

se lhe crispava de leve. Parecia-se muito mais com o heróide Baskul. Pronto para a ação, encarou Mallinson comuma nova súbita energia.

 — Acha que conseguirá vencer o precipício, amar-rado com uma corda, se eu for com você?

Mallinson correu para ele. — Conway! — exclamou em voz sufocada. — Você

vem, então? Resolveu-se afinal?

Puseram-se a caminho logo que Conway terminou os preparativos para a jornada. Foi surpreendentemente sim- ples: uma partida e não uma fuga. Não houve nenhum inci-dente quando atravessaram os pátios raiados de luar e

sombra. Dir-se-ia que tudo aquilo estava deserto, refletiuConway. E a idéia desse vazio imediatamente lhe tornouvazio o espírito, enquanto Mallinson não cessava de pairar 

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sobre a viagem — embora ele mal ouvisse. Como eraestranho que aquela longa discussão conduzisse a talresultado e que o secreto refúgio estivesse sendoabandonado por quem encontrara nele a sonhadafelicidade! Com efeito, menos de meia hora depois faziamalto, arquejantes, numa curva da subida e contemplavamShangri-Lá pela última vez. Abaixo deles, no abismo, ovale da Lua Azul era como uma nuvem e afigurou-se aConway que os telhados esparsos o seguiam, flutuando na

 bruma. Era o momento de dizer adeus. Mallinson, a quemo esforço da ascensão fizera guardar silêncio, exclamounuma arfada:

 — Amigo velho, vamos indo às mil maravilhas. . .Para diante!

Conway sorriu, sem responder. Estava já preparando acorda para a perigosa escalada. Na verdade, como dissera

o rapaz, tinha-se resolvido — mas apenas o fizera com a parte que restava do seu espírito. Era esse pequeno frag-mento ativo que predominava agora. O resto abrangia umvazio quase intolerável. Era um homem perdido entre doismundos, e continuaria sempre perdido. Mas por ora,naquele vácuo interior que se fazia cada vez mais profun-do, só sentia uma coisa: gostava de Mallinson e tinha de

ajudá-lo. Ele, como milhões de outros, estava condenado afugir da sabedoria e ser um herói.O precipício punha Mallinson nervoso, mas Conway

fê-lo passar à maneira tradicional dos alpinistas e, termi-nada a provação, detiveram-se para acender cigarros trazi-dos por Mallinson.

 — Conway, devo dizer que você foi admirável. . .

Talvez imagine o que eu sinto. . . Não lhe posso exprimir aminha alegria. . . — No seu lugar eu não o tentaria, então.

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Após uma longa pausa, e antes que recomeçassem a jornada, Mallinson acrescentou:

 — Mas estou contente, não só por mim comotambém por você. . . É esplêndido que você compreendaagora que tudo aquilo era pura tolice. . . É simplesmentemaravilhoso vê-lo voltar à sua verdadeira personalidade. . .

 — Absolutamente — replicou Conway, saboreando asua ironia secreta.

Amanhecia quando atravessaram a linha divisória,

sem serem incomodados por sentinelas — se é que ashavia ali. Ocorreu a Conway que o caminho, de acordocom a norma de Shangri-Lá, devia ser vigiado commoderação. Pouco depois atingiram a planura, que seapresentava limpa como um osso, varrida pelos ventosrugidores. Após descerem um pouco, avistaram oacampamento dos carregadores. Tal como havia predito

Mallinson, encontraram os homens à sua espera,indivíduos robustos vestidos de peles e couro de ovelha,acocorados para se defenderem das rajadas e ansiosos por iniciar a jornada rumo a Tat-sien-Fu — mil e cem milhas para leste, na fronteira da China.

 — Ele vai conosco — gritou Mallinson, excitado,quando se encontraram com Lo-Tsen.

Esquecia-se de que ela não entendia inglês, mas Con-way traduziu.Pareceu-lhe que a pequena manchu nunca estivera tão

radiante. Teve um sorriso encantador para ele, mas os seusolhares eram todos para o rapaz.

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EPÍLOGO

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Foi em Delhi que tornei a encontrar Rutherford.Tomávamos parte num jantar do vice-rei, mas a distância e

o cerimonial nos mantiveram isolados um do outro até omomento da saída, quando os lacaios de turbante nosentregaram os chapéus.

 — Venha até o meu hotel e beberemos um trago — convidou ele.

Tomamos um táxi para percorrer as áridas milhas queseparam a natureza morta de Lutyens3 desse vivo e palpi-

tante cinematógrafo que é a Velha Delhi. Eu sabia, pelos jornais, que ele voltara recentemente a Kashgar. Era a suauma dessas reputações bem cultivadas que de quase tudoextraem proveito. Qualquer passeio fora do comum tomaas proporções de uma exploração, e, embora o explorador tenha o cuidado de não fazer nada verdadeiramente origi-nal, o público fica na ignorância disto e ele aufere todas as

vantagens da primeira impressão. A viagem de Rutherford, por exemplo, tal como a narrava a imprensa, não me pare-cia de molde a fazer época. As cidades soterradas de Kho-tan não apresentavam novidade alguma para quem serecorde de Stein e Sven Hedin. Era eu bastante íntimo deRutherford para caçoar com ele a esse respeito.

3 Sir Edwin Lutyens, arquiteto inglês que, na segundadécada deste século, dirigiu a construção de Nova Delhi. (N. doT.)

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Tibete. A gente do governo não queria falar nisso. Por muito favor dão licença para uma expedição ao Everest, equando manifestei vontade de viajar pelos Kuen-Luns por conta própria eles me encararam como se eu sugerisse aidéia de escrever uma vida de Ghandi. A verdade é que sa- biam o que estavam fazendo. Um giro pelo Tibete não écoisa para um homem só. Seria necessário organizar umaexpedição completa, conduzida por um homem que conhe-cesse alguma coisa do idioma nativo. Recordo-me de que,

ao ouvir a história de Conway, eu perguntava a mimmesmo por que faziam tanta questão de esperar peloscarregadores, em vez de irem embora sem eles. Não tardeimuito a descobrir o motivo. A gente do governo tinhainteira razão: todos os passaportes do mundo não mefariam atravessar os Kuen-Luns. Cheguei a vê-los adistância, talvez umas cinqüenta milhas, num dia muito

claro. Não são muitos os europeus que podem dizer omesmo.

 — São tão inacessíveis assim? — Pareciam uma frisa branca no horizonte, nada

mais. Em Yarkand e Kashgar interroguei a respeito delestoda a gente que encontrava, mas era extraordinário o pouco que sabiam. Penso que deve ser a cadeia de monta-

nhas menos conhecida do mundo. Tive a sorte deencontrar um viajante americano que tentara atravessá-la,mas não encontrara passagem. Há passagens, disse ele,mas são terrivelmente altas e não vêm nos mapas.Perguntei-lhe se achava possível que existisse um valecomo o que Conway me havia descrito. Respondeu queimpossível não era, mas achava pouco provável — do

 ponto de vista geológico, pelo menos. Indaguei então seouvira falar numa montanha de forma cônica, quase tãoalta quanto o mais elevado pico dos Himalaias, e sua

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resposta me intrigou. Contou que existia uma lenda sobretal montanha, mas na sua opinião não tinha nenhumfundamento. Acrescentou que corriam até certos rumores arespeito de montanhas mais altas do que o Everest, masque não lhes dava crédito.

" 'Duvido que haja algum pico nos Kuen-Luns commais de vinte e cinco mil pés de altura', disse ele. Masadmitiu que nunca se tinham feito medições apropriadas.

"Em seguida lhe perguntei o que sabia dos conventos

lamaicos do Tibete, pois estivera no país várias vezes. Fez-me as descrições de costume, dessas que se encontram emqualquer livro. Assegurou-me que são lugares nadaatraentes, e os monges que neles vivem são em geral cor-ruptos e imundos.

" 'Vivem muitos anos?', perguntei."Respondeu-me que sim, que muitas vezes alcançam

idade avançada, quando não morriam de alguma doençaasquerosa. Enchi-me então de audácia e lhe perguntei senão ouvira lendas sobre casos de extrema longevidadeentre os lamas.

" 'Quantidade delas', respondeu. 'É desse gênero dehistórias que se ouvem por toda parte, sem que ninguém possa comprová-las. Dizem que algumas dessas nojentas

criaturas têm vivido cem anos metidas numa cela, e certa-mente têm aspecto disso, mas é claro que a gente não pode pedir certidão de idade.'

"Perguntei-lhe se pensava que eles conheciam algum processo medicinal ou oculto para prolongar a vida e pre-servar a juventude. Disse que passavam por possuir grandesoma de conhecimentos curiosos acerca de tal assunto,

mas suspeitava de que se tratasse de coisas já sabidas.Ajuntou, entretanto, que os lamas parecem dispor de estra-nhos poderes de domínio sobre o corpo.

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" 'Vi-os sentados', dizia, 'à beira de um lago gelado,inteiramente nus, sob uma temperatura inferior a zero efustigados por um vento terrível, enquanto os criadosquebravam o gelo para mergulhar lençóis na água e osenvolverem neles. Fazem isso umas doze vezes ou mais, eos. lamas secam os lençóis no próprio corpo. Supõe-se queconservem o calor pela simples força de vontade, emboraessa explicação seja pouco convincente.' "

Rutherford serviu-se de mais bebida.

 — Mas naturalmente, como admitia o meu amigoamericano, nada disso tem muito que ver com a longevi-dade. Serve simplesmente para mostrar que os lamas têmgostos selvagens em matéria de autodisciplina. . . Demodo que ficamos apenas nisso e você há de reconhecer que os elementos de prova, por enquanto, eram extrema-mente exíguos.

Admiti que por certo isso não provava nada e pergun-tei se os nomes "Karakal" e "Shangri-Lá" eram conhecidosdo americano.

 — De nenhum modo. Mencionei-lhos, e depois de oter interrogado por algum tempo ele disse:

" 'Francamente, não me atraem os mosteiros. Res- pondi mesmo certa ocasião, a um sujeito que encontrei no

Tibete, que antes me desviaria do meu caminho para evitá-los do que para lhes fazer visita'."Esta observação fortuita me provocou uma idéia sin-

gular e perguntei-lhe quando ocorrera esse encontro noTibete.

" 'Oh! há muito tempo', respondeu; 'antes da guerra,em 1911, se não me engano.'

"Insisti por mais detalhes e ele mos deu, tão comple-tos quanto podia recordar. Parece que estava viajando por conta de alguma sociedade geográfica do seu país, na com-

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misterioso o seu passado que não me surpreenderia se elefosse realmente Chalmers Bryant. Afinal, não deixa de ser assombroso o desaparecimento completo de Bryant nomeio de todo aquele barulho.

 — Fez indagações a respeito do rapto? — Fiz, mas também sem resultado. O aviador que ele

 pôs em nocaute e por quem se fez passar morreu poste-riormente, e assim se perdeu uma promissora linha deinvestigação. Cheguei a escrever a um amigo que dirige

uma escola de aviação nos Estados Unidos, perguntando senos últimos tempos tivera entre os seus alunos algumtibetano; mas a resposta, que não demorou, foi decepcio-nante. Escreveu ele que não sabia distinguir entre tibetanose chineses, mas tivera como alunos cerca de cinqüenta chi-neses, que se preparavam para lutar contra os japoneses.Como vê, não tive muita sorte. Mas o fato é que fiz uma

descoberta bastante curiosa — aliás, não seria preciso sair da Inglaterra para isso. . . Havia em Iena nos meados doséculo passado um professor alemão que saiu a correr mundo e visitou o Tibete em 1887. Nunca mais voltou, edizia-se que morrera afogado ao vadear um rio. Chamava-se Friedrich Meister.

 — Céus! Um dos nomes que Conway mencionou!

 — Sim. . . embora possa ser mera coincidência. Istode modo algum prova que toda a história seja verdadeira, porque o professor de Iena nasceu em 1845. Nada deextraordinário nisso.

 — Mas é singular — disse eu. — Sim, bastante singular. — Não pôde encontrar algum rasto dos outros?

 — Não. Foi pena que não dispusesse de uma listamaior. Não encontrei nenhuma referência a um aluno deChopin chamado Briac, embora, naturalmente, isso não

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 prove que tal aluno não existisse. Conway fez muitaeconomia de nomes, e entre uns cinqüenta lamas quedeviam viver lá só mencionou um ou dois. Foi igualmenteimpossível descobrir qualquer vestígio de Perrault eHenschell.

 — E sobre Mallinson? — perguntei. — Procurouaveriguar o que foi feito dele? E aquela moça, a chinesa?

 — Claro que sim. meu caro. O que tornava difícil a pesquisa era o fato, que você deve ter constatado pelo

manuscrito, de terminar a narrativa de Conway nomomento em que deixaram o vale na companhia dos carre-gadores. Não pôde ou não quis dizer o que aconteceu de- pois — mas talvez mo tivesse contado, note bem, sehouvéssemos permanecido mais tempo juntos. Creio que podemos admitir uma tragédia. Já as dificuldades da jorna-da eram simplesmente aterradoras, sem falar nos riscos de

serem assaltados por bandoleiros ou traídos pelos próprioshomens que os escoltavam. É provável que jamais saiba-mos exatamente o que aconteceu, mas parece certo queMallinson não logrou atingir a China. Fiz toda sorte deaveriguações. Em primeiro lugar, procurei descobrir vestí-gios de grandes encomendas de livros e outros objetos, quetivessem passado a fronteira do Tibete, mas as minhas

indagações em lugares como Xangai e Pequim foram pura perda. Isto, entretanto, não queria dizer nada, uma vez queos lamas deviam cercar de mistério os seus métodos deimportação. Fiz depois uma tentativa em Tatsien-Fu. É umestranho lugar, uma espécie de mercado do fim do mundo,de acesso difícil como o diabo, e onde os cules chinesesque vêm de Yunnan passam aos tibetanos os seus carrega-

mentos de chá. Você poderá ler acerca dessa viagem nomeu próximo livro. São raros os europeus que vão até lá.Encontrei uma população bastante educada e cortês, mas,

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quanto a Conway e os seus companheiros, nada de nada! — De modo que continua sem explicação a maneira

como Conway alcançou Chung-Kiang? — A única conclusão a tirar é que ele foi ter lá como

 poderia ter ido a qualquer outra parte. Em todo caso. vol-tamos aos fatos concretos quando chegamos a Chung-Kiang, e isto já é alguma coisa. Às freiras do hospital damissão eram bem reais, e também o era o espanto deSieveking no navio, quando Conway tocou as supostas

composições de Chopin.Rutherford fez uma pausa e depois acrescentou,

 pesando as palavras: — Na verdade, é um problema de cálculo de proba-

 bilidades, e devo dizer que os pratos não se inclinamconvincentemente para nenhum lado. É claro que, se nãoaceitarmos a história de Conway, teremos de pôr em dúvi-

da — sejamos francos — a sua veracidade ou a sua sani-dade mental.

Fez nova pausa, como se esperasse um comentário, eeu repliquei:

 — Como sabe, não tornei a vê-lo depois da guerra,mas ouvi dizer que mudou muito.

 — Sim, é inegável que mudou — respondeu Ruther-

ford. — Não se pode sujeitar um rapaz novo a três anos deforte tensão física e emocional sem que alguma coisa serompa dentro dele. Muita gente há de dizer que ele saiusem um arranhão. No entanto, arranhões houve — na alma.

Falamos por algum tempo sobre a guerra e seus efei-tos em diversas pessoas, e finalmente ele continuou:

 — Mas há ainda um pormenor a que devo referir-

me. . . e talvez, em muitos sentidos, o mais estranho detodos. Veio-me ao conhecimento quando fazia indagaçõesno hospital da missão. Todos fizeram o possível para me

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auxiliar, como deve supor, mas não podiam recordar muitacoisa, sobretudo porque naquela ocasião tinham estadomuito ocupados com uma febre epidêmica. Uma das ques-tões que procurei esclarecer desde logo foi o modo comoConway havia chegado ao hospital — se se apresentara por si mesmo ou se, tendo sido encontrado doente, foratrazido ali por alguma pessoa. Não se lembravam bem — afinal de contas, fazia tanto tempo! —, mas de repente,quando eu já ia desistir do interrogatório, uma das freiras

observou incidentalmente que "parecia ter ouvido do dou-tor que ele fora trazido por uma mulher". Era tudo o queme podia dizer, e como o doutor já houvesse deixado amissão, nenhuma confirmação era possível obter nomomento.

Mas, tendo eu já chegado tão longe, é claro que nãoestava disposto a suspender minhas investigações. Soube

que esse doutor se transferira para um hospital maisimportante, em Xangai, de modo que me informei sobre oseu endereço e fui até lá, na intenção de me avistar comele. Foi logo depois dos reides aéreos dos japoneses e oaspecto da cidade era sinistro. Já conhecia esse médico,com quem travara relações durante minha primeira visita aChung-Kiang. Foi muito polido, mas naquele momento

estava terrivelmente ocupado — sim, terrivelmente é a palavra porque, acredite-me, os vôos dos alemães sobreLondres nada foram, comparados com o que os nipônicosfizeram nas zonas nativas de Xangai.

"'Oh! sim', disse sem hesitar, 'lembro-me do casodaquele inglês que perdeu a memória.'

" 'É verdade que ele foi trazido ao hospital da missão

 por uma mulher?', perguntei." 'Sim, sim, por uma mulher, uma chinesa.'" 'Lembra-se de alguma coisa a respeito dela?'

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"'Nada', respondeu, 'salvo que ela também estavaatacada de febre e veio a morrer quase em seguida . . .

"Nesse instante houve uma interrupção. Trouxeramum grupo de feridos e as padiolas atravancaram os corre-dores, pois as enfermarias já estavam repletas. Eu não podia tomar o tempo do homem, tanto mais que troavamos canhões em Woosung, advertindo-lhe que teria aindamuito que fazer. Quando voltou para junto de mim, comuma expressão animada apesar de todos aqueles horrores,

só lhe fiz uma derradeira pergunta, que você com certezaadivinha qual fosse.

" 'E essa mulher chinesa', disse eu, 'era jovem?' "Rutherford sacudiu nervosamente as cinzas do charu-

to, como se a narrativa o tivesse excitado tanto quantoesperava fazê-lo a mim. Depois continuou:

 — O doutorzinho olhou-me por um momento com ar 

solene e então respondeu, nesse inglês comicamentetruncado que os chineses educados usam:

" 'Oh! não, ela era muito velha, a mulher mais velhaque vi até hoje.' "

Permanecemos longo tempo calados e finalmente nos

 pusemos a falar sobre o Conway que eu conhecera outrora, juvenil, talentoso e encantador, sobre a guerra que o alte-rara e sobre muitos mistérios do tempo, da idade e do espí-rito, sobre a pequena manchu que era "muito velha" eaquele estranho e remoto sonho do vale da Lua Azul.

 — Pensa que ele virá a encontrá-lo um dia? —  perguntei.

Oferecimento de:

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