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    Revista ANTHROPOLGICAS, ano 9, volume 16(1): 31-52 (2005)

    " Deixars pai e me" :Notas sobre Lvi-Strauss e a famlia1

    Cynthia Andersen Sarti2

    Resumo

    O texto ressalta a contribuio da teoria de Lvi-Strauss sobre oparentesco a teoria da aliana para os estudos sobre a famlia.Uma inflexo no pensamento antropolgico, esta teoria fez a dis-cusso sobre famlia e parentesco entrar definitivamente no terreno

    da cultura. Argumenta-se que o autor no se atm anlise da fam-lia como grupo social concreto, mas ao que esta revela do mundosocial, dentro da concepo estruturalista da sociedade como umsistema de relaes. Ele desloca o foco da famlia como unidadepara o sistema de parentesco como um todo, evidenciando o cartercultural das relaes familiares. Ele parte do tabu do incesto, vistocomo imposio da troca como forma de comunicao entre osseres humanos, fundamento de toda sociabilidade humana. Sua teo-ria constitui referncia bsica, sobretudo, na anlise da tenso entre

    consanginidade e afinidade, estrutural nas relaes familiares.1 Trabalho apresentado no GT "Famlia e Sociedade", no XXIII Encontro Anual

    da ANPOCS (Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em CinciasSociais), Caxambu, 19 a 23 de outubro de 1999.

    2 Doutora em Antropologia Social pela Universidade de So Paulo, professora noDepartamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de So Paulo/Escola Paulista de Medicina. Endereo: Rua Borges Lagoa, 1341, 1 andar,04.038-034 So Paulo SP. Tel.: (11) 5572-0609. E-mail: [email protected]

    mailto:[email protected]:[email protected]
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    Palavras-chave: famlia, parentesco, cultura, troca, teoria antropo-lgica.

    Abstract

    The text stresses the contribution of Lvi-Strauss' theory on kinship the alliance theory for studies on family. A turning point inanthropological thought, this theory made the discussion on familyand kinship enter definitely into the domain of culture. It is arguedthat the author does not look at family as a concrete social group,

    but at what it reveals about the social world within the structuralistconception of society as a system of relations. He displaces thefocus from the family as a unity to the kinship system as a whole,making evident the cultural character of family relations. His start-ing point is the incest taboo, seen as an imposition of the exchangeas the form of communication among human beings, the founda-tion of all human sociability. His theory is a basic reference, mostly,in the analysis of the tension between consanguinity and affinity,structural in family relations.

    Key words: family, kinship, culture, exchange, anthropologicaltheory.

    Introduo

    Pode-se dizer que a contribuio de Claude Lvi-Strauss questo

    da famlia vem de que ele no fala propriamente sobre a famlia, mas

    atravs dela. A famlia para Lvi-Strauss interessa no pelo que ela dizsobre si mesma, mas sobre a sociedade, sobre aquilo que faz humano,

    portanto social, o ser humano. Lvi-Strauss no se atm famlia como

    grupo social concreto, a seus problemas especficos, mas ao que esta

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    revela do mundo social, dentro da concepo estruturalista da sociedade

    como um sistema de relaes.

    Octavio Paz (1993), comentando a anlise do tabu do incesto, argu-

    menta que Lvi-Strauss descreve com muita propriedade a operao dasregras, mas no aquilo que regulam. Sente falta, diz ele, da descrio do

    fenmeno. O mesmo pode ser dito de sua anlise da famlia. De sua am-

    biciosa e prodigiosa anlise das regras que regulam o sistema de paren-

    tesco fica uma igualmente grandiosa anlise da sociedade humana, sem aanlise especfica do fenmeno que a suscita: a famlia.

    Sabe-se que a marca do pensamento de Lvi-Strauss, no que se re-fere famlia, foi a de ter feito sua discusso entrar definitivamente no

    terreno da cultura. A famlia, em seu fundamento natural (a famlia con-

    sangnea), precisa se desfazer para que viva a sociedade, ao mesmo

    tempo em que a sociedade a existncia de grupos dispostos a reconhe-

    cer seus limites e a se abrir ao outro (a aliana) condio da existncia

    da famlia.

    O que diferencia verdadeiramente o mundo humano do mundo

    animal que na humanidade uma famlia no poderia existir sem

    existir a sociedade, isto , uma pluralidade de famlias dispostas a

    reconhecer que existem outros laos para alm dos consangneos e

    que o processo natural de descendncia s pode levar-se a cabo

    atravs do processo social da afinidade. (Lvi-Strauss 1980:34)

    Sua concepo faz uma reviravolta em toda a idia corrente que

    identifica a famlia com a unidade biolgica pai, me e filhos , prpria

    da perspectiva funcionalista, tanto na Sociologia (Parsons) quanto na

    Antropologia britnica (Malinowski e, tambm, na vertente estrutural,

    Radcliffe-Brown). A famlia funda o social, sim, mas no nos termos

    funcionais da biologia humana, mas, ao contrrio, porque na existncia

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    da famlia, como aliana, est a possibilidade do ser humano se fazer

    social, comunicando-se e, assim, romper com o que o autor define como

    o isolamento a que nos condena a consanginidade.

    O ser humano comunicante, por excelncia, e a troca est na basede toda forma de relao social. Neste sentido, as relaes familiares,

    concebidas como relaes de troca, so uma das formas de manifestao

    de um sistema global, os sistemas de comunicao, que, segundo sua

    concepo, constituem a sociedade humana, feita de indivduos e degrupos que se comunicam entre si (Lvi-Strauss 1967:336).

    Lvi-Strauss, focalizando a famlia no que esta nos revela do social,desenvolve o tema da famlia a partir da anlise da separao entre natu-

    reza e cultura, que se d com a instituio do tabu do incesto, a primeira

    regra a regra por excelncia que faz humano o ser humano, uma

    vez que a ausncia de regras precisamente o que delimita o mundo da

    natureza, em oposio ao da cultura, universo de regras.

    Entre suas objees s interpretaes correntes sobre este tabu,

    Lvi-Strauss afirma que nada h de instintivo no horror ao incesto, por-que no haveria razo para proibir o que, sem proibio, no haveria

    risco de acontecer. Lvi-Strauss coincide com Freud no que se refere ao

    lugar instituinte do humano que tem a interdio do incesto, que mais doque uma forma de interveno, constitui a interveno (Lvi-Strauss

    1981:37).

    pergunta sobre por que a primeira regra, que funda o carter so-cial das relaes entre os seres humanos, incide sobre a vida sexual, Lvi-Strauss responde com o argumento de que a se insinua a troca, ao afir-

    mar que, entre todos os instintos, o sexual o nico que, para se defi-

    nir, precisa da estimulao do outro. Isto, portanto, explica uma das

    razes pelas quais no terreno da vida sexual, de preferncia a qualqueroutro, que a passagem entre as duas ordens [natural e cultural] pode e

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    deve necessariamente se operar (Lvi-Strauss 1981:14; traduo da au-

    tora).

    A perpetuao da espcie humana est justamente na afirmao do

    social, ou seja, na negao da famlia como ordem natural a consangi-nidade e na sua afirmao como ordem cultural a aliana. A famlia

    consangnea contradiz a sociedade e a aliana, que implica previamente

    a existncia de duas famlias abertas ao outro, pela interdio do in-

    cesto , a condio para a existncia da sociedade. Da o paradoxo fas-cinante de sua teoria sobre a famlia, a partir da aliana: a famlia , ao

    mesmo tempo, a negao e a afirmao da sociedade.

    [...] o interesse fundamental com respeito famlia no proteg-la

    ou refor-la; uma atitude de desconfiana, uma negao de seu

    direito a existir isolada ou permanentemente; as famlias restringidasapenas esto autorizadas a gozar uma existncia limitada no tempo

    curta ou longa segundo as circunstncias mas sob a estrita con-

    dio de que as suas partes componentes sejam deslocadas, em-prestadas, tomadas por emprstimo, entregues ou devolvidas inces-

    santemente de forma a que se possam criar ou destruir perpetua-

    mente novas famlias restringidas. (Lvi-Strauss 1980:44)

    Assim, conclui que as palavras das Escrituras: deixars o teu pai e a

    tua me proporciona a regra de ferro para a fundao e o funciona-

    mento de qualquer sociedade (Lvi-Strauss 1980:44). A famlia impen-svel sem a noo de troca e de reciprocidade, como veremos adiante.

    Deixar a famlia consangnea, regra que se impe com o tabu do in-cesto, significa a abertura para a troca e a comunicao com o outro,

    possibilidade da humanidade desenvolver-se culturalmente. Esta troca

    que funda a famlia , ao mesmo tempo, o ato fundador da sociedade

    humana. Devemos a Lvi-Strauss um olhar sobre a famlia sob um

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    ngulo que permite v-la para alm de suas prprias fronteiras biolgicas

    e diante deste definitivo passo adiante, o da desnaturalizao da famlia,

    qualquer hesitao configura um retrocesso.

    O tomo do parentesco

    O passo decisivo para a desnaturalizao da famlia ocorreu, pela

    primeira vez na Antropologia, ao se buscar uma explicao para a famlia

    que deslocou a ateno da prpria famlia, como unidade, dirigindo-apara o sistema de parentesco como um todo. At ento, ela tinha sidoidentificada com a famlia biolgica. A unidade mnima que continha

    as trs relaes bsicas do parentesco entre marido-mulher (afinidade),

    entre pais e filhos (filiao) e entre irmos (consanginidade) corres-

    pondia unidade biolgica3. Ao retirar desta unidade mnima o foco

    principal e voltar a ateno para o sistema de parentesco, a famlia pas-

    sou a ser vista como atualizao de um sistema mais amplo e a redefi-

    nio da unidade elementar do parentesco, a que Lvi-Strauss chamou de

    tomo do parentesco (feita em 1945, antes da publicao das E struturas

    elementares do parentesco, que de 1949) significou um verdadeiro ponto de

    inflexo nos estudos sobre parentesco. Como ressaltou Da Matta (1983),

    em sua introduo obra de Edmund Leach, foi preciso este movimento

    de deslocar o foco da unidade mnima para o sistema como um todo,como fez Lvi-Strauss, para explicar cientificamente a importncia da

    aliana na constituio da famlia.

    A unidade elementar que envolve todas as relaes que constituem

    os sistemas de parentesco corresponde, na formulao de Lvi-Strauss,

    3 Esta identificao que aparece no pensamento evolucionista, persiste tanto em

    Malinowski (1973), quanto em Radcliffe-Brown (1982).

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    no a um sistema triangular de relaes, mas quadrangular: entre marido

    e mulher, pai e filho, irmo e irm e tio materno e sobrinho. So quatro

    pares de relaes (e no apenas as trs: marido-mulher, pai-filho, irmo-

    irm) que constituem o tomo do parentesco, o que pressupe a exis-tncia prvia de dois grupos, um que recebeu e outro que deu a mulher

    em casamento.

    Ainda que o trabalho em que Lvi-Strauss introduz a idia de tomo

    do parentesco4 tenha surgido antes da publicao das E struturas elementaresdo parentesco, sua definio pressupe os elementos da anlise do tabu do

    incesto, porque este nela est implcito. Para que haja o marido e amulher, algum homem teve que renunciar sua irm e d-la a outro

    homem. Tem que haver o irmo. Assim, Lvi-Strauss (1967) introduz a

    noo de que o irmo da me no um elemento extrnseco, mas um

    dado imediato da estrutura familial mais simples (p. 65). Sua incluso no

    tomo evidencia a existncia de dois grupos em comunicao, atravs da

    aliana. Segundo a afirmao do autor, o que verdadeiramente ele-

    mentar no so as famlias, termos isolados, mas a relao entre essestermos (ibid.:69).

    Para ele, nenhuma outra interpretao pode explicar a universalidade

    do tabu do incesto que vem da imposio da troca como forma de co-municao entre os seres humanos.

    Da Matta comenta que a clssica demonstrao de Lvi-Strauss

    do tomo do parentesco

    [...] reformula cientificamente o nosso mito de Ado e Eva, verda-deiro arqutipo que informava toda a concepo de famlia e paren-

    tesco desenvolvida no Ocidente. Pois temos um casal original de

    onde surge toda a humanidade e todo o parentesco entre os

    4 Este trabalho corresponde ao captulo 2 deA ntropologia E strutural.

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    homens, frmula perfeita da criao do todo pelas partes indivi-

    duais. [...] Mas o ponto bsico, implcito da demonstrao de Lvi-

    Strauss que o nosso pensamento sobre a famlia (e o parentesco)

    como uma unidade individualizada e auto-suficiente etnocntrico.(Da Matta 1983:28).

    O tabu do incesto: a dualidade da regra

    A explicao de Lvi-Strauss para a existncia da famlia resulta desua indagao sobre a recorrncia de um fenmeno, que est em todas as

    sociedades, em todas as pocas, ainda que sob diferentes formas de

    organizao, e cujas razes naturais no o explicam: , ento, na artificia-

    lidade da famlia, nas regras que a regulam, que Lvi-Strauss vai buscar aexplicao para sua existncia. O fundamento de sua explicao est na

    anlise do tabu do incesto, esta regra severa e sagrada, A regra, que

    est no limiar entre a natureza e a cultura, revelando seu carter naturalem sua universalidade e, ao mesmo tempo, sua marca cultural, comoregra. Constitui a passagem do fato natural da consanginidade para o

    fato cultural da aliana. Ele inverte a proposta durkheimiana de explicar a

    proibio do incesto a partir das regras de casamento. Explica as segun-

    das pelo primeiro.Em face de um fenmeno o tabu do incesto que ao mesmo

    tempo universal e varia incessantemente de sociedade para sociedade,

    Lvi-Strauss (1980:30) afirma, em sua anlise ahistrica, que [...] a

    mera realidade de sua existncia o que misteriosamente necessrio, en-quanto que a forma sob a qual aparece no de modo algum importante,

    pelo menos do ponto de vista de qualquer necessidade natural.

    O problema, assim, para Lvi-Strauss, no est na configurao

    histrica em que se moldou o tabu, mas em seu carter universal. O

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    autor indaga quais so as causas profundas e onipresentes que fizeram

    com que em todas as sociedades, em todas as pocas, existam regras que

    regulamentam a relao entre os sexos (1981: 27). O que torna o incesto

    perigoso para a ordem social?A resposta aparece na dualidade da regra. Na interpretao do autor,

    o tabu do incesto constitui no apenas uma regra negativa, uma proibi-

    o, mas uma regra, ao mesmo tempo, positiva. O no contm um

    sim. A proibio de casar define, simultaneamente, regras de obriga-es. Um homem no s no pode casar-se com sua irm, como tem que

    dar sua irm em casamento a outro homem, com quem cria relaes, aomesmo tempo em que recebe de outro homem, em troca, sua irm, cri-

    ando, a partir da, relaes. A proibio encerra em si, ento, a reciproci-

    dade (no necessariamente restrita, como demonstra sua anlise da

    troca generalizada). Seguindo a formulao de Marcel Mauss (1974), a

    proibio constitui, assim, uma regra da ddiva, porque pressupe rece-

    ber em troca, implicando regras recprocas. A proibio afirma que as

    famlias podem casar entre si, mas no dentro de si mesmas. A renncia,diz o autor, abre caminho para a reivindicao. Um homem renuncia

    sua irm na suposio de que outro homem tambm o far, assim, suces-

    sivamente... (Lvi-Strauss 1981).A famlia constitui-se, ento, na dualidade entre a afirmao do que

    se pode fazer e do que no se pode, configurando um universo de regras

    num duplo sentido, como regras de prescrio e regras de proibio. Talqual a proibio do incesto, a diviso sexual do trabalho como toda equalquer regra tambm contm esta dualidade.

    graas a uma estranha omisso que no nos apercebemos da

    semelhana entre os dois processos, devido ao uso de termos to

    distintos como diviso, por um lado e proibio, pelo outro. (Lvi-

    Strauss 1980:33; grifos do autor)

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    Graas proibio/ prescrio (a regra), institui-se a comunicao

    entre os homens, atravs da aliana. Assim, o que faz humana a famlia

    que ela se constitui pela comunicao entre grupos. O que aparece como

    prprio famlia, a reciprocidade, , em realidade, o que define o social,concebido como um sistema de comunicao.

    Na originalidade da anlise do tabu do incesto como regra positiva,

    que abriu a possibilidade de pensar a famlia definitivamente no terreno

    da cultura, reside, ao mesmo tempo, um problema. O tabu do incesto ,ao mesmo tempo, a proibio de uma coisa, um no, e a prescrio de

    outra, um sim. Ao enfatizar a troca as famlias casam-se fora de seugrupo considerado consangneo -, como a regra que institui a sociedade

    humana Lvi-Strauss desconsiderou a importncia da proibio, como

    tal, na constituio da sociedade. Seguindo suas prprias trilhas, a regra

    como prescrio to relevante quanto a regra como proibio. No en-

    tanto, Lvi-Strauss no tratou adequadamente, com a devida ateno, o

    que significa este no essa regra inflexvel na qual, como comenta

    Octavio Paz (1993:23), [...] no infundado ver a fonte de toda moral para a cultura como sistema simblico. Lvi-Strauss no levou adiante

    as implicaes de que a primeira regra, ainda que, como toda regra, tenha

    um carter prescritivo, funda-se numa proibio, o que, em nenhumsentido, indiferente aos fenmenos sobre os quais incide (muito menos

    para os intrincados ns das relaes na famlia). Ao contrrio, o que

    constitui justamente a fonte de todo o mal estar da cultura de quefalou Freud (1968). assim que Octavio Paz (1993:23) indaga o que significa este tabu,

    dizendo que lhe custa aceitar que o primeiro no que ops o homem

    natureza seja simplesmente uma regra de transito, um artifcio destinado

    a facilitar o transito entre mulheres (traduo da autora). Para ele, esseprimeiro no, raiz de toda proibio, deve responder a algo mais pro-

    fundo que a necessidade de regular a troca de mulheres, palavras e mer-

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    cadorias. Ele diz encontrar no ensaio de Pierre Clastres (1982), sobre a

    guerra nas sociedades primitivas, uma explicao mais convincente, no

    para o tabu do incesto, mas para o significado da troca nestas sociedades.

    Para Clastres, o sistema de comunicaes que constitui a prpria so-ciedade a conseqncia ou a resposta a uma realidade mais ampla, a da

    guerra, portanto, da no-comunicao. atravs da guerra que se pode

    compreender a troca e no o inverso (ibid.:197). Para o autor, Lvi-

    Strauss confunde o fim e o meio. Confuso obrigatria devido suaprpria concepo de troca, que situa no mesmo plano a troca como ato

    fundador da sociedade humana (proibio do incesto, exogamia) e atroca como conseqncia e meio da aliana poltica (ibid.:196).

    A crtica de Clastres ajuda a reler e a situar a referncia que faz Lvi-

    Strauss, em sua anlise do tabu do incesto, ao evolucionismo do sculo

    XIX, com quem, guardadas todas as devidas ressalvas, compartilhava a

    preocupao com a universalidade da condio humana. Tal como for-

    mulado por Tylor (1975 [1889]), as sociedades primitivas enfrentavam-se

    com o problema de casar fora ou morrer fora, indicando o sentidopoltico da aliana a que se refere Clastres.

    A famlia como sistema de comunicao

    Sendo a aliana entre grupos, e no o fundamento biolgico, o queconstitui a famlia, toda a anlise de Lvi-Strauss repousa sobre o carter

    artificial das relaes familiares. So necessrias duas famlias para que

    exista a famlia. neste sentido que a sociedade precede a famlia. O ca-

    samento/ aliana (entre dois grupos) a instituio que funda a famlia.Na teoria da aliana, o acento est na aliana como o elemento articula-

    dor do que se concebe como um sistema de comunicao.

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    Como vimos, a aliana/ casamento inclui o irmo da me, sendo,

    portanto, uma instituio a trs, no a dois como se supe. H uma

    mulher e dois homens: um que d e outro que recebe a mulher. O casa-

    mento, na abordagem estruturalista, pensado como um sistema de co-municao entre grupos. A aliana entre dois grupos e, assim, o casa-

    mento a trs, constitui a estrutura da famlia. Estrutura que no est

    dada na observao das sociedades, que no da ordem dos fatos obser-

    vveis, como pretendeu Radcliffe-Brown (Lvi-Strauss 1986) 5, mas estoculta, referindo-se no realidade emprica, mas lgica inconsciente

    que lhe d significado. Assim, as razes invocadas para explicar um atoou um fato so muito diferentes das razes que os explicam.

    A estrutura corresponde a um sistema de regras (inconsciente) a ser

    apreendido e decifrado pelo trabalho do etngrafo, de acordo com a po-

    sio anti-empiricista que caracterizou o estruturalismo6. Para este, os

    fatos isolados no tem significado, por isso, precisam ser vistos em suas

    relaes (nas regras que estabelecem estas relaes). Nessa perspectiva,

    as relaes de parentesco no derivam de grupos familiares isolados, masse constituem por cdigos (sistemas de regras), configurando um sistema

    de comunicao.

    5 Em sua crtica a Radcliffe-Brown, afirmava que a estrutura social no se con-funde com as relaes sociais, no correspondendo ao fenmeno emprico(Lvi-Strauss 1986).

    6 Lvi-Strauss (1979:52-53), em Tristes Trpicos, fala das teorias que o influenciaram,chamando-as de minhas trs professoras: a geologia, a psicanlise e o mar-xismo, na medida em que as trs postulam uma descontinuidade entre o vividoe o real, nem que seja para reintegr-los mais tarde numa sntese (o que fazpensar na noo de concreto pensado em Marx). E m A ntropologia E strutural(1967), Lvi-Strauss adverte que a estrutura no uma idia platnica. Segundo oautor, fixar conceitualmente estruturas como realidades no-empricas e con-struir modelos com cujo auxlio se possa compreender as sociedades existentesno significa substituir o real por um modelo. No existe a separao entre a

    realidade e o mundo das idias.

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    A famlia como sistema de comunicao tem na troca e na reciproci-

    dade sua estrutura fundante (a aliana). O objetivo das relaes de paren-

    tesco, como de qualquer sistema social instituir a comunicao, na qual

    o sujeito s se define em relao a um outro7. Os elementos no so pen-sados por suas propriedades intrnsecas (no interessa a famlia indivi-

    dualizada), mas pelas relaes nas quais esto situados. Assim, clara a

    analogia entre a Antropologia e a Lingstica. Ambas operam a partir da

    idia da troca e da reciprocidade como uma estrutura fundante. As rela-es de parentesco so, assim, uma linguagem (Lvi-Strauss 1967).

    Para Lvi-Strauss (1967) a qualidade especificamente humana dosseres humanos possurem uma lngua; , portanto, comunicarem-se.

    Essa qualidade est na base de tudo o que humano, inclusive da famlia.

    A lngua condio de possibilidade do pensamento, na medida em que

    precisamos categorizar o meio ambiente e, depois, representar essas

    categorias por smbolos (elementos da linguagem, palavras), para

    depois pensarmos sobre elas.

    Os seres humanos comunicam-se atravs de trs tipos de relaes detroca: as palavras (linguagem), as mercadorias (sistema econmico) e as

    mulheres (relaes de parentesco), que constituem jogos de comunica-

    o. A sociedade organiza-se em regras como em um jogo. Este jogo,por sua vez, consiste no conjunto de regras que o descrevem, sendo indi-

    ferente natureza dos jogadores (Lvi-Strauss 1967). A famlia, como a

    sociedade, vista como um sistema de relaes e a anlise atenta para asregras que regem essas relaes.Embora incidam sobre diferentes aspectos, esses jogos obedecem

    s mesmas regras, porque a comunicao entre os seres humanos tem

    princpios estruturais. A famlia humana obedece, portanto, tambm a

    7 Neste ponto da anlise, a famlia dilui-se a tal ponto no social que a explicao

    indiferencia seu prprio objeto.

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    princpios estruturais: o casamento como instituio a trs. Entretanto,

    os sujeitos no tm conscincia do princpio que governa estas trocas,

    assim como o sujeito falante no precisa da anlise lingstica para falar.

    A estrutura, que est sob a significao especfica, praticada pelos su-jeitos como bvia. A estrutura tem os homens mais do que eles a

    tm (Lvi-Strauss 1967).

    A noo de estrutura, segundo Lvi-Strauss, no depende de uma

    definio indutiva, fundada na comparao e na abstrao dos elementoscomuns a todas as acepes do termo, tal como geralmente acontece

    (como o caso de Radcliffe-Brown). A estrutura configura um sistemade relaes. Busca-se apreender a lgica subjacente aos fatos, para depois

    generalizar e aplicar aos casos observados.

    Se, como cremos, a atividade inconsciente do esprito consiste em

    impor formas a um contedo, e se as formas so fundamentalmente

    as mesmas para todos os espritos, antigos e modernos, primitivos e

    civilizados [...], preciso e basta atingir a estrutura inconsciente,subjacente a cada instituio ou a cada costume, para obter um

    princpio de interpretao vlido para outras instituies e costu-

    mes, sob a condio, naturalmente, de estender bastante a anlise.

    (Lvi-Strauss 1967:37)

    Ainda sobre a noo de estrutura

    Marcel Mauss (1974), no E nsaio sobre a ddiva, uma obra fundamental

    para Lvi-Strauss, introduz a noo de sociedade como sistema de rela-

    es, de trocas recprocas e circulares. NaIntroduo obra de Mauss, Lvi-

    Strauss (1974) ressalta a importncia desta obra no sentido de dar um

    passo alm em relao a Durkheim, seu tio e predecessor, integrando a

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    subjetividade na anlise sociolgica, ao pressupor o carter inconsciente

    dos costumes. A vida social para Mauss pensada, segundo Lvi-Strauss,

    como um mundo de relaes simblicas (ibid.:6). Mauss articula,

    assim, a dimenso social e a individual, mostrando que existe uma opera-o que se d no sujeito. A categoria inconsciente, prpria dos costumes,

    torna possvel a comunicao entre o subjetivo e o objetivo, entre mim e

    o outro.

    Segundo Merleau-Ponty (1980), Mauss teve, assim, uma intuio dosocial, mas no uma teoria, no sentido de resolver a dicotomia entre a

    coisa e a conscincia, entre o que est fora e o que est dentro do sujeito.Para ele, quem formula esta teoria Lvi-Strauss, atravs da noo de

    estrutura. Lvi-Strauss abriu o caminho para se pensar a cultura como

    sistema simblico, formulando uma teoria para o que foi em Mauss uma

    intuio do social.

    A noo de estrutura pressupe a noo de inconsciente como a

    forma fundamental do esprito humano. Retm de Freud a idia de in-

    consciente como o centro dos mecanismos estruturais, cuja funo darum sentido realidade. O inconsciente est sempre vazio; ele to

    estranho s imagens quanto o estmago aos alimentos que o atravessam

    (Lvi-Strauss 1967:234-235).Para Lvi-Strauss, contrariando a idia de arqutipos de Jung, no

    existem smbolos (com contedo) inteligveis universalmente. O que

    universal a estrutura, enquanto forma. O inconsciente uma forma deatividade do esprito que consiste em impor formas a um contedo eestas formas so fundamentalmente as mesmas para todos os espritos,

    antigos e modernos, primitivos e civilizados, ou de todos os homens e

    de todos os tempos (ibid.:37).

    [...] o mundo do simbolismo infinitamente diverso por seu con-

    tedo, mas sempre limitado por suas leis. (ibid.:235)

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    A estrutura organiza os elementos que esto em relao dentro de

    um sistema lgico que lhe d sentido. A estrutura sentido. A atividade

    desta estrutura inconsciente , para Lvi-Strauss (1967), uma funo, a

    funo simblica, ou seja, a funo de dar significao aos fenmenosvividos.

    A significao, no entanto, como foi dito, est sempre subjacente

    aos fatos. A evidncia de que o homem tem um pensamento simblico

    a existncia da linguagem falada, em que as palavras representam (signi-ficam) coisas que esto fora, que so significadas. H a coisa e o signi-

    ficado e entre eles, existe uma mediao que a linguagem, atravs daqual os homens se comunicam.

    Dentro deste quadro de referncias terico, a famlia, como a lingua-

    gem, constitui uma estrutura fundada no princpio da aliana, uma das

    formas fundamentais pelas quais os homens se comunicam.

    neste sentido que a anlise da famlia, pensada como uma lingua-

    gem, suscita a anlise estruturalista do social, concebido como sistema de

    comunicao, sem que a reflexo incida sobre a famlia naquilo que lhe prprio e a singulariza como instituio social.

    O significado da troca

    No parece residir no desprezo pelo emprico, que tanto irritavaEdmund Leach (1970), o que fica no ar na teoria estruturalista da aliana,

    mas sim a nfase na troca em si, na linha da crtica de Clastres, sem

    que possam emergir os significados especficos para as diferentes formas

    de troca social, entre elas, a famlia. Como pensar a singularidade de rela-es cujo significado que no se esgota em sua forma inegvel de rela-

    es de troca. Mantm-se a pergunta: o que faz as relaes familiares

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    diferentes das outras relaes sociais? Onde est, de fato, a diferena

    entre a troca de mulheres, a troca de palavras e a de bens materiais, para

    alm dos valores e signos intercambiveis? Como pergunta Octavio

    Paz, por que so mulheres o que se troca?Precisamente, uma das objees teoria da aliana de Lvi-Strauss,

    segundo Dumont (1983), est em seu argumento de que os homens tro-

    cam mulheres e no o inverso, o que supe que em todas as sociedades a

    dominao masculina, implicando desconsiderar os (rarssimos) casosem que homens so trocados8. Essa uma objeo no apenas de seus

    opositores ingleses empiricistas, mas de antroplogas feministas9

    .Dumont (1983) menciona esta objeo, argumentando que o importante

    para Lvi-Strauss so as relaes entre os grupos interessados, que

    acompanham o casamento, ou seja, as formas e implicaes da troca

    matrimonial. O casamento para Lvi-Strauss um sistema de trocas, em

    que no o valor dos bens trocados - as mulheres o que constitui o

    fundamental, mas a troca em si, que institui o social.

    Ainda que do ponto de vista da lgica matrimonial (a trs), propostapor Lvi-Strauss, no importe o sexo de quem trocado, no sentido de

    que no se alteram as regras do jogo, trocar mulheres ou homens tem

    implicaes totalmente distintas e decisivas para a anlise do significadoda troca, no apenas no que se refere s relaes de gnero, mas a todo o

    simbolismo da troca.

    Sem endossar inteiramente a crtica de Edmund Leach teoria daaliana, que, segundo seu argumento, no d conta de casos concretos,remeto sua crtica na medida em que esta tambm se refere excessiva

    nfase na troca em si. Nos casos que Lvi-Strauss chamou de troca

    8 Manuela Carneiro da Cunha (1983) menciona a uxorilocalidade e a circulao dehomens de um grupo residencial para outro entre os Krah, grupo indgena dafamlia lingstica J, que se localiza no Tocantins.

    9 A crtica pioneira neste sentido encontra-se no artigo de Gayle Rubin (1975).

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    generalizada (sistema Kachin, analisado nas Estruturas elementares do

    parentesco), em que o casamento se faz apenas com a prima cruzada do

    lado materno (filha do irmo da me), sendo proibido o casamento com

    a pessoa na posio simtrica inversa (a filha da irm do pai), uma vezque no se trocam mulheres por mulheres, como nas trocas restritas, o

    grupo que d as mulheres recebe bens em troca. Segundo Leach, o des-

    caso de Lvi-Strauss em relao ao significado e natureza das contra-

    prestaes que servem como equivalentes das mulheres no lhe permitiuentender o sistema que estudava 10.

    Mantm-se as perguntas de Octavio Paz e de Leach: que razesprofundas e onipresentes, se que o so, explicam que sejam as mulhe-

    res o que se troca? Que significado tem os bens trocados e as contra-

    prestaes, quando estes no so iguais, mas equivalentes?

    Famlia: a tenso entre a consanginidade e a afinidade

    Ao se pensar a teoria da aliana levistraussiana como possibilidade

    de anlise da famlia no mundo moderno, algumas dificuldades evidentesimpem-se. Alm da crtica de Clastres, j mencionada, troca em si,

    generalidade da concepo de troca como fundamento da sociedade hu-

    mana e o conseqente descaso em relao ao simbolismo nas trocas,

    Dumont (1983) menciona, em outro registro, o valor explicativo dasnoes de troca e reciprocidade como um dos pontos mais controver-

    tidos de sua anlise. Sobre este ponto recai uma objeo radical, na

    medida em que sua teoria da aliana foi formulada a partir da anlise do

    casamento prescrito (entre primos cruzados), e no se pode aplicar as

    10 A crtica de Leach a Lvi-Strauss est em seu artigo As implicaes estruturaisdo casamento com a prima-cruzada matrilateral (Leach 1974). Ver a esse

    respeito a introduo de Da Matta (1983) obra de Leach.

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    noes de troca, com base no casamento prescrito entre grupos, para a

    sociedade moderna individualista, sem ressalvas, dado o carter arbitrrio

    da relao de um sujeito individual com todos os outros sujeitos da so-

    ciedade considerada.Dumont (1983:95), entretanto, abre pistas importantes, ao ressaltar

    que a proibio do incesto manifesta a existncia sempre presente de

    um certo grau de incompatibilidade e, por conseguinte, de complemen-

    taridade entre consanginidade e afinidade. A anlise do tabu do incestode Lvi-Strauss, atribuindo regra um carter ao mesmo tempo positivo

    e negativo, estabelecendo-a como um conflito fundante entre consangi-nidade e afinidade, fala de uma questo intrnseca famlia, em todos os

    tempos, em todas as sociedades. A se insinua a singularidade da famlia

    em sua anlise.

    Assim, ainda que Lvi-Strauss formule a teoria da aliana matrimo-

    nial a partir da anlise de estruturas elementares do parentesco, (em

    que o cnjuge prescrito), no se exclui a possibilidade de pensar o fun-

    damento da troca e da reciprocidade que sustenta essa teoria, tambmnos casos de estruturas complexas (abarcando toda a diversidade de

    casos de cnjuge no prescrito pelo grupo, o que inclui nosso sistema de

    parentesco) como fundamento para se pensar as relaes familiaresnaquilo que as funda: a necessidade de romper os laos da consangini-

    dade, que condenam ao isolamento, e lanar-se no caminho da abertura

    ao outro.Aquilo que marca sua interpretao do tabu do incesto, a regra posi-tiva que institui a comunicao com base na troca e na reciprocidade, em

    que ambos os lados esto comprometidos, diz respeito a uma questo

    que sempre existiu e sempre existir na famlia: a tenso entre a consan-

    ginidade e a afinidade (embora, como foi dito anteriormente, no que serefere s implicaes da proibio como a primeira regra, a anlise fica

    no ar, desconsiderando a tenso entre a proibio e a prescrio). A so-

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    ciedade precede a famlia, fundando-a e a famlia para continuar existin-

    do como tal precisa negar a si mesma, abrindo-se para fora, pois a

    ordem continuar a marcha para, assim, constituir a sociedade.

    O quadro terico no qual se desenvolveu o pensamento de Lvi-Strauss, desmontando definitivamente a identificao entre famlia e uni-

    dade biolgica, marcando-lhe o carter cultural, na mesma lgica de rela-

    es em que se move a sociedade, permite pensar o lugar privado do

    mundo familiar como construo cultural, abrindo caminho para des-construir esse lugar privado como ideologia, ao desnaturalizar a famlia

    e romper com o etnocentrismo de nossa viso sobre a famlia, comoapontou Da Matta (1983). O pensamento de Lvi-Strauss faz naufragar a

    concepo funcionalista da famlia nuclear como modelo de anlise.

    Abre o caminho, ainda, para se pensar a consanginidade como signifi-

    cante, construdo culturalmente (os laos de sangue), da sua extra-

    ordinria fora simblica.

    A radicalidade da proposta de Lvi-Strauss, no sentido de romper

    com o fundamento biolgico e naturalizante da famlia, tornando in-sustentvel a idia da famlia como celula materda sociedade, no encon-

    trou paralelo em qualquer outra teoria. Esta razo basta para que a expli-

    cao da famlia de Lvi-Strauss, fundada na anlise do tabu do incesto,ou mais rigorosamente, a explicao da sociedade atravs da famlia,

    continue a ser uma referncia fundamental para quem estuda o tema.

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