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    LBUM DE FAMLIA Nelson Rodrigues

    LBUM DE FAMLIA

    Personagens

    SpeakerJonas (45 anos, vaga semelhana com Jesus)

    D. Senhorinha (esposa de Jonas, 40 anos, bonita e conservada)Guilherme (filho mais velho do casal; mstico)

    Edmundo (adolescente, com uma coisa de feminino)Glria (15 anos, espantosamente parecida com d. Senhorinha)

    Teresa (coleguinha de Glria)Non (o possesso)

    Tia Rute (irm de d. Senhorinha, solteira, tipo de mulher sem o menor encanto sexual)Av

    Helosa (mulher de Edmundo)Mulher Grvida

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    PRIMEIRO ATO

    (Abre-se o pano: aparece a primeira fotografia do lbum de famlia, datada de 1900:Jonas e Senhorinha, no dia seguinte ao casamento. Os dois tm a nfase cmica doretratos antigos. O fotgrafo est em cena, tomando as providncias tcnico-artsticas que

    a pose requer. Esmera-se nessas providncias, pinta o sete; ajeita o queixo de Senhorinha;implora um sorriso fotognico. Ele prprio assume a atitude alvar que seria maiscompatvel com uma noiva pudica depois da primeirssima noite. De quando em quando,mete-se dentro do pano negro, espia de l, ajustando o foco. E vai, outra vez, dar umretoque na pose de Senhorinha. Com esta cena, inteiramente muda, pode-se fazer opequeno bal de fotografia familiar. Depois de mil e uma piruetas, o fotgrafo recua, aomesmo tempo que puxa a mquina, at desaparecer de todo. Por um momento, Jonas eSenhorinha permanecem imveis: ele, o busto empinado; ela, um riso falso e cretino,anterior ou mo sei se contemporneo da Francesa Bertini etc. Ouve-se, ento, a voz despeaker, que deve ser caracterstica, como a de DAguiar Mendona, por exemplo. NOTAIMPORTANTE: o mencionado speaker, alm do mau gosto hediondo dos comentrios,prima por oferecer informaes erradas sobre a famlia.)

    (O speaker uma espcie de opinio-pblica.)

    SPEAKER (j na ausncia do fotgrafo, enquanto Jonas e Senhorinhaesto imveis) Primeira pgina do lbum. Mil e novecentos. Primeiro de Janeiro: osprimos Jonas e Senhorinha, no dia seguinte ao casamento. Ele, 25 anos. Ela, quinzerisonhas primaveras. Vejam a timidez da jovem nubente. Natural trata-se da noiva queapenas comeou a ser esposa. E isso sempre deixa a mulher meio assim. Naquele tempo,moa que cruzava as pernas era tida como assanhada, qui sem-vergonha com perdoda palavra.

    (Desfaz-se a pose. Jonas quer abraar Senhorinha que, confirmando o speaker, revela umpudor histrico.)

    SPEAKER (extasiado) To bonito pudor em mulher?

    (Formalizam-se os nubentes, porque ouvem barulho. Entram pessoas que, sem palavras,atiram arroz nos noivos. Jonas e Senhorinha saem.)

    SPEAKER - Partem os romnticos nubentes para a fazenda de Jonas, emSo Jos de Golgonhas. Longe do bulcio da cidade, gozaro a sua lua-de-melzinha. Good-bye, Senhorinha, Jonas! E no esquecer o que preconizam os Evangelhos: Crescei emultiplicai-vos!

    (Apaga-se o palco, emudece o speaker: ilumina-se uma nova cena ngulo de umdormitrio de colgio. Cama de grades; deitadas, lado a lado Glria e Teresa, ambas emfinssimas camisolas, muito transparentes. So meninas que aparentam quinze anos. Hentre as duas um ambiente de idlio.)

    TERESA - Voc jura?

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    GLRIA - Juro.

    TERESA - Por Deus?

    GLRIA - Claro!

    (NOTA IMPORTANTE: preciso que se observe um desequilbrio entre as duas: osentimento de Teresa mais ativo, mais absorvente; ao passo que Glria, emboraadmitindo o idlio, resiste mais ao xtase.)

    TERESA - Ento , quero ver. Mas, depressa, que a irm pode vir.

    GLRIA (erguendo a cabea) Juro que...

    TERESA (retificando) Juro por Deus...

    GLRIA - Juro por Deus.

    TERESA - ... que no me casarei nunca...

    GLRIA - ... que no me casarei nunca...

    TERESA - ... que serei fiel a voc at morte.

    GLRIA - ... que serei fiel a voc at morte.

    (Pausa. As duas se olham. Teresa encosta o nariz no rosto de Glria, amassa o nariz norosto de Glria.)

    TERESA - E que nem namora.

    GLRIA - E que nem namoro.

    TERESA (apaixonada) Tambm juro por Deus que no me casareinunca, que s amarei voc, e que nenhum homem me beijar.

    GLRIA (menos trgica) S quero ver.

    TERESA (trmula) Segura minha mo assim. (olhando-aprofundamente) Se voc morrer um dia, nem sei!

    GLRIA -No fala bobagem!

    TERESA - Mas no quero que voc morra, nunca! S depois de mim.(com uma nova expresso, embelezada) Ou ento, ao mesmo tempo, juntas. Eu e vocenterradas no mesmo caixo.

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    GLRIA - Voc gostaria?

    TERESA (no seu transporte) Seria to bom, mas to bom!

    GLRIA (prtica) Mas no mesmo caixo no d nem deixam!TERESA (sempre apaixonada) Me beija!

    (Glria beija na face, com certa frivolidade.)

    TERESA - Na boca!

    (Beijam-se na boca; Teresa de uma forma absoluta.)

    TERESA (agradecida) Nunca nos beijamos na boca a primeiravez!

    GLRIA (como que experimentando o gosto do beijo) Interessante!

    TERESA (um pouco inquieta) Gostou, mas muito?

    GLRIA -Na boca diferente, no ?

    TERESA - Voc vai-se esquecer de mim!

    GLRIA (frvola) Boba!

    TERESA (arrebatada) Voc nunca encontrar ningum que te amecomo eu duvido!

    GLRIA - Ento, no sei?

    TERESA (sempre com a iniciativa) Me beija outra vez...

    (Depois do beijo longo.)

    GLRIA (sem saber se gostou ou no) Teus lbios so frios, querdizer molhados.

    TERESA (feliz) Lgico. a saliva...

    (Apaga-se a pequena cena do dormitrio. Ilumina-se um espao maior e mais centrar. Salada fazenda de Jonas. Primeiro, a sala est deserta; algum chega janela, por fora, esolta um grito pavoroso, no-humano, um grito de besta ferida. Aparecem, a seguir,espantadas, duas mulheres que vm espiar, pelos vidros: d. Senhorinha, digna, altiva eextremamente formosa, tia Rute, irm de d. Senhorinha, velha solteirona, taciturna e cruel.

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    D. Senhorinha mais madura do que no retrato, pois j se passaram vinte e tantos anos.Depois de algum tempo, ouve-se o gemido constante de uma mulher que est com as doresdo parto numa dependncia prxima da casa. Retrato de Jesus na parede.)

    TIA RUTE (na janela, olhando para fora) Non, outra vez!

    (Com angstia, d. Senhorinha vai, tambm espiar, enquanto tia Rute, com crueldade bemperceptvel, continua falando.)

    TIA RUTE - Eu conheo o grito dele. Alis, no grito, uma coisa, nosei. Parece uivo, sei l. Se eu fosse voc, tinha vergonha!

    D. SENHORINHA (com sofrimento) Vergonha de qu?

    TIA RUTE - De ter um filho assim voc acha pouco?

    D. SENHORINHA (com sofrimento) Uma infelicidade, ora como outraqualquer!

    TIA RUTE (castigando a irm) Imagine que enlouquece e a primeiracoisa que faz tirar toda a roupa e viver no mato assim. Como um bicho! Voc noviu, outro dia, da janela, ele lambendo o cho? Deve ter ferido a lngua!

    D. SENHORINHA (dolorosa) s vezes, eu penso que o louco no sente dor!

    TIA RUTE - Hoje, est rodando, em torno da casa, como um cavalodoido!

    D. SENHORINHA - Nono muito mais feliz do que eu sem comparao.(sempre dolorosa) s vezes, eu gostaria de estar no lugar do meu filho...

    (J saram da janela. D. Senhorinha, triste, digna, altiva, com uma dor bastante sbria,procurando sempre ficar de costas para irm. Tia Rute com uma crueldade que no podeesconder.)

    TIA RUTE (sardnica) E... DESPIDA, naturalmente.

    D. SENHORINHA (abstrata) O meu consolo que ele no se esquece dafamlia. Quase todos os dias vem gritar perto daqui, como se chamasse algum...

    TIA RUTE (perversa) Voc, talvez?

    D. SENHORINHA (com certa violncia) Nono, quando era bom, gostava demim, tinha adorao por mim. (abstrata outra vez) saudade que ele tem SAUDADE!(taciturna) Saudade de casa...

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    TIA RUTE (veemente) Da casa o qu? Ele nunca gostou disso aqui,nunca pde passar meia hora numa sala, num quarto. Vivia l fora!

    D. SENHORINHA - Seria to bom que fosse saudade, de mim s de mim de

    mais ningum!(Recomeam os gemidos da mulher grvida, interrompendo a conversa. Entra Jonas: tipode homem nervoso, apaixonado, boca sensual, barba em ponta. Cabelos Bufallo Bill,quer dizer, meio nazareno. Vaga semelhana com Nosso Senhor.)

    MULHER GRVIDA (sempre numa voz grossa, pesada, de quem sofreu demais,grito demais) - ... Desgraado me aleijou... Te amaldio... Tu vai pagar o que mefez...

    (Os trs olham na direo dos gemidos.)

    TIA RUTE (demonstrando solicitude e carinho quando se dirige a Jonas) Pois . Foi para Trs Coraes atender um parto.

    JONAS (taciturno) Coisa incrvel!

    TIA RUTE (melflua) S chega amanh, ou, ento, de madrugada.

    JONAS (com sofrimento) Eu acho que vocs duas que tm queliquidar o caso.

    D. SENHORINHA (sem virar o rosto na direo do marido) Jonas.

    JONAS (como se despertasse, meio espantado) Eu!

    D. SENHORINHA (mxima sobriedade) Essa menina, Jonas...

    JONAS - O que que tem?

    D. SENHORINHA (dolorosa) Quase uma criana...

    JONAS (profundamente interessado com o que v l fora) Sei.

    D. SENHORINHA - ... nem tem formas direito vai fazer ainda quinze anos. Nosabia como era esse negcio de filho.

    JONAS (sem ligar mulher) Nono est possesso, hoje!

    D. SENHORINHA - Por que que voc no escolheu outra?

    JONAS (para tia Rute) Aquele negcio, Rute?

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    TIA RUTE (acesa) Resolvido,

    D. SENHORINHA (sem notar que ningum liga para ela) Voc acha que estcerto?

    JONAS (para ela, clera contida) Acho.

    (D. Senhorinha estaca; parece cair em si, abaixa a cabea, sem, todavia, perder adignidade.)

    D. SENHORINHA - Jonas, essa menina no podia ter filhos!

    JONAS (sombrio) Pode, sim. Voc que est com coisa. (violento)Esse mdico, esse cretino!

    (Intervm tia Rute. Cariciosa, sedativa, querendo atenuar as reaes de Jonas. D.Senhorinha vai-se sentar junto janela.)

    TIA RUTE (misteriosamente) Tenho outra. Voc conhece.

    JONAS (interessado) J veio aqui?

    TIA RUTE (excitada) Veio , sim naquele dia! At voc olhou muitopra ela eu notei!

    JONAS (estica as pernas, sensualmente) Como , mais ou menos?

    TIA RUTE - Os homens andam assim atrs dela se voc visse!...(indicando o quarto da mulher grvida) S uma coisa: no como essa estreita! Temmais cadeiras, mas deixa no faz mal. Se eu fosse homem, nem discutia.(confidencial) Vi tomando banho na lagoinha!

    JONAS (com certa decepo) Grande de cadeiras mas... demais, grandedemais?

    TIA RUTE (admirativa) Um corpo, meu filho! (com mmica) O peito,tudo!

    JONAS - Casada? Se for, no interessa!

    TIA RUTE - Casada o qu! S noiva, mais o noivo... (com desprezoabsoluto) Agora desbocada como voc no faz a menor idia. Diz cada nome! E aosberros, na frente de todo mundo.

    JONAS (sombrio de desejo) Diz nome... Idade?

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    TIA RUTE (mudando de tom) Novinha dezesseis anos. Depois dessas mulheres que do em homem. Bate no noivo; alis, dizem que ele gosta.

    JONAS - moa?

    TIA RUTE (categrica) Lgico! Tem esses modos etc, mas com elaningum arranja nada. Fica s na brincadeira sabidssima!

    JONAS - Essa histria de dizer nomes feios se qu, nem para que? maluca?

    TIA RUTE - Maluca, coisa nenhuma!

    D. SENHORINHA (sem aparente conscincia do que est dizendo) Acho que oamor com uma pessoa louca o nico puro!

    (Diz isso olhando para fora, com uma certa doura.)

    JONAS (que olhou em direo de d. Senhorinha e pareceimpressionado: como se estivesse com medo) Porque se for maluca, no quero!(Como se falasse para si mesmo) Aquela chegou. (com maior angstia) As loucas soincrveis (baixa a voz); no amor metem medo!...

    MULHER GRVIDA - ... me dem uma coisa para eu tomar... Eu no posso, meuDeus do Cu... Minha santa Teresinha!

    JONAS - E ela?

    TIA RUTE (vida) Que que tem?

    JONAS - Quer?

    TIA RUTE - Claro! Todo mundo est de acordo o av no tem me,nem pai -, o noivo. (abaixa a voz) Prometi que voc protegia a famlia. Ela me disseque voc era homem HOMEM! E depois, o orgulho, a vaidade. Sabe como mulher!

    JONAS (com sofrimento retrospectivo) Nem todas! Aquela Aucena no quis nada comigo!

    TIA RUTE - Aquela diferente: veio da cidade instruda. Estou falandodo pessoal daqui (com nfase) da terra.

    (Durante o dilogo, d. Senhorinha em silncio olhando para fora.)

    JONAS (em fogo) Ento, arranje isso. Mas logo!

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    (Quebra-se a impassibilidade de d. Senhorinha.)

    TIA RUTE - Vou dar uma espiada l fora.

    (Sai tia Rute.)

    D. SENHORINHA - Eu podia dizer que sou sua esposa...

    JONAS (sardnico, interrompendo) Ia adiantar muito!

    D. SENHORINHA - ... podia reclamar que voc botasse uma mulher aqui para terum filho seu...

    JONAS (ameaador) Se faa de tola!

    (Interrompe-se d. Senhorinha, porque acaba de entrar, atrs de tia Rute, o av da novaconquista de Jonas. Um velho de barbas bblicas; apia-se num basto, porque tem umadas pernas enroladas em pano, em virtude de uma aparente elefantase. )

    TIA RUTE (recomeando) Rpido, hem?

    AV (renitente) Um instantinho s, dona.

    (O velho faz logo um vasto e coletivo cumprimento.)

    AV - Muito boas-tardes.

    (Ningum responde.)

    JONAS (taciturno) Que que h?

    TIA RUTE - o av, Jonas. O av da menina. A que eu lhe falei.

    AV - Vim s cumprimentar o senhor, seu Jonas. Aposto quenem se lembra de mim; tambm era to novinho! O senhor, seu Jonas, fez muitoxixi, em cima de mim, muito! Tambm montou na minha corcunda. Cada judiaria!Pois o senhor querendo, no faa cerimnia disponha! Quando quiser!

    TIA RUTE - Chefia, Tenrio.

    (Tia Rute quer puxar o patriarca.)

    AV - Trouxe minha neta. Sou homem de uma palavra s. faz bem,seu Jonas, em no querer nada com o pessoal da Mariazinha Bexiga. Umas mulheresperebentas! Agora, minha neta duvido! Me arresponsabilizo, to limpinha. No temuma ferida. Ano ser uma vez que o calcanhar postemou, mas faz tempo.

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    (O patriarca no quer sair de jeito nenhum.)

    AV - Deus Nosso Senhor lhe d muita sade. Para d. Senhorinha,tambm. Se minha neta perder o respeito, o senhor no se avexe de me chamar. Dou decinto!

    (Puxado por tia Rute, desaparece o patriarca av.)

    JONAS (parece cair em transe; no se dirige a ningum; volta tiaRute, sem que ele perceba) Gosto de menina sem-vergonha. Mulher, no; menina. Dequatorze, quinze anos. Desbocada. (com angstia) Alis, no sei por que mulher nopode dizer nome feio como ns, por que, ora essa? (com absoluta dignidade, quasecom sofrimento) Numa conversa, durante a refeio; a Ceia do Senhor, pendurada naparede, e a dona da casa dizendo palavres!

    (Volta-se para tia Rute; parece louco.)

    D. SENHORINHA (veemente, m) Glria no desbocada! Glria no dizpalavres! menina, tem quinze anos!

    JONAS (caindo em si) Glria uma santa... Uma santa de loua, deporcelana...

    TIA RUTE (como para despert-lo) E a menina?

    JONAS (ainda na sua angstia) Eu queria uma garota de quinzeanos, pura, que nunca tivesse desejado! Que nunca tivesse dito um nome feio!

    (Outra vez, para tia Rute, mas de uma incoerncia absoluta.)

    JONAS - Rute, quero a neta do velho, aqui, HOJE!

    D. SENHORINHA (lacnica e gelada) Hoje, no. Hoje no pode ser.

    JONAS (aproximando-se de tia Rute) S voc, Rute, nesta casa!Voc a nica pessoa que me quer bem, que faz tudo, TUDO, por mim!

    TIA RUTE (apaixonadamente) TUDO!

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    JONAS (com a mesma doura quase musical) At infmias qualquer uma! At um CRIME! (volta-se para d. Senhorinha, com sbito rancor) Masa casa toda me odeia, eu sinto! Esse meu filho doido, Non...

    D. SENHORINHA (hirta) No toque no Nono!JONAS (violentamente) Completamente doido! S tem de humano o

    dio a mim, ao PAI! Quando sai do mato e me v de longe, atira pedras!

    D. SENHORINHA - Quando ele era bom,voc batia nele!

    (Jonas aproxima-se de d. Senhorinha, que fica de perfil para ele, como se no quisesseencar-lo.)

    JONAS (surdamente) Edmundo no me suporta...

    D. SENHORINHA - Voc no botou ele para fora de casa, trs dias depois docasamento?

    JONAS (sem ligar interrupo) Nem Guilherme!... (violento,querendo encarar d. Senhorinha) E voc tambm! Quando est cara a cara comigo,fica de perfil. Com esse ar de mrtir, quando devia estar de joelhos, aos meus ps,beijando meus sapatos!

    (Volta tia Rute, que assiste cena, fascinada.)

    JONAS (inesperadamente doce) Voc no, Rute! Sempre firme. Eutenho certeza de que, se eu ficasse leproso, talvez meus filhos e minha mulher mematassem a pauladas. Mas voc no teria nojo de mim. NENHUM!

    JONAS - Voc no, Rute! Sempre firme. Eu tenho certeza de que, seeu ficasse leproso, talvez meus filhos e minha mulher me matassem a pauladas. Masvoc no teria nojo de mim. NENHUM!

    TIA RUTE (persuasiva) No se excite, Jonas, lhe faz mal excitar-se.

    JONAS (gritando) Mas ELES esto enganados comigo. Eu sou oPAI! O pai sagrado, o pai o SENHOR! (fora de si) Agora eu vou ler a Bblica,todos os dias, antes de jantar, principalmente os versculos que falam da famlia!

    (A prpria excitao parece esgot-lo; cai numa cadeira, estirando as pernas.)

    D. SENHORINHA (do seu canto) A tal mulher no pode vir, Jonas!

    (Est mortalmente fria.)

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    TIA RUTE (sardnica) Minha irm querendo dar ordens!

    JONAS - Deixa ela comigo! (mudando de tom) Fao questo que essagarota venha, Rute.

    TIA RUTE (exultante) No se incomode.

    (D. Senhorinha barra o caminho de tia Rute, que se ia afastar.)

    D. SENHORINHA (humilhando-se um pouco) Rute, voc minha irm.

    TIA RUTE (cortante) No interessa.

    D. SENHORINHA (entre autoritria e suplicante) Quando mame morreu, elapediu que voc tomasse conta de mim. Como minha irm mais velha. Voc prometeu, Rute,jurou!

    TIA RUTE (dura) E ento?

    D. SENHORINHA (suplicante) Mande essa mulher, essa menina de volta. Deuslhe pode castigar!

    TIA RUTE - Tanto faz.

    D. SENHORINHA (humilhando-se mais) S por hoje, Rute. Voc sabe que euno me incomodo j aturei tanto! Mas hoje, no, porque Glria chega... Glria.

    JONAS (em pnico) Glria!

    D. SENHORINHA - ... aconteceu uma coisa com Glria, no colgio, no sei. Ouhoje ou amanh esta est a!

    JONAS (levantando-se, perturbado) Mas aconteceu o qu?...Diga! ... voc esta escondendo de mim, o qu?

    D. SENHORINHA - No sei de nada. O telegrama s diz que ela vem telegramada madre superiora.

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    JONAS (artomentado) O que ter havido, meu Deus do Cu!

    D.SENHORINHA (como se falasse para si mesma) Sempre que Glria estaqui, voc se comporta. At me trata melhor, outro. Ela a nica pessoa do mundo

    que voc respeita. (num transporte) Glria to pura, acredita nas pessoas, no vmaldade em nada! Nem sabe que existe amor, no faz a mnima idia do que sejaamor. Pensa que amizade!

    JONAS (com sofrimento) Ela no deste mundo. Quando fez aprimeira comunho, tive um pressentimento horrvel!

    D. SENHORINHA (veemente) Ela no precisa saber, no deve desconfiar denada! (com tristeza e doura) Me disse uma vez que voc, com a barba assim, e o cabelo,se parecia com Nosso Senhor!

    JONAS (como que tocado por uma suspeita) Mas ela chega hoje ouamanh?

    D. SENHORINHA (perturbada) No sei direito, ou hoje ou amanh!

    JONAS (gritando) Diga!

    D. SENHORINHA (baixando a cabea, humilhada) Parece que amanh.

    JONAS (cruel, j com o desejo renascendo) Amanh, hem? Ento,Rute, pode trazer a fulana! (muda de tom, enigmtico) Glria vem. Agora mesmo queeu preciso de meninas!

    D. SENHORINHA (interpondo-se outra vez) espere, Rute: h outra coisa,Jonas.

    JONAS - H o qu?

    D. SENHORINHA (humilhadssima) Edmundo est a. Edmundo chegou hoje!

    JONAS (espantado) Sozinho ou com a mulher?

    D. SENHORINHA - Sozinho.

    JONAS (num crescendo de raiva) Se fosse com a mulher, eu aindapodia tolerar... Mas sozinho! Voc no estava preocupada com Glria, e sim comEdmundo. Quem deu licena para Edmundo entrar na minha casa? Eu disse que eleno voltasse, NUNCA!

    D. SENHORINHA (humilhando-se) - Veio-me ver, Jonas, veio-te ver!

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    JONAS (feroz) Dispenso.

    D. SENHORINHA - da outra vez, a briga foi por minha causa, porque voc metratou mal. No quero que saia outra briga por uma coisa semelhante. Se ele souber! J

    desconfia!(D. Senhorinha dirige-se tia Rute.)

    D. SENHORINHA - Olha! Eu estou pedindo, ouviu? para evitar uma desgraamaior!

    TIA RUTE - Desgraa maior o qu? O que que ele pode fazer emJonas? Jonas mais homem do que ele, sem comparao. Jonas naquele dia deu nelecomo nunca vi nenhum homem dar tanto em outro. Ele correu, na frente de todomundo!

    (D. Senhorinha parece intimidar-se ante a violncia da irm.)

    TIA RUTE (para Jonas) Volto j com a moa, Jonas!

    D. SENHORINHA - Sem-vergonha!

    TIA RUTE (espantada) O qu?

    D. SENHORINHA - Voc!

    JONAS - No ligue, Rute!

    TIA RUTE (dominada tambm pela raiva) Quem a sem-vergonha,eu? Voc que ! Em mim nunca homem tocou!

    D. SENHORINHA (mais serena, cruel) Porque nenhum quis voc no nemmulher!

    TIA RUTE - Graas a Deus, ainda no fiz o que todas fazem, ou querem!O que voc fez?

    D. SENHORINHA (exaltada, de novo) No tem cadeiras, nem seios, nem nada!(com uma mmica adequada) Uma tbua! Ser sria assim, minha filha!.... Quero ver sriabonita, desejada! Com todos os homens malucos em volta! Virtude assim, sim, vale a pena!

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    JONAS (interpondo-se) Pare com isso, Rute!

    TIA RUTE (por conta do despeito) Primeiro, ela tem que me ouvir...(para d. Senhorinha) Voc que a virtuosa? E aquela noite? No mnimo, j se

    esqueceu, claro, daquela noite!(D. Senhorinha guarda silncio.)

    TIA RUTE (inteiramente possessa) Mas h uma que voc no sabe. Eumenti quando lhe disse que nenhum homem me tinha tocado.

    D. SENHORINHA (sardnica) Ah, houve um que...?

    TIA RUTE (dolorosa, transfigurada pela recordao grata) Tambmfoi s uma vez. Ele est bbado, mas no faz mal. NENHUM HOMEM ANTESTINHA OLHADO PARA MIM. Ningum, nem pretos. Foi uma graa de bbado quefizerem comigo eu sei. Mas o fato que FUI AMADA. At na boca ele me beijou,como se eu fosse uma dessas mulheres muito desejadas. Esse homem (mudando detom violenta) SEU MARIDO!

    JONAS (com certo rancor) No devia ter contado!

    TIA RUTE (sem ouvi-lo) Por isso que eu gosto dele. Sabia que tinhasido aquela vez s que no voltaria mais, pacincia. Mas como foi bom! Agora, o queele quiser eu fao. Quer que eu arranje moas, meninas de treze, quatorze, quinze anos.S virgens, pois no! Para mim, um santo, est acabado!

    (Tia Rute cobre o rosto com uma das mos. D. Senhorinha est imvel, rgida. Jonasparecem afinal, impressionado com a confisso da cunhada.)

    JONAS (para d. Senhorinha, com rano) Voc alguma vez meamou, assim?... Houve um momento que... Mas nem a voc seria capaz disso ( a srio,como se estivesse fazendo uma reclamao digna), de ir voc mesma buscar mulheres sobretudo virgens para o homem que voc amava eu. Nenhuma mulher faz isso.

    D. SENHORINHA - Queria que eu fizesse?

    JONAS (aproximando-se da mulher) E para que essa pose que voctem?... (com uma raiva que aumenta) Voc falou em sem-vergonha. (com dourasinistra) Agora vai-me dizer uma coisa; aqui h uma sem-vergonha. Mas quem ?

    D. SENHORINHA (Perturbada) No sei.

    JONAS (avanando, enquanto ela recua) Sabe, sim. Quem ?

    D. SENHORINHA (evadindo-se) Ns trs.

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    JONAS - Diga direito.

    D. SENHORINHA (acuada) - Eu. A sem-vergonha sou eu!

    (Ento, lentamente, saem os trs da cena. Cai a luz. Fica o palco vazio. Comea a gemer ea falar a mulher grvida.)

    MULHER GRVIDA - Eu fui atrs da conversa, acreditei... Dei trela... Ah, mas seeu soubesse que a dor era tanta... Tomara que te pegue uma doena!... E vem dor. Ahn!

    (Apaga-se totalmente o palco central. Ilumina-se o lbum de famlia. Segunda pgina.Mesmo fotgrafo, mais velho treze anos. Mesma mquina, mesma mise-em-scne. Afamlia toda: Jonas e Senhorinha, agora com os quatros filhos: Guilherme, Edmundo,Non e Glria, est ltima no joelho de Senhorinha. Dois meninos de marinheiro;Guilherme, o mais velho, de uniforme colegial. Entra o speaker com a habitualimbecilidade.)

    SPEAKER - Segunda pgina do lbum. Mil novecentos e treze. Um anoantes do chamado pandemnio louco. Senhorinha no mais aquela noiva tmida enervosa; porm, uma me fecunda. Do seu consrcio com o primo Jonas, nasceram, pelaordem de idade: Guilherme, Edmundo, Non e Glria. E ainda h quem seja contra ocasamento!

    (Desfaz-se a pose. Jonas beija a esposa na testa e, em seguida, pega a filha no colo. )

    SPEAKER - Uma me assim um oportuno exemplo para as moasmodernas que bebem refrigerante na prpria garrafinha!

    (Ilumina-se a sala principal da fazenda. Est saindo de um quarto uma moa, tipo debeleza selvagem. Passa correndo, deixando a porta aberta. Depois de um momento, maiorou menor, sai Jonas pela mesma porta, ainda apertando o cinto. Entra o av da meninaque fugiu.)

    AV - Tudo bem, seu Jonas? Direitinho?

    JONAS (taciturno) Mais ou menos.

    AV - o que serve. Pois v por mim, seu Jonas: no se metacom a gente de Mariazinha Bexiga que se d mal.

    (Vai saindo de frente para Jonas: este no responde.)

    AV - Querendo, disponha. L na Mariazinha Bexiga est dandoalterao toda noite. (pra, num ltimo palpite) A minha falecida dava-se muito com osenhor seu pai...

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    JONAS (explodindo) - Velho safado! Desaparea, antes que eu...Bom!

    AV (em pnico) s ordens! s ordens!

    (Sai o av.)(Entra d. Senhorinha com a sua bonita tristeza.)

    JONAS (com irritao) Esteve-me espionando?

    D. SENHORINHA (irnica) Eu? Me interesso muito pelo que voc faz!

    JONAS (canalha) Mas viu a menina?

    D. SENHORINHA - Sem querer, de passagem.

    JONAS (aproximando-se de d. Senhorinha, julgando-a como quemjulga um belo animal) Mais interessante do que voc.

    D. SENHORINHA (com ironia desesperada) Lgico! Tem mais cadeiras, maisbusto... Transpira mais, eu quase no transpiro!... Anda imunda e eu no! Mas voc precisa,no , de mulher assim? Gosta1

    JONAS (mudando de tom) O pior que eu no acho uma, noencontro... Tenho vontade de bater, at de estrangular! So umas porcas e eu tambm!

    (Cai em prostrao.)

    D. SENHORINHA - Edmundo brigou com Helosa esto separados. Receba seufilho Jonas!

    (Entra Edmundo, quando d. Senhorinha comeou a frase anterior.)

    D. SENHORINHA (pattica) E tomara que ele no tenha visto a mulher sairdaqui!

    EDMUNDO (jovem, bonito, um certo qu de feminino) Eu vi umamulher...

    D. SENHORINHA (em pnico) Voc me prometeu, Edmundo!

    JONAS (sardnico) E no mulher: menina...

    EDMUNDO (obstinado para d. Senhorinha) Quem essa mulher?

    D. SENHORINHA - Ningum, Edmundo.

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    JONAS (berrando) Eu estou falando. (novo tom) Considero falta decarter, de vergonha, que um sujeito expulso de uma casa, CORRIDO, aparea de novo, eCOM O AR MAIS CNICO DO MUNDO!

    EDMUNDO (sem ligar ao pai, como se este na existisse) Me, quem ,me?

    D. SENHORINHA - No tem importncia bobagem.

    EDMUNDO (para d. Senhorinha) Por que tolera ISSO?

    D. SENHORINHA (implorante) No se meta, Edmundo, deixe!

    EDMUNDO - Antigamente eu via certas coisas, mas era criana... Ento,tudo isso acontece aqui, dentro de casa, na sua frente! Voc v tudo, suporta, no diz nada!E por que isso que me dana -, POR QU?

    JONAS (irnico, para a mulher) Explique por qu!

    EDMUNDO - Eu no quero que isso continue, NO QUERO!

    D. SENHORINHA (doce) Edmundo, atende a um pedido meu?

    EDMUNDO - Esto fazendo com voc o que no se faz com a ltima dasmulheres!

    (D. Senhorinha abraa-se com Edmundo, sacode-o, como para despert-lo.)

    D. SENHORINHA - Faz o que eu lhe pedir? Diga faz?

    (Pausa de Edmundo, que parece desorientado.)

    EDMUNDO (num sbito transporte) Fao!

    D. SENHORINHA (doce, olhando-o bem nos olhos) Lembre-se de quando eracriana: v tomar a beno do seu pai!

    EDMUNDO (recuando, com espanto) No, isso no!

    D. SENHORINHA (amorosa) Sou eu que lhe peo eu! Vamos acabar comessa bobagem!

    EDMUNDO (revoltado) Est completamente louca!

    (Jonas comea a ferver.)

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    JONAS (andando pela sala, de um extremo a outro) Expulsei-odaqui... Dei na cara... Ele correu no homem...

    (Refere-se evidentemente a Edmundo, que parece no sentir as palavras paternas.)

    (Entra tia Rute.)EDMUNDO - Isso ainda vai acabar mal!

    TIA RUTE (sardnica) Vai acabar mal o qu? O que que vai acabarmal?

    EDMUNDO (cortante) No quero conversa com a senhora. A senhora sme inspira repugnncia, nojo!

    TIA RUTE (fremente) boa vai acabar mal. ameaa para Jonas,? Voc j esqueceu das surras que apanhou?

    JONAS - Deixe, Rute! Eu que sou o pai! (surdamente) Me criticar um sujeito que acaba de largar a mulher! Por que no fez, ento, como Guilherme, quecontinua firme no seminrio, estudando para padre! Eu sei por qu: porque o Guilherme frio, no: feminino, at.

    EDMUNDO - Eu tambm sou frio.

    JONAS (enraivecido) Frio, eu sei! (explodindo) Fale comigo! Falediretamente a mim, seja homem! (mudando de tom, diretamente para Edmundo) Voc como eu pensa em mulher, dia e noite. Uma dia h-de matar algum por causa de mulher!

    EDMUNDO - Penso NUMA MULHER, o que muito diferente! Numa s!

    JONAS (exultante) Confessou pensa NUMA MULHER.(apaixonadamente) Tanto faz pensar NUMA, com em todas!

    EDMUNDO - outra coisa. (com dio) Eu no ando atrs de vagabundasdo mato, que, ainda por cima, devem ter doena, o diabo! (gravemente) S tenho e s tiveum amor!

    JONAS (sardnico) No sua esposa? Ou ?

    EDMUNDO - No.

    D. SENHORINHA (fascinada) Ento, quem?

    JONAS - Diga!

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    EDMUNDO (baixando a cabea, com toda seriedade) No digo. (parad. Senhorinha, olhando-a bem nos olhos, baixando a voz) Talvez voc saiba um dia!

    JONAS (violento) Voc no me engana. Voc sempre teve dio demim desde criana. Voc sempre quis, sempre desejou minha morte. Um dia, voc vai-me

    matar, talvez quanto eu estiver dormindo. Mas vou tomar as minhas providncias!TIA RUTE - Quem ele para te matar, Jonas?

    JONAS - Vou avisar a todo mundo que se um dia eu aparecer morto,j sabe; no foi acidente, no foi doena FOI MEU FILHO QUE ME MATOU. (semtransio quase) Mas voc tem medo de mim medo e dio. Porm o medo maior. (comperigosa doura) No , Edmundo, o medo no maior?

    (Edmundo parece fascinado.)

    JONAS - Vem c, um instante.

    D. SENHORINHA (em pnico) V, Edmundo! Sou eu que estou pedindo!

    EDMUNDO (parado) Isso, no! Nunca!

    JONAS - Venha tomar a bno, Edmundo! (com hedionda doura)do seu pai!

    D. SENHORINHA (impressionada com a humilhao do filho) Mas se vocno quer, meu filho, no v... Eu tambm no posso pedir que voc se humilhe... Edmundo,no v!

    (Edmundo luta contra a prpria fraqueza; ainda assim aproxima-se, como se viesse do paiuma fora maior.)

    EDMUNDO (sem se dirigir diretamente ao pai) Quando eu era menino,ele me humilhava, me batia... Uma vez eu fiquei ajoelhado em cima de milho... (comdesespero) Mas agora, no sou mais criana;;;

    (Lentamente, aproxima-se do pai.)

    D. SENHORINHA (histrica, com as duas mos tapando os ouvidos) ACABEM COM ISSO!

    JONAS - Vem ou no vem?

    D. SENHORINHA (histrica) No, Edmundo, no!

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    EDMUNDO - Por que fazem meninos tomar a bno do pai? ... Meninoss deviam tomar a bno materna... A mo da mulher outra coisa... Sua menos, no temcabelo, nem veias to grossas.

    (Como que inteiramente dominado, Edmundo curva-se rapidamente e beija a mo

    paterna.)EDMUNDO - Beijei a mo de meu pai em cima de suor.

    FIM DO PRIMEIRO ATO

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    SEGUNDO ATO

    (Terceira pgina do lbum. Retrato de Glria, na primeira comunho. De joelhos, mospostas etc. O fotgrafo d adolescente uma idia da pose mstica que deve fazer; paraisso, ajoelha, junta as mos, revira os olhos. Depois do que, levanta-se e contempla o

    resultado de suas indicaes. J ia tirar a fotografia, quando bate na testa, lembrando-sedo livrinho de missa e do rosrio; entrega um e outro menina, que se pe na atitudedefinitiva. D. Senhorinha est presente, mas no entra no retrato; apenas acompanha afilha.)

    SPEAKER - Menina e moa, como muito bem diz o autor quinhentista,Glria recebeu uma esmeralda educao. A inocncia resplandece na sua fisionomiaangelical. Me e filha se completam.

    (Desfaz-se a pose. Me e filha se abraam, com extremo carinho.)

    SPEAKER - Me sempre me.

    (D. Senhorinha para o fotgrafo, o qual faz um amplo gesto de gratido eterna. D.Senhorinha afasta-se.)

    SPEAKER - Se Senhorinha uma me extremosa, Glria uma filhaobediente e respeitadora.

    (Apaga-se a cena do lbum. Sala da fazenda. Ningum no palco. A mulher grvidarecomea a gemer.)

    MULHER GRVIDA (com a voz rouca pelos berros anteriores) Me acudam, queeu no posso mais!... Ai, Virgem Santssima, minha santa Teresinha!... Desta vez, eu vou!...Ahn!

    (Entram Edmundo e d. Senhorinha; parecem chegar de um passeio.)

    EDMUNDO - Voc suporta tanta coisa deve haver um motivo, ummotivo qualquer, que eu no conheo!

    D. SENHORINHA (dolorosa) Motivo nenhum.

    EDMUNDO - Seria tudo melhor se em cada famlia algum matasse o pai!

    D. SENHORINHA - Voc queria que eu fizesse o qu?

    EDMUNDO (apaixonadamente) Por que no se matou?D. SENHORINHA (pattica) Ainda est em tempo. (mudando de tom) Querque eu me matei?EDMUNDO (com medo) No!D. SENHORINHA (meiga e triste) Viu? Voc parece que fala sem refletir!

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    EDMUNDO (obcecado) Se voc morresse, no sei! No quero que vocmorra, nunca! (mudando de tom) No posso imaginar voc mortal! (passa a mo norosto materno) Prefiro voc, viva, mesmo que um dia entre para a casa de MariazinhaBexiga!

    D. SENHORINHA - Que loucura!EDMUNDO (doloroso, para si mesmo) s vezes, eu penso, ficoimaginando voc entre as mulheres de Mariazinha Bexiga! Sem um dente na frente!Bebendo cerveja!

    (Entra Jonas. No rosto a habitual expresso de crueldade.)

    JONAS (aproximando-se de Edmundo) Voc ainda no explicou porque se separou de Helosa.

    EDMUNDO (com sbita vergonha) Nosso gnio no combinava.

    JONAS (afastando-se como para si mesmo) S no compreendoGuilherme... No pode ser frio - filho de MINHA CARNE!

    D. SENHORINHA (num transporte) Guilherme era to... (no sabe o que dizer)Desde menino, no saia da igreja...

    JONAS - Tem que se como eu!

    D. SENHORINHA (doce) Sempre com livrinho de missa!

    JONAS - impossvel que no tenha desejo!

    D. SENHORINHA (feliz) Ele adorava estampa de anjo!

    JONAS (exultante) Mas eu sei o que vai acontecer APOSTO!Guilherme ainda vai aparecer aqui, vai dizer: Larguei o seminrio!

    (Entra Guilherme, em tempo de ouvir as ltimas palavras do pai.)

    GUILHERME - Larguei o seminrio...

    JONAS (espantado) Ele! (pausa; possesso, para todo mundo) Euno disse? Eu acabava de dizer... (ofegante) Deus confirmou as minhas palavras...(apontando para o quadro de Jesus) Foi Deus! Deus, sim. Deus!

    (Encaminha-se para Guilherme.)

    JONAS (segurando Guilherme pela gola do palet) Eu sei para quevoc deixou o seminrio; por que desistiu de ser padre...

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    (Para os outros, exultante.)

    JONAS - Sei, sim!... Foi para ter liberdade para dar em cimadalguma prostituta!...

    D. SENHORINHA (num lamento) Deus castiga, Guilherme! Deus castiga!

    JONAS - Quem ela?

    GUILHERME (sombrio) No quero, no me interessa nenhuma prostituta!

    JONAS (enche o palco com a sua voz) Mentiroso! E eu que sentiaum certo respeito por voc! Que at me sentia incomodado na sua presena! PORQUEACHAVA VOC O NICO PURO DA FAMLIA!

    GUILHERME - E Glria?

    JONAS (retificando, rpido) Quer dizer, o nico puro dos homens.(para os outros) Eu at no disse que ele era FRIO? Foi, no foi?

    (Guilherme, com as mos entrelaadas nas costas, parece no sentir a presena dosdemais.)

    JONAS (como para si mesmo) - Eu gosto de mulher novinha, novinha(riso nervoso) e vocs ningum sabe POR QU! (para Guilherme, agressivo) E seugosto qual ? (mudando de tom) Voc agora como eu, como aquele ali (indicaEdmundo), que deixou a mulher...

    (Aproxima-se de d. Senhorinha. Esta de perfil para ele.)

    JONAS - ... como essa aqui!

    EDMUNDO - No meta minha me no meio!

    D. SENHORINHA (sardnica) Como Glria, tambm!

    JONAS (desorientado) Glria no! Glria a nica compreendeu?-, a NICA que escapou! Glria um anjo de estampa!

    D. SENHORINHA (irnica) Sei l!

    JONAS (para Guilherme) Que no te acontea como a Nono, queficou maluco. Na certa, foi de pensar demais em mulher! Agora lambe a terra, ama a terracom um amor obsceno... de cama! (enrgico, cara a cara com o filho) S te quero avisaruma coisa: Menina, no! Nem mulher muito novinha compreendeu? Nunca!

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    (A mulher grvida torna a gemer.)

    JONAS - Esse cretino do mdico que no vem!

    GUILHERME - Essa das tuas, hem?

    EDMUNDO (doloroso) Mame tinha-me dito que no!

    JONAS (rpido, para Edmundo) Eu te deixei ficar aqui porque metomaste a bno... Mas no se meta, porque expulso outra vez!

    (Novo gemido da mulher grvida.)

    D. SENHORINHA (explodindo) Coisa horrvel!

    JONAS (agitado) Tambm tu!

    D. SENHORINHA (sem perceber a interrupo) No tem bacia!... bacia decriana!...

    JONAS (inquieto, com possvel remorso) Se no fosse eu, seriaoutro!

    D. SENHORINHA - To estreita!

    JONAS - E eu com isso? Tenho culpa que no tenha bacia?

    (Guilherme vai at a porta do quarto da mulher grvida e fala de l.)

    GUILHERME - O que eu devia fazer, eu sei: o que eu fiz daquela vez, com amuda!... (numa alegria hedionda) Voc se lembra, pai da MUDA?

    JONAS (com certo medo) Sei l do que voc est falando?

    GUILHERME - Sabe sim. Aquela que no falava, meio idiota estrbica!...(com alegria selvagem) Ah, mesmo ESTRBICA!

    (Tia Rute passa, levando uma bacia grande para o quarto da mulher grvida; olha ummomento para a cena. Deixa a bacia l e volta interessada.)

    GUILHERME - Todo mundo respeitava a muda... Ningum mexia com ela...

    JONAS (com medo do filho) Nem eu!

    GUILHERME (violento) Voc sim... Nem a muda voc perdoou...

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    JONAS (para os outros, como se defendendo) Mas por acaso mudano mulher? S por causa de um defeito?

    GUILHERME - Depois, ela pegou gravidez. Durante as dores, veio-searrastando QUERIA TER O FILHO AQUI... Eu encontrei ela no meio do caminho.

    (Todos na sala parecem fascinados com a narrao de Guilherme. Este baixa a voz, comuma expresso de sofrimento.)

    GUILHERME - Quando me viu, ela parece que adivinhou teve medo demim. (Guilherme muda de tom, implacvel) Ainda quis fugir mas eu, ento, pisei o ventredela, dei pontaps nos rins!...

    (Guilherme fala numa espcie de embriaguez. Interrompe-se, cansado e espantado.)

    JONAS (com sofrimento) Assassino!

    (Guilherme olha para o quadro de Jesus. Fala, subitamente grave e viril.)

    GUILHERME - Deus testemunha de que no me arrependo! (comferocidade) Eu devia fazer a mesma coisa com essa que est a!

    JONAS (obcecado) ASSASSINO!

    GUILHERME - So umas cachorras!

    (Gemido de mulher grvida e fala.)

    MULHER GRVIDA - Vou morrer!... Minha Nossa Senhora vou morrer!

    (Tia Rute tinha ido ao quarto da mulher; volta.)

    D. SENHORINHA - E as dores?

    TIA RUTE - Aumentando.

    D. SENHORINHA - Vou ver o que .

    (D. Senhorinha vai ao quarto da mulher.)

    JONAS (sombrio) Meus filhos querem-me criticar! Se soubessem omotivo que eu tenho um grande MOTIVO para fazer o que fao - ... e coisas piores!

    D. SENHORINHA (aparecendo) Rute, vem c um instante.

    TIA RUTE - Depois.

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    D. SENHORINHA - Edmundo, quer-me ajudar aqui?

    (Edmundo sai.)

    GUILHERME (para Jonas) Acabou? Ou tem mais alguma coisa que dizer?

    JONA S - Acabei, sim! Agora vou-me embora... De santos da tuamarca, estou at aqui AT AQUI! Adeus!

    (Quer-se afastar, meio trpego, quando recebe a intimao do filho.)

    GUILHERME - Adeus coisa nenhuma! No sai!

    TIA RUTE - Quem voc para dar ordens a seu pai?

    GUILHERME - Quem vai sair daqui, j, j, voc!

    JONAS (espantado) Mas o que que ela fez?

    TIA RUTE (num lamento) Eu no fiz nada nada, nada!

    GUILHERME - Voc a alma danada aqui de dentro. (mais agressivo) Nodiscuta: SAIA!

    (D. Senhorinha aparece e aproxima-se.)

    TIA RUTE (recuando, com medo) S se ele quiser, se ele mandar!

    GUILHERME (segurando-a pelos pulsos) Ou prefere ir arrastada?

    D. SENHORINHA (intervindo) V, Rute, v!

    (Tia Rute desprende-se violentamente.)

    TIA RUTE (para d. Senhorinha) Quem lhe pediu opinio?

    D. SENHORINHA - Rute, lembre-se de mame...

    TIA RUTE (agressiva) Mame o qu... (mudando de tom) Eu prometi,jurei mame... (cnica) Mas o que que tem? Ela no gostou nunca de mim. Tudo eravoc, voc! Tinha uma admirao indecente pela sua beleza. Ia assistir a voc tomar banho,enxugava as suas costas! Quero que voc me diga: POR QUE QUE ELA NUNCA SELEMBROU DE ASSISTIR AOS MEUS BANHOS?

    D. SENHORINHA (chocadssima) Voc no est regulando bem!

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    TIA RUTE (num crescendo) Ela, papai, todo mundo!... Ningum gostoude mim, nunca!... Uma vez em Belo Horizonte, eu sa com voc...

    (Guilherme, rpido, torce o pulso de tia Rute, que assim fica de costas para ele.)

    GUILHERME - Cale essa boca!TIA RUTE (apesar da dor) - ... uma poro de sujeitos sopravam coisasno seu ouvido s vezes cada imoralidade! Mas a mim nunca houve um preto, no meio darua, que me dissesse ISSO ASSIM!... Voc est-me quebrando o brao, ahn!

    (Guilherme solta a velha.)

    TIA RUTE (possessa) Quer dizer, toda mulher tem um homem que adeseja, nem que seja um crioulo, um crioulo suado, MENOS EU!

    D. SENHORINHA (saindo) E eu tenho a culpa? Se voc no mais bonita, eu que sou a culpada?

    TIA RUTE - Desde menina, tive inveja de sua beleza. (em tom deacusao) Mas ser bonita assim at imoralidade porque nenhum homem se aproxima devoc, sem pensa em voc PARA OUTRAS COISAS!

    (Tia Rute pra, cobre o rosto com uma das mos.)

    GUILHERME (irnico) Pode continuar!

    JONA S (num grito) Basta!

    GUILHERME - Pode continuar, porque depois vai sair daqui, para no voltarnunca mais!

    TIA RUTE (meio histrica) Vocs me pem para fora?

    GUILHERME - Pois !

    TIA RUTE - Mas eu no tenho para onde ir!... no tenho parente, nada!...Querem que eu morra de fome?

    GUILHERME - Tanto faz.

    TIA RUTE (num crescendo) Vocs no podem fazer isso comigo.(grito) EU CONHEO SEGREDOS DA FAMLIA! Sei por que Guilherme e Edmundovoltaram Sei! Sei p que Nono enlouqueceu por que mandaram Glria para o colgiointerno!...

    (Agarra-se a Jonas que est impassvel.)

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    TIA RUTE - Jonas, no deixe, no consinta!

    JONA S - Se voc falar de Glria, eu fao com voc assim, assim!Voc feia demais!

    TIA RUTE (espantada) Todos esto contra mim. (baixando a voz)Contra mim e contra voc, Jonas. Voc vai deixar, Jonas?

    (Segura-o desesperadamente pelos ombros, em que ele reaja.)

    TIA RUTE - Ao menos, fale! Fale!

    JONA S - No desejo voc! (muda de tom) Nunca suportei as mulheresque no desejo... POR ISSO DETESTEI SEMPRE MINHA ME E MINHAS IRMS...(com sofrimento e a maior dignidade possvel) No sei, no compreendo que um homempossa tolerar a prpria me, a no ser que...

    (Virando-se, rpido, para tia Rute, sem dissimular seu rano.)

    JONA S - Se voc no fosse como ! Assim to desagradvel comespinhas na testa! Pior do que feia UMA MULHER QUE NO SE DESEJA EMHIPTESE NENHUMA!

    (Tia Rute abraa-se ignobilmente s pernas de Jonas.)

    TIA RUTE - E eu tenho culpa tenho?

    JONA S (cruel) A prpria muda, com todo o estrabismo, eu quis!

    TIA RUTE - Voc uma vez tambm me quis!

    JONA S (implacvel) Eu estava bbado, completamente bbado!

    TIA RUTE (recuando) Eu sei o que vocs querem que eu me mate!Que eu me atire na lagoinha. (histrica) Mas se eu morrer, vou lanar uma maldio paravocs todos, para toda a famlia!

    (Aparece d. Senhorinha, quase histrica, tambm.)

    D. SENHORINHA - Rute! Ou voc vem-me ajudar, ou largo tudo, e deixo amulher morrer!

    (D. Senhorinha volta rapidamente e tia Rute, como uma sonmbula, vai atrs.)

    JONA S (numa espcie de remorso retardado) Nem tem conta asmeninas que ela me arranjou! (iluminando-se) e VIRGENS!

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    (Jonas levanta-se e apanha num mvel um pequeno chicote, grosso e tranado. Bate com ochicote nos moveis.)

    JONA S (como pai antiga) Quando um filho se revoltava contra

    meu pai; ele usava ISTO! Uma vez eu gritei com ele ele, ento, me deu com esse negcio.Me pegou aqui deixou na cara um vasto lanho, ROXO!

    GUILHERME (lacnico) Glria foi expulsa do colgio!

    JONA S (assombrado) Glria o qu? Expulsa? Voc est louco!

    GUILHERME (com absoluta dor) EXPULSA!

    JONA S (tonto) Mas... que foi que ela fez? Que foi?

    GUILHERME (frio, apenas informativo) Anteontem, me chamaram nocolgio... Ento, o padre me disse que Glria e uma menina l...

    JONA S (exaltadssimo) Deixe de insinuao! Diga tudo claramente!

    GUILHERME (sem se alterar) Ela e a menina mantinhamcorrespondncia... Descobriram uma poro de bilhetinhos...

    JONA S (sem entender) Bilhetinhos?...

    GUILHERME - Andavam sempre juntas... E trasanteontem, a irm viu asduas conversando, fora de hora, no dormitrio... Ouviu a conversa toda! Falava em morrerjuntas e no fim...

    JONA S - No fim o que que tem?

    GUILHERME - ... se BEIJARAM NA BOCA!

    JONA S (depois de um suspense, triunfante) Ento, j sei o que elesCONCLURAM! Eles e VOC tambm! (terrvel) Mas como so indecentes TODOS,uns indecentes!

    GUILHERME - No podia haver dvida a coisa estava CLARA!

    JONA S (agitado) No compreendem a inocncia! So uns cachorrosmuito ordinrios!

    GUILHERME (outra vez informativo) O padre disse, ento, que estavapositivado o GNERO DE AMIZADE... Que assim no era possvel... Que a soluo eraEXPULSAR AS DUAS!

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    JONA S - Por que no quebrou a cara dum?

    GUILHERME (sempre frio) Trouxe um bilhetinho que eu roubei.

    (Tira o bilhetinho do bolso.)

    GUILHERME (lendo) Diz coisas assim: Glria, meu amor: foi to bomontem! Nem dormi, pensando! Sei que AQUILO pecado, mas no faz mal etc. Comotermina: Daquela que te amar at morrer e que nunca te trair Teresa.

    JONA S (como uma fera) sempre assim! Alis, o que fizeram comJoana DArc!

    GUILHERME - Agora o seguinte: eu vim na frente, Glria chega a qualquermomento, hoje ou amanh, no sei. Eu queria combinar justamente uma coisa. ELA NOVEM PARA AQUI!

    JONAS - No vem para aqui como?... por qu?

    GUILHERME (veemente) Porque esta casa indigna PORQUE VOCNO PODE TR CONTATO NEM COM SUA PRPRIA FILHA! (exaltadssimo) Vocmancha, voc emporcalha tudo a casa, os mveis, as paredes, tudo!

    JONAS - E voc? melhor do que eu? Voc, meu filho? To sensualcomo eu!

    GUILHERME (triunfante) Fui! Eu fui sensual como voc era. Mas agorano sou mais nunca mais!

    JONAS - Que nunca maio o qu! A GENTE NASCE ASSIM;MORRE ASSIM!

    GUILHERME - Se voc soubesse o que eu fiz! (muda de tom) escuta, pai,quando fui para o seminrio, era como voc e como toda a famlia; quase no dormia l.Acabava fugindo, no agentava mais.

    (Tia Rute sai do quarto com umas coisas; aproxima-se dos dois.)

    TIA RUTE - Vocs vo-se morder, vo se estraalhar, uns aos outros, porcausa de mulher. (vai at porta) Edmundo est l, no sai de l deslumbrado com oespetculo. Vocs so todos uns...

    (Sai e volta depois para o quarto da menina grvida.)

    GUILHERME (como se no tivesse sido interrompido) Uma noite, noseminrio, fazia um calor horrvel. Ento fiz um ferimento mutilante o sangue ensopouos lenis.

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    JONAS (sem compreender imediatamente) Ferimento como?

    GUILHERME (abstrato) - Depois desse ACIDENTE VOLUNTRIO, eusou outro, como se no pertencesse nossa famlia. (mudando totalmente de tom) Glria

    no pode viver nesta casa!JONAS (desorientado) SUA ME TOMA CONTA!

    GUILHERME - Nem minha me! UMA MULHER CASADA,CONHECE O AMOR NO PURA. No serve para Glria s eu, depois doACIDENTE!

    JONAS - Mas Glria tudo para mim! a nica coisa que eu tenhona vida!

    GUILHERME (sem ouvi-lo) Fazes bem em humilhar mame. Ela precisaEXPIAR, porque desejou o amor, casou-se. E a mulher que amou uma vez marido ou no no deveria sair nunca do quarto. Deveria ficar l, como num tmulo. Fosse ou nocasada. Adeus!

    (Aparece d. Senhorinha na porta do quarto da mulher grvida.)

    D. SENHORINHA - Ela vai morrer, Jonas estreita demais!

    (Apaga-se o palco central. Ilumina-se mais uma cena do estdio fotogrfico. Senhorinha etia Rute, numa pose falsa como as anteriores, artificialssima. Desta vez, no intervem ofotgrafo. Comentrios sempre idiotas do speaker.)

    SPEAKER - Senhorinha no apenas double de esposa e me; irm,tambm, extremosa, como as que mais o sejam. Durante a doena de Rute, ela permaneceuna cabeceira da enferma, como um esforado anjo tutelar. Nem dormia! Ns vivemos numapoca utilitria, em que afeies assim, singelas e puras, s se encontram alhures. Por suavez, Rute, que a mais velha das duas, no fica atrs. So resultados da educaopatriarcal!

    (Desfaz-se a pose das duas; apaga-se o palco. Ilumina-se uma nova cena: interior daigrejinha local. Altar todo enfeitado. Retrato imenso de Nosso Senhor, inteiramentedesproporcionado que vai do teto ao cho. NOTA IMPORTANTE: em vez do rosto doSenhor, o que se v o rosto cruel e bestial de Jonas. evidente que o quadro, assimgrande, corresponde s condies psicolgicas de Glria: olhar para a falsa fisionomia deJesus. Caiu uma tempestade. Glria est ensopada e Guilherme tambm.) (Glria umaadolescente linda.)

    GLRIA (com surpresa e certo medo) Que d^ papai? Voc nodisse que ele estava esperando aqui?

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    GUILHERME - Vem j! No demora!

    (Glria est diante do quadro, deslumbrada. Ajoelha-se e reza. Durante a reza,Guilherme, com mo, esboa uma carcia sobre a cabea da irm, mas desiste em tempo .)

    GUILHERME - Voc custou!GLRIA (com frio, sem ligar observao) Com quem que separece ELE?

    GUILHERME (perturbado) Precisa tirar essa roupa olha como est!Seno se resfria!

    GLRIA - Igualzinho!

    GUILHERME - No ano passado, por causa de uma chuva dessas, morreuaquela menina de pneumonia... (mudando de tom) Olha tem um lugar aqui! Aqui detrs!

    (Guilherme est ao lado do altar.)

    GLRIA (sempre impressionada com o falso Cristo) Nunca vi umacoisa assim! Que semelhana!

    (Continua com frio, os braos cruzados sobre o peito.)

    GUILHERME (chamando-a com angstia) Vem, anda! Aqui destras doaltar oco! Voc tira a roupa, deixa enxugar depois veste!

    GLRIA (s ento compreendendo o que deseja o irmo) A? (comum arrepio) Mas pode entrar gente!

    GUILHERME - Que o qu! Com esse tempo!

    GLRIA - Mas demora muito a enxugar!

    GUILHERME (agitado) O que voc no pode ficar assim molhada.DEPOIS VOC VAI-ME DANDO A ROUPA, EU TORO, NUM INSTANTE SECA!

    GLRIA (entrando no oco do altar) Estou com uns arrepios!

    GUILHERME - No mnimo, resfriou-se;

    GLRIA - E papai que no chega!

    GUILHERME - Daqui a pouco est a!

    GLRIA - Essa igrejinha me faz lembrar tanta coisa!

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    GUILHERME - Glria, voc precisa saber de CERTAS COISAS...

    GLRIA (sem ouvi-lo) Mas voc no nota nada NADA?

    GUILHERME - O qu?GLRIA - Olha bem para esse quadro... No nota nada no achaparecido?

    GUILHERME - Como parecido?

    GLRIA - No o mesmo rosto de papai, a mesma expresso,DIREITINHO?

    GUILHERME (depois de uma pausa) Vai passando a roupa para eu torcer.

    (V-se que Guilherme est possudo de uma grande agitao .)

    GLRIA - No precisa!

    GUILHERME - Por qu? uma coisa TO NATURAL!

    GLRIA - Deixa eu mesmo toro!

    GUILHERME - Ento, est bem... (baixando a voz) Mas no tinha nadademais. Eu no sou como ELES.

    GLRIA - No ouvi direito. Que foi?

    GUILHERME (voz baixa, para que Glria no possa ouvi-lo) Se ELESvissem o seu brao, de fora, s o brao NU estendendo uma pea de roupa iam-seimpressionar. Sobretudo o pai!

    GLRIA - Fale mais alto!

    GUILHERME (ainda baixo) Mas eu sou diferente. (elevando a voz) Glria,eu posso estar aqui sozinho com voc. Mesmo que eu fosse o nico homem e voc anica mulher no mundo.

    GLRIA - Que que h, Guilherme?

    GUILHERME (doloroso) sofri um ACIDENTE.

    GLRIA - Voc sabe que eu estou notando uma diferena em voc?

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    GUILHERME - Estou mais gordo... me arredondando... (olha com asco asprprias mos) Suo tanto nas mos!

    (Glria sai do oco do altar. Com o vestido todo amarrotado.)

    GUILHERME (com despeito) Mas voc no enxugou nada!GLRIA - O vestido!

    GUILHERME (angustiado) Mas s?... Voc devia enxugar tudo... Tirar eenxugar direito... Assim, vai-se resfriar, no mnimo!

    GLRIA - E papai?

    GUILHERME - Como foi AQUILO?... Com aquela menina?

    GLRIA (dolorosa) Com Teresa?

    GUILHERME - Por que que voc fez... AQUILO?

    GLRIA (com angstia) Eu no fiz nada!

    GUILHERME (suplicante) Me conta... TUDO! No quero que voc tenhavergonha de mim NENHUMA.

    (Segura as duas mos de Glria. Parece um stiro.)

    GUILHERME - Olha meu corao como bate!

    GLRIA - Para que falar nisso?

    GUILHERME (fremente de clera) Conta!

    GLRIA (chorando) Se voc soubesse, a fora que eu tenho feitopara no pensar NISSO! (com veemncia) Eu tenho certeza, absoluta, que ela via-se matar!

    GUILHERME (baixando a voz) Me diz vocs faziam aquilo INOCENTEMENTE?

    GLRIA (como se falasse consigo mesma) Ela me pediu por tudopara ns morrermos juntas. Queria que eu me atirasse com ela entre um vago e outro.(doce e transportada) Depois o trem passava por cima da gente...

    GUILHERME (espantado) Deus no quer isso!

    GLRIA (como que falando para si mesma) Ficou sentida tosentida! porque eu contei que...

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    GUILHERME (desesperado) Contou o qu?

    GLRIA - ... que toda vez que a gente se beijava, eu fechava os olhos evia direitinho a fisionomia de papai. Mas direitinho como est ali.

    (Indica o falso quadro de Jesus.)

    GLRIA (com sofrimento) Ela ficou! Deixou de falar comigo. Vaimorrer com raiva de mim tenho certeza.

    (Ouve-se um grito, qualquer coisa de desumano, um grito de besta ferida, dentro datempestade.)

    GLRIA - Voc ouviu?

    GUILHERME - No tem importncia Nono

    (Uma gargalhada soluante, bem prximo da igrejinha.)

    GLRIA (numa espcie de frio) To triste um parente louco! Talvezseja melhor a pessoa morrer.

    GUILHERME - Ele est feliz com a chuva. Gosta da chuva se esfrega naspoas de gua...

    (Sem transio, rosto a rosto com a irm, nova expresso de stiro .)

    GUILHERME - Voc sabe que ele vive no mato DESPIDO?

    GLRIA - Teresa me disse que o corpo do homem uma coisahorrvel!

    GUILHERME - E .

    GLRIA - Ela no sabe como h mulheres que gostam!

    (Nova gargalhada de Non.)

    GUILHERME - A irm me disse que, uma vez, vocs...

    GLRIA (cortando) Se voc soubesse a inocncia com que a gentefazia aquilo! (fremente de clera) Agora vem a irm dizer que... (tapa o rosto com uma dasmos) Ela estava de ponta com a gente! S gostava de menina chaleira! (com sofrimento)Se no fosse papai, se no precisasse ver papai eu a essa hora estaria debaixo do trem.Juro que estava dou a minha palavra de honra!

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    GUILHERME - Glria, temos que fugir daqui, depressa.

    GLRIA (recuando) Mas o que que houve? Voc est escondendo oqu?

    GUILHERME (apaixonadamente) Fugir para bem longe! Tenho pensadotanto! Nada de casa, de parede, de quarto. Mas cho de terra! E no faz mal que chova!

    (Muda de tom; parece falar para si mesmo.)

    GUILHERME - Mesmo no amor! Quarto, no, nem cama! Terra, cho deterra!

    (Muda de tom; para Glria.)

    GUILHERME - Ns somo diferente dos outro. Deixa eu olhar para voc.

    GLRIA (querendo-se evadir) Papai que no vem!

    GUILHERME - Que que tem papai? NUM LUGAR DECENTE, PAPAIESTARIA NUMA JAULA. Papai at j matou gente!

    GLRIA - Mentira sua!

    GUILHERME - Matou, sim. Matou... uma mulher que havia a MUDA estrbica!

    GLRIA - No acredito!

    GUILHERME (rindo como um demnio) Ela apanhou gravidez! Na pocade ter filho, veio-se arrastando, gemendo... Papai, ento. Pisou o ventre da mulher.(exultante) Pisou a criana. Mulher, tudo!

    GLRIA (encostada no altar) Continue inventado, continue!

    GUILHERME (cruel) A bota de papai ficou toda suja de sangue. Ele teveque mandar limpar com benzina um pano ensopado em benzina, mas a mancha no queriasair!

    GLRIA (feroz, acusadora) J sei o que voc : to maldoso como airm! Pe malcia em tudo!

    GUILHERME (arquejante) O que ele faz com mame...

    GLRIA - Nunca notei nada! Papai sempre tratou mame direito...!

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    GUILHERME (rpido e irnico) Na sua frente!... Se comporta mais oumenos, quando voc est na fazenda... Voc ainda a nica pessoa que ele respeita, temuma certa considerao. Mas os outros! Faz as coisas mais sujas na frente de todo mundo.Parece que precisa se exibir! Mame tem visto cada uma!

    GLRIA (dolorosa) Vocs esto sempre do lado de mame mas, eu,NO!

    GUILHERME - Dou a minha palavra de honra!

    GLRIA - Eu nunca disse a ningum, sempre escondi, mas agora voudizer; no gosto de mame. No est em mim ela m, sinto que ela capaz dematar uma pessoa. Sempre tive medo de ficar sozinha com ela! Medo que ela mematasse!

    GUILHERME - Papai pior!

    GLRIA (transportada) Papai, no. Quando eu era menina, nogostava de estudar catecismo... S comecei a gostar me lembro perfeitamente quando vi, pela primeira vez, um retrato de Nosso Senhor... Aquele que est ali, s quemenor claro! (desfigurada pela emoo) Fiquei to impressionada com aSEMELHANA!

    GUILHERME - Onde que voc viu semelhana?

    GLRIA (fechada no seu xtase) Colecionava estampas... O dia maisfeliz da minha vida foi quando fiz a primeira comunho at tirei retrato!

    GUILHERME (rindo bestialmente) Se a irm soubesse!... Se visse vocfalando assim... IA VER QUE O CASO DA MENINA NO TINHA A MENORIMPORTNCIA junto desse!

    GLRIA (desesperada) uma coisa to pura, to bonita, o que eusinto por papai, que a irm nunca compreenderia. Nem voc, nem mame, nem ningum!

    GUILHERME (bestial) Tem certeza?

    GLRIA (caindo em si, mudando de tom) No, no tenho certeza.Mas pode ser o que for, no faz mal. No me interessa nem a opinio dos outros, nem aminha prpria!

    GUILHERME - Eu tenho que salvar voc DE QUALQUER MANEIRA!

    GLRIA - E mesmo que tudo seja verdade... Que papai tenha pisado amulher... Que faa isso ou aquilo com mame... Que seja o demnio em pessoa.(declina sua exaltao; doce, outra vez) Mesmo assim, eu gosto dele, adoro!

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    GUILHERME (doloroso) S de uma coisa voc no sabe!

    GLRIA - Onde sta papai?

    GUILHERME - Voc sabe por que eu fui ser padre? Por que resolvi

    renunciar ao mundo?GLRIA (recuando) No interessa!

    GUILHERME (enrgico) POR SUA CAUSA!

    GLRIA (baixando a voz) Mentira!

    GUILHERME (selvagem) Por sua causa, sim! (como stiro) Voc eragarota naquele tempo... Mas eu no podia ver voc, s pensava em voc... (pattico) Noagentava, no podia mais!

    GLRIA (com medo) Agora estou vendo por que que voc memandou entrar ali... POR QUE QUIS QUE EU SECASSE A ROUPA E DESSEDEPOIS PARA VOCE ESPREMER...

    GUILHERME (espantado) No foi por isso juro!

    (Gargalhada de Non, bem prxima.)

    GLRIA (com rancor) Pensa que eu no notei a expresso do seurosto. OS SEUS OLHOS, quando voc disse que Nono andava por a DESPIDO?

    GUILHERME (apavorado) Juro! Voc diz isso porque no sabe que tiveum ACIDENTE... (baixa a voz) voluntrio! J no sou como antes...

    GLRIA (chorando) Que dio, meu Deus!

    GUILHERME - No quero que ele te veja! Vem comigo! Eu te levo para umlugar bonito LINDO!

    (Guilherme avana para Glria, que recua quase at no altar.)

    GUILHERME - Ou, ento, se voc quiser, ns podemos fazer aquilo que tuaamiga queria, a gente se atira entre dois vages, ABRAADOS!

    GLRIA - Papai no tem nenhum cabelo no peito, nenhum!

    GUILHERME - Pela ltima vez QUERES VIR COMIGO? Vem, sim,vem!

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    GLRIA - No

    GUILHERME - Voc no ser dele, NUNCA!

    (Pu o revlver e atira duas vezes. Glria cai de joelhos, com as duas mos amparando oventre.)

    GLRIA (contorcendo-se de dor) Quando eu era menina... pensavaque mame podia morrer... Ou, ento, que papai podia fugir comigo... (revira-se) QUEDOR AQUI!

    (Glria morre.)

    FIM DO SEGUNDO ATO

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    TERCEIRO ATO

    (Comea o terceiro ato com mais uma pgina do lbum, justamente a quinta. Non ummenino taciturno, excepcionalmente desenvolvido. D. Senhorinha, formosa e decorativacomo sempre. Piruetas do fotgrafo em torno de Non, que demonstra hostilidade para

    com o conceituado profissional. Discreto pnico do fotgrafo. Non lembra Lon ChaneyJr.)

    SPEAKER - Quinta fotografia do lbum. Non tinha apenas treze anosna ocasio, mas aparentava muito mais. To desenvolvido pra a idade! Por uma dolorosacoincidncia, este retrato foi tirado na vspera do dia em que o rapaz enlouqueceu. Umladro entrou no quarto de Senhorinha, de madrugada e, devido ao natural abalo, Nonficou com o juzo obliterado. Que diferena entre um filho assim e os nossos rapazes depraia que s sabem jogar voleibol de areia. Pobre Non! Hoje a cincia evolui muito e quesabe se ele seria caso para umas aplicaes de cardiazol, choques eltricos e outros quetais?

    (Ilumina-se a sala da fazenda, Jonas est s em cena. Vai a um mvel, apanha um revolvernuma gaveta, examina o tambor e guarda a arma no bolso. A mulher grvida grita .)

    JONAS (para si mesmo) Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde...(com sofrimento) Mas ele pensa o que de mim?

    (D. Senhorinha aparece, com certo medo e um ar de cansao fsico. Passa as costas dasmos na testa para enxugar o suor. Ouve as palavras de Jonas e enche-se de espanto;aproxima-se.)

    D. SENHORINHA (procurando esconder o prprio sobressalto) Que foi?

    JONAS (saturado) Aquele sujeito... Mas ele vai ver!

    D. SENHORINHA - Estou com mau pressentimento!...

    (Ouve-se um novo grito da mulher grvida. D. Senhorinha fica fora de si. Vira-se nadireo do quarto; e, outra vez, para o marido.)

    D. SENHORINHA - Ela est morrendo, Jonas!

    JONAS (com um pouco de medo, tambm) Voc tambm exagera!

    D. SENHORINHA (cedendo mais ao desespero) Desta vez . (mudando detom) Ela no podia ser me de modo algum. No tem bacia quase no tem bacia.

    JONAS (olhando na direo do quarto) Como que com vocnunca houve nada?

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    D. SENHORINHA (com espcie de vaidade) Graas a Deus sempre fui feliznos meus partos...

    JONAS (agitado) Pois 1

    D. SENHORINHA (transportando-se ao passado) - ... muitas rasgam, levampontos. Eu, nunca!

    (Novo grito.)

    D. SENHORINHA (para si mesma, com orgulho, acariciando o prprio ventre) O mdico disse que as minhas medidas eram formidveis... Que eu tinha bacia tima...

    MULHER GRVIDA -... Seu Jonas... Chamem seu Jonas...

    JONAS (com espanto e medo) Deve haver um jeito. Aqui a coisamais fcil do mundo ter filhos... H gente que, em p, trabalhando TEM! Quaseningum morre de parto!

    D. SENHORINHA - Caso de cesariana!(Jonas, mudando de tom, encarando a mulher.)

    JONAS - Quer saber de uma coisa? Eu acho que voc est desejando amorte da pequena.

    D. SENHORINHA - Quem sabe?

    JONAS (calcando bem as palavras, numa vontade pattica) Mas euno quero que ela morra NO QUERO!

    (Jonas muda de tom: doce e triste.)

    JONAS - Verdadeira menina ossuda aqui (indica o quadril) semdesejo absolutamente nenhum; apenas curiosa...

    (Edmundo deixa o quarto da mulher, que recomea a gemer e a chama Jonas.)

    MULHER GRVIDA (j com dispnia) Seu Jonas... seu Jonas!

    (Jonas, numa deciso sbita, encaminha-se para o quarto.)

    JONAS (simulando bom humor) Que que h, Totinha?

    TOTINHA (com dispnia) Eu acho que desta vez, seu Jonas VOU...

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    JONAS (tentando sempre o bom humor) Que o qu, Totinha! Vaino!

    TOTINHA (num rancor de agonizante) Eu no tinha preciso de estar

    aqui... (pra, sufocada) ... sofrendo...JONAS - No diga isso!

    TOTINHA - ... mas o culpado o senhor!

    JONAS - Assim, voc piora!

    TOTINHA (num esforo supremo para articular uma frase completa) Seu Jonas, escreva: DEUS H-DE LHE CASTIGAR!

    (Jonas, com o p ou coisa que a valha, fecha violentamente a porta. D. Senhorinha eEdmundo estavam virados para o quarto, atentos ao dilogo.)

    D. SENHORINHA (numa sbita crise de desespero) - Eu no agento mais,Edmundo! No posso!

    EDMUNDO (apaixonadamente, indicando o quarto) Quando eu estaval, me lembrei que voc tambm j passou por aquilo. (baixa a voz) Tive a impresso deque no era Totinha, mas voc quem estava l com as dores!

    D. SENHORINHA (depois de um silncio) Um dia, no sei! Ah, se eu no fossereligiosa! Se eu no acreditasse em Deus. (parando diante do filho) H coisas que eu penso,que eu tenho vontade, mas no sei se teria coragem!

    (D. Senhorinha exprime o maior desespero.)

    D. SENHORINHA - Eu preciso fazer uma coisa ser que posso?

    (Os dois olham-se, mudos, espantados, com uma espcie de medo. Tm um sobressalto,porque tia Rute acaba de deixar o quarto, batendo a porta com violncia. Tia Rute passapor eles, com uma expresso fechada, de rancor.)

    TIA RUTE (passando por eles) Trancou-se.

    (Tia Rute passa e desaparece.)

    D. SENHORINHA - Ser possvel, meu Deus?

    EDMUNDO - E a senhora agenta!

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    D. SENHORINHA (apertando o rosto do filho entre suas duas mos) Tenhomedo, Edmundo que voc seja tambm assim.

    EDMUNDO - Assim, como?

    D. SENHORINHA (hesitante, procurando palavras) Quer dizer, viva mudando,a toda hora, a todo instante, de mulher!

    EDMUNDO (numa queixa de namorado) Faz esse juzo de mim?

    D. SENHORINHA (vaga) Tenho visto tanta coisa!

    EDMUNDO (veemente) Eu sou o homem de uma s mulher! At hoje, sgostei de uma mulher!

    (D. Senhorinha apia-se, com verdadeira nsia, nas palavras do filho.)

    D. SENHORINHA - Jura?

    EDMUNDO - Claro!

    D. SENHORINHA (mergulhando o rosto entre as mos) Ah, se eu pudesseacreditar!

    EDMUNDO - Jurei, no jurei?

    D. SENHORINHA - E essa mulher quem ?

    EDMUNDO (veemente) Quer que diga?

    D. SENHORINHA (depois de uma hesitao) Quero.

    EDMUNDO (respondendo com outra pergunta) E adianta!

    D. SENHORINHA - Ento, no diga!

    EDMUNDO (veemente) Mas sabe, no sabe?

    D. SENHORINHA (como para si mesma, mas numa doura incrvel) Imagino!(muda de tom) Desconfio, sempre desconfie, mas talvez me engane!...

    (D. Senhorinha, num impulso inesperado, pega outra vez o rosto do filho, olha-oapaixonadamente. Com uma clera brusca.)

    D. SENHORINHA - No interessa!

    EDMUNDO - Duvido!

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    D. SENHORINHA (dolorosa e obcecada, apertando entre as duas mos oprprio rosto) Voc deve ser como ele!

    (Olha na direo do quarto da mulher grvida.)

    EDMUNDO (lento) E voc?

    D. SENHORINHA (no medo instintivo da pergunta que pode vir) Eu o qu?

    EDMUNDO - Gosta de algum?

    D. SENHORINHA (fechando-se) Sou casada!

    EDMUNDO - Isso resposta?

    D. SENHORINHA - No sei, no sei! (mudando de tom, passando a outro estadopsicolgico) Isso aqui agora vai ficar pior Glria vem a... (num lamento) Ela nunca metolerou, Edmundo, nunca! (num terceiro tom) Quando nasceu e disseram MENINA eutive o pressentimento de que ia ser minha inimiga. (com angstia) Acertei!

    EDMUNDO - Glria no tem importncia!

    D. SENHORINHA (incompreendida) Isso o que voc pensa!

    EDMUNDO - Ele, sim.

    (Aponta para o quarto.)

    D. SENHORINHA - Os dois!

    EDMUNDO - Mame, acabava havendo uma desgraa aqui. No possonem olhar esse homem. s vezes, eu penso que havia uma soluo!

    D. SENHORINHA (em pnico) Voc est querendo o que, Edmundo?

    EDMUNDO (como se falasse para si mesmo) No de hoje desdemenino! Uma vez, eu me lembro foi depois do almoo, tinha visitas. Ele falou com vocqualquer coisa baixo...

    D. SENHORINHA (sem compreender) Quando?

    (Edmundo como que vivendo da memria.)

    EDMUNDO (sem ligar interrupo) - ... falou qualquer coisa. Depois selevantou foi na frente, voc acompanhou. (com sofrimento) Apesar de eu ser garoto,compreendi. Se soubesse a raiva que eu tive, a vontade!...

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    D. SENHORINHA (cobrindo o rosto com uma das mos) Que coisa, meuDeus!

    EDMUNDO - Me lembro que ainda no tinham servido a sobremesa. (com

    veemncia) Foi na frente de todo mundo, porque o desejo dele no espera!(Comea a tempestade l fora.)

    D. SENHORINHA (doce e enigmtica) Um dia, eu vou-lhe contar uma coisa...Ento, nesse dia! um segredo da minha vida. (lenta, intencional) UMA COISA NTIMA!

    EDMUNDO - Ento, conte, j, agora!

    D. SENHORINHA (em nova atitude, fazendo abstrao do filho) O que eutenho passado, aqui, nesta, com este homem!

    EDMUNDO (olha para o quarto) Ento, no estou vendo?

    D. SENHORINHA (para si mesma) Outro dia, s porque eu disse RESERVADO uma coisa to natural, no ? Ele me obrigou a dizer a outra palavra, queeu acho to feia! Na frente de uma poro de gente!

    EDMUNDO - Me, voc tem que sair daqui!

    D. SENHORINHA - Ah, se fosse possvel!

    EDMUNDO - Precisa deixar esse homem! (tomando entre as suas as mosmaternas) A gente podia ir para um lugar onde no tivesse nenhum conhecido. Tem lugarassim!

    D. SENHORINHA - Ele iria atrs! No por amos, mas por maldade.

    EDMUNDO (lento, num tom especial) S se a gente, se eu...

    (Os dois se olham; d. Senhorinha parece compreender.)

    D. SENHORINHA (dominada pelo medo) No, Edmundo! Assim no quero!

    EDMUNDO - Talvez fosse ESSE o nico meio!

    D. SENHORINHA (dominada pelos nervos) Voc tem eu me jurar que nunca,nunca, tentar... ISSO! (mudando de tom, como se, apesar de tudo, a idia a fascinasse)Ou, se fizer, pela frente, no! Ele pode-se defender! (tomando entre as suas as mos dofilho) Pelas costa est ouvindo?

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    (Ela mesma, a contragosto, se apaixona pela idia; desenvolve uma espcie de projeto docrime.)

    D. SENHORINHA - Pelas costas e tem que ser um meio muito seguro que eleno possa reagir. Por exemplo: QUANDO ELE ESTIVER DORMINDO...

    (Pra, cansada. Continua, cheia de fascinao pelo crime.)

    D. SENHORINHA - Dormindo, seria fcil. Ele no poderia se defender! No terianem tempo de gritar!

    (Prximo, ouve-se o grito desumano de Non.)

    D. SENHORINHA (mudando de tom) Non, outra vez! (dolorosa, como a maisdesgraada das mulheres) Viu, Edmundo no posso -, no posso fugir com voc!

    EDMUNDO (suplicante) Pode, sim! Vamos!

    D. SENHORINHA - Nunca terei coragem de deixa Non! Impossvel! (mudandode tom, como que enamorada) No imagina como ele fica, sempre que me v, de longe! uma coisa!

    EDMUNDO - Voc v muito Non? Olha para ele?

    D. SENHORINHA (fechando os olhos, sem perceber a angstia do filho) svezes, quando saio. Ou, ento, da janela!

    EDMUNDO (com rancor) Eu no queria que voc visse, que olhassepara ele!

    D. SENHORINHA (sem compreender) meu filho!

    EDMUNDO (com sofrimento) Ele anda sem nada... (faz um gestosignificando despojamento de roupa) E ele tem um corpo que impressiona at um homem quanto mais uma mulher!

    D. SENHORINHA (abstrata) Eu gosto que seja assim BONITO! Queimadodo sol! (com certa ferocidade) Perdeu o juzo mas a beleza do fsico ningum lhe tira.Nasceu com ele!

    EDMUNDO - Voc gosta mais de Non do que de mim!

    D. SENHORINHA (sem ouvi-lo) No posso abandonar Non! No est emmim!

    EDMUNDO (mudando de tom, apaixonadamente) Me, s vezes eu sintocomo se o mundo estivesse vazio, e ningum mais existisse, a no ser ns, quer dizer, voc,

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    papai, eu e meus irmos. Como se a nossa famlia fosse a nica e primeira. (numa espciede histeria) Ento, o amor e o dio teria de nascer entre ns. (caindo em si) Mas no, no!(mudando de tom) Eu acho que o homem no devia sair nunca do tero materno. Deviaficar l, toda a vida, encolhidinho, de cabea para baixo, ou para cima, de ndega, no sei.

    (Ajoelha-se aos ps de d. Senhorinha.)D. SENHORINHA (com medo) No, Edmundo, no!

    EDMUNDO - O cu, no depois da morte; o cu, antes do nascimento foiteu tero...

    (Sempre de joelhos, Edmundo encosta o rosto de perfil para a platia na altura dotero materno.)

    (Edmundo levanta-se. A porta do quarto abre-se e vem saindo Jonas, ao mesmo tempo quese ouve a voz da mulher grvida, em maldies. DETA-LHE IMPORTANTE: Jonas vemapertando o cinto e s termina esta operao quando chega junto da esposa .)

    MULHER GRVIDA (na voz grossa de sempre) Miservel... Tu me paga...

    (Jonas vem com uma expresso de maldade. Pra, querendo ouvir a maldio da mulher.)

    MULHER GRVIDA (com dispnia) Tu ruim...

    D. SENHORINHA - Viu?

    MULHER GRVIDA - Vou-te rogar tanta praga!

    D. SENHORINHA (para Jonas) Que foi?

    JONAS - Variando!

    MULHER GRVIDA - Tu e tua famlia!...

    JONAS (com rancor) Disse que eu tinha uma filha; que minha filhahavia de pegar barriga... (mudando de atitude, selvagem) Ento, eu dei na boca, assim...(indica as costas da mo.)

    (Passa tia Rute, hirta, a caminho do quarto. Entra.)

    JONAS (saturado) Que morra!

    TIA RUTE (aparecendo, excitada) Est toda torta, torcida, com ataque!

    D. SENHORINHA (lacnica) Eclampsia!

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    JONAS (sinttico) Liquidada!

    D. SENHORINHA - Vou ver!

    (D. Senhorinha que ir, mas Edmundo se insurge.)

    EDMUNDO - No v! No quero!

    JONAS - No vai, por qu?

    EDMUNDO (histrico, sem ouvir Jonas, dirigindo-se a d. Senhorinha) Por que que ELE no vai?

    (Edmundo enfrenta o pai.)

    EDMUNDO - Voc, sim senhor! Foi voc o causador (em tom especial,cara a cara com o pai, exprimindo um duplo sentimento de dio e dor) E, ainda por cima, amenina nas ltimas, (baixa a voz, com espanto) Voc foi capaz!

    JONAS (sombrio) V, Senhorinha. V!

    EDMUNDO (quase histrico) Se ela for, porque no tem mesmovergonha!

    (D. Senhorinha est diante do marido, acovardada.)

    D. SENHORINHA (baixando a voz) Vou, sim, Jonas!

    EDMUNDO (para a me) Se for, eu no falo mais com voc, nuncamais!

    (D. Senhorinha pra.)

    EDMUNDO (surdamente) Um homem que vive depravando meninas...Ao passo que mame uma SANTA!

    (Jonas inicia um riso bestial.)

    JONAS - SANTA!

    (Cara a cara com d. Senhorinha; riso em crescendo.)

    JONAS (apontando para d. Senhorinha) Te chamou de santa!

    (Jonas corta o riso; selvagem, dirigindo-se a d. Senhorinha.)

    JONAS - Voc uma santa? Diga; eu quero que diga: ?

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    EDMUNDO (suplicante) responda, me! Diga: sou!

    D. SENHORINHA (baixando a cabea, com uma espcie de frio) Sou!

    (Jonas agarra d. Senhorinha.)D. SENHORINHA (dominada pelo marido) No!

    JONAS (exultante) Agora conte o que houve... (mudandobruscamente de tom, quase doce) Seu filho precisa saber!

    EDMUNDO (desorientado) No se deixe dominar por esse homem,REAJA!

    JONAS (doce como um demnio) Conte que, naquele dia NAQUELA NOITE... (sempre doce) conte!

    (D. Senhorinha no responde nada.)

    JONAS (falando pela mulher) Eu tinha ido a Trs Coraes cheguei de surpresa... Vi um vulto saindo do nosso quarto... Ainda corri, atirei, mas elefugiu. Entrei no quarto, voc confessou. S no queria dizer quem era. Dei em voc, bati...

    D. SENHORINHA - bateu!

    JONAS - S no dia seguinte me disse quem era. (para o filho,mudando de tom) Imagine quem?

    EDMUNDO (com medo) no sei...

    JONAS - Teotnio.

    EDMUNDO (com absoluto espanto) O jornalista?

    JONAS - O jornalista! O redator-chefe do Arauto de Golgonhas!... Osujeito que tinha uma corcunda que diziam que era artificial... (Jonas dominado pela dor)Se fosse outro, mas logo esse! Esse eu no queria!

    D. SENHORINHA - Voc nunca me teve amor!

    JONAS (exaltado) Tive, sim. At aquela noite; depois, no. Amorou coisa parecida!

    D. SENHORINHA - Edmundo, ele me obrigou a chamar Teotnio no dia seguinte(com profundo espanto) e o matou dentro do meu quarto! Como se fosse um cachorro!

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    JONAS - Matei.

    D. SENHORINHA - Depois, comeou o meu inferno. (para Edmundo) Todo dia,na frente de outras pessoas, seu pai batia nas minhas cadeiras dizia FMEA!

    EDMUNDO - Eu fazia o mesmo1JONAS - Mas nem isso nem FMEA voc era... ou foi... comigo.Nem voc, nem nenhuma mulher que eu conheci. (para si mesmo, numa insatisfao louca)Todas me deixam mais nervoso do que antes doente, doente, querendo mais no sei oqu. (numa afirmao histrica) Nem FMEAS as mulheres so!

    (Jonas dirige-se a Edmundo.)

    JONAS - O que mais me admira que ela sempre foi FRIA! Nuncateve uma reao, nada. Parecida morta!

    D. SENHORINHA (numa espcie de histeria, para o filho) Est ouvindo oque disse? Que eu era FRIA!

    (Edmundo est impassvel.)

    D. SENHORINHA (triunfante) Era essa a confidncia a COISA NTIMA queeu ia lhe contar, meu filho, fui sempre FRIA!

    JONAS (sardnico) posso ou no trazer mulheres para aqui?

    EDMUNDO - Me, diga que tudo mentira!

    D. SENHORINHA - No posso desmentir. tudo verdade!

    EDMUNDO - Negue, pelo amor de Deus!

    D. SENHORINHA (erguendo a cabea, muito digna) Tive um amante!

    (Edmundo tem um gesto inesperado: curva-se rpido e beija a mo paterna.)

    JONAS - Amor de fato, eu tenho um. Mas nesse ningum toca...

    (Os dois olham, com espanto, para todos os gestos de Jonas .)

    JONAS (antes de sair) Vou sair para matar um homem.

    (Abandona a sala, com absoluta dignidade. NOTA IMPORTANTE: ouvem-se dois tiros aolonge. Aparece tia Rute com alguma excitao.)

    TIA RUTE - Uma vela ela est morrendo!

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    (Os dois parecem no ter escutado, absorvidos pelos prprios sentimentos.)

    TIA RUTE (sem entender o alheamento dos dois) Uma vela para elasegura!

    (Edmundo e d. Senhorinha no respondem. Tia Rute recua, olhando par a irm e osobrinho, com uma expresso de espanto.)

    D. SENHORINHA (sardnica, rosto a rosto com o filho) Para que aquelefingimento?

    EDMUNDO (despertando) Qual?

    D. SENHORINHA (cruel) De tomar a bno do seu pai?

    EDMUNDO (por sua vez, sardnico) Voc acha?

    D. SENHORINHA (frvola) E no foi?

    EDMUNDO (com violncia) No!

    D. SENHORINHA (no mesmo tom de afirmao) Foi, sim! (rosto a rosto como filho) Entre voc e ele (lenta, calcando as palavras) no h nada no pode haver nada!(violenta) S DIO!

    EDMUNDO - No passa de uma fmea!

    D. SENHORINHA - Ento, por que voc deixou tudo esposa e veio para c?

    EDMUNDO - Vou voltar para Helosa!

    D. SENHORINHA (desafiando) Quero ver!

    EDMUNDO (lacnico) Fmea.

    D. SENHORINHA (mudando de tom) Que dizer que voc no deu valor quiloque ele disse?

    (Pausa, enquanto os dois se olham, como estranhos.)

    D. SENHORINHA (baixando a voz) Que eu sempre tinha sido fria?

    EDMUNDO (na sua obsesso) FMEA!

    (Tia Rute aparece; aproxima-se.)

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    TIA RUTE (fnebre e lacnica) Morreu. (pausa) nem corou.

    (D. Senhorinha, ento muito digna e formosa, vai a um mvel, apanha uma vela eencaminha-se para o quarto da que morreu.)

    TIA RUTE (sem mover um dedo) Agora vela no adianta.(D. Senhorinha parece no ouvir nada; continua o seu caminho. Ficam ss, tia Rute eEdmundo.)

    TIA RUTE (sem um gesto) Vou sair daqui, no sei para onde. Vouandar, andar, at cair. Mas antes quero dizer a voc uma coisa...

    (Tia Rute aproxima-se, ainda mais, de Edmundo.)

    TIA RUTE - Ouvi tudo. Agora uma coisa que voc no sabe: desdeaquela noite portanto h sete anos Jonas nunca mais tocou nela.

    EDMUNDO - Que importa?

    TIA RUTE - Ela espera voc est certa que voc vai. PODE IR.

    (Edmundo, como se no tivesse vontade prpria, obedece. Tia Rute fica olhando, com umaexpresso de triunfo. A porta do quarto se fecha lentamente. Ento, a luz se apaga sobre ofinal do primeiro quadro do terceiro ato.)

    (Sexta pgina do lbum. Jonas numa pose, taciturno, como se estivesse morto por dentro.O fotgrafo faz o diabo para conseguir um atitude condigna. Mas Jonas parece ptreo. Ofotgrafo est justamente indignado na sua conscincia artstico-profissional. Finalmente,bater a chapa de qualquer maneira.)

    SPEAKER - Sexta pgina do lbum. ltimo retrato de Jonas, datado dejulho de 1924. na vspera, ele havia passado um telegrama ao ento presidente ArthurBernardes, tachando de reprovvel e impatritica a revoluo de So Paulo. Nada lheentibiava o civismo congnito. Dois dias depois, a sorte madrasta arrebatava trs filhosdeste Vero de Plutarco. No resistindo ao doloroso golpe, Jonas enforcou-se numabandeira de porta. Outros pretendem que foi a prpria mulher quem o matou. Amaledicncia lavrou infrene. uma pessoal que no tem mesmo o que fazer. Justamente secogitava da eleio de Jonas para o Senado Federal na seguinte Legislatura. Orai peloeterno repouso de sua alma!

    (Apaga-se o espao destinado ao lbum de famlia. Ilumina-se a igrejinha da fazenda. Oquadro de Jesus que, aos olhos de Glria, era to grande, ficou reduzido s suasverdadeiras propores. Dois esquifes em cena: uma deles com o corpo de Edmundo; ooutro com o cadver de Glria. Crios acesos. D. Senhorinha est s, velando o filho.Muito linda na sua tristeza severa, no seu luto fechado. Depois de alguns momentos, entra

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    Helosa, esposa de Edmundo. Veste luto fechado, tambm. D. Senhorinha, encerrada nasua dor, parece no sentir que h mais algum na igrejinha.)

    HELOSA (depois de se ajoelhar diante do esquife de Edmundo e deuma breve orao: fala com uma espcie de medo) Agora mesmo, teve na estao um

    desastre horrvel: um homem caiu entre dois vages...(D. Senhorinha permanece imvel e calada, como se estivesse a mil lguas dali.)

    HELOISA (depois de vencer uma espcie de repugnncia, beijarapidamente o rosto de Edmundo; parece arrependida do que fez) Por que me mandouchamar?

    (D. Senhorinha continua impassvel, no responde.)

    HELOSA (depois de uma vacilao) Por mim, ele podia ter morridoquantas vezes quisesse!

    (Helosa parece espantar-se com as prprias palavras.)

    HELOSA (cobrindo o rosto com uma das mos) No sei mais o quedigo, me Deus do cu!

    D. SENHORINHA (com maior economia possvel de gestos; voz ligeiramenterouca) Edmundo morreu!

    HELOSA (virando-se, rpida e agressiva) E eu tenho alguma coisacom isso tenho?

    D. SENHORINHA (como se falasse para si mesma) Matou-se, na minha frente.

    HELOSA - Era um estranho, um desconhecido para mim sempre foi.S vim, porque minha famlia quis, pediu...

    (Continua, num tom de confidencia.)

    HELOSA - Papai disse que ficava feio que podiam reparar.

    D. SENHORINHA (animando-se, pattica) Aqui ningum repara nada. Issoaqui o fim do mundo!

    HELOSA (aproximando-se de d. Senhorinha, num tom de mistrio e deprovocao) E quer saber de uma coisa que Edmundo tinha-me dito?

    D. SENHORINHA (fechando-se) No quero saber de nada!

    HELOSA (numa espcie de triunfo) Ah, est com medo?

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