68 cal ça da fama da - Amazon S3 · Straits, Queen, The Doors. “É o que mais pedem, além do...

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special_report_68 CAL ÇA DA da fama Depois de uma repressão sem sentido, a prefeitura dá sinal verde para os músicos de rua. Conheça a história de cinco desses artistas sem palco E m 2007, o aclamado músico americano Joshua Bell to- cou seu violino Stradivarius em uma estação de metrô de Washington, nos Estados Unidos. Nem o músico nem o seu instrumento – avaliado em mais de 5 milhões de dólares – chamaram a atenção dos pedestres apressados em direção ao trabalho. De acordo com o jornal Washington Post , apenas sete pessoas pararam para escutar o violinista ganha- dor de prêmios como Avery Fisher, Grammy e Ammy. Essa his- tória ilustra o ostracismo enfrentado pelos músicos de rua. E se um artista da envergadura de Joshua Bell foi ignorado em uma cidade que respira cultura como a capital norte-americana, o que devem esperar os músicos de rua de São Paulo? Por muito tempo, muitos se contentavam em arrecadar uns trocados e não serem arrastados pela polícia. Sob a justificativa de que músicos de rua comercializam seu trabalho em praça pública, em novembro do ano passado a Operação Delegada, que foi às ruas com a missão de coibir o comércio ambulante, calou dezenas de artistas. A ação dos homens da lei culmi- nou com a prisão do guitarrista Rafael Pio, 33 anos, durante uma apresentação na avenida Paulista. “Disseram que, se eu não saísse, iriam me bater e apreender meu equipamento”, diz. “Como me recusei, alegando liberdade de expressão, eles caí- ram matando”, conta o músico, que quase teve sua retina des- colada por um soco. Para a sorte de Rafael o veículo dos po- liciais era irregular e o delegado achou por bem liberá-lo. Para ter o equipamento de volta, no entanto, ele diz ter sido obrigado a pagar propina aos funcionários da Subprefeitura da Sé. Após muita luta com a prefeitura, os artistas conseguiram permissão para “passar o chapéu” nas ruas e metrôs da cidade sem precisarem de um cadastro. No entanto, eles não poderão comercializar CDs, DVDs e afins. O jurista Luiz Flávio Gomes acha que a ação da prefeitura é um avanço para a classe, pois os artistas precisam da rua. Ainda assim, ele vê as novas me- didas com reserva, pois acredita que a rua é o único lugar que esses artistas têm para comercializar seus produtos. “É talento, não são bugigangas do Paraguai”, afirma Gomes. O maestro Lívio Tragtenberg concorda. Entusiasta desses músicos – rege a Orquestra de Músicos das Ruas de São Paulo –, ele costu- ma procurar artistas locais em suas viagens para convidá-los a participar de seus shows. “Eles fazem parte de uma longa tradição que remonta à Idade Media. São cronistas da vida do homem simples, da tradição rural e suburbana”, diz. “A comu- nicação de massa pretende padronizar a voz e a dicção deles. Mas a riqueza está justamente nessa diferença.” Nas próximas páginas, conheça cinco músicos que fizeram a trilha sonora de um passeio de domingo pelas ruas de São Paulo. por JULIANA AMATO fotos THIAGO TRAVESSO

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port_68 calçada

da famaDepois de uma repressão sem sentido, a prefeitura dá sinal verde para os músicos de rua. Conheça a história de cinco desses artistas sem palco

Em 2007, o aclamado músico americano Joshua Bell to-

cou seu violino Stradivarius em uma estação de metrô

de Washington, nos Estados Unidos. Nem o músico

nem o seu instrumento – avaliado em mais de 5 milhões de

dólares – chamaram a atenção dos pedestres apressados em

direção ao trabalho. De acordo com o jornal Washington Post,

apenas sete pessoas pararam para escutar o violinista ganha-

dor de prêmios como Avery Fisher, Grammy e Ammy. Essa his-

tória ilustra o ostracismo enfrentado pelos músicos de rua. E se

um artista da envergadura de Joshua Bell foi ignorado em uma

cidade que respira cultura como a capital norte-americana, o

que devem esperar os músicos de rua de São Paulo?

Por muito tempo, muitos se contentavam em arrecadar uns

trocados e não serem arrastados pela polícia. Sob a justificativa

de que músicos de rua comercializam seu trabalho em praça

pública, em novembro do ano passado a Operação Delegada,

que foi às ruas com a missão de coibir o comércio ambulante,

calou dezenas de artistas. A ação dos homens da lei culmi-

nou com a prisão do guitarrista Rafael Pio, 33 anos, durante

uma apresentação na avenida Paulista. “Disseram que, se eu

não saísse, iriam me bater e apreender meu equipamento”, diz.

“Como me recusei, alegando liberdade de expressão, eles caí-

ram matando”, conta o músico, que quase teve sua retina des-

colada por um soco. Para a sorte de Rafael o veículo dos po-

liciais era irregular e o delegado achou por bem liberá-lo. Para

ter o equipamento de volta, no entanto, ele diz ter sido obrigado

a pagar propina aos funcionários da Subprefeitura da Sé.

Após muita luta com a prefeitura, os artistas conseguiram

permissão para “passar o chapéu” nas ruas e metrôs da cidade

sem precisarem de um cadastro. No entanto, eles não poderão

comercializar CDs, DVDs e afins. O jurista Luiz Flávio Gomes

acha que a ação da prefeitura é um avanço para a classe, pois

os artistas precisam da rua. Ainda assim, ele vê as novas me-

didas com reserva, pois acredita que a rua é o único lugar que

esses artistas têm para comercializar seus produtos. “É talento,

não são bugigangas do Paraguai”, afirma Gomes. O maestro

Lívio Tragtenberg concorda. Entusiasta desses músicos – rege

a Orquestra de Músicos das Ruas de São Paulo –, ele costu-

ma procurar artistas locais em suas viagens para convidá-los

a participar de seus shows. “Eles fazem parte de uma longa

tradição que remonta à Idade Media. São cronistas da vida do

homem simples, da tradição rural e suburbana”, diz. “A comu-

nicação de massa pretende padronizar a voz e a dicção deles.

Mas a riqueza está justamente nessa diferença.” Nas próximas

páginas, conheça cinco músicos que fizeram a trilha sonora de

um passeio de domingo pelas ruas de São Paulo.

p o r J u l i a n a a m a t o

f o t o s t h i a g o t r a v e s s o

Galã da XV de NoVembro

Figura conhecida dos programas de auditório, Fabiano Martins, 29

anos, arranca suspiros das moças que passam pela praça do Patriar-

ca ou pela rua XV de Novembro, cenários de suas apresentações. “Até

faço shows em locais fechados, mas eles não trazem o mesmo retorno

da rua”, explica o artista. Acompanhado de amplificador, microfone com

pedestal e uma mesa de som, o cantor empunha um violão, que não toca

de verdade. Nem precisa. Com 1,92 metro de altura, brinco na orelha e

tatuagem no braço, ele atrai centenas de pessoas, a maioria mulheres

que cantam junto os seus refrões de sertanejo universitário. O cantor con-

ta com o rebolado da dançarina Ritinha, 48 anos, que anima a plateia e

ainda ajuda na publicidade. “Acredito no talento dele”, diz. O gosto pela

música vem da família. Fabiano é filho do cantor Marciano, da dupla com

João Mineiro. Ele diz já ter vendido mais de 40 mil cópias de seu primeiro

CD, gravado ao vivo. “A praça me dá um retorno financeiro maior do que

qualquer bar”, afirma. Ruth, a mãe, que vez por outra faz coro nas apre-

sentações, acredita no filho e pede a Deus que sua carreira decole. “Ele é

um filho de ouro.”

Os quatro integrantes do grupo Luar do Ser-

tão não se cansam de tocar a música Asa

Branca, de Luiz Gonzaga – a mais pedida nas

ruas. Para eles, vindos do Piauí, Pernambuco e

Alagoas em busca do sucesso, a repetição faz

parte do negócio. Os instrumentos tipicamen-

te nordestinos atraem pessoas que gostam de

dançar ao som de sanfona, triângulo, zabumba

e ganzá. Luis, 34 anos, é o líder. Conhecido pelo

público como Piauí da Sanfona, o instrumentis-

ta diz que seu maior sonho “é chegar lá”. Apesar

de já ter ido a programas de televisão, o artista

prefere a rua. Gaúcho, “patrocinador” e res-

ponsável pela ganza, espécie de chocalho com

sementes, diz que a ida ao Show do Tom, na

Record, gerou mais reconhecimento. “Pessoas

de São Paulo e de fora nos viram na televisão”,

diz ele. Mas para Piauí o sucesso não está ne-

cessariamente ligado à televisão. “Tudo o que

quero é gravar um CD e um DVD”, comenta.

“Visitas” da polícia são frequentes. José

Aparecido, o zabumbeiro, diz que os policiais

atrapalham a rotina do grupo. “Eles não nos

deixam trabalhar, mas a gente não desiste.”

o sertão deNtro de Nós

Fabiano martins, filho do cantor marciano

(parceiro de João mineiro), se apresenta na praça do Patriarca. o violão é só

moral. ele não toca. em compensação conta

com a animação de ritinha, sua fiel

dançarina

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Dois senhores cantam música caipira com

o fundo da alma no viaduto Santa Ifigênia,

perto do Mosteiro de São Bento. As violas afia-

das tocam sucessos de Tonico e Tinoco, Tião

Carreiro e Pardinho, Lourenço e Lourival. Trata-

se da dupla João do Morro e Pé da Serra, que

entoam músicas sertaneja de raiz com uma afi-

nação pra jurado nenhum botar defeito. João do

Morro, 67 anos, na verdade se chama Carlos

Luiz e nasceu em Ribeirão Preto, interior de São

Paulo. Está em São Paulo há tantos anos que

não se lembra ao certo quando chegou. Para

ele, a música é um dom que Deus lhe deu para

tocar a vida. “Sou aposentado. Gosto muito de

música, mas também toco por necessidade.

Minha aposentadoria é muito baixinha”, conta

ele, que recebe um salário mínimo e vende seus

CDs por R$ 10. “O povo vê que nós somos arru-

madinhos e cantamos bontinho e compra. Esse

dinheiro vale muito para mim”. Seu parceiro de

oito anos, Pé da Serra, 66 anos, é da cidade

de Lins, no interior de São Paulo. “Nós não pre-

cisamos nem se olhar mais. Tocamos só pelo

tempo do instrumento”, diz orgulhoso por fazer

parte de uma das últimas duplas de música de

raiz na rua. “Não cantamos essas músicas no-

vas, não.”

eNtre o morro e a serra

saX de pet

Rua Augusta, sábado à noite. Gíbran Santos toca seu saxofone de

resina de poliéster, mesmo material usado em garrafas pet, na porta

dos bares. O som da banda Deep Purple destoa da batida eletrônica e

do rock pesado que imperam pela região. Autodidata, nascido em Ponta

Grossa, no Paraná, ele costuma tocar músicas de seu gosto pessoal: Dire

Straits, Queen, The Doors. “É o que mais pedem, além do tema da Pan-

tera Cor-de-Rosa. Só não gosto de tocar hinos de futebol. Acho que dão

muita importância para isso e os caras nem jogam tão bem assim”, diz.

“Eu gostava do tempo do Ayrton Senna. As pessoas eram mais naciona-

listas”. Sua paixão pelo sax surgiu ainda pequeno, ao ver um exemplar de

brinquedo. “Mais tarde, eu quebrei a perna e um amigo, o Daniel, me pre-

senteou com um sax de bambu”, conta. Um dia o instrumento se quebrou

e o conserto iria sair caro. “Resolvi fazer um. O primeiro era bem rústico,

desafinado”. Desde então, Gibran não parou mais de construir seus ins-

trumentos, que, diga-se, podem ser comprados no site por R$ 200 (mais

o frete). “Não faço apenas para ganhar dinheiro. Quero dar uma vida justa

para a minha filha, mas também procuro disseminar a arte e deixar a mi-

nha marca no mundo.”

de repeNte, os reis do repeNte

O sonho de brilhar surgiu cedo para os articulados irmãos Davi,

13 anos, e Daniel Cavalcante, 11 anos. Embalado pelas músi-

cas de Caju e Castanha, repentistas de Jaboatão dos Guararapes

(PE), Davi começou a cantar aos 5 anos. A arte do repente eles

aprenderam com o pai, natural de Palmares (PE). “Até a nossa avó

faz repente”, diz Davi. Os meninos arrancam risos e despertam a

atenção de uma pequena multidão em uma rua próxima ao Pátio

do Colégio, no centro. “Sempre que posso venho ver os meninos.

Eles têm talento”, diz Jeremias Souza, 45 anos. Moradores do Par-

que do Ipê, em Osasco, Davi e Daniel sonham alto. Um quer tra-

balhar na televisão como humorista e o outro quer ser jogador de

futebol. Eles já têm dois DVDs gravados. O primeiros traz o show

realizado no Parque do Ibirapuera. O segundo mostra imagens de

programas de TV em que se apresentaram, entre eles o Qual É o

Seu Talento? e o Programa Raul Gil, ambos do SBT. “Quem fez o

DVD foi um amigo do meu pai, que não cobrou”, conta Daniel. Lon-

ge dos fãs do centro e dos bastidores da televisão, eles seguem

sua vida normal como crianças. “O Davi tá namorando a Taís da 5ª

série”, entrega o irmão Daniel.

o paranaense gibran santos, que produz seus

próprios saxofones, não toca hino de time nenhum. acha que dão muita importancia

para o jogo de bola e que “os caras nem jogam tão

bem assim”