Imprimir ()
(/sites/default/files/gn/14/02/foto07cul-401-capa-d4.jpg)Carlos AlbertoTorres, capitão da seleção de 1970, a do Brasil tricampeão, ergue a Taça Jules Rimet: só depois de ganhar essa Copao futebol entrou na universidade, nota Juca Kfouri
07/02/2014 - 00:00
Novo time em campo
Por Sérgio Rizzo
"O que o esporte empresta à alma humana é o amor à luta, ao batalhar, mas nunca as qualidades intelectuais
que são precisas a um general, já não direi grande, mas razoável. (...) O mal do esporte está mesmo nisto,
como mostrou Spencer; e é por isso que eu o combato, de todos os modos e feitios. Não posso admitir nem
conceber que o fim da civ ilização seja a guerra. Se assim fosse, ela não teria significação. O fim da civ ilização
é a paz, a concórdia, a harmonia entre os homens; e é para isso que os grandes corações de sábios, de santos,
de artistas têm trabalhado."
O severo (e ranzinza) julgamento acima foi escrito em 1921 por um de nossos principais escritores, Afonso
Henriques de Lima Barreto (1881-1922). Autor de um romance-chave para a discussão da identidade
nacional, "Triste Fim de Policarpo Quaresma", sátira protagonizada por um patriota que defendia a adoção do
tupi como idioma oficial, Lima Barreto retrucava, no artigo do qual foi retirado esse trecho, argumentos
defendidos pelo filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903), para quem a ativ idade esportiva era
considerada "útil e indispensável como cultivo intelectual" e "uma preparação para a guerra".
Onde se menciona ativ idade esportiva, no texto de Barreto, leia-se futebol - ou, como ainda se grafava e se
dizia naquela época, "football". Ele começava a se enraizar na sociedade brasileira. Temos ali um dos
primeiros exemplos da relação - às vezes tensa, como se percebe, às vezes mais amistosa e triunfalista - entre
a literatura brasileira e o esporte que se consagraria não apenas como o mais popular no país, mas também
como um dos elementos definidores da identidade nacional. A intensa div isão de opiniões - que ainda se
mantém aquecida, a poucos meses do evento - em relação à Copa do Mundo no Brasil sugere que essa tensão
persistirá, tal como alguns escritores brasileiros se empenharam em representá-la.
O que Lima Barreto pensava, nesse aspecto, continua tremendamente atual. "Ele considerava que o futebol
consumia verbas estatais que deveriam ser utilizadas para outras coisas", observa Andrea Hossne,
professora do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e autora da tese de doutorado "A Angústia da Forma e o
Bovarismo: Lima Barreto, Romancista". "Diabo! Uma alimentação sadia, uma habitação higiênica, um bom
clima agem tão eficazmente sobre o nosso organismo como umas marradas ou uns pontapés dominicais,
debaixo de um sol ardente - não acham?", dizia ele em uma crônica. Em outro artigo, o alvo são as
(/sites/default/files/gn/14/02/foto07cul-402-capa-d4.jpg)Campeões em1958, Pelé abraça Gylmar: "Qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inib ições e se põe em estadode graça, é algo de único em matéria de improvisação, de invenção", escreveu Nelson Rodrigues
autoridades e todos os que pensam como elas em relação ao apoio estatal: "Para gente desse calibre, a
grandeza de um país não se mede pelo desenvolv imento das artes, da ciência e das letras. O padrão do seu
progresso é o grosseiro 'football' e o xadrez de ociosos ricos ou profissionais".
"Questões fundamentais para Lima Barreto permeiam sua v isão acerca do esporte e do futebol, tais como sua
crítica à política no Brasil, às div isões que levam a antagonismos e priv ilégios tanto de classe quanto raciais,
sua preocupação com v iolência e conflito", diz Andrea. "Ele cita Spencer, mas é digno de nota que tenha lido
e encontre afinidades mais com as ideias de [Peter] Kropotkin do que de [Charles] Darwin. Enquanto este
falava da seleção natural baseada na competição, na maior ou menor aptidão para a sobrev ivência, aquele
tratava da solidariedade entre indiv íduos e espécies como estratégia para a sobrev ivência, em especial na
obra 'Mutual Aid', lida em francês por Lima Barreto, que se desdobra também numa v isão política, afinada
com o anarquismo."
É compreensível, portanto, que tenham chamado a atenção do escritor "muito mais os aspectos de dissenso
e conflito (quando não delito) presentes no futebol no Brasil dentro e fora do campo - aspectos inegáveis, e
que se perpetuam quando não se exponenciam, a ponto de se necessitar a intervenção policial e se proceder
à contagem de mortos e feridos após partidas, com banimento de torcidas organizadas, fenômenos como os
"hooligans" etc. - do que os aspectos positivos do esporte". Em parte, resume Andrea, "sua crítica ao futebol é
também sua v isão crítica e ácida do país e da nossa v ida em sociedade". "Penso que talvez ele tenha
identificado uma v isão de classe, nos primórdios do futebol no Brasil, que em tudo se opunha à sua v isão, de
quem se situava à margem, e ao seu projeto ético-estético."
Ela vê "proximidades" entre algumas críticas de Lima Barreto, "o interessantíssimo trabalho de Nelson de
Oliveira e Liv ia Garcia-Roza em seus contos" (respectivamente, "Gol" e "O Espelhinho") e a "linguagem algo
preciosista e heroicizante de muitos locutores e comentaristas esportivos, sobretudo de futebol". Algo que
tem a ver com o esporte, analisa Andrea, como espécie de "sucedâneo possível na experiência passional e
cotidiana do ânimo épico, de grandes conquistas e feitos, em disputas que exigem habilidades específicas,
não raro algum tipo de excepcionalidade, com inimigos muito bem demarcados, diferentemente do que o dia
a dia nos apresenta". Mas, por outro lado, algo que talvez "transcenda o esporte em si como ativ idade,
alcançando uma dimensão da expressão, tanto no gesto como na linguagem".
O escritor Luiz Ruffato, que organizou a recém-publicada coletânea "Entre as Quatro Linhas - Contos sobre
Futebol", atribui a demora com que o futebol entrou no "horizonte de interesse" dos escritores brasileiros à
ideia equivocada de que ele seria "pouco literalizável". "Não é verdade. Ele tem todos os componentes
dramáticos. Com raras exceções, os escritores é que não gostavam de futebol. Não v iam como algo que
pudessse ser transformado em literatura. O aumento recente na produção, segundo Ruffato, estaria
associado ao fato de que "há uma nova geração de escritores que convive com estratos sociais que gostam de
futebol", bem como a uma presença mais forte desse esporte na classe média.
"Entre as Quatro Linhas" foi publicado na Alemanha e lançado durante a homenagem ao Brasil realizada na
Feira de Frankfurt, em 2013. "Foi um interesse pragmático", explica Ruffato, lembrando também a
proximidade da Copa do Mundo. "Queria um livro só com inéditos." Os convites respeitaram dois pontos que,
para ele, eram fundamentais: o equilíbrio entre homens e mulheres, "para quebrar com o imaginário
machista" de que o futebol atrai apenas os primeiros, e a reunião de autores de diversas regiões do país, "para
quebrar o paradigma do eixo Rio-São Paulo". Dos 15 autores, 9 são homens, entre eles Fernando Bonassi e
Cristovão Tezza. Eliane Brum e Adriana Lisboa estão no elenco feminino.
Para o jornalista Juca Kfouri, o que se manifesta até o fim dos anos 1960 é "uma maneira preconceituosa de a
nossa 'intelligentsia' olhar para o futebol" e, em razão disso, uma bibliografia "paupérrima, seja na ficção ou
na não ficção". Entre os pouquíssimos trabalhos que ele destaca nas décadas que se estendem até o
tricampeonato mundial do Brasil, incluem-se "O Negro no Futebol Brasileiro", de Mário Filho; "Negro,
Macumba e Futebol", de Anatol Rosenfeld; e "O Sol e o Verde", de Sergio Ortiz Porto, "um médico gaúcho que
escreveu uma história, leitura da minha juventude, sobre um garoto pobre que faz carreira no futebol".
"Pouquíssima coisa", resume.
A partir dos anos 197 0, contudo, Kfouri vê "a entrada do futebol na universidade", por meio de disciplinas de
sociologia do esporte e da crescente produção de dissertações e teses. Com isso, teria v indo uma
transformação no status que o futebol passou a desfrutar no cenário da cultura. "Não há clube que não tenha
um bom livro. 'Estrela Solitária' [de Ruy Castro, sobre Garrincha] abriu caminho para as biografias. Mais
recentemente, há uma trilogia notável: 'Veneno Remédio' (José Miguel Wisnik], 'A Dança dos Deuses' [Hilário
Franco Júnior] e 'O Futebol como Linguagem - Da Mitologia à Psicanálise', de um psiquiatra de Ribeirão Preto
[David Azoubel Neto] que foi professor do Sócrates [ex-jogador do Corinthians e da seleção brasileira] e
v iveu com os índios, uma figura interessantíssima."
Um observador estrangeiro - autor do livro que Kfouri considera um dos mais importantes para a
compreensão do fenômeno do futebol no Brasil - talvez possa emprestar um olhar mais isento para o debate
que se traduz, em parte, na produção literária. "Para mim, existe uma tensão na psique brasileira entre
sentimentos de superioridade, na linha do 'temos as melhores mulheres, o melhor futebol, música, natureza
etc. do mundo', e sentimentos de inferioridade, por causa da história da colonização e da posição geográfica",
afirma o inglês Alex Bellos, autor de "Futebol - O Brasil em Campo" (2002), premiado no Reino Unido, com o
prestigiado National Book Award de melhor livro sobre esportes do ano. "A 'alma brasileira' é uma disputa
entre esses dois extremos", acredita ele (leia entrev ista na página 11).
Para o escritor Sérgio Rodrigues, autor do romance "O Drible", que trata de uma relação conflituosa entre pai
(um jornalista esportivo do Rio) e filho a partir de inúmeras referências a jogadores, partidas e equipes, "o
melhor que nossa literatura fez por nosso futebol ainda está na não ficção, na fronteira do jornalismo com a
arte, nas crônicas de Nelson Rodrigues e Paulo Mendes Campos e em livros como 'O Negro no Futebol
Brasileiro', de Mário Filho, e 'Anatomia de uma Derrota', de Paulo Perdigão". Na criação ficcional, diz, "o
quadro está mudando, mas por muito tempo o futebol, aquilo que ele tem de melhor e mais apaixonante,
parece ter tido um efeito paradoxal sobre os escritores: o de tornar mais tímida a fantasia, a fabulação".
Uma saída clássica diante disso, na análise de Rodrigues, foi a de "encenar num cenário futebolístico um
drama social ou político em que a bola era secundária". Ele lembra o caso do romance "Água-Mãe", de José
Lins do Rego, e da peça teatral "Chapetuba Futebol Clube", de Oduvaldo Vianna Filho. "Outra estratégia foi
fechar o foco no drama pessoal de um jogador ou aspirante, retratando a promessa de glória do futebol como
engodo, pelo lado do fracasso." Os exemplos seriam alguns "contos excelentes" como "Abril, no Rio, em
197 0", de Rubem Fonseca, e "No Último Minuto", de Sérgio Sant'Anna (autor também da novela "Páginas sem
Glória"). "Talvez seja essa dificuldade ou recusa em encarar o jogo na sua grandeza e não apenas na sua
miséria que tenha levado à ideia tão difundida, mas a meu ver errada, de que nossa literatura é perna de pau
quando trata de futebol."
Na gênese de "O Drible", o futebol veio antes do conflito entre pai e filho. "A primeira semente do romance foi
um conto que escrev i há 18 anos e na última hora decidi deixar fora do meu primeiro livro, 'O Homem Que
Matou o Escritor' [2000], por achar que poderia desenvolvê-lo melhor. Àquela altura eu imaginava que a
(/sites/default/files/gn/14/02/foto07cul-403-capa-d4.jpg)Dunga e a taça domundo em 1994: foi na poesia e, sobretudo, na crônica que o futebol ganhou "linhas e páginas à altura da importânciaque essa modalidade esportiva adquiriu em nosso país", diz professor da Unesp
coisa talvez rendesse um conto longo, no máximo uma novela, não um romance." Chamava-se "Peralvo" e
contava a história de um jogador do Vasco da Gama nos anos 60.
Dizia-se que Peralvo "tinha poderes sobrenaturais e poderia ter sido maior que Pelé se não tivesse a carreira
abortada em circunstâncias trágicas, justamente na partida em que enfrentou pela primeira vez o craque do
Santos". Rodrigues observa que, curiosamente, o conto - que tinha cerca de dez páginas - está inteiro dentro
de "O Drible", praticamente sem alterações. "Mas o drama de família em que essa história se insere e também
a moldura futebolística mais ampla, meio histórica e meio mítica, v ieram bem depois, aos poucos, e deram
um trabalho danado." Resumindo, segundo ele: "Peralvo" foi inspiração e o resto, transpiração.
"A despeito de o futebol ser um tema central da cultura brasileira a partir do início do século XX, sua relação
com a literatura se dá aos soluços, de modo muito intermitente", observa José Carlos Marques, professor do
Departamento de Ciências Humanas da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade
Estadual Paulista (Unesp/Bauru). "Temos aqui algo contrário do que ocorre, por exemplo, no casamento
entre o futebol e a música brasileira. Não há grandes romances, de autores consagrados ou reconhecidos do
grande público, que tenham incluído o futebol como tema central ou secundário em sua trama narrativa.
Aliás, no gênero narrativo, o futebol compareceu de modo mais significativo em contos e novelas."
Marques acredita que foi na poesia e, sobretudo, na crônica jornalística que o futebol ganhou "linhas e
páginas à altura da importância que essa modalidade esportiva adquiriu em nosso país". Autor do livro "O
Futebol em Nelson Rodrigues" e líder do Grupo de Estudos em Comunicação Esportiva e Futebol da Unesp,
ele considera que nas páginas dos jornais se construiu "uma tradição muito brasileira de se comentar e de se
reconstruir o futebol de maneira subjetiva e, por vezes, ficcional". O campo é vasto, frisa, mas "é preciso citar
os seminais Mário Filho e Nelson Rodrigues, o ultrarromântico Armando Nogueira, o pontual Paulo Mendes
Campos e o provocador Sérgio Porto, por meio de seu 'personagem' Stanislaw Ponte Preta".
Hoje, Marques destaca o trabalho de José Roberto Torero e Xico Sá, "que vêm dando v italidade à crônica
esportiva por meio da construção literária de seus textos - seja pelo caráter ficcional, seja pela riqueza da
composição linguística". Na poesia, João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, que
"escreveram poemas antológicos sobre o futebol". O próprio Drummond, em suas crônicas, "incluiu inúmeras
vezes o futebol como tema de discussão e quase sempre de maneira brilhante". Por último, ele faz questão de
citar "a obra despretensiosa de Luiz Schwarcz, o conto infantil 'Minha Vida de Goleiro'", que serv iu de
inspiração para o filme "O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias", de Cao Hamburger.
De maio a julho, cobrindo todo o período de realização da Copa, o Museu da Língua Portuguesa, em São
Paulo, promoverá a exposição "O Futebol na Ponta da Língua". Obras de Nelson Rodrigues, Luis Fernando
Verissimo e Oswald de Andrade serão presenças já garantidas no elenco, de acordo com o diretor do museu,
Antonio Carlos Sartini. "Estamos desenvolvendo o projeto, mas esses três escritores estarão certamente
entre os representantes da literatura que fala de futebol."
Sob curadoria de Clara Azevedo, que foi diretora do Museu do Futebol, a exposição ocupará diversos
espaços do Museu da Língua, não apenas a sala das mostras temporárias. "Queremos que ela mantenha um
diálogo com a nossa exposição permanente, que inclui, por exemplo, um filme rodado especialmente para o
museu e narrado por Pelé, sobre o futebol e a língua como elos da nossa identidade cultural", afirma Sartini.
Estão prev istas parcerias com o Museu do Futebol e com o Salão de Humor de Piracicaba para cessão de
material de seus respectivos acervos. Entre os "diversos aspectos dessa brincadeira" (as relações entre a
língua e o futebol) que o museu planeja reunir, Sartini destaca "termos usados comumente hoje que
nasceram no futebol", muitas vezes criados por radialistas e locutores de TV. Trechos de transmissões
brasileiras vão mostrar as diferenças regionais no uso do português. "Por meio de uma parceria com a RTP
[Rádio e Telev isão de Portugal], queremos trazer também narrações de partidas feitas em Portugal, Angola e
Moçambique", diz.
Veja tam bém : Prim eiro tem po (http://www.valor.com .br/u/3422334) e Segundo tem po
(http://www.valor.com .br/u/3422328)