Saussure e Benveniste 619 1756 1 PB

download Saussure e Benveniste 619 1756 1 PB

of 24

Transcript of Saussure e Benveniste 619 1756 1 PB

  • 8/18/2019 Saussure e Benveniste 619 1756 1 PB

    1/24

    O tempo do homem é o tempo da língua,o tempo da língua é o tempo do homem:

    reflexões sobre a noção de temporalidadeem Saussure e em Benveniste

    Man’s time is language’s time, language’s time isman’s time: reflections on the notion of

    temporality in Saussure and in Benveniste 

    Bruna Sommer FariasPaula Ávila Nunes

    RESUMOEste artigo tem por objetivo discutir algumas noções da teoria de Ferdinandde Saussure e da teoria de Émile Benveniste que são perpassadas e definidaspela noção de temporalidade. Para tanto, nos serviremos do Curso de Lin- guística Geral (2006) e dos Escritos de Linguística Geral (2002), bem comode leitores, como Gadet (1987) e Normand (2009), para tratar da teoria saus-

    suriana e da sua relação com o tempo, e dos Problemas de Linguística Geral I e II  (1989, 1991), bem como das considerações feitas por Dessons (2006) eTeixeira (2012), para tratar da temporalidade em Benveniste. Com base emtais referências, este estudo aponta para importância da noção de tempo paraa delimitação de noções saussurianas, as quais relacionam a Linguística e seuobjeto, e também para o desenvolvimento de princípios de uma antropologiada linguagem, presentes na obra de Benveniste.

    PALAVRAS-CHAVESaussure; Benveniste; Língua; Tempo.

     ABSTRACTThis article has the objective of discussing some notions of Saussure’s andBenveniste’s theories which are permeated and defined by the notion oftemporality. In order to do so, we make use of the Course on General Lin-guistics (2006) and the Writings on General Linguistics (2002), as well asreaders such as Gadet (1987) and Normand (2009), to manage saussurean’stheory and its relation with the time, and Problems on General Linguistics Iand II (1989, 1991), as well as the considerations made by Dessons (2006)and Teixeira (2012), to discuss temporality in Benveniste. Based on such

    references, this study points to the importance of the notion of time for thedelimitation of saussurean notions, which relate Linguistics and its object,

  • 8/18/2019 Saussure e Benveniste 619 1756 1 PB

    2/24

    154 Nonada • 20 • 2013

    and to the development of principles of an anthropology of language presentin Benveniste’s work.

    KEY WORDSSaussure; Benveniste; Language; Time.

    A questão da temporalidade na reflexão de Ferdinand de Saussure

    se mostra como uma noção fundamental que contribui para a proble-

    matização de diversos conceitos discutidos pelo linguista. De forma

    análoga, vemos que o tempo também tem implicações importantesna Linguística pós-saussuriana, especialmente na teoria desenvolvi-

    da por Émile Benveniste, o mais saussuriano de todos os linguistas

    (NORMAND, 2006a, p. 71). Se Normand tem razão em sua asserção,

    podemos complementá-la com a ideia de que Benveniste, mesmo sem

    ter lido os manuscritos saussurianos, foi capaz de desenvolver uma

    reflexão muito afinada com o que nos foi permitido entender sobre o

    pensamento do linguista genebrino quando da publicação, em 1996,dos Escritos de Linguística Geral. Isto é, Benveniste foi capaz de obser-

    var, apenas pela leitura do Curso de Linguística Geral, a fecundidade e

    potencialidade do pensamento saussuriano. E um dos aspectos mais

    frutíferos abordados por Saussure foi, sem dúvida, a noção de tempo e

    sua implicação para os estudos da linguagem. Assim, a noção de tempo 

    pode figurar como uma das principais ligações entre os dois autores1.

    Entre um dos vários aspectos lançados por Saussure para a Lin-

    guística futura, a Semiologia é, talvez, o mais importante deles, e é

    também tema de extensa reflexão por parte de Benveniste, sobretudo

    em seu artigo Semiologia da Língua (1969). O que interessa observar,

    aqui, é que tal retomada, por parte do sírio, do que Saussure havia

    deixado como tarefa futura para a Linguística se deu em razão da cen-

    tralidade da noção de tempo: como consequência da consideração do

    processo dinâmico da língua, que está ancorado na questão temporal,

    1 Para mais informaçõessobre a relação entreas obras de Saussuree de Benveniste, verNORMAND (2006a) e(2006b) e NUNES (2011).

    O tempo do homem é o tempo da língua, o tempo da língua é o tempo do homem: reflexõessobre a noção de temporalidade em Saussure e em Benveniste

  • 8/18/2019 Saussure e Benveniste 619 1756 1 PB

    3/24

    155Nonada • 20 • 2013

    foi possível “apreender de modo novo o programa da semiologia saus-

    suriana, em sua diferença com as semióticas clássica e estruturalista”

    (NORMAND, op. cit., p. 147). É a partir dessa nova semiologia queBenveniste irá retomar Saussure e ultrapassá-lo2.

    Com base nessas primeiras considerações, verificamos que a noção

    de tempo, tanto para Saussure quanto para Benveniste, constitui um

    ponto primordial para a definição do objeto da Linguística e para as

    noções que a ele se ligam dentro da obra de cada autor, inclusive ex-

    pandindo os horizontes do campo. Tendo isso em mente, este trabalho

    objetiva, portanto, detalhar de que a forma a noção de tempo temimplicações tanto para o escopo do pensamento saussuriano, já que

    se trata de uma peça-chave para a problematização de conceitos que

    darão a Saussure o título de “pai da Linguística moderna”, como para

    o pensamento de outros linguistas, uma vez que se torna base para o

    desenvolvimento de teorias claramente apoiadas sobre os construtos

    saussurianos. Nesse sentido, é em Benveniste que buscamos tais

    reverberações, já que é com a tomada da enunciação como objeto de

    estudo que a categoria de tempo – juntamente com a de pessoa e de

    espaço – passa a ter ainda mais visibilidade para a Linguística. Dessa

    forma, veremos que partir de Saussure para terminar nossa análise em

    Benveniste nos leva, igualmente, a partir de uma concepção sistêmica

    de língua e terminar em uma proposta de uma antropologia linguística,

    conforme abordaremos na segunda parte deste estudo.

    Para atingir o objetivo proposto, esta exposição está dividida essen-

    cialmente em duas partes. Na primeira, são desenvolvidas algumas

    considerações sobre como é possível perceber a relação da noção

    de tempo com outros conceitos promovidos à existência pelo Curso

    de Linguística Geral, mediante leitura atenta tanto do Curso quanto

    dos Escritos de Linguística Geral, correlacionando-a com importantes

    contribuições de linguistas que também refletiram sobre a obra saussu-

    riana. Essa parte está dividida, apenas por questões didáticas, também

    2 É o próprio Benveniste,em seu artigo Semiologia

    da Língua (1969) quemafirma que “é necessá-rio ultrapassar a noçãosaussuriana de signolinguístico” (PLG II, p.67 – grifo nosso).

    Bruna Sommer Farias e Paula Ávila Nunes

  • 8/18/2019 Saussure e Benveniste 619 1756 1 PB

    4/24

  • 8/18/2019 Saussure e Benveniste 619 1756 1 PB

    5/24

    157Nonada • 20 • 2013

    espaço. Uma língua, considerada em duas datasdiferentes, não é idêntica a si mesma. [...] Asduas coisas, quando se quer ter uma visão exatados acontecimentos, devem ser sempre levadas

    em conta e em conjunto. Mas somos obrigados asepará-las, em teoria, para proceder com ordem(SAUSSURE, 2002, p. 132).

    Esse ponto de vista leva Saussure a delimitar dois campos de estu-

    dos diferentes, decorrentes da consideração da “marcha da língua no

    tempo” e da própria dupla natureza do objeto: a Linguística estática,

    ou sincrônica, que estuda um dado estado do sistema da língua em

    um momento específico da História, e a Linguística evolutiva, oudiacrônica, que estuda as relações que unem os termos em épocas

    históricas diferentes e que não formam um sistema em si. Esse as-

    pecto de dualidade interna da ciência linguística é visto por Saussure

    como criador de dificuldades particulares para o analista, conforme

    descrito no Curso, pois se faz necessário levar em conta os valores

    que constituem um sistema no estado momentâneo de seus termos,

    conforme influência direta do fator tempo na delimitação do objeto.Isso, por consequência, se deve ao fato de que a língua é um sistema

    de valores, que mudam sob a ação do tempo e sob a ação da massa

    falante, mesmo que esta aja de modo inconsciente.

    Os Escritos também mostram a tentativa de Saussure de situar a

    ciência da linguagem como uma ciência histórica. O mestre explicita

    sua consideração sobre a língua como produção do homem, situada no

    tempo e que, por isso, caracteriza uma época e uma sociedade: “[...]a ciência da linguagem é uma ciência histórica e nada além de uma

    ciência histórica” (SAUSSURE, 2002, p. 130). Tendo isso em mente,

    classifica, inclusive, a língua como objeto histórico de análise, ou seja,

    tendo seu estado determinado pelo momento em que é produzida:

    “[...] ela é um objeto de análise histórica e não análise abstrata, ela se

    compõe de fatos, não de leis [...]” (SAUSSURE, 2002, p.131). Assim,

    os fatos que cita indicam o aspecto de que a língua, como sistema

    Bruna Sommer Farias e Paula Ávila Nunes

  • 8/18/2019 Saussure e Benveniste 619 1756 1 PB

    6/24

    158 Nonada • 20 • 2013

    significante, marca o sentido produzido pelos falantes em determina-

    do momento da história, corroborando, desse modo, a ideia de que

    a língua não é constituída de leis, mas de fatos, pois os sentidos semodificam ao longo do tempo. Por conseguinte, vemos que o tempo

    de que trata Saussure, ao considerar a língua como objeto histórico, é

    o tempo referencial, o tempo do analista, que faz um recorte do tempo

    linguístico de seu objeto. Desse modo, se o linguista escolher focalizar

    a diacronia, por exemplo, estudará a passagem de uma sincronia a

    outra; ou seja, o tempo a ser considerado, para a análise, será sempre

    o presente do funcionamento de um sistema em comparação com otempo presente de funcionamento de outro sistema, ambos tornados

    passado, sob o ponto de vista temporal de referência do analista. Dito

    de outra forma, o próprio exercício de análise linguística põe em jogo

    duas temporalidades: a dos fatos analisados e a do analista.

    No excerto seguinte, Saussure (2002), nos  Escritos, esclarece que

    a sequência de acontecimentos que se desenrolam no tempo é de

    ordem linguística, logo, interna e sem relação com os fatos exteriores

    ao sistema:

    É que toda língua tem, em si mesma, uma his-tória que se desenrola perpetuamente, feita deuma sucessão de acontecimentos linguísticosque, exteriormente, não tiveram repercussãoe jamais foram inscritos pelo célebre buril dahistória; assim como são, por sua vez, com-pletamente independentes, em geral, do que se

    passa exteriormente (SAUSSURE, 2002, p. 131).

    Com relação ao caráter da imutabilidade do signo, segundo aspecto

    apresentado na citação no início desta seção, esse se encontra vin-

    culado à ideia de que a língua é uma herança. A metáfora da “carta

    forçada”, apresentada no Curso, representa a imposição que a língua

    exerce sobre os falantes, uma vez que um único indivíduo não teria a

    capacidade de modificar uma palavra, ou de fazer uma escolha por simesmo, para poder modificar o funcionamento da língua por todos os

    O tempo do homem é o tempo da língua, o tempo da língua é o tempo do homem: reflexõessobre a noção de temporalidade em Saussure e em Benveniste

  • 8/18/2019 Saussure e Benveniste 619 1756 1 PB

    7/24

    159Nonada • 20 • 2013

    falantes. Aqui se explicita o caráter histórico da transmissão, ou seja,

    o fator tempo que interfere na continuidade da língua, dominando-

    -a totalmente e excluindo a transformação geral e repentina de seufuncionamento. Tal fato está ligado à consciência dos falantes, que

    em sua maioria não têm conhecimento das leis da língua. Assim sen-

    do, o texto do Curso indaga: “se não as percebem, como poderiam

    modificá-las?” (SAUSSURE, 2006, p. 87), e acrescenta: “A todo instante,

    a solidariedade com o passado põe em xeque a liberdade de escolher.

    Dizemos homem e cachorro porque antes de nós se disse homem e

    cachorro” (SAUSSURE, 2006, p. 88 – grifos no original).Ao contrastarmos o conteúdo do Curso  com o dos Escritos, ve-

    rificamos que Saussure prioriza, em seus manuscritos, o sintagma

    continuidade da língua no tempo, em vez de imutabilidade, bastante

    empregado no Curso. Este termo, ao lado de fixidez, também recor-

    rente no Curso, talvez tenha contribuído para que os estruturalistas

    interpretassem o sistema  saussuriano como estrutura. Mesmo que

    “estrutura” apareça pouquíssimas vezes ao longo do Curso, trata-se

    de um termo denotativo de caráter mais rígido e que não considera o

    aspecto dinâmico que o sistema supõe e que é reforçado, nos Escritos,

    por continuidade. No texto dos Escritos, Saussure classifica a continui-

    dade como primeira característica, ou primeira lei, da transmissão do

    falar humano (SAUSSURE, 2002, p. 133). É exatamente a lei da conti-

    nuidade da língua no tempo que faz com que ela tenha uma história,

    ou seja, é a ação do tempo na realização da língua que permite a sua

    perpetuação e a construção de sua marcha no tempo e na história.

     Juntamente com esse primeiro princípio, coloca-se um segundo

    que não tem nada de contraditório, conforme os próprios editores

    do Curso anteciparam que poderia ser alvo de críticas ao mestre 5.

    Conforme manifesta Saussure nos  Escritos: “[tais princípios] estão

    em relação tão estreita e tão evidente que, quando temos vontade

    de menosprezar um deles, ofendemos o outro, ao mesmo tempo, e

    5 Ver nota de rodapé 1 àpágina 89 do Curso.

    Bruna Sommer Farias e Paula Ávila Nunes

  • 8/18/2019 Saussure e Benveniste 619 1756 1 PB

    8/24

  • 8/18/2019 Saussure e Benveniste 619 1756 1 PB

    9/24

  • 8/18/2019 Saussure e Benveniste 619 1756 1 PB

    10/24

    162 Nonada • 20 • 2013

    o falante. Mesmo que algumas leituras não consigam perceber sua

    dimensão dentro da teoria, inclusive apontando, erroneamente, que

    Saussure teria o excluído de sua reflexão, o falante tem lugar central:a sincronia e o sistema só têm existência em função dele, e o tempo

    influencia todos esses elementos.

    Ao mesmo tempo em que a massa falante age sobre a língua,

    modificando-a sob a ação do tempo, o peso da coletividade assegura

    o caráter de fixidez que a caracteriza. Portanto, a massa falante e o

    tempo são fatores que fazem com que a língua continue, mas tam-

    bém com que se altere: o tempo se coloca como o que permite fazerperceber o efeito das forças sociais que agem sobre a língua, tanto

    em termos de continuidade quanto em termos de transformação. O

    texto do Curso ilustra a interdependência da relação:

    Se se tomasse a língua no tempo, sem a massa fa-lante [...] não se registraria nenhuma alteração;o tempo não agiria sobre ela. Inversamente, se seconsiderasse a massa falante sem o tempo, não

    se veria o efeito das forças sociais agindo sobrea língua (SAUSSURE, 2006, p. 92-93).

    Desse modo, conforme tais excertos, é evidente que a complexi-

    dade do sistema definido por Saussure admite mudanças, visto seu

    caráter dinâmico, mesmo necessitando de um funcionamento estável

    para reger seu mecanismo em um recorte específico de tempo. Tal

    propriedade do sistema está totalmente ligada à sua concepção se-

    miológica, fato corroborado pelo excerto do Curso que segue, o qual

    afirma que a língua está “(...) situada simultaneamente na massa

    social e no tempo, ninguém lhe pode alterar nada e, de outro lado,

    a arbitrariedade de seus signos implica, teoricamente, a liberdade de

    estabelecer não importa que relação entre a matéria fônica e as idéias”

    (SAUSSURE, 2006, p.90).

    Assim, os princípios da arbitrariedade do signo e da linearidadedo significante, aspectos não focalizados em detalhes neste trabalho,

    O tempo do homem é o tempo da língua, o tempo da língua é o tempo do homem: reflexõessobre a noção de temporalidade em Saussure e em Benveniste

  • 8/18/2019 Saussure e Benveniste 619 1756 1 PB

    11/24

    163Nonada • 20 • 2013

    sustentam o signo como peça-chave do sistema saussuriano da língua,

    pois suas alterações ao longo do tempo demonstram o deslocamento da

    relação entre significante e significado, criando novos signos linguís-ticos e possibilitando a inserção de novos sentidos. Tais modificações

    são marcadas pela ação da massa falante, ponto de vista corroborado

    por Normand (2009) no seguinte excerto:

     [...] a sociedade é condição de existência dalíngua e o movimento constitui o princípio deuma e de outra, tendo os signos uma existênciaapenas na e pela “massa social” que os coloca

    em circulação na troca entre falas; através dis-so se dá a transmissão da língua, que nunca érecebida senão como “herança” (NORMAND,2009, p. 138).

    Segundo a autora, a relação do social com o arbitrário da língua

    é a mais importante inovação trazida por Saussure e, ao mesmo

    tempo, a mais difícil de ser reconhecida (NORMAND, 2009, p. 137).

    O sistema saussuriano, portanto, prevê a ação do falante sobre ele:

    é justamente o laço arbitrário que une significante e significado que

    origina o signo, que permite ao falante produzir sentido, repetindo,

    suprimindo, reorganizando e criando unidades do sistema. Mesmo

    que grandes mudanças sejam reconhecidas apenas após um período

    maior de tempo, os falantes agem como “fatores inconscientes das

    mudanças linguísticas”, como afirma Normand (2009), o que prova

    a arbitrariedade do signo e a estabelece como condição para a vidasemiológica da língua.

    No texto dos Escritos, Saussure discorre sobre a contínua transfor-

    mação da língua no tempo, em dependência da ação de dois agentes

    que operam nas criações do falante: as mudanças fonéticas e a analo-

    gia. Enquanto a primeira “representa operações puramente mecânicas,

    ou seja, que não se pode descobrir nem objetivo nem intenção”, a

    segunda resulta de “operações inteligentes, em que é possível descobrirum objetivo em um sentido” (SAUSSURE, 2002, p. 139). Segundo o

    Bruna Sommer Farias e Paula Ávila Nunes

  • 8/18/2019 Saussure e Benveniste 619 1756 1 PB

    12/24

    164 Nonada • 20 • 2013

    texto, a observação e a análise desses dois fenômenos constituem a

    tarefa do linguista, e a consideração do fator tempo, ao se recortar o

    período a ser analisado, complexifica a sua ocupação, pois possibilita– e, ao mesmo tempo, obriga – ou a restrição da observação a períodos

    limitados, ou a abrangência de várias épocas, práticas correntes dos

    gramáticos comparatistas.

    Desse modo, o papel do falante, em ambos os estados, está previsto

    e marcado na história das línguas, segundo uma atuação consciente

    ou inconsciente no uso das formas. A analogia é uma operação in-

    teligente de transformação, conforme o mestre explica no texto dos  Escritos, que renova a língua por meio de uma certa destruição em que

    se alteram e se criam novos signos, mas sempre seguindo a mesma

    cadeia de elementos, os quais foram sendo transmitidos desde a origem

    das línguas. No caso da mudança fonética, essa é menos discutida no

    manuscrito da segunda conferência, mas ele reafirma seu caráter geral

    e seu aspecto de mudança inconsciente no mecanismo pela ação do

    falante ao passar do tempo. Normand (2009) pontua o papel central

    do falante na vida do sistema, seja quando faz mudanças conscientes

    na língua, pela operação analógica, seja quando comete “equívocos

    de forma inconsciente”, o que afeta foneticamente as unidades:

    o sistema, entregue aos fatores aleatórios dasmudanças fonéticas, cujo ponto de partida estásempre nos “erros” inconscientes da fala indivi-dual, subsiste apenas por esses remanejamentos

    operados pelos locutores: “a vida da língua éproduzida por esses equívocos” (NORMAND,2009. p. 145-146).

    Os dois fenômenos se encontram também discutidos no Curso:

    estão descritos na terceira parte, dedicada à Linguística Diacrônica.

    Tal classificação nos leva, mais uma vez, ao recorte temporal que

    possibilita a verificação de mudanças na língua: precisamos analisar

    sincronias de diferentes épocas para delimitar a história da evolução

    O tempo do homem é o tempo da língua, o tempo da língua é o tempo do homem: reflexõessobre a noção de temporalidade em Saussure e em Benveniste

  • 8/18/2019 Saussure e Benveniste 619 1756 1 PB

    13/24

  • 8/18/2019 Saussure e Benveniste 619 1756 1 PB

    14/24

    166 Nonada • 20 • 2013

    Por fim, é impossível deixar de incluir a noção de valor como

    primordial na concepção saussuriana de língua: o valor é justamente

    a costura das transformações da língua no tempo. Um novo signosomente será aceito e entrará no sistema se for consolidado pelo uso

    da massa falante; ou seja, para ser substituído, seu valor deve ser re-

    conhecido e o termo, assim, adquire sentido em oposição aos outros

    termos no funcionamento do sistema.

    Encaminhamento: de Saussure a Benveniste

    De acordo com o percurso seguido até aqui, partimos de noções

    como sistema, signo, mutabilidade, imutabilidade, sincronia, diacro-

    nia, para verificar de que modo a consideração do fator tempo afeta a

    teorização da língua e, diretamente, o fazer do linguista ao delimitar

    seu olhar sobre seu objeto de estudo. Indo além e chegando a um ponto

    primordial, ressaltamos a presença da consideração dos falantes e a

    sua relação com a língua dentro da teoria saussuriana. Afora isso, é

    relevante pontuar novamente o fato de que, para Saussure, o sistema é

    baseado em diferenças: quando falamos de um termo, todos os outros

    estão automaticamente implicados, uma vez que é a própria diferença

    e a relação estabelecida entre os termos que define seus valores. Nas

    palavras do Curso, “subentende-se que são puramente diferenciais,

    definidos não positivamente por seu conteúdo, mas negativamente

    por suas relações com os outros termos do sistema. Sua característica

    mais exata é ser o que os outros não são” (SAUSSURE, 2006, p. 136).

    Além disso, tratamos de outros dois pontos que consideramos

    primordiais, o falante e o discurso, os quais nos encaminham para

    o próximo ponto de discussão neste trabalho. De acordo com o que

    Saussure escreve em sua “Nota sobre o discurso”, presente nos Escritos,

    todos os conceitos, revestidos de uma forma linguística, “esperam ser

    postos em relação entre si para que haja significação do pensamento”

    O tempo do homem é o tempo da língua, o tempo da língua é o tempo do homem: reflexõessobre a noção de temporalidade em Saussure e em Benveniste

  • 8/18/2019 Saussure e Benveniste 619 1756 1 PB

    15/24

    167Nonada • 20 • 2013

    (SAUSSURE, 2002, p. 235). Ou seja, todo o sistema, com sua organiza-

    ção, está à espera do falante para que a língua, com suas formas, seja

    relacionada e posta em ação via discurso. Não mais apenas a figurada massa falante, como apresentada no Curso, mas a figura do falante

    se marca como possível na teoria de Saussure – ainda que não teorize

    especificamente sobre ela – na medida em que está configurada a sua

    relação indissociável com as mudanças do sistema, que se fazem pela

    inserção da língua pelo falante no tempo.

    Benveniste, propondo-se como seguidor de Saussure, coloca-se

    como linguista que dialoga com as noções propostas pelo mestre,como é possível acompanhar no excerto a seguir, retirado do artigo

    Tendências recentes em linguística geral, de 1954: “a novidade do

    enfoque saussuriano [...] consistiu em tomar consciência de que a

    linguagem em si mesma não comporta nenhuma outra dimensão

    histórica, de que é sincronia e estrutura, e de que só funciona em

    virtude da sua natureza simbólica” (PLG I, p. 5). Aqui verificamos que

    Benveniste reconhece a “importância primordial da noção de sistema

    e da solidariedade restaurada entre todos os elementos de uma língua”

    (op.cit., p. 5) e, ao ressaltar a natureza simbólica da linguagem no

    excerto anterior, ele também inscreve um espaço na língua para que

    o falante, enquanto homem, possa se apropriar da língua e colocá-la

    em funcionamento por um ato individual de utilização.

     Tal definição de enunciação, uma das muitas propostas por Ben-

    veniste8, põe em relevo novamente a relação entre sistema de signos

    e o falante, relação esta que se coloca como indispensável para a vida

    de ambos, e que se realiza no discurso. Para Dessons (2006), a teoria

    da linguagem iniciada por Saussure pode ser entendida como

    um estrato da teorização de Benveniste, levan-do a interpretar a noção de discurso como umavatar da noção de parole, realização individualda língua, posição legitimada pela reflexão deSaussure sobre a discursividade [...]9 (DESSONS,op. cit., p. 67-68 – grifos no original).

    8  O  Dicionário de Lin- guística da Enunciação(2009) explicita a ques-tão da diversidade dedefinições usadas porBenveniste: “Tal diver-sidade conceitual, longede parecer uma contra-dição no pensamento doautor, se explica desdeque se considere queBenveniste construiuessa noção ao longo demais de 40 anos de re-flexão. O termo recebenuances de definiçãode acordo com o temaa que está associado”(Flores et al, 2009, p.102). Para ver exemplosde diferentes definiçõesde enunciação na obra,verificar o referido termoem Flores et al., 2009, p.102 e 103.

    9 No original: “une stratede la théorisation de

     Benveniste, conduisantà interpreter la notionde discours comme unavatar de la notion de

     parole, réa lisation in-dividuelle de la langue, position legitiméé par lareflexion de Saussure surla discursivité ”.

    Bruna Sommer Farias e Paula Ávila Nunes

  • 8/18/2019 Saussure e Benveniste 619 1756 1 PB

    16/24

    168 Nonada • 20 • 2013

    Mesmo Benveniste tendo tido contato apenas com as ideias saus-

    surianas presentes no Curso, as quais não focalizam um estudo da

    fala, mas da língua como sistema de ordem própria, é no próprioCurso que ele lê a possibilidade de se trabalhar com os conceitos que

    apontam para apropriação da língua pelo falante. Em outras palavras,

    Benveniste lê em Saussure a base de uma teorização do discurso a

    partir da língua. Segundo Dessons (op. cit.), em Benveniste, “discurso

    refere-se especificamente à teoria da Enunciação, da qual ela é o termo

    principal, prolongando assim o movimento de conceituação iniciado

    por Saussure”10 (DESSONS, op. cit., p. 58 – grifo no original).Na seção a seguir, tentaremos verificar, a partir de um recorte da

    teoria benvenistiana, o modo como o autor apresenta o tempo em suas

    reflexões sobre a língua, sobre os seus mecanismos e os falantes, sob

    o enfoque de que são esses que dão vida ao tempo e à língua, sendo

    reciprocamente constituídos por ambos.

    DE UMA TEORIA DO TEMPO DA LÍNGUA PARA UMA TEORIA DOHOMEM NA LÍNGUA

    Em seu artigo “A linguagem e a experiência humana”, de 1965,

    presente em Problemas de Linguística Geral II , Benveniste se propõe

    a tratar de duas categorias fundamentais do discurso que, segundo

    ele, estão necessariamente ligadas: pessoa e tempo.

    Ao apropriar-se das formas da língua, empregando-as no discurso,

    o falante faz com que elas recebam sua substância e sua realidade.

    No caso do pronome eu, por exemplo, ele designa aquele que fala no

    momento de sua fala, estabelecendo assim uma referência no discur-

    so. Para Benveniste, “esta é a experiência central a partir da qual se

    determina a possibilidade mesma do discurso” (PLG II, p. 69). Desse

    modo, a experiência da enunciação constitui o locutor como sujeito

    no discurso, fazendo com que deixe, no enunciado, suas marcas. O

    10  No original: “dis-cours renvoie spécifi-quement à la théoriede l’énonciation, dontelle constitue le termemajeur, prolongeant encela le mouvement deconceptualization initié

     par Saussure”.

    O tempo do homem é o tempo da língua, o tempo da língua é o tempo do homem: reflexõessobre a noção de temporalidade em Saussure e em Benveniste

  • 8/18/2019 Saussure e Benveniste 619 1756 1 PB

    17/24

    169Nonada • 20 • 2013

    autor explica a reversibilidade desse processo, que constitui a comu-

    nicação intersubjetiva, ao afirmar que “este eu na comunicação muda

    alternativamente de estado: aquele que o entende o relaciona ao outrodo qual ele é signo inegável; mas, falando por sua vez, ele assume eu

    por sua própria conta” (op.cit., p. 69).

    Os pronomes não são os únicos indicadores de subjetividade, que

    preenchem sua referência no discurso, segundo Benveniste. Os dê-

    iticos também funcionam conforme tal mecanismo, de acordo com

    as reflexões presentes nesse artigo. Contudo, as formas linguísticas

    que revestem as categorias, que exprimem o tempo, são vistas porBenveniste como as mais ricas reveladoras da experiência subjetiva.

    Por conseguinte, o autor define três tipos de conceptualizações

    de tempo. O primeiro a ser analisado, o tempo físico, é denominado

    como sendo o tempo do mundo, que se caracteriza por ser “um con-

    tínuo uniforme, infinito, linear, segmentável à vontade” (PLG II, p.

    71). Diferente deste é o chamado tempo crônico, que é “o tempo dos

    acontecimentos”, o tempo que, “congelado na história, admite uma

    consideração bidirecional, enquanto que nossa vida vivida corre (é a

    imagem recebida) num único sentido” (op.cit., p. 71).

    A noção de acontecimento para a definição da natureza do tempo

    crônico é, assim, bastante importante, pois podemos lançar nosso olhar

    para acontecimentos do passado ao presente ou do presente ao passa-

    do, por isso a sua bidirecionalidade. Além disso, o que denominamos

    tempo nessa categoria é uma continuidade que está dividida e classi-

    ficada segundo acontecimentos distintos. Benveniste especifica que

    “os acontecimentos não são o tempo, eles estão no tempo. Tudo está

    no tempo, exceto o próprio tempo” (PLG II, p. 71 – grifo no original).

    O mesmo autor também enfatiza que todas as sociedades humanas

    organizaram sua divisão do tempo crônico, pois ele é o fundamento

    da vida nas sociedades. É necessário que haja um momento axial,

    um marco zero da contagem – que é a condição estativa conforme

    Bruna Sommer Farias e Paula Ávila Nunes

  • 8/18/2019 Saussure e Benveniste 619 1756 1 PB

    18/24

    170 Nonada • 20 • 2013

    denominada por Benveniste –, e uma condição diretiva, que permite

    enunciar a partir do ponto de referência inicial, usando os termos

    antes e depois, por exemplo. Quanto à terceira condição, chamadamensurativa, constitui-se em face das denominações como, dia, mês,

    e ano, ou seja, mediante uma determinação baseada em fenômenos

    cósmicos.

    A importância da divisão do tempo crônico e da eleição de tais

    pontos de referência tem a ver com a necessidade de nos situarmos,

    enquanto homens, em relação aos acontecimentos. Segundo o autor,

    “eles nos informam no sentido próprio onde estamos na vastidão dahistória, qual o nosso lugar em meio à sucessão infinita dos homens

    que viveram e das coisas que aconteceram” (PLG II, p. 73 – grifos no

    original). Tais pontos são determinados por um caráter de fixidez e

    de permanência, uma vez que são baseados em algo que aconteceu

    no mundo, e não por uma decisão que pode ser mudada. Assim,

    Benveniste afirma que “a organização social do tempo crônico é, na

    realidade, intemporal” (op.cit., p. 73 – grifos no original), e isso se

    verifica justamente pelo fato de o calendário, por exemplo, não acom-

    panhar o tempo, mas registrar unidades que são constantes. Enfim,

    Benveniste sintetiza:

    O tempo crônico fixado num calendário é estra-nho ao tempo vivido e não pode coincidir comele; pelo próprio fato de ser objetivo, propõe me-didas e divisões uniformes em que se alojam os

    acontecimentos, mas estes não coincidem comas categorias próprias da experiência humanano tempo. (PLG II, p. 74).

    Até aqui vimos que são várias as considerações feitas pelo linguista

    sobre o tempo fora da linguagem, mas e o tempo em relação à língua?

    Para Benveniste, “é pela língua que se manifesta a experiência humana

    do tempo, e o tempo linguístico manifesta-se irredutível igualmente ao

    tempo crônico e ao tempo físico” (ibidem). Logo, o chamado tempo

    O tempo do homem é o tempo da língua, o tempo da língua é o tempo do homem: reflexõessobre a noção de temporalidade em Saussure e em Benveniste

  • 8/18/2019 Saussure e Benveniste 619 1756 1 PB

    19/24

    171Nonada • 20 • 2013

    linguístico, para o autor, está intrinsecamente ligado ao exercício da

    fala, de modo que o tempo se define e se organiza como função do

    discurso. Nesse caso, a referência axial e geradora do tempo é a própriainstância de discurso11, que funda o presente linguístico. Dele, nascem

    as oposições temporais da língua e sua organização, de modo que o

    presente, ou seja, o próprio tempo possa ser “reinventado a cada vez

    que um homem fala porque é, literalmente, um momento novo, ainda

    não vivido” (PLG II, p. 75).

    Desse modo, para o autor, a instância de discurso contém o tempo

    linguístico em potência, no mesmo sentido em que se faz necessáriaa sua consideração para o quadro figurativo da enunciação. Para Des-

    sons (op. cit.), a complexidade das divisões do tempo e sua relação

    com a língua enquanto sistema e com a enunciação está relacionada

    à questão de localização temporal, já que pode ser tomado como

    enunciação, que funda o presente, e como enunciado, considerado

    em momento determinado:

    O problema do tempo linguístico não é, assim,realmente um problema de “tempo”, mas umproblema de demarcação temporal. Trata-se dese organizar, a cada vez, a temporalidade dosjulgamentos em relação a uma marcação quepode ser, no sistema do discurso, o presente dafala, ou, no sistema da narração, um momentodado, precisado no enunciado (uma data, porexemplo)12 (DESSONS, op. cit., p. 124 – grifosno original).

    Assim, a noção de enunciação e sua realização no tempo estão

    relacionadas com a noção de acontecimento e, mais do que isso,

    com o acontecimento que se dá por meio (através) do ato individual

    de colocar em funcionamento a língua, de transformar a língua em

    discurso, mediante a apropriação de suas formas. Logo, a relação

    da enunciação com o tempo se mostra como necessária, conforme

    Benveniste explicita no excerto a seguir, do artigo O Aparelho Formalda Enunciação (1970):

    11  O termo instânciade discurso, segundoFlores et al. (2009, p.142), “quase sempre se

    faz acompanhar, nostextos de Benveniste,da palavra enunciaçãoe as duas noções sãodefinidas, muitas ve-zes, de maneira muitopróxima”. O verbete do

     Dicionário de Linguísticada Enunciação acrescen-ta algumas propriedadesessenciais ligadas a essetermo que remetem àtemporalidade, já que“ela se identifica ao tem-

    po presente implícito emque fala o locutor, isto é,ao presente do locutor, enão ao presente formalgramatical” (ibidem).Para um maior detalha-mento, verificar o termoinstância de discurso em Flores et al., 2009,p. 142.

    12 No original: “ Le problè-me du temps linguistiquen’est donc pas véritable-ment celui du « temps »,mais celui du repéragetemporel. Il s’agit chaquefois d’organiser la tem-

     poralité des procès parrapport à un repère qui

     peut être, dans le systèmedu discours, le présentde la parole, ou, dansle système du récit, un

    moment donné, précisédans l’énoncé (une date,

     par example)”.

    Bruna Sommer Farias e Paula Ávila Nunes

  • 8/18/2019 Saussure e Benveniste 619 1756 1 PB

    20/24

    172 Nonada • 20 • 2013

    Esta relação [da enunciação] com o tempo me-rece que aí nos detenhamos, que meditemossobre sua necessidade, e que interroguemossobre o que a fundamenta. Poder-se-ia supor

    que a temporalidade é um quadro inato dopensamento. Ela é produzida, na verdade, nae pela enunciação. Da enunciação procede ainstauração da categoria do presente, e da cate-goria do presente nasce a categoria do tempo.O presente é propriamente a origem do tempo.(PLG II, p. 85 – grifo no original)

    Além de tomar a origem do tempo situando-a no presente, a relação

    intersubjetiva também emana da inscrição da enunciação no presente

    daquele que enuncia, de modo que o tempo do discurso “funciona

    como um fator de intersubjetividade, o que de unipessoal ele deveria

    ter o torna onipessoal. A condição de intersubjetividade é que torna

    possível a comunicação linguística” (PLG II, p. 78). Assim, o eu só se

    define em relação a um tu, que se inscreve no tempo ao apropriar-se

    da língua e ao passar de locutor, – aquele que pode pôr a língua em

    funcionamento –, para sujeito, – aquele que se marca na língua. E o

    autor enfatiza: “O que em geral caracteriza a enunciação é a acentua-

    ção da relação discursiva com o parceiro, seja este real ou imaginado,

    individual ou coletivo” (PLG II, p. 87 – grifos no original).

    Ademais, Benveniste explicita os mecanismos que se fazem pre-

    sentes nessa relação: “a temporalidade que é minha quando ela

    organiza meu discurso, é aceita sem dificuldade como sua por meu

    interlocutor. Meu ‘hoje’ se converte em seu ‘hoje’, ainda que ele nãoo tenha instaurado em seu próprio discurso, e meu ‘ontem’ em seu

    ‘ontem’” (PLG II, p. 77).

    Para Dessons (op. cit.), a distinção feita por Benveniste entre o

    tempo na linguagem e o tempo fora da linguagem constitui uma teoria

    do tempo linguístico original, uma vez que ela se apresenta como fun-

    damento de uma teoria geral da temporalidade. Desse modo, o ponto

    de vista de Benveniste relaciona o tempo com a experiência humanana língua. Dessa experiência, nasce a história, conforme Dessons (op.

    O tempo do homem é o tempo da língua, o tempo da língua é o tempo do homem: reflexõessobre a noção de temporalidade em Saussure e em Benveniste

  • 8/18/2019 Saussure e Benveniste 619 1756 1 PB

    21/24

    173Nonada • 20 • 2013

    cit.) discute no excerto reproduzido a seguir:

    A propósito de uma antropologia da linguagem,

    o tempo linguístico aparece, assim, como o even-to único, no sentido de que ele leva o falante aoestatuto de sujeito, inscrevendo-o na história,uma história que só existe por essa instância13 (DESSONS, op. cit., p. 119).

    De acordo com o apresentado pelo autor no excerto supracitado, a

    consideração de uma possível antropologia da linguagem presente na

    teoria benvenistiana advém do acontecimento da língua que se dá no

    tempo, fazendo com que os falantes obtenham estatuto de sujeitos ese inscrevam na história. Dessons (op. cit.) enfatiza que a linguagem,

    conforme tratada por Benveniste, se localiza fora da história. Porém,

    é a partir da linguagem, com o homem concebido na e pela lingua-

    gem, que se faz possível pensar em uma noção de história: “sendo

    a historicidade, a linguagem transcende a história, da qual ela é, na

    verdade, a condição e o fundamento”14 (DESSONS, op. cit., p. 75).

    Benveniste afirma, em certa altura de sua reflexão sobre os marca-dores de subjetividade, que a enunciação promove certas classes de

    signos à existência; ao abrirmos nossos horizontes quanto ao alcance

    da perspectiva benvenistiana para além das ciências da linguagem, nos

    arriscamos a afirmar que a enunciação também promove o homem

    à existência. Seguindo tal direcionamento, Teixeira (2012) analisa a

    categoria dos pronomes de Benveniste e afirma que os estudos do

    autor não se confundem com a noção de enunciado nem “com a

    simples constatação da presença da subjetividade na linguagem”, mas

    constitui “um papel determinante nesse empreendimento em direção

    a uma ciência geral do homem” (TEIXEIRA, 2012, p. 80).

    Por fim, essa constituição do homem só se torna possível a partir

    da inscrição conjunta do homem na língua e no tempo, tempo que

    atravessa o homem e sua língua, dando suporte à sua enunciação e

    constituindo-o como sujeito na linguagem e, assim, em seu tempo

    vivido na língua e na história.

    13 No original: “Au regardd’une anthropologie dulangage, le temps dulangage apparaît donc

    comme le seul événe-ment, dans le sens oùil fait advenir des par-lants au statut de sujetsen les inscrivant dansl’histoire, une histoirequi n’existe que par cetteinstantiation même”.

    14  No original: “Étantl’historicité, le langagetranscende l’histoire,dont il est en réalité lacondition et le fonda-ment”.

    Bruna Sommer Farias e Paula Ávila Nunes

  • 8/18/2019 Saussure e Benveniste 619 1756 1 PB

    22/24

    174 Nonada • 20 • 2013

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Ao revisitarmos noções-chave da teoria saussuriana para pensar olugar do tempo na concepção de língua, que funda o campo da Lin-

    guística como hoje o conhecemos, encontramos um Saussure que se

    apresenta no texto do Curso e se complementa no texto dos Escritos,

    apesar da idiossincrasia da publicação das duas obras. A influência

    que o tempo exerce sobre o sistema toca todas as noções aqui expos-

    tas: mutabilidade  e imutabilidade, arbitrariedade e linearidade do

    significante, diacronia, sincronia e, enfim, sistema. O tempo dá vidaao sistema da língua em sua sincronia, que emana da massa falante.

    E o recorte macrotemporal da vida da língua nos mostra que ela tem

    uma história, de modo que sua marcha sobre o tempo construiu e

    constituiu os homens e suas sociedades até os dias de hoje.

     O ponto de vista criador de objeto, conforme afirmação do Curso,

    possibilita compreender a complexidade da língua como objeto da

    Linguística e do trabalho do linguista como aquele que se debruça

    sobre a infinidade de relações estabelecidas no sistema, das quais

    brota a significação. O tempo, aqui, se apresenta como um definidor

    de ponto de vista e de objeto, limite de olhar que desafia e que é tão

    importante ao fazer do linguista.

    A leitura que Benveniste faz do Curso e o modo com que se apropria

    das noções de Saussure, para construir seu ponto de vista acerca da

    língua, assim como o modo como essa é posta em ação pelos falantes,

    demonstra a profundidade com que ele toma a tarefa do linguista apre-

    sentada pelo mestre. Seu ponto de vista marca o quanto Benveniste

    vai além ao expandir o estudo da língua para um estudo do discurso

    e da significância em um sentido amplo: o dos processos de significa-

    ção de outros sistemas semióticos que também constituem o homem

    como sujeito na linguagem e, além disso, na cultura. Desse modo, a

    relação do homem com a língua é, a todo momento, atravessada pelo

    O tempo do homem é o tempo da língua, o tempo da língua é o tempo do homem: reflexõessobre a noção de temporalidade em Saussure e em Benveniste

  • 8/18/2019 Saussure e Benveniste 619 1756 1 PB

    23/24

    175Nonada • 20 • 2013

    tempo, categoria que compõe o quadro figurativo da enunciação e

    que, assim, se estabelece como condição para a vida do homem na

    língua e na sociedade.

    REFERÊNCIAS

    BENVENISTE, Émile.  Problemas de Linguística Geral I . Campinas:Pontes Editores, 1966/2005.

    _____. Problemas de Linguística Geral II . Campinas: Pontes Editores,1974/2006.

    DESSONS, Gérard. Émile Benveniste: l’invention du discours. Paris:Éditions In Press, 2006.

    FLORES, Valdir do Nascimento. Notas para uma (re)leitura da teoriaenunciativa de Émile Benveniste. In: TEIXEIRA, M.; FLORES. V. N.(Orgs.). O sentido na linguagem: uma homenagem à Professora Leci Barbisan. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012.

    FLORES, Valdir; BARBISAN, Leci; FINATTO, Maria José; TEIXEIRA,Marlene (Orgs.). Dicionário de linguística da enunciação. São Paulo:Contexto, 2009.

    GADET, Françoise. Saussure: une science de la langue. Paris: PUF, 1987.

    NORMAND, Claudine. Saussure. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.

    _____.  Allegro ma non troppo: invitation à la linguistique. Paris:Ophrys, 2006a.

    _____. Saussure-Benveniste.  Revista Letras: Émile Benveniste  – in-terfaces Enunciação & Discursos. Santa Maria: UFSM, n.33, 2006b.

    NUNES, Paula Ávila. Émile Benveniste, leitor de Saussure. Cadernosdo IL. Porto Alegre, n.º 42, junho de 2011. p. 51-63.

    SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. São Paulo:

    Cultrix, 2006._____. Escritos de Linguística Geral. BOUQUET, Simon e ENGLER,Rudolf (Orgs. e Edits.) São Paulo: Cultrix, 2002.

    TEIXEIRA, Marlene. O estudo dos pronomes em Benveniste e o pro-jeto de uma ciência geral do homem. In: Revista Desenredo, v. 8, n.1. Passo Fundo: Editora da UPF, janeiro/junho, 2012.

    Bruna Sommer Farias e Paula Ávila Nunes

  • 8/18/2019 Saussure e Benveniste 619 1756 1 PB

    24/24

    BRUNA SOMMER FARIAS

    Mestranda em Estudos da Linguagem, na especialidade de Teorias doTexto e do Discurso. Professora de Língua Portuguesa para Estrangeiros

    no Programa de Português para Estrangeiros e no Programa de Apoioà Graduação (bolsista CAPES – REUNI), ambos da UFRGS. Desenvol-ve seus estudos sobre a linguística da enunciação benvenistiana e oensino de língua materna e adicional.

    E-mail: [email protected]

    PAULA ÁVILA NUNES

    Doutora em Estudos da Linguagem, na especialidade Teorias do Textoe do Discurso. Professora de Língua Portuguesa e Linguística da Uni-

    versidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Desenvolve seusestudos com ênfase nos aspectos discursivos da linguagem, tendocomo principais objetos o ensino de língua materna e a tradução.

    E-mail: [email protected]

    O tempo do homem é o tempo da língua, o tempo da língua é o tempo do homem: reflexõessobre a noção de temporalidade em Saussure e em Benveniste