Etica discursiva de Karl Otto Apel

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181 Meritum – Belo Horizonte – v. 6 – n. 1 – p. 181-207 – jan./jun. 2011 6 Da contribuição da ética discursiva de Karl Otto Apel à resolução dos conflitos fundiários no Estado de Mato Grosso do Sul na atualidade 1 Rogério Santos dos Prazeres * José Moacir de Aquino ** Heitor Romero Marques *** * Acadêmico do Curso de Licencitatura em Letras da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) na área de Ciências Humanas ligada à Pró-Reitoria de Ensino e Desenvolvimento. Aluno do Programa de Iniciação Científica (PIBIC/ UCDB). E-mail: [email protected]. ** Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bacharel em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Filosofia da UCDB (2001-2011) na área de Ciências Humanas ligada à Pró-Reitoria de Ensino e Desenvolvimento. Membro da Comissão Própria de Avaliação (CPA) da UCDB. Orientador da pesquisa. E-mail: [email protected] *** Bacharel em Ciências e Pedagogia com especialização em Filosofia e História da Educação pela Faculdade Unidas Católicas de Mato Grosso (FUCMT). Mestre em Educação (Formação de professores) pela UCDB). Doutor em Desarrollo Local y Planteamiento Territorial, pela Universidad Complutense de Madrid. Membro do Comitê de Ética em Pesquisa, da UCDB. Membro do Núcleo de Apoio Pedagógico (NAP) da UCDB. Professor no mestrado no Programa de Pós- Graduação em Desenvolvimento Local em Contexto de Territorialidade, ligado à Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação. Professor na graduação dos cursos de Licenciaturas e Direito. Coordenador do Projeto de Pesquisa interdisciplinar No contexto dos direitos humanos em Campo Grande e a intersubjetividade em termos da ética e da alteridade: um estudo jurídico-filosófico e educacional (DHIEA) do Programa de Iniciação Científica da Universidade Católica Dom Bosco-PIBIC/ UCDB)-2009-2011. E-mail: [email protected]. 1 Artigo resultante de estudos realizados no projeto de pesquisa na Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) denominado No contexto dos direitos humanos em Campo Grande e a intersubjetividade em termos da ética e da alteridade: um estudo jurídico-filosófico e educacional. Parte do conteúdo desta pesquisa foi apresentada em uma comunicação oral no 3º Coloquio Interamericano Educação y Derechos Humanos: tayectorias/ fortalezas/ propuestas, que ocorreu nos dias 9 e 10 de março, na Universidad Nacional de Quilmes, em Buenos Aires, Argentina.

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Da contribuição da ética discursiva de Karl Otto Apel à resolução dos conflitos fundiários no Estado de Mato Grosso do Sul na atualidade

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    Da contribuio da tica discursiva de Karl Otto Apel resoluo dos conflitos fundirios no Estado de Mato Grosso do

    Sul na atualidade1

    Rogrio Santos dos Prazeres* Jos Moacir de Aquino**

    Heitor Romero Marques***

    * Acadmico do Curso de Licencitatura em Letras da Universidade Catlica Dom Bosco (UCDB) na rea de Cincias Humanas ligada Pr-Reitoria de Ensino e Desenvolvimento. Aluno do Programa de Iniciao Cientfica (PIBIC/ UCDB). E-mail: [email protected].

    ** Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bacharel em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Filosofia da UCDB (2001-2011) na rea de Cincias Humanas ligada Pr-Reitoria de Ensino e Desenvolvimento. Membro da Comisso Prpria de Avaliao (CPA) da UCDB. Orientador da pesquisa. E-mail: [email protected]

    *** Bacharel em Cincias e Pedagogia com especializao em Filosofia e Histria da Educao pela Faculdade Unidas Catlicas de Mato Grosso (FUCMT). Mestre em Educao (Formao de professores) pela UCDB). Doutor em Desarrollo Local y Planteamiento Territorial, pela Universidad Complutense de Madrid. Membro do Comit de tica em Pesquisa, da UCDB. Membro do Ncleo de Apoio Pedaggico (NAP) da UCDB. Professor no mestrado no Programa de Ps-Graduao em Desenvolvimento Local em Contexto de Territorialidade, ligado Pr-Reitoria de Pesquisa e Ps-Graduao. Professor na graduao dos cursos de Licenciaturas e Direito. Coordenador do Projeto de Pesquisa interdisciplinar No contexto dos direitos humanos em Campo Grande e a intersubjetividade em termos da tica e da alteridade: um estudo jurdico-filosfico e educacional (DHIEA) do Programa de Iniciao Cientfica da Universidade Catlica Dom Bosco-PIBIC/ UCDB)-2009-2011. E-mail: [email protected].

    1 Artigo resultante de estudos realizados no projeto de pesquisa na Universidade Catlica Dom Bosco (UCDB) denominado No contexto dos direitos humanos em Campo Grande e a intersubjetividade em termos da tica e da alteridade: um estudo jurdico-filosfico e educacional. Parte do contedo desta pesquisa foi apresentada em uma comunicao oral no 3 Coloquio Interamericano Educao y Derechos Humanos: tayectorias/ fortalezas/ propuestas, que ocorreu nos dias 9 e 10 de maro, na Universidad Nacional de Quilmes, em Buenos Aires, Argentina.

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    resumo: Neste trabalho, explicita-se a tica do discurso de Karl Otto Apel como contribuio terica e prtica, pautada pela universalizao dos interesses relativos resoluo dos conflitos fundirios no Mato Grosso dos Sul. Como tal, trata-se de demonstrar que a fundamentao racional j pressuposta em todo discurso argumentativo, por via da qual todos os afetados devem ser considerados seriamente, substancial para instaurar a justia e a ordem social. A arquitetura dessa tica em duas partes, A e B, permite constatar que, por um lado, a soluo dos conflitos est minada pelas condies histricas marcadas por interesses estratgicos de manuteno de poder e, por outro, que se deve postular sob a mediao do dilogo, contrafacticamente, o acordo mais razovel possvel entre os envolvidos nos conflitos.

    Palavras-chave: Linguagem. tica do discurso. Intersub-jetividade. Conflito fundirio.

    1 INTRODUO

    Contemporaneamente, a tarefa de fundamentao da prxis tica se defronta com a tendncia de desconstruo e relativizao dos modelos e formas de vida. A crise de fundamentos parece rumar em favor do apregoamento do niilismo tico. Em face disso, o bem tico, em meio ao jogo desmedido travado pelas mltiplas formas de vida e expresses axiolgicas, afigura-se carente de critrios e prticas consistentes de justia. Da que a tematizao da fundamentao da tica, possivelmente para subsidiar sua aplicao racional ao mundo da vida, impe-se de maneira imperativa e consequente. evidente a demanda oriunda dos indivduos e das sociedades por contribuies procedentes da reflexo filosfico-tica e das instncias normativas que resultem em maior comprometimento com a fundamentao dos valores, de maneira a nortear o pensar e o agir humanos com sentido e validade.

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    Neste texto, trata-se, de forma preambular, da problemtica concernente exigncia de uma concepo de tica que possibilite mediar o conflito fundirio2, na atualidade, entre indgenas e setores de explorao econmica do agronegcio no Mato Grosso do Sul. Em especfico, o ncleo desse conflito concerne inoperncia estatal para demarcar as terras indgenas do povo Kaiow e Guarani3, o que configura evidente violao aos direitos humanos. No momento atual, a sociedade brasileira aguarda a resposta jurdica para a resoluo desse conflito. Os arts. 231 e 232 da Constituio Federal Brasileira de 1988 preconizam o reconhecimento aos povos indgenas de sua organizao social, costumes, lnguas, crenas e tradies, bem como a competncia da Unio Federal para demarcar suas terras, com o intuito de proteger e fazer respeitar todos os seus bens4. Mas, por conta dos interesses polticos e econmicos, vige o impasse por mais de duas dcadas. Apesar do recente julgamento pelo Supremo Tribunal Federal no caso da demarcao da terra indgena Raposa Serra do Sol5, at

    2 Cf. SILVA FILHO, Gercino Jos. Preveno e mediao de conflitos luz da questo agrria e dos direitos humanos no Brasil. Revista de Direitos Humanos, p. 39.

    3 Embora Kaiow e Guarani sejam um s povo, constata-se haver vrias maneiras de denomin-lo, de modo que eles tambm se identifiquem. Como exemplo dessa diversidade, : Kaiow Guarani; Kaiow Guarani; Kaiow/Guarani; e, Guarani Kaiow. Entretanto a preferncia pela denominao Kaiow e Guarani se d neste trabalho por motivos bibliogrficos, em virtude de assim exatamente constar na obra de ALMEIDA, Rosemeire A. de. A questo agrria em Mato Grosso do Sul: uma viso multidisciplinar. Campo Grande: UFMS, 2008, que foi usado como referencia para as pesquisas.

    4 Cf. BRASIL. Constituio (1988). Constituio Federal de 1988, art. 231-232. Disponvel em: . Acesso em: 2 nov. 2010.

    5 YAMADA, E. M.; VILLARES, L. F. O julgamento da terra indgena Raposa Serra do Sol: todo dia era dia de ndio. Revista Direito GV, p. 143-157. Disponvel em: . Acesso em: 6 abr. 2011.

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    ento no existem mediaes suficientes para a soluo do conflito fundirio no Brasil, em especfico no Mato Grosso do Sul.

    Posto isso, segue-se uma questo fundamental: necessrio considerar a tica, como cincia dos princpios e valores, para contribuir nessa discusso e, tanto quanto possvel, delinear postulados basilares em vista de alguma soluo consensual razovel. Contudo, qual concepo tica? possvel uma tica que possibilite o consenso entre as partes, que considere as particularidades culturais, econmicas e geogrficas desse conflito fundirio? A hiptese, neste trabalho, de que a tica de Karl Otto Apel pode contribuir nessa empreitada. Nesse horizonte, explicita-se o conflito fundirio em Mato Grosso do Sul considerando a lgica produtiva vigente no Estado e a etnia Kaiow e Guarani; em seguida, a estrutura da tica de Karl Otto Apel; e, por fim, apresenta-se a possvel aplicabilidade dessa tica em vista da resoluo do conflito em questo.

    2 CoNFLITo FUNDIrIo EM MATo GroSSo Do SUL E VIOLAO DOS DIREITOS HUMANOS

    O Estado de Mato Grosso do Sul foi criado em 1977, com a diviso do Estado do Mato Grosso6, e alcanou uma dimenso de produo rural expressiva no cenrio agropecurio nacional. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), sua rea de 357.145,836 km, com uma populao estimada, em 2010, de 2.449.341 habitantes7.

    6 PORTAL MS: o guia on line de Campo Grande e Regio. Histria de Mato Grosso do Sul: a histria do surgimento do nosso estado. Campo Grande-MS. Disponvel em: . Acesso em: 21 jun. 2010.

    7 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATSTICA (IBGE). Estados@ Mato Grosso do Sul. Disponvel em: . Acesso em: 7 abr. 2011.

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    O Estado de Mato Grosso do Sul se destaca, no ramo agro-pecuarista, como regio produtora de soja e milho responsvel por quase 20% da safra nacional de soja, que de aproximadamente 60 milhes de toneladas, e 8% das quase 60 mil toneladas de milho produzidas no Brasil8. A respeito da estrutura fundiria, o senso agropecurio de Mato Grosso do Sul, em 1995, revelou que o Estado se caracterizava pela alta concentrao de terra9, voltada para o desenvolvimento na produo agrcola. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), em 2007, constatou um total de 2.972.221 toneladas de milho, em gros, produzidos10. Em 2008, o efetivo bovino era de 22.365.219 cabeas. Tambm em 2008, a colheita de soja, apresentou o rendimento mdio de 3.050 kg/ha, que suplantou em 4,2% o antigo recorde de 2.926 kg/ha que vinha se mantendo desde 200111. Alm do milho e da soja, a cana-de-acar

    8 RODRIGUES, Nadir. Pesquisadores estudam o aumento da produo de soja e cana de acar no pas. Disponvel em: . Acesso em: 20 jun. 2010.

    9 Segundo Almeida, na dcada de 1970 que ocorreu o impulso colonizador no Estado de Mato Grosso do Sul, especificamente quando chegaram fazendeiros e granjeiros provenientes das regies Sul e Sudeste do Brasil, principalmente dos Estados do Rio Grande do Sul e Paran, a fim de trabalhar com maquinrios em roas de cereais. O Estado de Mato Grosso do Sul tambm se mostrou com a vantagem da vocao agrria no sucesso da criao bovina, que se faz acompanhar da concentrao fundiria, da modernizao da tcnica e da intensificao de mtodos capitalistas no campo, o que caracteriza um grande xodo rural no perodo ocorrido entre 1970 a 2005. (ALMEIDA, Rosemeire A. de. A questo agrria em Mato Grosso do Sul: uma viso multidisciplinar, p. 117-119)

    10 EMPRESA BRASILEIRA DE PESQUISA AGROPECURIA (Embrapa). A soja no Brasil. Disponvel em: . Acesso em: 7 abr. 2010.

    11 EMPRESA BRASILEIRA DE PESQUISA AGROPECURIA (Embrapa). Sala de imprensa: levantamento sistemtico da produo agrcola. Disponvel em: . Acesso em: 21 jun. 2010.

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    tem sido avaliada como satisfatria por parte da indstria canavieira no Estado, a qual tem investido e instalado usinas que aumentam a produo no setor da economia nacional. Subsistem no Estado, ainda, outros investimentos em cultivos fazendrios, como cevada, feijo, trigo, aveia, mandioca, negcios ou ramos de carnes para prover aougues, alm de outros rebanhos, predominantemente caprinos e ovinos, que esto tambm em franca extenso12. Em suma, o Estado do Mato Grosso do Sul contribui significativamente nos resultados do agronegcio nacional, que aceleram a marcha do desenvolvimento econmico do Brasil e fomentam as expectativas e investimentos dos produtores e empresrios do abastecimento mercantil interno e internacional.

    Essa ascenso agropecuria e econmica, realizada na extenso das atividades dos empresrios rurais, choca-se historicamente com as tradies indgenas no tocante posse da terra no Mato Grosso do Sul, provocando, assim, conflitos fundirios. Esses conflitos so caracterizados pela intensa discusso e violncia13 em vista

    12 Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), a revoluo socioeconmica e tecnolgica protagonizada pela soja no Brasil Moderno pode ser comparada ao fenmeno ocorrido com a cana de acar, no Brasil Colnia e com o caf, no Brasil Imprio/Repblica, que, em pocas diferentes, comandou o comrcio exterior do Pas. (EMPRESA BRASILEIRA DE PESQUISA AGROPECURIA. A soja no Brasil. Disponvel em: . Acesso em: 7 abr. 2010)

    13 Em todo o territrio brasileiro, a quantidade de denncias alarmante, embora sobressaiam o silncio e o medo por parte dos ofendidos e a no configurao de denncias aos rgos competentes. A carncia de provas e a persistncia nas investigaes, quando estas so devidamente efetivadas, tornam-se invalidadas pela contra-argumentao da outra parte. Em muitos dos casos, diante dos esforos para tratar devidamente a violncia e a opresso, os rgos de segurana so obrigados a arquivar o processo por inviabilidade de procedimento policial. Historicamente, segundo o Relatrio de 2009, o nmero de ameaas de morte cresceu. Foram registrados 8 casos tanto em 2006 quanto em 2007, 12 casos em 2008 e 13 casos em 2009. As ameaas ocorreram no Amazonas, Maranho, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Par, Paraba, Roraima e Santa Catarina.

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    de garantias de posse da terra, isto , em torno do usufruto pleno da propriedade e seus benefcios. At ento, as discusses e violncias tm sido tratadas pelo prisma da juridicidade, focando o vis da legalidade da posse da terra, o que consubstancia a grande quantidade de aes judiciais e reivindicaes no Estado, tanto por parte dos empresrios rurais quanto pelas etnias indgenas, tal como a do povo Kaiow e Guarani.

    O caso do povo Kaiow e Guarani emblemtico para se entender a fenomenologia desse conflito fundirio. Esse povo foi descoberto pelo mundo colonial entre 1750 e 1760, e considerado descendente do povo Itatim, cujo territrio se estendia desde o rio Apa at o rio Miranda, a leste, at a serra de Amamba, a oeste, at o rio Paraguai. Em 1767, o governo portugus criou o Forte Iguatemi, denominado na poca por Povoao e Praa de Armas Nossa Senhora dos Prazeres e So Francisco de Paula do Iguatemi, que em 1771 foi elevado categoria de vila e depois transformado no mais antigo povoado do Mato Grosso. Esse Forte situava-se em territrio onde est atualmente a aldeia Kaiow Yvykuarusu/Paraguassu, s margens do rio Iguatemi, no municpio de Paranhos. Em 1822, constituiu-se a provncia de Mato Grosso. Foi na dcada de 1830 que se iniciou, de fato, o povoamento por no ndios das

    Destes, 12 tinham uma ligao direta com a luta pela terra. Especificamente no Mato Grosso do Sul, o caso de Rolindo Vera, do Povo Kaiow Guarani, na terra indgena Piraju, no municpio de Paranhos, figura o status dessa violncia percebida contra esses indgenas: Quando a comunidade Ypoi retomou o seu Tekoha, ela foi atacada violentamente por um grupo de 60 homens armados. Rolindo Vera estava na retomada, junto com seu primo Genivaldo Vera, ambos professores. Foram arrastados por alguns agressores para dentro da mata e no voltaram mais comunidade. [CONSELHO INDGENA MISSIONRIO (CIMI). Violncia contra os povos indgenas no Brasil: relatrio 2009. Disponvel em: . Acesso em: 7 abr. 2011]. O corpo de Genivaldo foi encontrado, mas o de Rolindo, ainda no. O caso permanece indefinido.

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    terras, que constituem, hoje, o Estado de Mato Grosso do Sul, e isso se deu pelos campos de Miranda, serra de Maracaju, entrando pelo rio Paranaba, rios Sucuriji e Tequarussu14. Atualmente, o povo Kaiow e Guarani se concentra nos seguintes municpios: Dourados, Caarap, Amamba, Paranhos, Tacuru, Laguna Caarap, Japor, Bela Vista, Douradina, Juti, Aral Moreira, Antnio Joo e Eldorado.

    O povo Kaiow e Guarani tem uma relao existencial e dependncia cultural de origem religiosa com a terra, e tradicio-nalmente denominam os lugares que ocupam de tekoha:

    Designando o lugar fsico (terra, mato, campo, guas, animais, plantas, remdios, etc) onde se realiza o teko, isto , o modo de ser, o estado de vida guarani. O tekoha engloba a efetivao de rela-es sociais de grupos macro familiares que vivem e se relacionam em um espao fsico determinado. Idealmente, esse espao inclui, necessariamente, o kaaguy (mato), que elemento apreciado e de grande importncia na vida desses indgenas na medida em que fonte de coleta de alimentos, matria-prima para construo de casas, produo de utenslios, lenha para fogo, remdios etc. O kaaguy tambm importante elemento na construo simblica de sua cosmologia, sendo palco de narraes mitolgicas e morada de inmeros espritos. Indispensveis no espao guarani so as reas para plantio da roa familiar ou coletiva e a construo de suas habitaes e lugares para atividades religiosas15.

    14 Somente cerca de 250-260 anos passados depois do registro de Pero Vaz de Caminha foi que, segundo Almeida, fez-se contato com os povos Kaiow e Guarani, portanto aproximadamente o mesmo perodo tempo, tambm aproximado, de contato com esse povo vivido at o momento. As provas documentais e a historiografia do Brasil denotam os resultados desse encontro. Em 21 de abril do corrente ano completam 5011 anos desde a chegada dos portugueses ao Brasil. (Cf. ALMEIDA, Rosemeire A. de. A questo agrria em Mato Grosso do Sul: uma viso multidisciplinar, p. 45-49)

    15 NUNES, Valder Antonio Gomes de Albuquerque. Tecoha: espao vital da cultura indgena. Disponvel em: . Acesso em: 28 jun. 2010.

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    Nota-se que os lugares que ocupam so referenciais da organizao social e poltica: O territrio indgena o suporte material para as relaes sociais, a cultura, as tradies e as crenas de cada comunidade indgena16. Considerando isso, o povo Kaiow e Guarani postula a definio jurdica na demarcao de suas terras, com a qual garantiriam as condies de relaes interativas necessrias entre eles17 e a terra. A tenso entre o povo Kaiow e Guarani com os produtores rurais em torno da demarcao das terras aponta, tambm, para o problema da proteo e da manuteno do meio ambiente. Na falta de interlocuo entre os interessados, que impossibilita, em muitos casos, a definio das questes, com prejuzo do meio ambiente18, urbano e rural, de um lado, os produtores rurais defendem a concentrao dos recursos da produo fundiria e a predominncia da grande propriedade agropecuria, o que gera desigualdades sociais e interfere na relao do homem com o meio ambiente, com a fauna e a flora, bem como com os seres humanos.

    Segundo dados da Empresa Brasileira de Pesquisa Agrope-curia (Embrapa), o Pantanal tem enfrentado o dilema entre a proteo ambiental e a necessidade de aumentar a eficincia de produo de alimentos num pas com problemas de fome e subnutrio19. De outro, o povo Kaiow e Guarani constata que

    16 VILARES, Luis Fernando. Direitos e povos indgenas, p. 97.17 A populao indgena no Mato Grosso do Sul totaliza 32.519 indivduos. Nessa

    composio, segundo a Fundao Nacional do ndio (Funai), os grupos indgenas no Mato Grosso do Sul somam-se nove etnias ao todo: Atikum, Guarany (Kaiw e Nhandwa), Guat, Kadiwu, Kamba, Kinikinawa, Ofai, Terena e Xinquitinano. [FUNDAO NACIONAL DO NDIO (FUNAI). Grupos indgenas: Mato Grosso do Sul. Disponvel em: . Acesso em: 27 jun. 2009]

    18 VILARES, Luis Fernando. Direitos e povos indgenas, p. 194.19 NUNES, Valder Antonio Gomes de Albuquerque. Tecoha: espao vital da cultura

    indgena. Disponvel em: . Acesso em: 28 jun. 2010.

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    sua produo est paulatinamente se reduzindo e, ademais, sua tecnologia tradicional no funciona mais, obsoleta20. Desse modo, torna-se cada vez mais patente a consequente prevalncia da carncia dialgica entre essas formas culturais, onde se verifica os limites evidentes de espao entre reservas indgenas e terreno agrcola21. Decerto, a exigncia mesma da preservao e sustentabilidade do ecossistema necessrio, tanto para as fazendas quanto para o modo de vida indgena, exige ultrapassar os limites presentes nas indefinies de mbito legal22.

    Enfim, no processo do avano do potente agronegcio no Mato Grosso do Sul, a continuidade da organizao social, costumes, lnguas, crenas, tradies e direitos originrios sobre as terras dos povos indgenas est em cheque, alm das implicaes atinentes conservao dos recursos naturais. Na base desse conflito est a indefinio territorial. Hoje, vinte e dois anos aps a promulgao da Constituio Federal de 1988, dezessete aps

    20 A compreenso das consequncias da insuficincia de recurso dos Kaiow e Guarani diante da crise histrica de sua prpria decadncia figura em documentos da Fundao Nacional da Sade (FUNASA) em 2005, que remete aos problemas persistentes de desnutrio que foram noticiados no mesmo ano, cuja populao, na poca, era de 37.317 pessoas, desse total, concentrados estavam 19.638 em terras demarcadas pelo Servio de Proteo ao ndio (SPI-Dourados) em Amamba e Caarap, numa rea de 9.498 hectares de terra. Desse ponto, no h como explicar, segundo Almeida, o fato de que durante sculos, povos que produziram alimentos no s suficientes, mas abundantes, como atestam os cronistas do sculo XVI e a documentao de perodos mais recentes, hoje se encontrem na condio de crescentes de dependncia das cestas bsicas e outros programas assistenciais implementados pelo Governo. (Cf. ALMEIDA, Rosemeire A. de. A questo agrria em Mato Grosso do Sul: uma viso multidisciplinar, p. 46-47)

    21 VILARES, Luis Fernando. Direitos e povos indgenas, p. 190. 22 Cf. REALE, Miguel. Memrias, p. 297 apud MIGUEL NETO, Suliman. Questo

    agrria: doutrina, legislao e jurisprudncia p. 244: A civilizao tem isto de terrvel: o poder indiscriminado do homem abafando os valores da natureza. Se antes recorramos a esta para dar uma base estvel ao Direito (e, no fundo, essa a razo do Direito Natural), assistimos, hoje, a uma trgica inverso, sendo o homem obrigado a recorrer ao Direito para salvar a natureza que morre.

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    o prazo final de cinco anos para a concluso das demarcaes, o Estado de Mato Grosso do Sul permanece no impasse em face da ineficcia e irresponsabilidade do Governo Federal em lidar respeitosamente com o modo de viver das populaes indgenas e, ao mesmo tempo, tambm pela justa considerao dos interesses dos produtores rurais e do setor empresarial comprometido com o desenvolvimento do agronegcio.

    Tal como se apresenta, esse conflito configura veemente violao aos direitos humanos, pois atentam diretamente contra a dignidade do povo Kaiow e Guarani, contra suas necessidades vitais e elementares. Desse modo, observa-se a morosidade do cumprimento do preceito constitucional por quem tem o dever de proteger e fazer respeitar todos os bens indgenas23, bem como seus direitos e garantias fundamentais, aplicveis a qualquer cidado.

    Os direitos humanos so naturais e universais, pois no se referem a um membro de uma nao ou de um Estado, mas pessoa humana na sua universalidade. So naturais, porque so vinculados natureza humana e tambm porque existem antes e acima de qualquer lei, e no precisam estar legalmente explicitados para serem evocados24.

    A efetiva improbidade por parte do Estado implica inconteste falha, e isso notoriamente se percebe justamente pelo dever de

    23 A salvaguarda da organizao social indgena prevista no art. 231 da Constituio Federal e os direitos originrios sobre as terras que tradicionalmente ocupam devem ser considerados como direitos fundamentais. So fundamentais porque a sua finalidade dignificar o ndio como ele , respeitar sua humanidade, garantir a sua liberdade real e a sua igualdade de direitos frente ao restante da sociedade brasileira. (VILARES, Luis Fernando. Direitos e povos indgenas, p. 43)

    24 BITTAR, Eduardo C. B. Educao e metodologia para os direitos humanos: cultura democrtica, autonomia e ensino jurdico. In: SILVEIRA, Rosa Maria Godoy et al. Educao e direitos humanos: fundamentos terico-metodolgicos, p. 327.

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    verossmil zelo e respeito aos direitos j reconhecidos e procla- mados oficialmente em nossa Constituio e em todas as convenes e pactos internacionais dos quais o Brasil signatrio, e que no podem ser revogados25, alterados ou supressos, mas, sim, evocados e exercidos pelo Estado.

    3 ESTRUTURA DA TICA DO DISCURSO DE KArL oTTo APEL

    As grandes transformaes em curso no modo de viver indgena e a prtica desenvolvimentista do empresariado rural, sustentada pela poltica econmica de abastecimento e consumo26, demandam a necessidade de uma reflexo luz de exigncias ticas fundamentais para os conflitos fundirios em Mato Grosso do Sul.

    Sob esse pleito, a escolha da proposta da pragmtica trans-cendental de Karl Otto Apel, nascido em 1922, na cidade alem Dsseldorf, atualmente professor emrito de filosofia da Universidade

    25 BITTAR, Eduardo C. B. Educao e metodologia para os direitos humanos: cultura democrtica, autonomia e ensino jurdico. In: SILVEIRA, Rosa Maria Godoy et al. Educao e direitos humanos: fundamentos terico-metodolgicos, p. 327.

    26 A globalizao econmica opera a substituio da poltica pelo mercado transnacional, que passa a atuar como instncia de regulao social. Essa atuao exerce impacto desagregador sobre as estruturas poltico-institucionais e os princpios da soberania e territorialidade, bem como mitiga os valores atinentes aos direitos humanos e a democracia. Seus valores bsicos liberdades pblicas, igualdade substantiva e afirmao de interesses ps-materiais colidem frontalmente com os imperativos categricos da transnacionalizao dos mercados, dos quais se destacam a eficcia, a produtividade e a competitividade. O clculo econmico e a razo produtiva, em outras palavras, revelam-se potencialmente incompatveis com os princpios bsicos de convivncia e sociabilidade no mbito de formas organizacionais e institucionais dotadas de um mnimo de legitimidade jurdica e equilbrio social. (FARIA, Jos E. C de Oliveira. Direitos humanos e globalizao econmica: notas para uma discusso. In: Estudos Avanados. Disponvel em: . Acesso em: 2 mar. 2011)

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    de Frankfurt, no que concerne delimitao terico-metodolgica, talvez seja o elemento inovador deste empreendimento reflexivo. Apel entra na discusso atual da tica filosfica contempornea e desenvolve seu pensamento no constante vaivm da argumentao, cujo itinerrio empreende sempre novas tentativas para justificar ou refutar objees oriundas, destacadamente, do confronto com os adversrios do universalismo tico e do consenso, tais como Michel Foucaut, Jean-Francois Lyortard, Richard Rorty, Odo Marquard e Hermann Lbbe. Trata-se de um interlocutor srio que dialoga com as mais relevantes propostas de nosso tempo: a hermenutica, a semitica, a pragmtica e, especificamente, com as ideias de Kant, Heidegger, Wittgenstein, Peirce, Habermas, com os quais compartilha explicitamente grande parte das propostas. Em verdade, Apel mais uma aposta, a fim de suscitar os possveis ganhos decorrentes de seu intento, na esteira do paradigma da linguagem e da discusso sobre a intersubjetividade, visando aplicar sistematicamente a fundamentao tico-filosfica no mbito dos direitos humanos.

    Aqui, a explicitao da arquitetura da tica apeleana mais genrica, primando pela exposio da estrutura geral de sua proposta tica. Antes, convm considerar que Apel intenta uma resposta crise de fundamentao ps-moderna. No obstante, o intento de Apel no conforma um sistema. Antes, concerne a uma proposta filosfica prpria organizada arquitetonicamente27,

    27 Segundo Adela Cortina, Apel empreende uma elaborao de uma proposta filosfica que se enquadra no marco de um humanismo quase-renascentista; ele une linguagem, histria e filosofia, desde um ponto de vista cada vez mais filosfico, um filosfico enraizado em tradies continentais. Ele encarna algo como a ideia platnica filosfica, a saber, o homem convencido, profissional e vitalmente, de que a reflexo filosfica possui uma especificidade e que preciso mant-la a qualquer custo, visto que dela resulta uma contribuio indispensvel para o saber e o agir humanos. Nos termos de Cortina, esa fidelidad insobornable a la especificidad de lo filosfico, en lo que se refiere al mtodo, los criterios

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    cujo alvo uma resposta especificamente filosfica para os problemas modernos, que vem se compondo de uma antropologia do conhecimento, uma hermenutica e pragmtica transcendentais com base em uma semitica transcendental como prima philosophia, uma teoria dos tipos de racionalidade, uma teoria consensual da verdade e uma tica discursiva. Nesse horizonte, Apel defende a necessidade de uma fundamentao filosfica ltima como salvaguarda do totalitarismo e dogmatismo irracional. Para tanto, ele discute as possveis implicaes ou contribuies decorrentes da transformao da filosofia transcendental clssica (da conscincia) em uma filosofia transcendental da linguagem reconhecida pelo carter dialgico e validade intersubjetiva do discurso argumentativo em vista da resoluo dos conflitos que afetam a humanidade.

    A tica do discurso , substancialmente, constituda de duas partes interativas: A e B28. A parte A, a priori, comunidade ideal

    de la filosofa, es lo que le lleva a parecer poco flexible ante las conveniencias del momento, poco prudente y diplomtico en tiempos de frivolidad y relativismo, en los que suena excesivamente rotunda la pretensin de alcanzar una fundamentacin ltima (cf. CORTINA, A. Introduo: Karl-Otto Apel: verdad e responsabilidad. In: APEL, Karl-Otto. Teora de la verdad y tica del discurso, p. 9-10). Sobre a concepo pragmtica transcendental da verdade em Apel, cf. APEL, Karl-Otto. Falibilismo: teora consensual da verdade e fundamentao ltima. (1986). In: APEL, Karl-Otto. Teora de la verdad y tica del discurso, p. 35-145.

    28 Para Apel, desde o ponto de partida, a tica do discurso deriva da transformao pragmtico-transcendental dos pressupostos metafsicos da tica kantiana e, em especfico, divide-se arquitetonicamente em duas partes: A, de fundamentao abstrata, e B, de fundamentao referenciada na histria, que, condicionada parte A, retorna de novo ao plano de fundamentao pragmtico-transcendental do princpio de fundamentao das normas e das situaes nos discursos prticos, exigveis pelos princpios D e U. tica do discurso necessrio que se produzam discursos reais (suscetveis de fundamentao ltima) pelos afetados, ou pelos seus representantes, para garantir o mximo de adequao aberta aos saberes dos especialistas considerveis nos conflitos, no que se diz respeito s conseqncias e subconsequncias previsveis vinculadas falibilidade. Esses princpios tm que fundamentar a si mesmos como princpios procedimentais discursivos. (Cf. APEL, Karl-Otto. Teora de la verdad y tica del discurso, p. 160)

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    de comunicao, e a parte B, comunidade real de comunicao, que se configura com base na perspectiva histrica da comunidade real. A parte A se ocupa da fundamentao racional da correo das normas, a parte B se preocupa em desenhar o quadro racional de princpios permitindo aplicar na vida cotidiana o princpio descoberto na parte A29. A parte A traz, em seu bojo, pressupostos procedimentais; a finalidade trazer tona a reflexo moral-normativa, consequente com a fundamental ideia de consenso na comunidade ideal de comunicao, com a qual se deve estabelecer, correspondentemente, quatro pressupostos argumentativos como condies de possibilidade:

    a) primeira, a pretenso de compartilhar um significado intersubjetivamente vlido com os meus companheiros; b) segunda, a pretenso de verdade como pretenso e consentimento virtualmente universal; c) terceira, a pretenso de veracidade ou sinceridade de os meus atos de fala tomados como expresses

    das minhas intenes; d) e quarta, a pretenso de correo

    moralmente relevante dos meus atos de fala tomados como aes

    comunicativas no sentido mais amplo ao dirigir-se a possveis interlocutores30.

    Reconhecida a moralidade que est vinculada no discurso, factvel o comprometimento universal pelas resolues tomadas pelo consenso31. Esse consenso verificvel na parte B da tica proposta por Apel: trata-se do exame atento do contexto e das condies de possibilidade para a resoluo do conflito abarcada em uma compreenso hermenutica dos fatos:

    29 CORTINA, Adela; NAVARRO, E. M. tica, p. 152.30 VILELA, M. Dicionrio de pensamento contemporneo, p. 283.31 SILVA, A W. Canabrava. Fundamentos e estrutura da tica do discurso em Karl

    Otto Apel, f. 75.

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    O princpio da autonomia da vontade pressupe o imperativo moral de abrir-se ao dilogo como o nico modo de resolver racionalmente os conflitos nas relaes inter-humanas e de fundamentar normas. Ele reformulado como princpio dialgico normativo que atua como norma procedimental de toda argumentao terica ou prtica que supere o solipsismo metdico32.

    A tica do discurso comporta a considerao de dois princpios procedimentais discursivos: D e U. O princpio D corresponde compreenso de validade universal na discusso para todos os envolvidos nos discursos e afetados pelas argumentaes, livres de qualquer coao, em que se pressupe a aceitao sria de compromissos. O princpio U diz respeito validade e aceitao universal de todas as consequncias das proposies assumidas por todos os afetados, estando estes comprometidos em respeitar as regras lgicas, dizer a verdade, dar ateno s objees que nos sejam feitas e fornecer razes para as afirmaes33. Nesse sentido, todos os indivduos possuem o mesmo direito de expor suas razes na busca da justia, exclusivamente como vontade constante e perptua de dar a cada um o que seu34, afigurada no propsito instaurador do bem comum, como uma prtica construda no dilogo, em vista da ordem social:

    Pela primeira vez na histria do homem, possvel assumir a responsabilidade solidria pelas conseqncias de atividades coletivas dos homens em escala mundial como, por exemplo, a aplicao industrial da cincia e tecnologia e organizar tal responsabilidade como prxis coletiva. O indivduo, como o

    32 HERRERO F Javier. Correntes fundamentais da tica contempornea, p. 171-172.

    33 VELASCO, Marina. tica do discurso: Apel ou Habermas?, p. 18.34 ABBAGNANO, N. Dicionrio de filosofia, p. 594.

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    destinatrio de uma moralidade convencional, no pode assumir esta tarefa sozinho, por mais co-responsvel que se sinta35.

    Na tica do discurso, a boa vontade dos indivduos se constitui como elemento principal do agir moral dos sujeitos sociais. Trata-se de uma concepo de liberdade que no se condiciona no cumprimento da lei, ou uma ao conforme a moralidade na ideia de que um indivduo obrigado a agir em vista do costume. A tica do discurso deontolgica36porque a liberdade, ou seja, a razo prtica que age e que doa finalidade a si e s coisas, se dirige ao conhecimento das coisas, enquanto princpio de ao determina o que deve acontecer37. a razo que faz com que o sujeito procure um fim respeitador para suas aes, empregando a ideia de ao moral correspondentemente com o entendimento de que os indivduos que compem a comunidade de comunicao, no exerccio das suas atividades e nos argumentos determinados em U, mediante a percepo de validade universal, para todos os outros indivduos no impregnados de senso somente no dever:

    Boa vontade, dever, respeito, lei: eis os conceitos que se encontram no conhecimento moral comum e que por sua

    35 APEL, Karl-Otto. La tica del discurso como tica de la responsabilidad: una transformacin posmetafsica de la tica de Kant, p.148.

    36 Para Adela Cortina, a resoluo racional de conflitos passa pelo planejamento de exigncias que sejam verificadas na demanda de atitudes e coerentes com os princpios embasadores dos acordos. No entanto, o objeto que se pretende realizar pode no estar acessvel por inadequao s obrigatoriedades de ordem da lei. Isso se apresenta no assentimento de serem propostas novas abstraes, na ocupao de evitar conflitos sobre a base do acordo, justificado pelas normas desfavorveis que caream de reformulao. A caracterstica deontolgica da tica do discurso se firma cognitiva, formal e universalista, uma vez que esses elementos esto entrelaados na conjuntura dos fenmenos do conflito, sem necessidade de coao, porm, imbudos de solidariedade. (Cf. CORTINA, Adela. Razn e comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 222-223)

    37 SALGADO, Joaquim C. A idia de justia em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade, p. 172.

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    prpria natureza, s podem ser atribudos razo pura prtica, emergindo analiticamente como conceito propriamente filosfico na passagem do conhecimento moral comum ao conhecimento filosfico38.

    Nesse cenrio, Apel considera o solipsismo metdico39 (ou individualismo metdico, ou modo de pensar monolgico) como o principal adversrio ao propsito de resoluo tica dos conflitos. O solipsismo consiste na postura metodolgica que parte da convico de que o indivduo, quer no campo terico, quer no prtico, anterior constituio da sociedade e recorre a esta, em ltimo caso, para satisfazer suas necessidades, interesses e desejos por meio de aes instrumentais e estratgicas. O solipsismo metdico at reconhece que o homem possui uma dimenso social, todavia defende que os indivduos podem atuar com sentido e pensar com validade sem recorrer a qualquer comunidade, bem como prescindir de semelhante recurso no momento de decidir por seus interesses objetivos. O critrio ltimo da moralidade o bem subjetivo, e, por sua vez, um produto da conscincia individual; uma resposta solidria s ameaas ticas em escala planetria no prescritvel incondicionalmente, seno aconselhvel, uma vez que produz benefcios ao prprio indivduo. O mais grave do individualismo metdico so suas consequncias prticas, e isso legitima ideologicamente o egosmo social, visto que justifica na convivncia humana a racionalidade estratgica. Quer dizer, por esse ngulo, a racionalidade tica se degenera em discurso de clculo de benefcios e satisfaes individuais e, consequentemente, impossibilita uma resposta tica universal:

    38 VAZ, Enrique C. de Lima. Escritos de filosofia IV: introduo a tica filosfica, p. 327- 329.

    39 VAZ, Enrique C. de Lima. Escritos de filosofia IV: introduo a tica filosfica, p. 33.

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    A lei moral s se transmuta em dever-ser (sollen), para o ser que se constitui de razo e sensibilidade, de liberdade e de necessidade [...] somente o ser cuja vontade pode ser perturbada pelos impulsos e inclinaes sensveis pode ser destinatrio de um comando que se expresse na forma imperativa: tu deves40.

    O propsito de Apel, que se confronta com o solipsismo metdico, o de demonstrar que ele produto de uma falcia abstrativa que se incorre quando se prescinde da dimenso pragmtica da linguagemCom base na semitica tridimensional de Charles S. Peirce, Apel expe o erro da filosofia da conscincia e da anlise da linguagem (reduzida s dimenses sinttica e semntica): supor que o homem possa forjar seu pensar e agir sem estar j sempre inserido em uma comunidade comunicao; no considerar que ns somos um dilogo (Hlderlin). Pela via da reflexo filosfica sobre a trplice dimenso da linguagem, praticada sem abstraes, Apel mostra, como condio de possibilidade do pensar e querer com sentido, a verdade do socialismo pragmtico diante do solipsismo metdico, a verdade do pensar dialgico diante do monolgico41. A tica do discurso prope uma quebra do paradigma ideolgico, ratificando a responsabilidade englobada na histria e a perspectiva de futuro instaurada com base no princpio de universalizao dos interesses42, que deve ser o ponto de partida para exprimir os desejos a fim de proporcionar, uns

    40 SALGADO, J C. A idia de justia em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade, p. 211

    41 CORTINA, Adela. Razn comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 52-54.42 Na concepo de K. Otto Apel, toda norma vlida deve satisfazer a condio de

    que possam ser aceita, com liberdade por todos os afetados, as conseqncias dos efeitos colaterais que previsivelmente resultem de seu cumprimento generalizado, para a satisfao dos interesses de cada um, possibilitando o carter vinculante de regulao consensual discursiva de um conflito em desenvolvimento. (APEL, Karl-Otto. Teora de la verdad y tica del discurso, p. 178)

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    aos outros, a organizao da vida prtica. E isso implica assumir responsavelmente o que foi definido pelas normas consensuais em todos os aspectos na prxis democrtica, possibilitando a plenitude da eticidade, do direito e da justia.

    A parte B da tica como tica da responsabilidade, relativa histria e faticidade, contm agora tambm uma anlise da relao entre a moral particular e a moral institucional: Abaixo do nvel das instituies aparecem atores por assim dizer, como sujeitos privados; no nvel das instituies ou em instituies, os sujeitos tm a funo de portadores individuais de deveres; e, acima do nvel das instituies (organizadas como Estados nacionais), os atores constituem-se como sujeitos do discurso e da dimenso pblica, portanto, como sujeitos dos discursos entendido como metainstituio da comunidade primordial do discurso da humanidade43.

    Na perspectiva de Apel, todo aquele que argumenta seriamente j est implicado com pressupostos que facultam o consenso. O itinerrio das premissas de quem argumenta deve pressupor que: 1) necessrio prever as condies de uma situao ideal de fala, ou contrafactualmente, uma comunidade ideal de comunicao44; 2) preciso assumir a condies histricas e contingentes da situao real de fala ou comunidade real de comunicao45; 3) j se aceitou as condies ideais processuais eticamente obrigatrias, as regras que regulam os conflitos no mundo real, tendo em conta a diferena de aceitar as condies ideais e reais46, com a obrigao de ajudar os outros a superar as diferenas especficas, fazendo, assim, valer, a estrutura basilar da tica do discurso.

    43 MARCEL, Niquet. Teora realista da moral, p. 125.44 CORTINA, Adela. Razn e comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 254.45 CORTINA, Adela. Razn e comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 54.46 CORTINA, Adela. Razn e comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 54.

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    4 PoSSVEL APLICABILIDADE DA TICA Do DISCUrSo DE APEL Ao CoNFLITo FUNDIrIo EM MATo GroSSo Do SUL

    A aplicabilidade da tica do discurso nos conflitos fundirios em Mato Grosso do Sul depara-se com dificuldades de ordem histrica e filosfica. Na perspectiva histrica, observa-se que no h condies histricas possveis que sustentem o princpio de universalizao dos interesses (princpio U). As condies fticas so adversas dialogicidade entre as partes. A desigualdade social repercute nas condies de possibilidade de simetria entre os interlocutores, e cada parte compreende a outra como rival, inimiga, diante da qual se deve adotar uma postura estratgica. Faticamente, a vontade de poder e a mobilizao fragmentada em vista dos prprios interesses predominam sobre a vontade de verdade e de resoluo tica dos conflitos. patente a adoo da mentalidade moderna solipisista47, visto que os direitos e deveres

    47 preciso interpretar a linguagem dos proponentes no marco da tentativa de superao da diferenciao positivista entre os discursos normativo-prescritivos (da ordem do dever-ser) e os explicativo-descritivos dos fatos (de anlise valorativa neutra). O cientificismo positivista, uma vez que opera a separao epistemolgica entre -deve, fatos-normas, teoria-prxis, classifica como racional o discurso sobre os fatos e de irracional o discurso sobre normas. Com isso, sustenta a objeo ao carter racional da tica. Essa viso positivisto-cientificista da cincia veda qualquer intento de fundamentar os enunciados da tica como objetivos e racionais. Daqui decorre uma exigncia paradoxal: as consequncias decorrentes do uso da cincia e tcnica reclamam uma tica universal, todavia, em razo da concepo cientificista da cincia em equiparar a validade intersubjetiva com a objetividade das constataes empricas, valorativamente neutras; e das inferncias lgicas, as normas faticamente vlidas, cuja validade decorre de convenes, que so classificadas como derivadas de acordos de decises pr-racionais e subjetivas. Tal quadro configura uma situao dilemtica, visto que implica a escolha das seguintes alternativas: 1) liberdade pessoal e cincia livre, porm sem compromisso intersubjetivo com normas ticas, valores e fins; e 2) uma mediao institucionalizada e fixada dogmaticamente entre teoria e prxis, porm sem oportunidade de mediao baseada na livre deciso da conscincia individual. (Cf. APEL, Karl-Otto. Estudios ticos, p. 105-73)

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    no so consensuados legitimamente por todos os afetados. No cenrio do conflito fundirio em Mato Grosso do Sul, nota-se a fora econmica, poltica e social do empreendimento rural em relao s demandas por demarcao das terras do povo Kaiow e Guarani. Subsistem limitaes histricas que mitigam a aplicao do princpio de universalizao dos interesses. Ainda assim, imprescindvel viabilizar a participao isonmica de todos os afetados na construo de um novo modelo tico, com a quebra da lgica da desigualdade social.

    Para Apel, isso resulta na necessidade de buscar uma mediao dialtica entre objetividade e subjetividade48. Nesse horizonte, o bem tico seria aquele dever que o que bom para todos, ou o que dever, por princpio, ser um fim universalizvel para ambas as partes, contanto que menos prejudicial. Assim, por conta do interesse pelo bem, o indivduo, responsavelmente, deveria se limitar em relao pretenso de incondicionalidade de suas aes, a fim de que no haja dicotomia. necessrio, para Apel evocar a plausibilidade das relaes inter-humanas na constituio do que satisfatrio para todos os indivduos, assumindo, assim, uma responsabilidade solidria compatvel com a liberdade e autonomia moral do indivduo que reflita estritamente o propsito de superao dos limites histricos referidos aos problemas fundirios vinculados racionalidade estratgica49.

    48 APEL, Karl-Otto. Estudos de moral moderna, p. 11.49 Adela Cortina distingue cinco tipos de racionalidades que, delimitadas mediante

    as abstraes, inferem nos discursos ou nas argumentaes: 1) racionalidade lgico-matemtica, a racionalidade abstrata que impera no sentido do princpio de no contradio entre proposies ou funes proposicionais; 2) racionalidade cientfico-tcnica, no sentido da pressuposio recproca entre a interveno instrumental efetiva e a anlise causal experimental; 3) racionalidade estratgica, no sentido de uma aplicao de racionalidade instrumental na interao comunicativa humana, especificamente recproca reflexiva; 4) racionalidade consensual-comunicativa das aes, em virtude da fora vinculante com os atos da

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    Em sua arquitetura, a tica do discurso uma tica de princpios e de responsabilidade histrica. Como tal, ainda que com fora formal, ela preconiza o reconhecimento de todos os afetados. Esse pode, de fato, constituir o ponto de partida para a superao da lgica maniquesta entre os diretamente afetados o povo Kaiow e Guarani e os produtores rurais no Mato Grosso do Sul.

    5 CONCLUSO

    Este texto resultado de um processo de aproximao de uma realidade bastante complexa, o conflito fundirio em Mato Grosso do Sul entre Kaiow e Guarani e proprietrios rurais. Inicialmente, procurou-se distinguir os elementos significativos do conflito fundirio e a arquitetura do modelo tico de Apel considerados relevantes para a compreenso e a proposio de soluo do conflito. Nesse cenrio, so notrias a desigualdade social e a fora do empreendimento rural em relao ao povo Kaiow e Guarani. As partes A e B da tica do Discurso identificam os limites histricos de aplicao dessa tica e, simultaneamente, os princpios procedimentais discursivos, que remetam universalizao dos interesses. Essa arquitetura, no contexto de Mato Grosso do Sul, ainda se apresenta insuficiente apara a soluo do conflito fundirio no Estado.

    Conclui-se este estudo com a constatao de que se faz neces-sria uma investigao filosfica atenta aos prejuzos culturais da cultura Kaiow e Guarani em Mato Grosso do Sul, bem como o aprofundamento da tica do Discurso no tocante sua aplicao, sobremaneira quanto aos direitos humanos, e possveis impactos direcionados reviso das leis federais e sua factibilidade.

    fala; 5) racionalidade discursiva, prpria do questionamento crtico e revalidao reflexiva das pretenses de validez da racionalidade consensual comunicativa, em conformidade com o princpio da no contradio performativa. (Cf. CORTINA, Adela. Razn e comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 257)

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    The contribution of Karl-otto Apels discursive ethics to the resolution of current land conflict in the State of Mato

    Grosso do Sul

    Abstract: This paper seeks to review KarlOtto Apels Discursive Ethics as a theoretical and practical contribution to the resolution of land conflicts in Mato Grosso do Sul as it favors a universalistic approach to equal rights. As such, it shows that the rational groundwork that is already presupposed in every argumentative discourse, which implies all parties must be taken seriously, is crucial for establishing justice and social order. The architecture of that ethic consisting of two parts, A and B, shows that, on one hand, the solution to the conflict is undermined by historical conditions marked by strategic interests in maintaining power and, secondly, that one must postulate under the mediation of dialogue, counterfactually, the most reasonable possible agreement among those involved in the conflicts.

    Key words: Language. Discursive ethics. Intersubjectivity. Land conflict.

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