A Crise Da Argentina

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Maurício Rojas

.ACrteArgentinaOs sofrimentos de Carmencita

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Maurício Rojas

AA9&( ArgentinaVoOs sofrimentos de Carmenclta

Há países que são ricose países que são pobres.E há países pobres se tornando ricos.E há a Argentina,

Leia a história de Maurício Rojas sobre a odisseia

argentina que a levou à miséria. Após 70 anos de rápidocrescimento entre 1860 e 1930, vieram 70 anos de estagnação

e caos. O país que no início do século XX era mais rico do quea França, a Itália e a Suíça, está agora falido.

Essa transformação inacreditável nunca poderia

ter ocorrido sem Juan e Eva Perón, mais todos os erroscometidos pelo populismo, nacionalismo, protecionismo e

governos cada vez mais corruptos.

Após décadas de disputas distributivas destru-tivas, inflação galopante, escândalos políticos sem com-

paração e reformas fracassadas, a Argentina está atualmentenuma encruzilhada dramática.

ISBN 85-85054-59-X

9 788585 054595ISBN 85-85054-59-X

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A C R I S E A R G E N T I N AOs sofrimentos de Carmencita

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Maurício Rojas

A C R I S E A R G E N T I N AOs sofrimentos de Carmencita

Tradução deCândido Mendes Primes e

Francisco J. Beralli

n,INSTITUTOl l H F. R A I.

Rio de Janeiro / 2003

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2002 Maurício Rojas and AB Timbrowww.limbro.comFirst published 2002In Swedish with the litle Carmencitas sorg. Argentinas kris i historiskt perspcktïvIn English with the tille The Sorrows of Carme/?cila. Argcntina's crisis in a historicalperspective

Direitos de publicação cedidos ao:INSTITUTO LIBERALRua Professor Alfredo Gomes, 28CEP 22251-080 - Botafogo - Rio de Janeiro - RJ - BrasilTet.: (21) 2539-1115 Fax: (21) 2537-7206www.institutoliberal.org.br / E-mail: [email protected]

Prínted in Brazil l Impresso no Brasil

ISBN 85-85054-59-X(Edição original ISBN 91-7566-529-8)

Revisão de OriginaisRENATO BARRACA

Editoração eletrõnicaSANDRAGUASTIDEA CASTRO

CapaCLÁUDIO DUQUE

Ficha catalográfica elaborada pelaBiblioteca Ludwig von Mises do Instituto Liberal - RJResponsável: MÁRCIA ANDRÉA COSTA DO ROSÁRIO

Rojas, MaurícioR741c A crise argentina : os sofrimentos de Carmencita / Maurício

Rojas; tradução de Cândido Mendes Pmnes e Francisco J. Beralli.- Rio de Janeiro : Instituto Liberal. 2003.

129p.

Tradução de: The Sorrows of Carmencita: Argentina's crisisin a historical perspective

ISBN: 85-85054-59-X

1. Crise económica -Argentina. 2. Recessão económica -Argentina.3. Inflação - Argentina. 4. Desemprego - Argentina.5. Desenvolvimento

industrial - Argentina G. Condições económicas - Argentina,l. Prunes, Cândido Mendes. II. Francisco J. Beralli. III.Titulo.

Para Mónica,Por Indo aquilo que as palavras não podem dizer.

CDD - 330.982

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ÍNDICE

PREFACIO

INTRODUÇÃO

CARMENCITA DANÇOU DURANTE UM LONGO VERÃOA história da prosperidade argentinaA Argentina colonialA saga da prosperidade argentinaExplicando o sucesso da ArgentinaNem tudo que reluz é ouroProblemas do desenvolvimento industrialA guerra e os alegres anos vinte

OS SOFRIMENTOS DE CARMENCITAA odisseia argentina da riqueza à misériaO colapso da economia de exportaçãoNos braços do coronelPerón no poderRumo ao abismoO abismo

SERIA O ÚLTIMO TANGO DE CARMENCITA?AlfonsínO homem de La RiofaO veranico da ArgentinaO outro lado da moedaDe volta à beira do abismoSeria o último tango de Carmenciía?

BIBLIOGRAFIA

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45454652586978

87889198

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PREFACIO

Este livro é uma longa resposta àqueles que desejam atribuiros trágicos problemas da Argentina às ideias liberais e à liberdadeeconómica.

Estocolmo, abril de 2002Maurício Rojas

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Carmencita, umiguinha,/•'iijiie bem afastada dos homens ricos!

A felicidade não i- apenas boiadas e vacas.E você jamais irá com; irá-1 u com dinheiro.

Citado em "Fritiof & Carmencita", de Evert Taube(Trovador sueco que visitou a Argentina nos anos dourados)

nunca sem complctamente compreendido como um paiscom enorme potencial

leve um passado ião complicado.

Davide G. ErroResolving the Argentino paradox

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INTRODUÇÃO

Há países í/nc são ricose países que são pobres.

E há países pobres se tornando ricos.E há a Argentina.

De acordo com a classificação atribuída a Mário Vargas Llosa.

"Bern-vindo ã África", disse-me o funcionário da imigração noaeroporto de Buenos Aires. "Sim, aqui é a África", insistiu ele, emresposta ao meu olhar de espanto, indicando o corredor que ficavaatrás dele, que dava acesso ao país. Trocamos algumas poucaspalavras e, ao saber que eu estaria indo para o Chile a fim de assis-tir, em 11 de março de 1990, a passagem de poder de Augusto Pi-nochet para Patrício Aylwin, o novo presidente democraticamenteeleito, ele disse: "Você não pode mandar o Pinochet para cá, agoraque ele não tem nada para fazer?"

Essa recepção deixou-me mais do que perplexo, mas os diasque então passei em Buenos Aires ajudaram-me a entender o im-pressionante estado de espírito daquele funcionário da imigração.Eu chegara a um país no meio da hiperinflação e do caos; um paíscujos cidadãos viram a sua renda diminuir 25%, num período dedez anos, e cuja crença no futuro tinha acabado de esvair-se. EmBuenos Aires encontrei Hilda Sábato e Juan Carlos Korol, dois pes-quisadores com os quais colaborei. Certo dia, nos escritórios doCISEA,' discutíamos o tema que então estava no centro das preo-cupações e na cabeça de cada argentino - a hiperinflação. No meioda conversa, um dos meus colegas levantou-se e se dirigiu a um ar-

1- Centro de Investigaciones Sociales sobre el Estado y Ia Administración ("Centrode Pesquisas Sociais sobre o Estado e a Administração").

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r M, u K i, (iiiili; (Mi imaginei que fossem guardados escritos e coisas do(ii'in;io, mas para o meu espanto, ao abrir-se a porta surgiu um es-loque do cigarros, azeite e outros itens. "É parte de nossos sã-l,uios". me disseram. "Nós temos que trocar cada austral que ga-nhamos por dólares ou mercadorias, tão rápido quanto possível, afim dü não perder tudo". Esse foi praticamente o firn de nossa con-versa, porque alguém telefonou anunciando o pagamento de umsalário extra que a Universidade de Buenos Aires faria dentro deuma hora. As pessoas deviam correr, pegar rapidamente o dinheiroe trocá-lo por dólares ou comprar alguma coisa antes que a hipefín-flação o deixasse praticamente sem valor.

Essa era a Argentina em março de 1990, no meio de uma criseque provavelmente tem que ser vivida pessoalmente para ser com-preendida de maneira adequada. Nenhum preço era mostrado naslojas e nos restaurantes, porque os preços estavam mudando atoda hora. As pessoas trocavam nervosamente o seu dinheiro pordólares, uma clara indicação das condições periclitantes do pais.Na chegada ao Chile encontrei ainda outras manifestações da incrí-vel transformação sofrida pela Argentina, da expansão para a con-tração económica. Ao visitar uma empresa chamada Sonda, dedi-cada à tecnologia da informação, disseram-rne que diariamente ar-gentinos com excelente formação ofereciam seus serviços por pra-ticamente qualquer preço. Era incrível - argentinos na miséria vindopara o Chile em busca de trabalho, quando antigamente eram osempobrecidos chilenos que se mudavam para o país grande e ricodo outro lado dos Andes.

O que acontecera com a Argentina, o país próspero que eu játinha visitado quando criança e que, então, nos anos 50, do pontode vista de outros latino-americanos, era tão incompreensivelmenteavançado e rico? Como as coisas poderiam mudar tanto? Quandoos problemas começaram? Estas são questões com as quais os ar-gentinos têm-se debatido ern décadas recentes e que se tornarammais e mais insistentes em decorrência da erupção do caos, em de-zembro de 2001, quando lodo o mundo se espantou ao ver o paisque já havia alimentado as esperanças de milhões de imigrantespobres europeus ir completamente ladeira abaixo. Como podia umpaís, que antigamente havia sido o celeiro e a despensa de tantosoutros, se tornar um país cujos próprios filhos famintos eram toma-dos pela raiva?

Em meus primeiros escritos sobre a América Latina eu haviadelineado algumas respostas a questões como essas, mas agora

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parece ainda rnais importante analisá-las de forma coerente <j ommaior profundidade. Para fazê-lo, terei que retornar muito paraatrás no tempo, especialmente aos anos dourados da Argentina,entre 1860 e 1930. Naquela época as exportações cresciam, imi-grantes chegavam aos milhões e o país desenvolveu-se ao pontode se tornar um dos mais ricos do mundo. As raízes da miséria atualpodem ser, de fato, traçadas até aqueles anos tranquilos.

Este livro divide-se em três partes. A primeira relata a históriada prosperidade argentina, ou seja, a transformação do país de umlugar atrasado do império colonial espanhol na estrela mais brilhan-te do firmamento da América Latina no começo do século XX. A par-te dois descreve a história da Argentina da riqueza à miséria, e co-meça com o colapso da economia de exportação, em 1930, e a lon-ga marcha na direção da débacle socioeconõmica, política e moralque o pais experimentou no começo dos anos 80. A terceira partetrata do período que se seguiu à restauração da democracia, em1983, até a caótica situação dos dias de hoje.

Uma coisa talvez deva ser esclarecida antes de iniciarmos aanálise da longa jornada da Argentina em direção às dificuldadesatuais. A história aqui contada não é a história da Argentina, massirn a história da crise argentina. A diferença é importante, porquemuitas coisas ficaram fora dessa história. Eu apenas focalizei o quepode ser relevante para a compreensão de como um pais, outroratão próspero, conseguiu chegar a um fim tão lúgubre.

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CARMENCITA DANÇOU DURANTE UM LONGO VERÃO

A HISTORIA DA PROSPERIDADE ARGENTINA

/-.'/v t/iic' saírtim <!<> rio s<>te vacas.hem fornidas e nutridas; c c/o.v xt> alimentaram <'in unia pradaria.

O sonho do Faraó, Livro do Génese

O período entre 1860 e 1930 compreendeu os anos douradosda Argentina. Foram setenta anos felizes de crescimento quase inin-terrupto, de modernização, de democracia e de relativa estabilidadepolítica. Milhões de imigrantes oriundos do sul da Europa rumarampara a Argentina nesse período, e por meio das estradas de ferro edos navios a vapor que cruzavam o Atlântico, o solo fértil dos pampasligou-se aos mercados europeus. Buenos Aires transformou-senuma gigantesca metrópole, a capital cultural da América hispânica.Palácios impressionantes adornaram essa Paris transatlântica, ondea música conhecida por tango nasceu. Mas a fachada notável es-condia muitos elementos problemáticos, em consequência dosquais o desenvolvimento futuro da Argentina seria severamenteobliterado. Para colocar os acontecimentos entre 1860 e 1930 emperspectiva, minha história começa com a Argentina como uma co-lónia pobre e remota.

A ARGENTINA COLONIAL

A Argentina nos séculos XVI e XVII era um lugar remoto daAmérica hispânica. "A Terra do Prata" não chegou a atender às ex-pectativas dos primeiros visitantes espanhóis que escutaram os ru-mores de um reino de prata, em algum lugar acima, no Rio de Ia Pia-ta. Nem metais preciosos, nem mão-de-obra indígena abundante

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esperavam pêlos conquistadores nas distantes planícies da Argen-tina. Nem o clima era adequado para o cultivo de produtos exóticosque faziam, por exemplo, do Brasil, uma atraente colónia europeia.

Durante esse período foi o noroeste da Argentina - Salta, Ju-juy, Tucumán, Santiago dei Estero e Catamarca - que, graças àproximidade corn as regiões extrativistas de prata do Alto Peru (Bo-lívia), mais se desenvolveu. Aproximadamente dois terços da popu-lação indígena de então viviam naquela área, exportando carneseca, alimentos e artesanato em grandes quantidades para as ricasregiões montanhosas da Bolívia. Buenos Aires - fundada em 1536,mas rapidamente abandonada para ressurgir ern 1580 - foi por lon-go tempo incapaz de se beneficiar da localização geográfica privile-giada, devido aos regulamentos comerciais espanhóis e ao controlede Lima sobre o comércio oriundo do Vice-Reino do Peru, do qual aArgentina então fazia parte. O gado - a maioria consistindo no se-midomesticado ganado cimarrón - rapidamente se espalhou pelopampa, e grandes fazendas de gado - estancias - já haviam se es-tabelecido no século XVII, a maioria no interior de Buenos Aires.Essas estancias podiam cobrir dezenas de milhares de hectares deterra, mas via de regra empregavam apenas uns poucos gaúchos(vaqueiros), que tocavam o gado semidomesticado, extraiam a suacarcaça e jogavam o resto fora. O couro era o único produto da re-gião passível de exportação para a Europa.

A situação mudou radicalmente no século XVIII. Buenos Airesteve então a oportunidade de se tornar um grande porto, especial-mente apôs o Tratado de Utrecht, em 1713, que concedeu àGrã-Bretanha o monopólio do tráfico de escravos na América hispâ-nica, que era realizado por Buenos Aires, para todas as provínciasmeridionais. Entre 1714 e 1739, quando a Inglaterra foi expulsa doImpério Espanhol, Buenos Aires foi transformada no maior centroespanhol para a importação de escravos. Tornou-se também a mai-or cidade da Argentina, com uma população de 11.000 habitantes.O contrabando desenfreado tornou-se outra fonte de renda impor-tante para a cidade, junto com o tráfico de escravos, embora, após1739, ele tenha passado para as mãos dos portugueses.

A fim de consolidar a posse sobre o estuário do Rio de Ia Plata,os espanhóis fundaram um novo Vice-Reino - Virreinato de/ Rio deIa Plata - compreendendo os atuais territórios da Argentina, Uru-guai, Paraguai e Bolívia - e elevaram Buenos Aires à condição desua capital. Prata da Bolívia, couro e carne salgada - fasa/o, princi-palmente para os escravos empregados nas lavouras de cana do

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Brasil e de Cuba - eram as exportações dominantes. A populaçãode Buenos Aires cresceu de 22.000 habitantes, em 1770, para50.000, em 1810. O país, em 1800, ainda era muito esparsamentepovoado, com tribos indígenas espalhadas controlando quase quetodo o sul da Argentina, vastas áreas do pampa e também outros lu-gares. A população nesse período - não incluindo os índios libertos- chegava a aproximadamente 350.000 habitantes, dos quais150.000 viviam na região noroeste, 100.000 no interior e os restan-tes 100.000 na costa.

A Argentina desempenhou um papel central na luta da Américahispânica pela independência. O contato com a Inglaterra e outrospaíses europeus disseminou novas ideias e formas de pensar emBuenos Aires, e a elite local, composta de comerciantes e senhoresrurais, não temia uma revolta indígena, ao contrário do que ocorriano México, Peru e Bolívia. Um espirito moderno e burguês parecejáter caracterizado Buenos Aires nesse período. Depois de 1810, oAno da Rebelião, a Espanha nunca retomou o controle sobre aque-la cidade portuária. A bandeira da rebelião tremulou em Buenos Ai-res em 1816, quando todo o resto do império colonial da Américahavia sido reconquistado pela Espanha. Em 1817, as forças argen-tinas, sob o comando do General San Martin, marcharam sobre osAndes, derrotando as forças espanholas primeiro no Chile e depoisno Peru.

A SAGA DA PROSPERIDADE ARGENTINA

A vitória sobre a Espanha não significou a paz na Argentina. Osprimeiros 50 anos de independência foram afetados duramente porconflitos internos e externos. O Vice-Reino do Rio de Ia Plata foi di-vidido em quatro países separados: Argentina, Uruguai, Paraguai eBolívia. Foram necessárias guerras, com a intervenção frequentedo Brasil, para a definição das suas fronteiras. Nesse mesrno perío-do, lutou-se uma guerra contra os índios, tanto no pampa quanto nonorte da Argentina. A guerra contra os índios do pampa foi termina-da pelo General Roca em 1879-80. A luta com os índios do Chaco,no Norte, e da Patagônia, no Sul, continuou ao longo do século XIX.A política doméstica era dominada por conflitos violentos entre osmembros das diferentes elites regionais. Havia disputas infindáveisentre os caudillos - homens fortes - da cidade de Buenos Aires, daProvíncia de Buenos Aires e do interior. Somente em 1861, depois

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que a cidade de Buenos Aires emergiu vitoriosa dos combates inter-nos, o país atingiu uma relativa estabilidade política, a qyal, em seutodo, foi mantida com sucesso até o golpe de 1930. ''

Esses anos de conflitos foram uma época na qual a classe dossenhores rurais - que também recrutava muitos de seus membrosna elite política e militar do país - aumentou muito as suas proprie-dades, com a expulsão dos indígenas de enormes extensões deterra. Durante esse período, poucas centenas de senhores rurais,juntamente com os lideres políticos e generais, adquiriram milhõesde hectares que foram divididos entre eles. Oito milhões e meio dehectares foram vendidos para 381 pessoas, perfazendo uma médiade 22.000 hectares para cada um. Os recursos oriundos dessasvendas foram usados para financiar a chamada conquista dei ctesi-erío (conquista do deserto, 1879-80), contra os Índios que viviamnos pampas. Essas terras, frequentemente muito férteis, estavamlocalizadas em sua maior parte no interior da Província de BuenosAires, e elas se tornaram a base para a futura economia de exporta-ção. Portanto, mesmo antes do boom de exportações e das maci-ças imigrações de europeus, que começaram na década de 1860,as melhores terras foram distribuídas e uma classe imensamentepoderosa de grandes fazendeiros havia se formado. Essa classecontinuou aumentando suas propriedades rurais durante o resto doséculo XIX e determinando os destinos cia Argentina até a segundadécada do século XX.

O rápido crescimento das exportações de lã, em meados doséculo XIX, antecipou para a Argentina um pouco do que estava porvir. O número de ovelhas praticamente triplicou entre 1840 e 1860,de cinco milhões de cabeças para 14 milhões, com o consequentecrescimento nas exportações de 1.610 toneladas de lã para 17.300toneladas, durante o mesmo período. A quantidade de ovelhas ul-trapassou 60 milhões de cabeças em 1880, superando as 110.000toneladas de lã exportadas em 1882. Mas então o trigo também co-meçou a se tornar um importante item de exportação, bem comonovas formas de conservação da carne, juntamente com outrosprodutos agrícolas que já vinham há tempos sendo exportados.Esses produtos começaram a plasmar uma economia baseada emmaciças exportações. Como pode ser visto no Gráfico 1, o valor to-tal das exportações multiplicou-se mais de 13 vezes entre 1865 e

1914.Esse boom nas exportações baseou-se nurna combinação deseis fatores: uma crescente procura europeia por alimentos e maté-

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rias-primas; a "segunda revolução industrial", que criou novos emais baratos meios de transporte; recursos naturais copiosos eprontos para serem explorados; um pesado fluxo de imigrantes ori-undos do sul da Europa; um amplo suprimento internacional de ca-pitais; e, por último, mas não menos importante, a relativa estabili-dade política conquistada em 1861.

GRÁFICO 1; VALOR ANUAL DAS EXPORTAÇÕES ENTRE 1865 E 1914, EMMILHÕES DE PESOS-OURO

45Ü

400

350

300

250

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• l l l

1BG5- 1870- 1B75- 1880- 1885- 1890- 1895- 1900- 1905- 1910-1869 1874 18/9 1884 1889 1894 1899 1904 1909 1914

["untes: Rock 1988, p. 200; Cortês Conde 1993. p. 65.

Alguns poucos dados servirão para ilustrar a rápida expansãodas indústrias exportadoras. Depois da guerra contra os índios, nadécada de 1870, 30 milhões de hectares de terras foram incorpora-dos pela Argentina, e o total de terras agriculturáveis disponíveiscresceu de pouco menos de 10 milhões de hectares, em 1850, paramais de 51 milhões em 1908. Entre 1843 e 1884, o número de cabe-ças de gado de corte elevou-se de 10 milhões para 23 milhões. Aárea destinada ao cultivo de cereais expandiu-se de 340.000 hecta-res, em 1875, para 20 milhões de hectares, em 1913. As exporta-ções de trigo cresceram de 179.000 toneladas, em 1888, para o re-corde de 3,6 milhões de toneladas, em 1908. A infra-estrutura tam-bém se desenvolveu rapidamente, com um total de 33.500 km deestradas de ferro unindo a maior parte dos pontos importantes do

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Page 14: A Crise Da Argentina

país, em 1914. As exportações cresceram mais de5% anualmenteentre 1869 e 1913, e o crescimento económico anual da Argentinafoi estimado entre 6 e 6,5% durante aquele período. O resultado foium sólido crescimento da renda per capita de aproximadamente3% anuais durante aqueles 44 anos {o crescimento demográfico foide aproximadamente 3,3% anuais entre 1869 e 1913).

A Argentina de 1914 era muito diferente do país que havia sido50 anos antes. O rápido crescimento populacional e o processo deurbanização ainda mais rápido - resumido no Gráfico 2 - foramduas importantes forças a determinar essa mudança, Buenos Aires,que contava com 187.000 residentes em 1869, havia se desenvolvi-do em uma gigantesca metrópole de 1,5 milhão de habitantes em1914. A população do país, que pelo primeiro Censo, realizado em1869, era de 1,8 milhão de pessoas, havia subido para 7,9 milhões,de acordo com o terceiro censo, de 1914. As capitais provinciais,como Córdoba, Rosário, Santa Fé, Mendoza e Tucumán, transfor-maram-se em importantes cidades, onde os produtos locais de ex-portação erarn armazenados e depois enviados para Buenos Aires.

GRÁFICO 2: CRESCIMENTO DEMOGRÁFICO 1869-1914

8 oo n. ooo7.000.000

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5000000

4.000.000

3 000.000

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1.000.000

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nulação D R>pulação Urbana

Fonte: Díaz Alejandro 1970, p. 422, 424.

A Argentina, em 1914, era o país mais urbanizado do mundo,depois da Grã-Bretanha, com 53% da sua população total vivendo

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em cidades com mais de 2.000 habitantes. O padrão de vida do ar-gentino estava entre os melhores do mundo. Uma próspera classemédia surgiu e começava a preocupar-se em compartilhar o poderpolítico sob a liderança do Partido Radical (Union Cívica Radical,formada em 1891} e de seu Presidente, Hipólito Yrigoyen. Uma am-pla classe de trabalhadores emergiu, com uma estrutura social bemdiversificada, e distante daquela que caracterizara a velha socieda-de colonial. Ferroviários, estivadores e empregados de frigoríficosformaram grandes coletividades de trabalhadores militantes, com-parável ao movimento trabalhista europeu da época. Desde a pri-meira década do século XX a Argentina testemunhou a formaçãode duas organizações sindicais poderosas: a Federación ObreraRegional Argentina (FORA) e a Union General de Trabajadores(UGT). Ao mesmo tempo, o sistema político argentino era democra-tizado, com as reformas de 1912, que introduziram o sufrágio uni-versal para os homens.

A indústria avançou rapidamente durante esse período decrescimento. O valor do produto industrial, por exemplo, multipli-cou-se 2,4 vezes entre 1900 e 1913. O setor industrial de 1914 eramuito diversificado e compreendia mais de 48.000 empresas; o em-prego industrial elevou-se de 396.000 trabalhadores, para 633.000,entre 1900-04 e 1910-14. Acrescentando a esse setor o da constru-ção, obtém-se um crescimento para o mesmo período de 486.000trabalhadores para 851.000, correspondendo respectivamente a20,6% e 27,7% da força de trabalho do país. Esses setores - fre-quentemente uma mistura de artesanato tradicional, manufaturas eoficinas semimecanizadas, mas também incluindo grandes fábricase instalações industriais modernas produzindo para a exportação -já haviam obtido uma grande participação no mercado domésticode bens de consumo básicos-91% dos alimentos; 88% dos produ-tos têxteis e 80% do material para construção, por exemplo. A essaaltura, a indústria argentina também já havia feito consideráveis in-cursões no mercado de bens de capital: um terço dos produtos me-tálicos consumidos na Argentina era lá produzido, e em torno de1910a indústria do pais era capaz de atender a um terço do merca-do doméstico de máquinas e implementos agrícolas.

EXPLICANDO O SUCESSO DA ARGENTINA

Quando estourou a l Guerra Mundial, havia um chocante con-

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traste entre a Argentina e a maioria dos outros países lati-no-americanos, relativamente a padrão de vida, desenvolvimentoeconómico, grau de urbanização, desenvolvimento de in-fra-estrutura e modernização sociocultura! e política. A explicaçãodo contraste é interessante sob muitos pontos de vista, principal-mente considerando que o boom exportador foi um fenómeno geralna América Latina naquele tempo. O sucesso da Argentina nãopode . em outras palavras, ser exclusivamente atribuído ao cresci-mento das exportações. Países como Peru, Colômbia, México eGuatemala também experimentaram um crescimento exponencialdas suas exportações durante esse mesmo período. Mas essecrescimento não pode de nenhuma maneira ser comparado com o

da Argentina.Uma das principais razões do sucesso relativo da Argentina -aos olhos da América Latina um desenvolvimento idiossincrático -durante esse período residiu num fato que, à primeira vista, pode pa-recer uma grande fraqueza, ou seja, a escassez de mão-de-obra.Ossenhores rurais argentinos não tiveram acesso a grande número deíndios e mestiços baratos, frequentemente semi-escravizados, comohavia sido o caso de muitos países da América Latina. Portanto, aelite argentina foi compelida a buscar mais longe a força de trabalhode que necessitava. Inicialmente a solução "natural" para esse tipode problema era a importação maciça de trabalho escravo da Áfri-ca. Esse foi, por exemplo, o expediente adotado pêlos portuguesesno Brasil e por outras potências europeias no Caribe. Mas essa saí-da estava então fechada, pois o tráfico de escravos vivia seus últi-mos dias sob a resistência ativa dos ingleses. Nem a importaçãoem massa de trabalhadores chineses era uma solução prática, aomenos para as nações da América do Sul localizadas na costa doAtlântico. A opção restante foi revolucionária para os padrões lati-no-americanos: o encorajamento da imigração voluntária de traba-lhadores. Foram os filhos pobres do sul da Europa que, no caso daArgentina, proveram a solução para a escassez cie mão-de-obra.Tal arranjo era perfeitamente compatível com a política e a culturaeuropeizadas do país. A Constituição da Argentina, adotada em1853, transformou o componente migratório em um aspecto centralpara a nova Argentina, ao permitir livremente o ingresso de eu-

ropeus no país.A fim de atrair europeus em grande quantidade, a Argentina ti-nha que oferecer a eles melhores condições de vida que fossemnão somente melhores do que as da Europa, mas também compa-

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ráveis às de outros países de imigração, corno os Estados Unidos ea Austrália. O que permitiu à Argentina superar essa barreira foi,evidentemente, a existência de copiosos recursos naturais, o quesignificava alta produtividade agrícola e comida barata. Juntamentecom a necessidade crescente de novos trabalhadores, isso crioumodernas condições de trabalho e um nível de remuneração des-conhecido na América Latina, excetuando-se o Uruguai.

GRÁFICO 3: IMIGRAÇÃO 1870 -1914

1870- 1875- 1880- 1085- 1890- 1895- 1900- 1905- 1910-1374 lf(7!S 1S&4 1BB9 1094 1&99 1904 1909 1914

Fonte: Cortéz Conde 1993, p. 56.

Quase seis milhões de europeus - principalmente italianos eespanhóis - chegaram a Buenos Aires entre 1870 e 1914, e mais detrês milhões decidiram por lá permanecer para sempre. Como podeser visto no Gráfico 3, a imigração cresceu para níveis espetacula-res entre 1905 e 1914. Durante esse período de dez anos quasetrês milhões de imigrantes aportaram em Buenos Aires. Somenteuma minoria deles aventurou-se pelo interior. Apesar das parcascondições das moradias da cidade, notoriamente conhecidas comoconventillos (cortiços nos quais muitos pobres da capital viviamamontoados), a maior parte dos imigrantes era atraída pelas luzesda grande metrópole e foi absorvida pela crescente classe de traba-lhadores industriais, vendedores de lojas, pequenos empreendedo-

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l III W l III W Hl l IIIII l III

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rés e empregados domésticos. A cidade adotou novas característi-cas, uma das quais causou perplexidade aos argentinos do interior:a pesarosa e melancólica música dos imigrantes solteiros, imortali-zada pelo tango.

Desenvolveu-se assim, na Argentina, tanto na cidade quantono campo, um moderno mercado de trabalho e uma classe de assa-lariados que não estava sujeita a relações semifeudais e que tam-bém compartilhava a mesma origem e cultura da elite e, ainda mais,ganhava dinheiro suficiente para adquirir muitos bens de consumo.Ao mesmo tempo, a indústria exportadora e o desenvolvimento daprópria infra-estrutura do pais demandavam muitos produtos indus-triais, oficinas de manutenção e fábricas de transformação, gerandoa expansão do mercado doméstico. As colheitas ou os abates, oprocessamento, o transporte e o acabamento das grandes exporta-ções argentinas exigiam não apenas máquinas, estradas de ferro,depósitos e portos, mas também, especialmente com relação à ex-portação de carne, modernas fábricas de alimentos e instalaçõesfrigorificas. Tornou-se então possível o surgimento de um mercadodoméstico numa escala que a América Latina jamais vira, encora-jando o desenvolvimento de uma indústria local e, em grande medi-da, protegida da competição externa pela distância geográfica entrea Argentina e as principais nações industriais da época.

O pesado fluxo de imigrantes europeus trouxe importantesvantagens. Dentre os imigrantes, embora muitos deles fossem po-bres camponeses do sul da Europa, muitos também tinham expe-riência no comércio e na indústria. Outros eram artesãos ou traba-lhadores especializados. Eles trouxeram consigo um conhecimentoinestimável e, posteriormente, ofereceram à indústria Argentinauma ampla base para o recrutamento de empreendedores e traba-lhadores especializados. A imigração europeia foi muito importantenesse aspecto, ao menos para Buenos Aires, onde 70% da popula-ção pertencente à classe trabalhadora eram de origem europeia,em 1914. Mas os imigrantes estavam ainda mais em evidência en-tre os empreendedores. Mais de dois terços de todos os comercian-tes e industriais ativos na Argentina, em 1914, haviam nascido noexterior, e, no caso de Buenos Aires, o número era de aproximada-mente 80%.

Com a imigração, então, a Argentina obteve, simultaneamente,mão-de-obra, empreendedores e conhecimento. Os recursos natu-rais eram abundantes, ao menos para a agricultura e a criação degado. O capital era obtido principalmente através do crescimento

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da produção interna, e acima de tudo pelas enormes receitas prove-nientes das exportações do período. No meio de uma fase de ex-pansão dinâmica, dependente das importações, a Argentina foi ca-paz de gerar quase ininterruptamente um superavit comercial, comsomente dois anos de déficit entre 1891 e 1914. Uma fonte impor-tante de capital, e talvez muito controversa, foram os investidoresexternos. Os investimentos britânicos foram especialmente impor-tantes, e a Argentina tornou-se um dos mais importantes países re-ceptores desses recursos financeiros. Esses grandes investimen-tos representam deforma inegável um dos indicadores da vitalida-de da economia argentina daquele período.

GRÁFICO 4: INVESTIMENTOS BRITÂNICOS 1865-1913 EM MILHÕES DELIBRAS

1865 1075 1885 1895 1905 1913

l Investimentos ernltulos n Investimentos direLos

Fonte: Cortèz Conde 1993, p. 61.

Como pode ser visto no Gráfico 4, os investimentos britânicosacumulados na Argentina cresceram de £2,7 milhões, em 1865,para £480 milhões em 1913, o que representava na época aproxi-madamente 40% dos investimentos totais da Grã-Bretanha naAmérica Latina (o Brasil vinha em segundo lugar, com cerca de22%). Desses £480 milhões, somente £316 milhões representavamum genuíno incremento de capital proveniente do exterior, enquan-

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to o restante provinha de reinvestimentos e outros fundos obtidosna própria Argentina. O foco dos investimentos britânicos mudouconsideravelmente naquele período. Até a década de 1880, a maiorparte consistia em investimentos em títulos (indiretos), seguida porinvestimentos diretos, principalmente em estradas de ferro, comér-cio, finanças e instalações frigorificas (confira Gráfico 4). Em 1913esses investimentos diretos representavam mais de 60% do totaldos investimentos britânicos, sendo que as estradas de ferro indivi-dualmente representavam 44% do total. Uma clara divisão de tra-balho surgiu entre os estanderos argentinos, proprietários de ter-ras, e os capitalistas estrangeiros, gue controlavam as ferrovias emuitos frigoríficos em Buenos Aires (onde os investidores nor-te-americanos adquiriram uma posição proeminente no começo doséculo XX). O capital britânico também adquiriu considerável in-fluência no comerão e no setor financeiro, mas os bancos nacionaisargentinos - Banco de Ia Nación Argentina e Banco Hipotecário Na-cional - já detinham uma posição dominante naquela época.

O pesado fluxo de capital estrangeiro, recebido de braços aber-tos durante o período em questão, receberia mais tarde a maior par-te da culpa pêlos problemas de desenvolvimento da Argentina. Issose tornou um tema central para a retórica nacionalista e "antiimperi-alista" que já se desenvolvia nos círculos conservadores durante adécada de 1910, e foi muitíssimo importante sob o regime de Perón.Mais tarde também inspirou boa parcela do desenvolvimento políti-co da Argentina, tanto da esquerda quanto da direita. A atenção foiatraída para o poder gue os capitalistas de países estrangeiros ad-quiriram sobre setores estratégicos da Argentina e os recursos queeram retirados do país sob a forma de lucro e pagamento de juros.

Contudo, como em muitos outros casos, a retórica tinha poucaconexão com a realidade. O montante transferido de lucros foi merafração dos enormes rendimentos auferidos pela Argentina com asexportações durante o período, sem poder para prejudicar significa-tivamente o potencial de desenvolvimento do país. A importânciadas contribuições do capital estrangeiro para o desenvolvimento e adinâmica da economia de exportação, por outro lado, é inequívocae está muito além de um questionamento razoável. A influência es-trangeira foi ao longo desse tempo relativamente limitada. Os recur-sos mais produtivos, tanto na agricultura quanto na indústria, esti-veram sempre ern mãos argentinas, e o status do país como naçãoíntegra e independente nunca foi ameaçado. Muito mais importan-tes - embora menos conveniente do que a referência ao estrangei-

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ro como bode expiatório - para entender as dificuldades económi-cas e sociais que a Argentina enfrentaria mais tarde são outros doisaspectos internos dos quais agora tratarei.

NEM TUDO QUE RELUZ É OURO

Os dados impressionantes sobre o crescimento argentino,como os aqui apresentados, inspiram respeito. A Argentina, ao re-dor de 1914, era vista como o equivalente latino-americano dosEstados Unidos. Contudo, havia muitos elementos problemáticosescondidos por trás da deslumbrante fachada. De fato, foi duranteessa era dourada que a Argentina começou a trilhar o caminho daprolongada crise que a tem afligido ao longo do último guarto de sé-culo. Existem dois aspectos problemáticos dignos de nota a seremmencionados: um deles diz respeito ao problema do direito de pro-priedade no interior do país, e o outro refere-se à ênfase unilateralao mercado interno e à falta de força competitiva demonstrada poramplas parcelas do setor industrial. Nesta seção discutirei o primei-ro desses dois aspectos; na próxima, analisarei os problemas in-dustriais.

Quando a onda migratória atingiu a Argentina, o pais, como jávimos, era dominado por uma classe poderosa de senhores rurais.Essa classe expandiu muito as suas propriedades durante o perío-do entre 1860 e 1914, ganhando o controle de uma vasta parceladas melhores terras na fértil planície dos pampas. Em 1914, maisde 60% das terras em cinco províncias dos pampas e 80% de todasas terras da Argentina estavam concentradas em unidades commais de 1.000 hectares. Também nesse ano, estancias gigantes-cas com mais de 5.000 hectares ocupavam aproximadamente me-lade de toda a área do pais. Essa classe teve um papel decisivopara impedir o tipo de desenvolvimento que ocorreu, por exemplo,nos Estados Unidos, onde surgiu uma ampla e próspera classe defazendeiros. O surgimento de agricultores donos de suas própriasterras nos Estados Unidos contribuiu para uma distribuição maisequitativa dos recursos e, conseqüentemente, da renda, o que, porseu turno, encorajou o crescimento de um mercado de consumomais dinâmico para os produtos industriais. Ao mesmo tempo, o tipopioneiro de agricultura americana tende a ser mais e mais intensivo ea elevar o nível de investimentos do setor, o que é muito bom para osurgimento de urna estrutura industrial mais diversificada no país (o

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exemplo tipico é o surgimento precoce dos principais fabricantes in-ternacionais de máquinas agrícolas nos Estados Unidos).

Na Argentina, as grandes propriedades rurais e as fazendas degado, por outro lado, desenvolveram-se de forma extensiva, combase numa exploração da terra sem restrições, uma vez que estarepresentava o fator de produção mais barato, comparativamenteaos fatores mais caros, o trabalho e o capital. O fenómeno era cons-pícuo em relação à criação de gado, rnas também ocorreu na agri-cultura. Além disso, os grandes senhores rurais, no esforço de man-ter seus negócios sob estrito controle, apesar da flutuação dos pre-ços, tentavam minimizar os investimentos fixos que pudessemcomprometê-los com um produto específico. O ideal seria podermudar rapidamente entre a agricultura e a criação de gado. Simulta-neamente, a distribuição da renda agrícola permaneceu muito maisiníqua do que numa economia pioneira do tipo norte-americano.Com isso reduziu-se o potencial da agricultura como mercado tantode consumo quanto para os bens de capital. Dessa forma, os efei-tos das ligações com o resto da economia tornararn-se menos dinâ-micos, e o potencial de geração de crescimentos da agricultura foigrandemente reduzido.

Entretanto, em certas regiões, tais como a Província de SantaFé, onde os imigrantes tiveram a oportunidade de possuir a sua pró-pria terra, foi possível um desenvolvimento orientado, mais intensi-vo e diversificado da agricultura. Contudo, a terra disponível para osassentados nunca excedeu 15% do total das terras agriculturáveis.Nos demais lugares da Argentina, a exploração agrícola por arren-datários tornou-se uma prática comum, especialmente nas áreasde cultivo de trigo, que eram mais intensivas em mão-de-obra. Essaforma de posse dificilmente conduz a investimentos de longo prazoou a melhorias mais permanentes, porque a terra não é propriedadedas pessoas que nela trabalham. Além disso, os arrendamentosnaquela época tinham urna duração limitada, uma vez que os pro-prietários da terra desejavam manter a capacidade de rapidamentemudar da agricultura para a criação de gado.

O domínio das grandes propriedades rurais teve outra desvan-tagem do ponto de vista do desenvolvimento nacional. Os imigran-tes tendiam a ficar nas grandes cidades, Buenos Aires especial-mente, em grande parte devido ao fato de que lhes era negada achance de possuir a terra que poderiam explorar. Somente 25% dosimigrantes foram absorvidos pela agricultura. Isso significou umprocesso de urbanização muito acelerado e penoso, caracterizado

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pelo surgimento de um setor de serviços muito amplo, que canali-zou consideráveis recursos produtivos e que iria penalizar severa-mente a nação no futuro. Essa situação, por seu turno, conduziu aum conflito distributivo inevitável e por fim devastador, entre as ci-dades e o campo.

PROBLEMAS DO DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL

Ainda mais problemático a longo prazo do que as condições depropriedade no campo foi o tipo de desenvolvimento industrial inici-ado pela Argentina no final do século XIX. Isso é especialmente im-portante, porque a estrutura industrial que então se formou estava,cm princípio, destinada a dominar o desenvolvimento da Argentinaaté a crise de 1980 e a estrutura das reformas durante a Presidên-cia de Carlos Menem. A observância dessa continuidade estruturalvai na contramão da visão convencional sobre o desenvolvimentoda Argentina e da América Latina, que vê a crise de 1930 como afase inicial da industrialização e um divisor de águas absoluto entredois modelos de desenvolvimento muito distintos. Uma análisemais detalhada do início do desenvolvimento industrial é tambémimportante para desmascarar um dos clichés mais comuns sobre aeconomia argentina do período. A visão que muitas pessoas aindaconservam desse período, embora há muito abandonada pela his-tória económica, é a de um ultraliberalismo e completa aberturapara o mundo exterior, de uma economia inteiramente submetidanos interesse industriais exportadores, portanto de um crescimentoindustrial sem restrições. Todas essas crenças carecem de base narealidade, da mesma forma que a ideia de uma inflexão estruturaldurante os anos 30.

Como já vimos, um setor industrial razoavelmente grande ha-via se desenvolvido na Argentina antes de 1914, e depois de um in-tervalo, devido aos anos de guerra, esse desenvolvimento continu-ou vigoroso até 1929. Como mostra o Gráfico 5, a produção indus-trial mais do que dobrou entre 1914 e 1929- O Gráfico 6 apresenta ocrescimento do emprego, e veremos que cerca de 1,1 milhão de tra-balhadores, entre 1925 e 1929, eram empregados pelo setor indus-trial e da construção (numa população total de empregados de 4,2milhões). O problema com esse crescimento aparentemente tão im-pressionante, entretanto, reside na principal característica da maiorparte das indústrias emergentes na Argentina entre 1860 e 1930: a

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concentração exclusiva no mercado doméstico. (As indústrias dire-tamente vinculadas ao processamento de produtos primários paraa exportação foram, evidentemente, uma exceção.) Mas esse não éo único fato que chama a atenção. Deve-se mencionar também quea indústria emergente estava orientada não apenas para o mercadointerno, mas exclusivamente para os segmentos não expostos aqualquer competição externa de importância.

GRÁFICO 5: CRESCIMENTO DO PRODUTO INDUSTRIAL 1900 -1929 EMBILHÕES DE PESOS (PREÇOS DE 1950)

Fonte: Díaz Alejandro, 1970, p. 418-421.

Isso de fato ocorreu com o mercado argentino durante boa par-te do século XIX e, de alguma forma, durante o século XX. Custoselevados de transporte de carga, longas distâncias e outras dificul-dades de transporte e comunicação deram a amplos setores domercado local o que poderíamos chamar de uma proteção naturalque, sem qualquer necessidade de intervenção protecionista, re-servou esses segmentos do mercado interno para os produtores lo-cais. Isso teria ocorrido com o processamento de produtos alimentí-cios, vestuário comum, calçados, mobiliário, material para constru-ção e assim por diante. Mas também poderia incluir produtos de en-genharia relativamente sofisticados, como motores, autopeças eitens de reposição para o setor ferroviário. Na segunda metade do

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século XIX, por exemplo, poderia ocorrer que urn pequeno paíspouco industrializado, como o Chile, produzisse locomotivas, moto-res a vapor e turbinas. É verdade que a tecnologia de produção erarazoavelmente primitiva, uma mistura de artesanato e indústria,mas as comunicações e os problemas de transporte de então torna-vam viáveis essas indústrias locais.

GRÁFICO 6: EMPREGO INDUSTRIAL 1900 - 1929

1900-1904

1905-1909

1910-1914

1915-1919

1920-1924

1925-1929

• Indústria

Fonte; Díaz Alejandro, 1970. p 428.

L J Construção civil

Nesses mercados "naturalmente" protegidos, uma indústrianacional se desenvolvia, enfrentando a competição interna, especi-almente de produtos artesanais domésticos ou de pequenas ofici-nas. A possibilidade de transição para uma produção industrial de-pendia, via de regra, de dois fatores, mais exatamente do tamanhodo mercado e da capacidade, em termos de tecnologia e capitai, deestabelecer atividades industriais. Com relação ao problema domercado, verifica-se que já na metade do século XX a Argentina ti-nha um mercado com tamanho suficiente para dar às atividades in-dustriais uma vantagem competitiva sobre a produção artesanal do-méstica ou de pequenas oficinas. Isso se aplicava, sobretudo, à de-

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manda gerada pela nova classe de trabalhadores e pela crescenteclasse média urbana por certos tipos de bens de consumo simples.Portanto, não causa surpresa constatar - com a ajuda do censo in-dustrial de 1914 - que alimentos, tecidos, couro e produtos de ma-deira representavam mais de dois terços dos empregos industriaise aproximadamente 80% do valor total da produção industrial quan-do a Primeira Guerra Mundial eclodiu.

O problema da oferta de outros bens foi mais complicado. Deum lado, a elite argentina demonstrava um interesse muito pequenoem começar novas indústrias. Não havia razão para arriscar-se emnovas atividades, quando a alternativa - reinvestir na indústria deexportação - era altamente lucrativa. Além disso, a produção indus-trial requeria conhecimento técnico, experiência e talento organiza-cional, o que frequentemente era estranho à elite. Também à classemédia nascida na Argentina, que se concentrava quase que exclu-sivamente no setor de serviços, faltavam esses talentos. Os mem-bros da classe média preferiam trabalhar principalmente como free-tancers e empregados do setor público, uma vez que a burocraciaestatal do país crescia rapidamente, tendo mais do que triplicado onúmero de funcionários entre 1900 e 1929. Tanto os investidoresestrangeiros quanto os imigrantes terminaram, assim, desempe-nhando um papel importante no desenvolvimento industrial daArgentina. Os investidores externos dominavam os estabelecimen-tos industriais voltados para a exportação, bem como uma boa par-te da infra-estrutura, enquanto os imigrantes devotavam-se às ativi-dades industriais que atendiam ao mercado doméstico. Em 1914havia uma enorme preponderância imigratória de industriais. Con-sidere-se que um terço dos habitantes da Argentina naquele tempohavia nascido no estrangeiro, e que quase dois terços dos in-dustriais eram nativos de outros paises.

Dessa maneira, a indústria nacional que estava nascendo naArgentina tornou-se quase que completamente dependente da ini-ciativa, do conhecimento e dos bens de capital dos imigrantes Osseus recursos frequentemente limitados- económicos ou de conhe-cimento - terminaram por deixar uma marca decisiva no perfil da in-cipiente indústria argentina. A maioria dos imigrantes empreende-dores mostrava enorme apetite pelo trabalho; seus conhecimentosbásicos haviam sido adquiridos com a experiência em atividades nocomércio e na indústria de seus países de origem, e eles dispu-nham de muito pouco capital. O resultado foi a ênfase em proces-sos industriais simples, que exigiram pouco capital e conhecimento

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técnico e que podiam ser iniciados numa escala relativamente pe-quena. Era o modelo essencialmente reminiscente da RevoluçãoIndustrial inglesa do século XVIII, que se baseara em tecnologia rela-tivamente simples e num grupo de empreendedores com treinamen-to prático, mas sem qualificação académica. O problema com a reite-ração espontânea desse processo, que havia sido tão bem-sucedidona Inglaterra um século antes, residia em que, no final do século XIX,um tipo completamente diferente de indústrias, de processos de pro-dução e de empreendimentos estava conduzindo o desenvolvimentoindustrial internacional. Isso significa que a industrialização argentinanasceu com uma deficiência de quase cem anos, muito atrás da linhade frente do progresso tecnológico. A estrutura industrial argentina jáera antiga na sua própria juventude.

A consequência dessa visão unilateral sobre artigos de consu-mo simples e processos de produção pouco sofisticados foi o perfilplano dado à industrialização argentina. Estabelecimentos industri-ais muito espalhados dedicados a atividades simples, andavamlado a lado com a correspondente falta de capacidade para desen-volver indústrias tecnologicamente mais sofisticadas e, em especi-al, um setor dinâmico de bens de capital. Assim, a indústria argenti-na se tornou dependente do processo de geração de conhecimentoc de renovação técnica, o que acontecia muito distante das suasfronteiras. O progresso tecnológico se tornou dependente do exteri-or, e todos os seus efeitos dinâmicos foram perdidos.

Como vimos, nem a industrialização tardia, nem a dependên-cia de máquinas importadas, bens industriais semimanufaturados ede matéria-prima conseguiram impedir o surgimento de uma amplaindústria em Buenos Aires e nas capitais provinciais mais dinâmi-cas, como Santa Fé, Rosário e Córdoba. A importação de máquinasindustriais, matérias-primas e bens semi-acabados multiplicou-sepor 3,4 e representou cerca de 40% do total das importações entre1900 e 1929 (não incluindo os custos com importação de combustí-veis e de material para a construção). Ao mesmo tempo, dificilmen-te um produto de exportação não guardava relação com a agricultu-ra Um pré-requisito para esse tipo de desenvolvimento eram, evi-dentemente, as pesadas exportações argentinas de alimentos e dealgumas matérias-primas. As crescentes necessidades de importa-ção do setor industrial foram cobertas por uma parte dos rneios in-lernacionais de pagamento que o setor de exportações geravaabundantemente naquele período. Tal fato é crucial para compre-ender o foco e os problemas da industrialização argentina. Sem os

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copiosos recursos naturais do país e o forte fluxo de receitas gera-das por exportações crescentes, a introvertida industrialização quese verificou dificilmente se concretizaria.

O problema estrutural desse tipo de industrialização é óbvio. Osetor industrial não conta com um desenvolvimento dinâmico inde-pendente. Ele não produz nem os seus próprios pré-requisitos -maquinaria, bens semi-acabados, conhecimento técnico - nem dis-põe dos fundos necessários para importá-los, ou algumas rnatéri-as-primas. Assim sendo, a indústria fica integralmente dependenteda capacidade de um setor exportador baseado em recursos natu-rais, para gerar um substancial superavit comercial. Isso explicaporque estruturas industriais introvertidas e protegidas como a daArgentina são, ao mesmo tempo, extremamente vulneráveis às per-turbações e flutuações de preço dos mercados internacionais dealimentos e matérias-primas. A vulnerabilidade industrial tor-nar-se-ia um crescente problema para o desenvolvimento económi-co da Argentina após a II Guerra Mundial, até finalmente desempe-nhar um importante papel no colapso económico da década de1980. A totalidade desse modelo singular de industrialização faliu.No final, foi urna implosão devido às mesmas tensões estruturaisque haviam caracterizado o seu desenvolvimento, desde o nasci-mento da indústria no século XIX. Mas agora o preço não era so-mente o colapso económico, mas também o colapso social, muitomais amplo e sério.

O desenvolvimento baseado em indústrias de padrão inferiorao internacional pode facilmente encontrar-se em uma zona de pe-rigo, se os mecanismos de proteção que compensam a inferiorida-de produtiva dessas indústrias são frágeis ou desaparecem. Partedas indústrias argentinas já se encontrava em uma situação difícilno final do século XIX. Os custos decrescentes de transporte e o de-senvolvimento da infra-estrutura, fazendo com que os mercados lo-cais se tornassem mais e mais acessíveis aos produtos importados,já ameaçavam as empresas com dificuldade de manter-se sobre ospróprios pés.

Esse espectro da competição e o desejo de obter controle so-bre novos segmentos de mercado conduziram à formação de asso-ciações industriais (a mais conhecida delas, a Union IndustrialArgentina, UIA, foi fundada em 1887) e ao surgimento de uma retó-rica nacionalista que exigia a intervenção política contra a competi-ção de produtos importados. O princípio do livre comércio e a políti-ca de laissez-faire, que em meados do século XIX haviam rompido

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uma longa tradição mercantiíista oriunda do império colonial espa-nhol, passaram a sofrer ataques crescentes. A maior parte da eliteeconómica e intelectual continuava favorável ao liberalismo econó-mico por um longo período, mas uma forte ofensiva já havia sido inici-ada pêlos protecionistas no parlamento argentino durante a reces-são da década de 1870. O resultado foi uma ruptura inicial favorávelao intervencionismo, com a introdução de tarifas protecionistas embeneficio dos fazendeiros produtores de trigo e inúmeras indústriasprocessadoras de produtos agrícolas, tais como de farinha, açúcar evinho. Tarifas alfandegárias - que foram sendo sucessivamente ele-vadas, até como meio de financiar o orçamento público - torna-ram-se um assunto recorrente nos debates, na virada de século naArgentina. Os exportadores queixavam-se de que as altas tarifasprotecionistas estavam provocando - ou poderiam provocar - retali-nções por parte dos países importadores de produtos argentinos.

O resultado não foi uma política industrial combinada e convin-cente, mas um protecionismo incoerente e inconstante, que refletianão uma política de desenvolvimento de longo prazo, mas a neces-sidade estatal de obter maiores receitas com tarifas alfandegárias,aliada â relativa força de diferentes interesses económicos A políti-ca tarifária, como regra, teve o efeito de consolidar uma estrutura in-dustrial desigual. A importação de matérias-primas industriais, debons semi-acabados e de maquinaria fazia-se em geral mais baratado que a importação de muitos artigos de consumo de massa, amaioria dos quais era onerada com tarifas muito elevadas. Isso émuito claro em relação às tarifas aplicáveis ern 1927. Como podeser visto no Gráfico 7, mesmo antes da crise de 1930 muitas indús-trias de bens de consumo importantes eram protegidas por tarifasmuito altas, muitas das quais excediam 40% do valor do produto im-portado (havia até tarifas que excediam os 100%!). Claramente, aArgentina encontrava-se muito distante de ser um paraíso do livrecomércio, situação que muitas pessoas aparentemente acreditamhaver existido antes de 1930.

Níveis tarifários como esses significavam que a indústria ar-ijentinajá havia adquirido um forte pára-choque de ineficiência pro-tecionista durante as décadas inaugurais do século XX, ao qual de-vomos acrescentar o pára-choque criado pêlos próprios custos detransporte. É óbvio que esse tipo de indústria não tinha chance deexportar a sua produção, e o pior de tudo é que o pára-choque deineficiência estava destinado a crescer consideravelmente ao longodas décadas seguintes, suplementado por muitas restrições às im-

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portações e mais intervenções no mercado de câmbio. Dessemodo, a indústria argentina pôde crescer, mas sem amadurecernem sair de uma infância protegida. O que aconteceu na Argentina,em outras palavras, foi uma industrialização anormal, pela qual opaís pagaria muito caro, mais tarde.

GRÁFICO 7: TARIFAS ALFANDEGÁRIAS EM 1927 (EM PERCENTUAL DOPREÇO DE IMPORTAÇÃO)

Corrmodities agrícolas

Lã i n na tu rã o algodão

Madeira

R-oclutos de aço c forro

Artigos ekàtricos e rmquináno

Tecidos do algodão

Produtos de papel

Vinho

Produtos de madeira

Tecidos de lã

Vestimentas do algodão

Produtos de chocolate

Vestimentas do lã

Refrigerantes

Chapéus

Açúcar refinado

O 10 20 30 40 50 60 70

Foníc: Diaz Alejandro 1970, p. 290-3.

As intervenções protecionistas resultaram não apenas em umaindústria debilitada, mas também num uso de recursos que agrava-ram os problemas estruturais do pais. O protecionismo seletivo cri-ou uma estrutura de preços e incentivos que tornou mais vantajosoinvestir numa indústria de bens de consumo relativamente mais

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simples do que, por exemplo, numa indústria de bens de capital ede outros processos mais sofisticados. Isso era exatarnente o opos-to do que o desenvolvimento de longo prazo exigia, mas refletiu cor-retamente a estrutura de poder e os interesses económicos que odesenvolvimento industrial da Argentina produziu.

As exigências de protecionismo e intervenção do estado foramreações naturais de setores da indústria ameaçados, mas tambémde outros setores da economia, assim que a competição aumentou.Frequentemente eram os poderosos grupos de senhores rurais ede representantes das indústrias diretamente relacionadas aos in-teresses agrícolas que lançavam os ataques ao liberalismo econó-mico e tornavam-se os críticos mais ferozes dos princípios do livrecomércio, quando viam ameaçados os seus interesses. Dois impor-tantes exemplos são as intervenções protecionistas verificadas nadécada de 1870, começando em 1875 com a tarifa protecionista so-bre o trigo importado e as exigências de longo alcance da poderosaSociedad Rural (a "Sociedade Rural" representava especialmenteos interesses dos grandes fazendeiros criadores de gado) de con-trole de preços e outras intervenções na indústria de exportação decarne, durante a década de 1920.

Essas crescentes reivindicações comuns por intervenções polí-ticas e a habilidade para influenciá-las posteriormente envolveram aprópria esfera política, fazendo com que tivessem uma crescente im-portância no desenvolvimento da Argentina. A política terminou sen-do vista como o mais importante carnpo de batalha da economia. Ocontrole da máquina política tornou-se o elemento-chave para com-por um sistema de transferências de rendas, que podia muito bemsignificar o sucesso ou o fracasso de um empreendimento.

Esse tipo de desenvolvimento tem três importantes conse-quências. A primeira é uma pressão generalizada, incitando umgrupo após o outro a formar organizações ou corporações politica-mente influentes para defender seus próprios interesses. Em socie-dades assim organizadas, a luta política tende a suplantar os meca-nismos económicos da competição, frequentemente com conse-quências devastadoras a longo prazo, tanto para a economia quan-to para a política. A segunda consequência é que os grupos sociais

normalmente os mais pobres - que são incapazes de formar for-tes coalizões e, portanto, de ganhar influência política tornam-se osgrandes perdedores na disputa distributiva. A terceira consequên-cia de um desenvolvimento económico crescentemente politizado éque a alocação de recursos no longo prazo pode tornar-se contra-

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producente. Uma estrutura de preços e um sistema económico re-gulamentado, que fundamentalmente refletem a influência políticade diferentes grupos na sociedade, cria incentivos que frequente-mente guardam pouca relação com uma estratégia sustentável dedesenvolvimento. Durante os anos que se seguiram, a história eco-nómica da Argentina apresentaria todos esse maus prenúncios.

A GUERRA E OS ALEGRES ANOS VINTE

A l Guerra Mundial criou grandes, mas breves, dificuldadespara a economia da Argentina. O país já voltara para a dinâmicanormal do período pré-Guerra em 1917. O PIB cresceu 6,7% anual-mente entre 1917 e 1929, e a indústria 7,8%. As exportações cres-ceram 6,6% no mesmo período. O Gráfico 8, ao mostrar o rápidocrescimento das exportações depois da guerra, ilustra a continuida-de em relação ao período anterior. A Argentina em 1929 estava sur-fando na crista de uma onda. Ela era o exportador mundial mais im-portante de carne congelada, milho, aveia e linhaça, e o terceiromaior exportador de trigo e farinha. A Argentina em 1929 era a 11a

nação exportadora do mundo e havia acumulado enormes reservasde ouro. Também naquele ano, a sua economia estava classificadaentre as dez mais ricas em termos de renda per capita, com maiscarros por habitantes do que a Grã-Bretanha. A distância entre aArgentina e o resto da América Latina em termos de desenvolvi-mento e prosperidade tornou-se conspícua.

No período houve importante mudança na oferta de terras. Aspossibilidades de incorporar novas terras aráveis ou de pastagensfacilmente e de forma barata virtualmente acabaram, fazendo comque o futuro crescimento agrícola dependesse em grande parte daadoção de métodos de exploração rural que exigiam maior densida-de de capital. O período de crescimento extensivo se esgotara. Aconsequência foi a crescente mecanização da agricultura e a transi-ção para raças de gado mais rentáveis em termos de produção decarne. Era a única maneira de a Argentina manter a sua posição deexportadora de alimentos, rivalizando com as agriculturas crescen-temente industrializadas de países como os Estados Unidos, Cana-dá e Austrália. Isso tem um peso crucial na nossa compreensão so-bre problemas económicos argentinos subsequentes. A crise dosanos 30 e a II Guerra Mundial afetaram duramente a capacidade dosetor agrícola de aprofundar a sua modernização. Durante a segun-

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da metade dos anos 1940, quando grandes investimentos se torna-ram mais necessários, o setor agrícola foi utilizado como a "vaca lei-teira" do país, drenando-se os seus excedentes económicos, noexato momento em que os países rivais estavam rapidamente semodernizando. O hiato daí resultante iria ter um papel importante nacrescente marginalização da Argentina na economia mundialdepois da II Guerra Mundial.

GRÁFICO 8: EVOLUÇÃO DAS EXPORTAÇÕES 1890-1929 EM MILHÕES DEPESOS (PREÇOS DE 1950)

8.000

7.000

1890- 1895- 1900- 1905- 1910- 1915- 1920- 1925-1894 1899 1904 1909 1914 1919 1924 1929

l onte: Díaz Alejandro 1970, p. 477.

Mas a grande importância desse período para o futuro desen-volvimento da Argentina reside no plano económico e no político.No segundo ocorreram três acontecimentos de enorme importâncialulura, que analiso a seguir.

O primeiro deles foi a grande ruptura política do partido da clas--,cï média, o Partido Radical (UCR), nas eleições de 1916, a primeira,1 se realizar com o sufrágio universal para os homens. O líder dopartido, Hypólito Yrigoyen, foi então eleito presidente, e os radicaispermaneceram no poder até o golpe de 1930, quando Hypólito Yri-* loyen, que havia sido novamente eleito presidente, foi deposto pelo

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General José Felix Uriburu. Durante esse longo período no poder, opartido se viu afetado por sérios desentendimentos internos e acu-sações de corrupção e violência política. O partido também foi ad-versamente afetado pela crise internacional de 1929. Os radicaisforam incapazes de superar os grandes desafios do período, e a ex-pulsão abrupta do velho - e, de acordo corn seus críticos, senil -Yrigoyen da Presidência foi lamentada por poucos. Tudo isso dei-xou os radicais com pouca credibilidade para governar nos momen-tos difíceis que estavam por vir.

Ainda mais importante, entretanto, foi o confronto desastrosoocorrido ao final da l Guerra Mundial entre o governo radical e acrescente classe trabalhadora argentina. Os conflitos começaramem 1918, no interior, onde os trabalhadores rurais entraram em gre-ve por melhores salários e condições de trabalho, numa tentativa,após os difíceis anos da guerra, de ganhar uma parcela dos lucrosdas exportações agrícolas ressurgentes. O governo respondeucom uma dura ação policial, quando a colheita se viu ameaçada. Osconflitos rapidamente se espalharam para as cidades e, acima detudo, para Buenos Aires, onde os radicais, à primeira vista, haviamadotado uma linha mais conciliatória com os trabalhadores. A situa-ção mudou, entretanto, no final de 1918, quando os conflitos maisuma vez se agravaram. Ern janeiro de 1919, após violentos conflitosentre a polícia e engenheiros industriais grevistas, que deixou vári-os mortos, começou o que seria chamado de Ia semana trágica.Inúmeras greves ocorreram em 9 de janeiro, e mais de 150.000pessoas juntaram-se numa demonstração de protesto. Segui-ram-se prisões em massa de líderes dos trabalhadores e sete diasde conflitos e carnificinas, quando, por exemplo, muitos judeus -que eram de origem russa e vistos por muitos como revolucionáriosestrangeiros - foram assassinados na pior explosão de an-ti-semitismo da história argentina. Grupos de direita, para militaresultranacionalistas, erarn então ativos e, no futuro, desempenhariamum papel recorrente na política argentina, culminando nos anos deterror - a chamada Guerra Suja - dos anos 1970.

Essas confrontações com o emergente movimento dos traba-lhadores tiveram duas consequências. Primeiramente, os radicaisperderam toda a influência sobre a classe operária. Em segundo lu-gar, essa classe, agora um elemento central na sociedade argenti-na, foi excluída do sistema político. A exclusão criou a pré-condiçãofundamental para o surgimento do fenómeno Perón. Os operáriosforam completamente derrotados em 1919. Vinte e cinco anos mais

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tarde eles iriam reentrar na cena política argentina, dessa vez paramudá-la para sempre.

O terceiro evento, com grande repercussão para o futuro, foi asérie de conflitos que alimentou a hostilidade entre Argentina eEstados Unidos. As raízes do conflito são simples e crassas. AArgentina e os Estados Unidos eram ambos produtores e exporta-dores do mesmo tipo de produto agrícola. Os americanos já tinhamdeixado muito claro, após a Guerra Civil de 1860, que os produtosda rival Argentina deveriam, se necessário, ser excluídos do merca-do americano. Na primeira vez, o produto era a lã argentina. Maistarde foram principalmente as exportações de trigo. Em 1922 osEstados Unidos bateram duramente nas exportações graneleirasda Argentina por meio da tarifa "Fordney-McCumber", dessa formademonstrando que os únicos clientes confiáveis da Argentina eramos britânicos e outros europeus O conflito emergiu novamente ern1926, dessa vez tendo como alvo as exportações de carne daArgentina. Portanto, a política de elevadas tarifas com a qual osEstados Unidos reagiram às crises dos anos 30 não era novidadepara os argentinos. O conflito culminaria nos anos 1940, mas entãoem circunstâncias políticas completamente diferentes.

Outros conflitos com os Estados Unidos surgiram com o rápidocrescimento dos investimentos americanos na indústria exportado-ra de carne de Buenos Aires. Dessa vez foram os poderosos fazen-deiros de gado da Sociedad Rural que colidiram com as firmasamericanas e suas políticas de preço. O conflito tornou-se pior em1922-23, com a exigência de preços mínimos regulamentados e acriação de frigoríficos argentinos para bloquear o domínio da indús-tria pêlos anglo-americanos.

Uma terceira fonte de conflito entre a Argentina e os EstadosUnidos foi a exploração do petróleo argentino. A Standard Oil ame-ricana tornou-se alvo de uma virulenta campanha nacionalista naArgentina que, liderada pelo ancião Yrigoyen, exigia a completa na-cionalização da indústria petrolífera (que já era dominada pela em-presa estatal argentina Yacimientos Petrolíferos Fiscales, YPF). Oantiamericanismo foi um tema central da campanha presidencial ar-(jentina de 1928, e a vitória esmagadora de Yrigoyen demonstra aforça de tal retórica em um país que se sentiu por muito tempo co-mercialmente prejudicado pêlos poderosos Estados Unidos. A im-portância dessa rivalidade, para o triste destino da Argentina, dificil-mente pode ser exagerada.

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OS SOFRIMENTOS DE CARMENCITA

A ODISSEIA DA ARGENTINA DA RIQUEZA À MISÉRIA

/ií'.v (/i/í' st'te outriix vacas vieram a irás i/cltíx.Mimuias f muito doentes, c dt; poucas carnes...

E as vacas marreis c doentesComeram as [inmciras sete vucax gorilas.

O sonho do Faraó, Livro do Génese

O ano de 1930 foi, por várias razões, um divisor de águas nahistória argentina. A locomotiva do crescimento argentino - um di-nâmico setor de exportação - deixou de funcionar como viera fa-zendo até 1929. O golpe de setembro de 1930 anunciou um longoperíodo de crescente instabilidade e polarização, culminando nostrágicos anos da chamada Guerra Suja, dos anos 1970. A Argentinatambém mudou de mentalidade. De um país confiante no futuro eno desenvolvimento, transformou-se progressivamente em e! paísInistrado e, mais tarde, em elpaís desesperado, como tem sido ditoIroqüentemente. Ao mesmo tempo, pode-se ver, escondida atrásdesses espantosos intervalos, a continuidade de problemas estru-turais que mantêm conexão com esses diferentes períodos. Primei-io, há um modelo periclitante de crescimento industrial que se tor-nou completam ente insustentável quando o seu pré-requísito abso-luto, um dinâmico setor de exportação, desapareceu. A Argentina,um dia próspera, acordaria transformada como Georg Samsa, deKafka, num país à beira de um abismo. No caminho para lá, entre-t.mto, a Argentina ha veria de experimentar o seu amorrnais profun-do, infeliz e inesquecível com os Peróns - Juan Domingo e Eva.

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O COLAPSO DA ECONOMIA DE EXPORTAÇÃO

O colapso da economia internacional em 1930 acabou trans-formando as premissas básicas do desenvolvimento argentino. Aforça motora por trás do rápido crescimento económico do país, aexistência de urn dinâmico mercado exportador, foi subitamente al-terada. A depressão económica que se seguiu, juntamente com a IIGuerra Mundial e suas repercussões prolongadas, basicamenteaté o fim da Guerra da Coreia, em 1953, criaram condições econó-micas excepcionais que afetaram o desenvolvimento da Argentinade forma muito diferente das condições que existiam entre 1860 e1930.

A crise internacional de 1930 marcou o começo de um proces-so económico impressionante durante os anos1930 e 1940. As ex-portações reduziram-se dramaticamente no começo dos anos1930, recuperando-se entre 1934 e 1937, declinando novamenteem 1938 e permanecendo num nível baixo até 1941. Então, em1942, começou uma nova fase de recuperação que culminou em1948, mas ainda assim inferior aos níveis observados antes de1930. A recessão inicial foi principalmente devida à queda dramáti-ca, entre 1928 e 1932, ern mais de 60%, dos preços dos principaisprodutos de exportação da Argentina. O volume de exportações,por outro lado, declinou apenas 11,5% durante o mesmo período.Os preços das importações caíram menos rapidamente, resultandonuma grave deterioração na relação entre os preços das importa-ções e exportações. Ocorreu uma grande redução na capacidadede o país importar e uma queda significativa no volume importado.Isso é mostrado no Gráfico 9, onde também se observam os desdo-bramentos subsequentes, até o final da Guerra da Coreia. Como sevê nesse gráfico, depois de uma breve recuperação as importaçõesdo país deprimiram-se novamente em 1938, permanecendo em umnível extremamente baixo entre 1943 e 1945. As Importações daArgentina, naquela época, mal correspondiam a um quarto do nívelatingido em 1929 e nem mesmo a recuperação subsequente pode-ria elevá-las ao nível de 1929.

Esse notável período deixou marcas profundas no desenvolvi-mento da economia Argentina, ao menos com relação ao setor in-dustrial, que agora tinha uma oportunidade inesperada de substituiras commodities então importadas e exceder em muito a expansãoverificada antes de 1929. Durante quase 20 anos, a ameaça decompetição de bens industriais importados foi reduzida ao mínimo.

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A situação terminou de maneira muito parecida com aquela do sé-culo XIX, que tornou possível o começo da primeira onda industrialargentina. A diferença residia no fato de que, naquela época, a forteproteção contra a competição estrangeira se devia especialmente àdistância e aos custos de transporte, enquanto agora a proteçãocorrespondente havia sido criada pelo colapso da economia inter-nacional e pela eclosão da II Guerra Mundial.

GRÁFICO 9: EVOLUÇÃO DAS IMPORTAÇÕES (VALOR) 1929-1953(1929 = 100)

100

8D

40

20

o

A

1929 1931 1933 1935 193/ 1939 1941 1943 1945 1947 1949 15)51 1953

nifc Díaz Alejandro 1970, p. 463.

As possibilidades de desenvolvimento industrial foram ainda[..'forçadas por um movimento internacional de preços caracteriza-do por uma acentuada queda no preço dos produtos exportados,i -sccto das commodities industriais. Isso criou fortes incentivos parainvestimentos no setor industrial voltado para o mercado domésti-• o. A única restrição à expansão industrial eram a capacidade pro-i lutiva da indústria argentina e as dificuldades para a importação demaquinaria e matérias-primas industriais. Esse período é tão ex-( cpcional que houve até mesmo um rápido crescimento das expor-i.ições industriais argentinas. Durante a II Guerra Mundial, a Argen-tina foi capaz, em certa medida, de substituir as nações industriali-

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zadas como fornecedora de matèrias-primas industriais para as na-ções menos desenvolvidas da América Latina.

Esse processo mostra como a locomotiva do crescimento é ca-paz de mudar dos setores de exportação tradicionais e do comérciocom o exterior para a indústria e o mercado doméstico. No curtoprazo, isso foi um sucesso tão grande que o declínio da economiaapós a crise de 1929 pôde não somente ser detido, mas foi converti-do num crescimento razoavelmente sadio. O fato é ilustrado noGráfico 10, que mostra o crescimento do PIB argentino e do aindamais dinâmico setor industrial, entre 1929 e 1945. Como pode serconstatado, a produção industrial dobrou entre 1932 e 1944.

GRÁFICO 10: PIB E CRESCIMENTO INDUSTRIAL 1929-1945 (1929 = 100)

160

170

160

150

140

130

120

110

100

90

80. . . . . . ——i————l————l————l————J————l————l

1929 1931 1933 1935 1937 1939 1941 1943 1945

—*— PIB x Indúslna

Fonte: Diaz Alejandro 1970, p. 415, 420.

O problema com essa expansão industrial, tão bem-sucedida àprimeira vista, foi que, na verdade, ela teve o efeito de aprofundar ainferioridade da indústria argentina e a sua falta de vigor competitivono mercado mundial. A crise económica dos anos 1930 e a II Guer-ra Mundial criaram um ambiente industrial extremamente favorável,mas artificial. A indústria foi capaz de crescer rapidamente e teve

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pouca dificuldade em conquistar novos segmentos de mercado.Havia escassez de praticamente tudo, e a demanda reprimida tinhaque ser atendida por novos empreendimentos industriais, não im-portando o seu nível de desenvolvimento tecnológico nem a sua efi-ciência. Conseqüentemente. os problemas estruturais clássicos daArgentina foram muito agravados. A ineficiência cresceu à mesmataxa com que a industrialização se espalhou para setores com altadensidade de capital ou tecnologia. O Gráfico 11 dá uma ideia doatraso da indústria argentina e de como ele se agravou entre 1938 e1953. Nele podemos ver, comparando Argentina e Estados Unidos,um dos melhores indicadores de que dispomos sobre o nível de de-senvolvimento tecnológico: cavalos-vapor por unidade industrial.Como se vê, a diferença já era de magnitude alarmante em 1938,com as unidades americanas utilizando 10,7 vezes mais cava-lo-vapor do que na Argentina. A diferença, no entanto, tornar-se-iaainda maior em 1953, quando empresas industriais nos EstadosUnidos usavam 17,6 vezes mais cavalos-vapor do que a indústriaargentina. Podemos ainda ver a diferença aumentando ainda maisdramaticamente quando mudamos a análise da indústria voltadapara a produção de bens de consumo para as indústrias de bens decapital, em que a diferença em 1953 era de 30 vezes!

O atraso tornou-se patentemente óbvio assim que as nações in-dustrializadas se tornaram mais uma vez capazes de exportar para omercado internacional. Nesse período, a demanda Argentina de pro-dutos importados cresceu exponencialmente. Depois da II GuerraMundial, os investimentos estavam completamente desatualizados einadequados. São essas circunstâncias que tanto contribuiriam paraus problemas na balança comercial, que ainda estavam por vir,quanto para a onda de protecionismo intervencionista que seria ne-cessário para a proteção de um setor industrial tão atrasado.

As mudanças no desenvolvimento económico da Argentinanão constituem, certamente, um fenómeno isolado. Ao contrário, fo-nirn apenas parte de um redirecionamento mais amplo da socieda-< lu argentina em direção a novas ideias e modelos sociais. O redire-t lunamento se baseou na crescente convicção de que a continuida-i Io do crescimento do país e a prosperidade não poderiam nem de-poriam depender de forças externas e circunstanciais, como ocorre-LI com o modelo precedente orientado para a exportação. O país• loveria almejar alto grau de auto-suficiência, o que exigia uma poli-liça industrial muito ativa, que sistematicamente transferisse recur-• ,os para as indústrias e promovesse o desenvolvimento através de

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Page 28: A Crise Da Argentina

intervenções diretas e indiretas na economia. Além disso, haviauma mudança na visão do papel do Estado na economia, que entãopassara a ser visto como ator central na liderança de um processomais amplo de industrialização e de crescente independência eco-nómica. Os três componentes - maior auto-suficiéncia, política depromoção industrial e ativismo económico do Estado - foram sub-sequentemente combinados de muitas maneiras diferentes e su-plementados com outros elementos ideológicos, frequentementeemprestados dos movimentos antiliberais que na época domina-vam a cena política na Europa.

GRÁFICO 11: CAVALOS-VAPOR POR UNIDADE INDUSTRIAL NOS ESTADOSUNIDOS EM 1938 E 1953, COMPARADOS COM A ARGENTINA (EMMÚLTIPLOS!

Trabalhos de irrpressão

Indústria de alirrenios

Produtos de borracha

Fabricação de papel

Tecidofe

Produtos de couro

Indústria petrolífera e química

Todas as indústrias

Produtos de madeira

Minerais

Metais

Manuf atura de metais

10 15 20 25 30 35

01953 11938

Fonte: Vitelli 1999, p. 572.

50

l ilpi"

Quanto à prática política, o papel económico do Estado foicrescendo lenta, mas progressivamente, durante os anos 30 e nosprimeiros anos da II Guerra. Então, após o golpe de 1943, o inter-vencionismo rapidamente expandiu-se, culminando durante a pre-sidência de Perón (1946 - 1955). A primeira consequência impor-tante da crise de 1929 a esse respeito veio em outubro de 1931,quando exportadores tiveram que vender compulsoriamente para oEstado todas as divisas que possuíam. Em seguida, o governo pas-sou a decidir quanto seria revendido para os importadores. O gover-no passou, assim, a poder controlar o volume de importações e ge-rar um certo equilíbrio na balança comercial, bem como lucrar com3 comercialização da moeda. Em 1933, com a crise em seu pior mo-mento, os poderes económicos e as funções do Estado haviam seexpandido substancialmente. Federico Pinedo, o novo Ministro dat-azenda, impôs o chamado Pian do Acción Económica ("Plano deAção Económica"), que continha muitas inovações. A mais impor-tante consistia em fixar preços mínimos para os principais produtosagrícolas, sendo que o Estado garantia a compra a esses preços.Também foi importante a intensificação do controle pelo Estado daoferta de moeda estrangeira, por meio de licenças de importação.Assim, o Estado poderia decidir não somente os volumes de impor-tação, mas também a sua composição e origem. Outra importantereforma foi a adoção do imposto de renda, que rapidamente se tor-nou a mais importante fonte de receita do Estado, marginalizandoos impostos aduaneiros que haviam sido tão importantes anterior-mente. Projetos assistenciais utilizando recursos públicos foramoutra interessante iniciativa de Piriedo. Uma reforma importanteveio em 1934, com a criação do Banco Central, que logo adotaria -sob a jovem liderança de Raul Prebisch - uma direção keynesiana,regulando a demanda através da política de crédito.

Essas e outras reformas, devido à sua grande importância, fo-iam somente os primeiros passos na direção de formas rnaïs pro-fundas de intervenção do Estado e um novo modelo económico. A MGuerra Mundial acelerou o processo, inclusive pela pressão daslorças armadas a favor da criação de indústrias nacionais e de ma-ti,'rïas-primas que tornassem a Argentina auto-suficiente em supri-mentos militares. O nacionalismo começou a desempenhar o cres-cente pape! de estimular uma industrialização conduzida pelo Esta-ilo. O conflito com os Estados Unidos, que voltarei a discutir, foi fun-damental nesse aspecto, como o foi também o medo de uma açãomilitar brasileira apoiada pêlos norte-americanos. As atividades in-

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dustriais diretamente conduzidas pêlos militares cresceram consi-deravelmente com a criação, ern 1941, de uma autarquia indepen-dente para a produção militar (Dirección General de FabricacionesMilitares). O golpe militar de 1943 fez com que esse crescimento seacelerasse ainda mais.

Esses fatos são provas das tentativas de adaptação de umpaís a circunstâncias radicalmente diferentes das que prevaleciamaté então. A incerteza era sensível, e muitas pessoas considera-vam que a tendência dos novos acontecimentos significava apenasum distanciamento do que deveria ser o caminho norma! da Argen-tina para o desenvolvimento. A maioria das pessoas ainda via a ati-vidade agrícola como o fundamento imutável da economia argenti-na, e os planos do governo para a promoção do desenvolvimentoindustrial frequentemente incluíam incentivos ainda maiores para osetor agrícola. A vitória de Perón e do populismo exigiriam que cir-cunstâncias novas e dramáticas conduzissem o processo de de-senvolvimento argentino. E também exigiriam algumas pessoas -começando com um embaixador norte-americano inacreditavel-mente inepto, até a encantadora Evita, e o principal personagem dodrama, o Coronel Juan Domingo Perón - cujas ideias e ações teri-am um papel crucial no futuro da Argentina.

NOS BRAÇOS DO CORONEL

Em junho de 1943 houve novo golpe de estado na Argentina. Aadministração instável e crescentemente desacreditada, encabe-çada por Ramón Castillo, soçobrou em uma Argentina dominadapela grande tensão gerada pelas dificuldades trazidas pela II Guer-ra Mundial e pela necessidade de tomar difíceis decisões. O antigoconflito comercial com os Estados Unidos - ainda mais aprofunda-do nos anos 30 - havia então chegado a urn confronto generaliza-do, com grande repercussão sobre o equilíbrio da balança de poderentre Brasil e Argentina na América do Sul. A Argentina optou poruma neutralidade provocativa, mas não havia dúvida sobre a suasimpatia pelo Eixo, tanto do público em geral quanto dos militares,embora o governo de Castillo, em muitos aspectos, tenha aderido auma política de facto favorável à Grã Bretanha (especialmente porhaver vendido grandes quantidades de carne a crédito). Depois dePearl Harbor e da entrada dos Estados Unidos na guerra, os acon-tecimentos se tornaram ainda mais sérios. Em janeiro de 1942, na

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Conferência Pan-Americana do Rio de Janeiro, a Argentina sabo-lou os esforços dos Estados Unidos de criar uma frentePan-Americana coordenada contra as potências do Eixo. Os Esta-dos Unidos reagiram com um bloqueio total contra a entrega de ar-mas para a Argentina, além de sanções de natureza económica.Entrementes, o Brasil emergiu como o maior aliado nor-le-americano na região, recebendo um apoio generoso dos Esta-dos Unidos, tanto militar quanto económico. Em 1942 a Argentinafoi abalada com rumores sobre uma iminente invasão brasileira euma intervenção direta dos norte-americanos nos pontos estratégi-cos do pais.

O humor prevalecente na Argentina, naqueles dias, pode serpercebido pela seguinte descrição sobre as celebrações de 1° demaio em Buenos Aires, em 1943, extraída da obra de Nathan Sha-char, To the Land of the Jaguars ("Rumo à Terra dos Jaguares"}:

/Jcj mil anliamericanox, antidemoiratav, prõ-ntizixtas c nucïo-milistii-i murcharam /><•/« Avenida Santa Fé. í/wafiatloraniciifcgritando: "morte aa.v /mrcM' hritãnicos!", "morte aoi jiitleitx!"c "neutralidade f i 'uxtillo "

Esse era o estado de coisas, quando ficou claro que Castilloliavia escolhido um velho senhor rural, com forte simpatia pêlos ali-.idos, como seu sucessor — oficialmente apenas um candidato àpresidência, mas as eleições fraudadas daquela época normalmen-k; davam a vitória ao candidato do presidente em exercício - fazen-do com que houvesse uma intervenção militar, sendo instalado noPalácio Presidencial o General Pedro Ramírez.

Entre os personagens por trás do golpe de 4 de Junho de 1943estava o Coronel Perón e um grupo secreto de jovens oficiais que.í: tornariam conhecidos pela sigla GOU (presumivelmente Grupo

./(.> Ofíciales Unidos). Eles eram oficiais fortemente favoráveis aoi ixo, que simpatizavam não somente com os esforços de guerra daAlemanha e da Itália, mas também com o modelo social introduzidonaqueles países por Hitler e Mussolini (a Espanha de Franco erai, inibem outra fonte de inspiração). Esses oficiais vinham de umaíuiiga tradição de nacionalismo, desprezo pela democracia e|no-germanismo nas forças armadas (a Academia Militar havia sido

.' Shachar2001,p. 267.

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formada por uma delegação militar alemã, e ainda havia professo-res alemães quando Perón lá estudou na primeira metade da déca-da de 1910). Isso foi claramente exposto quando o General Uriburutomou o poder de Yrigoyen em 1930, tendo o capitão Perón desem-penhado um ativo papel, o que inaugurou a sua rápida carreira du-rante os anos 30. O momento crucial na vida de Perón - um des-cendente de imigrantes italianos que conseguiram o sfaíus de clas-se média na Argentina - foi o período que ele passou na Itália (par-cialmente como adido militar) nas vésperas da II Guerra Mundial.Ele retornou à Argentina no começo de 1941, convencido da futuravitória das potências do Eixo e profundamente impressionado, aci-ma de tudo, com a personalidade e as políticas sociais de Mussoli-ni. No fascismo europeu, Perón encontrou a fórmula mágica quepoderia tornar a Argentina a nação poderosa, capaz de asseverar asua independência contra tudo e contra todos.

A influência fascista tornou-se visível nas ideias de Perón so-bre uma sociedade corporativa - "a comunidade organizada", comoele iria chamá-la - baseada na cooperação, controlada pelo Esta-do, entre os diferentes grupos de interesse na sociedade. O mesmoocorreu com a ideia de um desenvolvimento económico introverti-do, dentro do espírito de auto-suficiência ou autárquico, tão típicodos totalitarismos d aquele-tempo. Mas a influência do fascismo eraainda maior quanto aos métodos, acima de tudo a proposta de ga-nhar com o apoio das classes trabalhadoras c formar um movimen-to de massas favorável ao projeto social corporativo, e um forte cul-to do líder. Essa preocupação com a potencial importância das clas-ses trabalhadoras foi a grande inovação de Perón e o fundamentodo seu sucesso que estava por vir.

O oportunismo de Perón a esse respeito já era aparente emoutubro de 1943, quando ele acrescentou à sua importante funçãode subministro da Guerra a direção da Secretaria de Trabalho (De-partamento Nacional dei Trabajo), que ele rapidamente expandiue transformou na poderosa Secretaria do Trabajo y Bienestar So-cial ("Secretaria do Trabalho e Bem-estar Social"). ImediatamentePerón começou a buscar contato com líderes dos grandes sindica-tos, e interveio ao lado dos trabalhadores nas disputas sindicais.Demorou apenas até dezembro - depois que apoiou generososaumentos salariais - para ele ganhar o apoio do sindicato mais im-portante da Argentina, a Union Ferroviária. Então os ferroviários osaudaram como Primor Trabajador Argentino ("Primeiro Trabalha-dor Argentino").

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A escalada do conflito com os Estados Unidos - que, seguin-do-se à revelação da tentativa secreta da Argentina de comprar ar-mas da Alemanha, fez com que a Argentina fosse ameaçada comum boicote comercial total, a menos que rompesse completa menteas relações com a Alemanha-fez com que entre janeiro e fevereirode 1944 houvesse uma luta interna feroz entre os militares. Em fe-vereiro de 1944 o General Ramírez foi deposto por militarespró-Alemanha, logo após o anúncio de que a Argentina iria atenderao ultimato americano. O Vice-Presidente e Ministro da Guerra, Ge-neral Edelmiro Farrell - superior imediato de Perón - assumiu apresidência. Mas foi Perón que se tornou o homem mais poderosoda Argentina, tendo sido indicado para Vice-Presidente, Ministro daGuerra, Chefe da Secretaria do Trabalho e Bern-estar Social e Pre-sidente do Conselho de Planejamento para o pós-guerra.

Em breve grandes procissões à luz de tochas, de inspiraçãofascista, tornar-se-iam frequentes nas ruas de Buenos Aires, e a re-tórica nacionalista celebrava novos triunfos. O novo governo imedi-atamente traçou grandes planos para a expansão do exército ar-gentino. O número de oficiais e recrutas foi radicalmente aumenta-do, e a participação das Forças Armadas no orçamento nacionaldevou-se de 17%, em 1943, para 43%, dois anos mais tarde. Aindaninis importante para o futuro era a ênfase na mudança para um de-'.envolvimento económico crescentemente autárquico, característi-ca da nova gestão militar. Pesados investimentos governamentaisi ' ( t i infra-estrutura, prospecção e extração de matérias-primas {es-pecialmente minerais e petróleo) correram paralelos com fortes in-' entivos e renovada proteção às indústrias existentes no país. Al K utccão tarifária contra a importação de artigos de consumo foi ele-v.ida a níveis sem precedentes, e restrições de importações pormeio de quotas também foram introduzidas. Ao mesmo tempo, foii 11,ido um banco para o desenvolvimento industrial (Banco Industri-

f / i para facilitar o financiamento da expansão industrial.Durante esses anos Perón foi capaz de dedicar-se ainda mais

intensamente aos esforços de conceder favores às classes trabalha-'lui.is argentinas. Ele empregou uma combinação ardilosa de "ce-imura e chicote". Os líderes sindicais que aderissem ao sistema con-i.u.im com forte apoio através do papel conciliador do Estado -a Se-' lotaria de Trabalho, cujos conjuntos de medidas para conciliação'•MUI obrigatórios e onde as negociações entre os sindicatos deveri-. 1 1 1 1 ocorrer-, enquanto os líderes que não desejavam submeter-se.1 . novas condições de Perón eram combatidos portados os meios.

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A vencedora foi a Confederación General dei Trabajo (CGT), maissubmissa aos desígnios de Perón, que antes já havia excluído da dis-puta outras organizações mais independentes. Em 1945, o número desindicatos filiados à CGT era quase três vezes o que havia sido em1941. Foi assim que Perón criou a sua futura e sólida base de poder.

Além disso, Perón baixou grande número de decretos conferin-do grandes benefícios para os trabalhadores sob a forma de incre-mentos salariais, feriados, pensões, seguro contra acidentes, e as-sim por diante. Tudo isso, naturalmente, inspirou crescente oposi-ção contra ele, especialmente entre empregadores e outros círcu-los conservadores. A Confederação de Indústrias da Argentina(Union Industrial Argentina) já havia rompido com ele no final de1944, quando Perón emitiu um decreto forçando os empregadoresa fazerem um pagamento extra de salários no final do ano.

O fim da guerra e as esperanças de dias melhores conduzirama um crescimento dramático das disputas trabalhistas, que em1945 foram mais do que dez vezes superiores às de 1944. A tensãocomeçou acrescera partir de junho de 1945, quando a oposição aoregime militar - as auto-proclamadas Fuerzas Vivas (Forças Vivas)- mobilizaram-se contra as políticas de Perón, ao mesmo tempo emque os sindicatos mobilizaram-se em defesa delas. O embaixadordos Estados Unidos, Spruille Braden, também se juntou à contendacontra Perón e os ocupantes do poder. Grandes manifestaçõescontra o governo foram organizadas em 9 de setembro, e a primeiratentativa de golpe contra o regime militar foi ensaiada em 24 de se-tembro. Uma guerra civil parecia iminente, e o General Farrell co-meçou a dar-se conta de que a hora da derrota estava próxima. Apressão tornou-se muito forte, e o controvertido vice-presidente foiforçado a renunciar, em 9 de outubro, sendo preso logo a seguir, em12 de outubro.

Então muitos acreditaram que o jogo havia acabado, ao menosem relação a Perón, mas eles não haviam compreendido bem osacontecimentos dos dois anos anteriores. O Coronel não era ape-nas mais um oficial do exército, ele havia se tornado o principal lídertrabalhista da Argentina - o Peronismo havia nascido. Os lideressindicais - especialmente Cipriano Reyes, que liderava os operári-os da indústria frigorífica - e jovens oficiais leais a Perón começa-ram, com a ajuda de Eva Duarte, a mobilizar a resistência (Perón ahavia conhecido em janeiro de 1944 e iria se casar com ela logoernseguida). A hora da verdade chegou ern 17 de outubro. A popula-ção trabalhadora de Buenos Aires tomou as ruas em massa, en-

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cheu a Praça de Maio em frente ao Palácio Presidencial e exigiu a li-bertação de Perón. Um pouco do espírito desse dia crucial na histó-ria argentina pode ser percebido em algumas passagens da biogra-fia de Perón, escrita por Joseph Page.

A.i coisas começaram a agitar-se [tela manhã nu v subúrbios sujosque ligam La flato e fíuenox Airex. Km /írm.vci e Kn.\i>nadti, ov.vc-guidores ele Ci/iriaiio Revés evibiam-se novamente cantando"Queremos Perón ", juntamente com suas mulheres e filhos. EmAvellanetia c Lanús, já próximos a Buenos Aires, os trabalhado-res metalúrgicos também ganharam as niiis. Fábricas c oficinasfecharam, ou nem mesmo chegaram u abrir. Os trabalhadores dasestrada.1! de ferro declararam uma greve e cortaram o irâfcgo dechegada e sait/a da capital fedenil... No centro de liitenos Aires,ftorlciíos bem vestidos permaneceram nax calcadas einhuxbtica-dox com u iiivtivïto. Mttnijesttintcs de cabelos e pele escuros vesti-am macacões e outros li f MM iii' roupas uxadus pura o trabalho naslàbricits... Ktes carregavam buiideinix i' cartitzex improvisados,alguns com a fotografia de l'eròn: eles cantavam canções /xi/nila-/r.v com /ííjro.v versos compostos pura a ocasião: eles cantavampor seu coronel Kmhoru fosse um dia de primavera morno c mui-to úmido, e que ú noite algumas gotas de chuva chegassem a cairdo céu encoberlu, eles continuaram chegando.'

O General Farrel aproveitou a oportunidade para assumir ocontrole da situação. Perón foi imediatamente libertado e autoriza-do a falar, da sacada do Palácio Presidencial, para uma multidão ju-bilosa de 300.000 pessoas. Era a vitória dos pobres da Argentina,tos descamisados e os desprezados cabccitas negras ("cabecinhasnegras"), que agora se tornavam uma força com a qual a história daArgentina podia contar.

Poucos dias mais tarde, Farrell anunciou que uma eleição pre-sidencial ocorreria em fevereiro de 1946. Perón era o candidato ób-vio, em uma eleição na qual, graças ao embaixador americano, aescolha seria entre os Estados Unidos e a Argentina ou, corno foiclaramente dito naquele tempo, entre Braden e Perón. O resultadofoi inequívoco. Com 54% dos votos, Perón - em uma eleição semfraude - havia derrotado toda a oposição unida. A Argentina estavanas mãos do coronel.

l- Page. 1983, p. 128-129.

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P'

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PERÓN NO PODER

Desde o primeiro momento em que chegou ao poder, Peróndeixou muito claro que estava absolutamente determinada a man-ter as suas promessas. Ele fez uma previsão sobre o desenvolvi-mento económico, que não era de todo incomum naquela época, ecujo componente básico era a certeza de que o desenvolvimento in-ternacional do pós-guerra iria trazer ainda mais rupturas e tensõesdo que aquelas que se seguiram após a l Guerra Mundial. A II Guer-ra Mundial seria brevemente seguida por uma terceira, entre o co-munismo e o capitalismo, resultando na quebra completa do comér-cio mundial. Com essa perspectiva, um plano de cinco anos foi deli-neado, com o objetivo de tornar a Argentina praticamente autárqui-ca - ou seja, independente de outras nações para o seu desenvolvi-mento - até 1951. Esse seria o maior objetivo da agressiva políticaeconómica que Perón perseguiria entre 1946 e 1948, objetivandopreparar rapidamente a Argentina para um longo isolamento, bemcomo consolidar a base de poder de Perón entre os operários dopais. Nessa perspectiva, o futuro de longo prazo do setor de expor-tações tinha pouca importância. O negócio consistia em operar in-tensamente as indústrias de exportação, pelo tempo que fosse pos-sível e, da mesma forma, alardear as consideráveis reservas de ouroe de divisas acumuladas pela Argentina durante a guerra (que soma-vam, em 1945, US$ 1,2 bilhão em ouro e moedas conversíveis, eUS$ 430 milhões em moedas não-conversiveis / bloqueadas).

A política de Perón tinha como características principais: radi-cal redistribuição de renda a favor dos trabalhadores, avanço igual-mente radical nos recursos do setor agrícola, pesados investimen-tos no desenvolvimento industrial, ampla política de nacionalizaçãoe, por fim, a tentativa de construir uma sociedade corporativista es-tatal, de traços nitidamente fascistas. A isso devem-se acrescentarnovos conflitos com os Estados Unidos, o que no final dos anos 40impôs pesados reveses às exportações argentinas.

O aspecto mais espetacular em relação ao novo regime foi apolítica de redistribuição a favor dos assalariados, que elevou a po-pularidade de Perón a novas alturas. A redistribuição em massaque viria durante o primeiro período de Perón no governo (1946 -1952) foi uma consequência da política a favor dos trabalhadores,juntamente com sua mobilização espetacular. As filiações aos sin-cüctlos cresceram de pouco mais de meio milhão, em 1945, paraquase 2 milhões em 1949, e as greves explodiram. Em Buenos Ai-

res, por exemplo, o número de trabalhadores envolvidos em grevescresceu dez vezes entre 1945 e 1947. Todas as vezes as greves le-varam a uma conciliação favorável aos trabalhadores e à elevaçãodos ganhos reais a níveis recordes. Essa foi a razão pela qual ossalários reais de 1949, nas cidades, se tornaram 70% maiores doque em 1945. Como resultado, a participação dos salários (com osencargos sociais incluídos) na renda nacional apresentou um cres-cimento recorde, de 38,4%, entre 1943-44, para 45,4%, entre1947-49, e 49,5%, entre 1950-52.

Seguiu-se rápida expansão do mercado interno, tanto parabens industrializados quanto para produtos agrícolas. Isso estimu-lou o crescimento do setor industrial, mas também conduziu a umredirecionamento em massa da renda agrícola de exportação parao mercado doméstico. Por exemplo, mais de 80% da produção decarne da Argentina e quase 80% da produção graneleira, no come-ço dos anos 50, eram consumidos pêlos próprios argentinos. Tra-ta-se de um dilema clássico nas economias em que a exportaçãode commodities também representa um componente central doconsumo doméstico, o qual rapidamente cresce quando os traba-lhadores atingem melhores condições de vida (bens salariais, comodefine a Economia). Em tais circunstâncias, grandes redistribui-ções, sem o correspondente crescimento da produção, levam a umconflito entre as necessidades de exportação e o consumo interno.Mas este não era um fator de preocupação para o governo argen-tino, que, ao contrário, tinha a intenção de atingir um grau ainda maiorde isolamento.

O segundo componente da política de Perón, o ataque à rendadas indústrias de exportação, era a pedra de toque da estratégia donovo governo. Foi assim que partes significativas da redistribuiçãode renda, bem como a grande expansão das despesas públicas e arápida industrialização, deveriam ser financiadas. O agenciamentodessa transferência em massa de recursos do setor agrícola / interi-or para o Estado, a indústria e a economia urbana era feito peloinstituto Argentino para Ia Promoctón dei Intercâmbio ("IAPI - Insti-tuto Argentino para a Promoção Comercial"). O IAPI foi criado emmaio de 1946, por sugestão do magnata da indústria e presidentedo Banco Central, Miguel Miranda, que teria um papel-chave duran-te os primeiros anos de Perón no poder. Ele também foi o autor deum plano quinquenal que, ao menos no papel, pretendia transfor-mar a Argentina numa nação auto-suficiente.

Ao IAPI foi concedido o monopólio da compra de todos os prin-

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cipais produtos de exportação - sendo a lã a única exceção impor-tante - a preços por ele arbitrados. O IAPI vendia as commoditiesde exportação a preços internacionais correntes, apropriando-se dequalquer lucro decorrente da operação (em relação ao trigo, paratrazer apenas um exemplo, o IAPI pagava menos da metade dopreço internacional entre 1947 e 1949). Durante os anos 40, essaprática trouxe ao Tesouro argentino recursos substanciais para se-rem aplicados no desenvolvimento industrial ou nas reformassociais do governo e, não menos importante, no amplo trabalho be-neficente conduzido por Eva Perón, através da fundação que ga-nhou o seu nome, ern junho de 1948. Ao mesmo tempo, conce-deu-se pouca prioridade à agricultura, tanto para a obtenção de cré-dito quanto para importação (a importação de máquinas e imple-mentos agrícolas durante a segunda metade dos anos 40 não che-gava a um quinto das importações correspondentes à indústria).Além disso, a agricultura foi atingida por quedas de preços em rela-ção a outros produtos. Entre 1950 e 1952, o preço relativo dos pro-dutos agrícolas deteriorou-se em aproximadamente um terço, com-parativamente a 1937. Finalmente, havia o prolongado conflito comos Estados Unidos, que teve o efeito, em primeiro lugar, de excluir amaior parte dos produtos argentinos de exportação do mercadoamericano e, posteriormente - quando os americanos proibiram ogasto dos dólares oriundos do 'Plano Marshall com produtos daArgentina — de muitos mercados europeus.

Os efeitos da política do governo, além do bloqueio americano,tornaram-se muito evidentes em termos de queda na produção enos volumes de exportação. A redução na produção está claramen-te evidenciada no Gráfico 12, que mostra as mudanças ocorridas naárea cultivada com as quatro culturas exportáveis mais importan-tes, entre 1945 e 1952. Ainda mais importante, contudo, foi o efeitoa longo prazo dessa política antiagrícola, numa época em que ossetores agrícolas dos países competidores modernizavam-se am-plamente. A diferença de produtividade entre a Argentina e os Esta-dos Unidos aumentou ainda mais, tornando-se ainda mais difícil asua futura redução. O crescimento na produtividade agrícola nosEstados Unidos, entre 1935-39 e 1950-54 - e a produtividade dasfazendas americanas já era maior no começo do que a das argenti-nas - foi mais do que o dobro da obtida peia Argentina (48% contra21%).

GRÁFICO 12: ÁREA CULTIVADA 1945 -1952 (1945 = 1 00)

110

1945 1946 1947 1948 1949 1Q50 1951 1952

—•— Trigo —*— Mllra —•— Linhaça —•— Aveia

: Rock 1988, p. 370.

A longo prazo, esses acontecimentos lastrearam o declínio es-petacular da Argentina como nação exportadora, conforme ilustra oGráfico 14. Mas também haveria repercussões diretas sobre o ba-lanço de pagamentos e na grande diferença entre as exportaçõesdecrescentes e, até 1948, as importações em acentuado cresci-mento. O Gráfico 14 ilustra esses fatos entre 1945 e 1952, e refleteos problemas de balanço de pagamentos que haveriam de atingir aArgentina em seguida, na medida em que as reservas acumuladasdurante os anos da guerra iam se exaurindo.

A terceira característica da gestão de Perón foi a políticapró-industrial que, da mesma maneira que a política antiagrícola,Iraria consequências muito adversas para o futuro desenvolvimentoilo país. O desenvolvimento industrial de Perón se inspirou numapolítica que deprimiu as margens de iucro devido a fortes incremen-ïos salariais, mas ao mesmo tempo canalizou abundantes recursospara as indústrias, oriundos de créditos baratos oferecidos peloBanco Industrial. Além disso, a produção industrial foi estimuladapolo rápido crescimento do mercado doméstico que, graças a tari-l;is aduaneiras, restrições quantitativas às importações e taxas de! ãmbio diferenciadas, tornou-se cada vez mais infenso à competi-rão estrangeira.

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GRÁFICO 13: EXPORTAÇÕES COMO PERCENTAGEM DO PIB DA ARGENTINA(1928-1955)

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25

20

15

10

5

O1928 1935 1940 19-15 1950 1955

Fontes: Bulmer-Thomas. 1988, p. 74; Diaz Alcjandro 1970, p. 407.

GRÁFICO 14: EVOLUÇÃO DAS IMPORTAÇÕES E EXPORTAÇÕES,1945 - 1952], EM MILHÕES DE PESOS (A PREÇOS DE 1960)

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120

100

00

60

101945 1946 1947 1948 1949 1950 1951 1952

—*— Exportação —*— Importação

Fonte: Diaz Alejandro 1970, p. 407.

O resultado foi uma rápida expansão da indústria durante osprimeiros dois anos de Perón no poder, seguida de uma ligeira re-cessão entre 1948 e 1953 (ligada à crise no balanço de pagamen-tos e a uma deterioração económica geral), depois da qual o cresci-mento retornou ao final da era de Perón. O sobe-e-desce é ilustradono Gráfico 15. Mais importante, entretanto, que essas flutuações decurto prazo é o tipo de desenvolvimento característico do período.Perón levou a cabo uma política industrial que não tinha absoluta-mente qualquer relação com os objetivos de desenvolvimento delongo prazo, mas se casava perfeitamente com as intenções popu-listas. Em lugar de direcíonar os recursos para a criação de umamoderna base para a indústria de bens de capital, que era o calca-nhar-de-aquiíes da indústria argentina, ele permitiu que indústriasmais elementares, voltadas para a produção de bens de consumo,se expandissem pesadamente, com frequência sob a forma de pe-quenas fábricas que tecnologicamente estavam muito abaixo dospadrões de produtividade das indústrias das nações desenvolvidas.O fato é que o número de trabalhadores por empresas declinou du-rante esse período de crescente expansão industrial, o que significadizer que foi uma expansão baseada não em progresso tecnológicoe crescimento de produtividade, mas apenas no incremento do usode mão-de-obra. Em 1954, uma fábrica média americana tinha qua-se seis vezes mais empregados do que uma equivalente na Argen-tina.* Nesse sentido, o relativo atraso da indústria argentina foi agra-vado durante o período (veja Gráfico 11), tornando-se ainda mais de-pendente da importação de máquinas, produtos semi-acabados e dematérias-primas. Parece uma ironia da história que aquele governonacionalista, que queria tornar a Argentina mais forte e mais inde-pendente, a tenha tornado na verdade mais fraca e mais dependentedo mundo exterior do que jamais o fora antes.

O quarto elemento da política de Perón foi o seu esforço paraminimizar a influência do capital estrangeiro na Argentina, atravésde uma série de rápidas ações com grande apoio popular. A dívidaexterna foi paga completamente, e uma sucessão de medidas denacionalização que afetararn a infra-estrutura, o setor de serviços e

' N.T.: Para que a frase faça seníido no seu respectivo contexto ela deveria dizerque a indústria argentina - e não a norte-americana - deveria ter seis vezes maisempregados do que a dos EUA. Isto é exalamenle o oposto do que ela diz.

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os bancos, culminou em fevereiro de 1947 com a nacionalizaçãodas estradas de ferro britânicas (financiada quase que integralmen-te com as reservas argentinas de libras não-conversiveis). Nessesentido, o papel económico do Estado argentino expandiu-se consi-deravelmente, com a criação de algumas das empresas públicasmais deficitárias que se possa conceber.

GRÁFICO 15: PRODUÇÃO INDUSTRIAL 1945-1955 (1945 - 100)

1945 19.16 1947 194R 1949 195U 1951 1952 1953 1354

Fome Diaz Alejandro 1970, p. 415-416.

Por último, o governo de Perón foi caracterizado por várias ten-tativas de estruturar uma sociedade corporativa-estatal com caracte-rísticas fascistas. O controle sobre os sindicatos era vital, e foi obtidocorn a mistura de recompensas e punições que Perón com muita ha-bilidade havia utilizado anteriormente. Líderes recalcitrantes erampostos de lado ou perseguidos, enquanto os dóceis eram regiamenterecompensados. Eva Perón desempenhou um papel-chave, na ver-dade controlando a toda-poderosa CGT. Simultaneamente, houvea formação de um novo partido político (conhecido, a partir de de-zembro de 1947, como Peronista), notabilizado, acima de tudo, porsua lealdade a Perón (que passou então a ser chamado de e' Líder,ou ei Conductor- o Führer-cotno ele mesmo preferia ser chama-do) e à Evita (mais tarde elevada pelo Senado a Jefa Espiritual de Ia

Nfídón, "Chefa Espiritual da Nação"). A lealdade a Perón foi tam-bém obtida através de expurgos sistemáticos dos partidários menosobedientes, um crescente culto à personalidade e um governo "deuma para baixo" (verticalidad), culminando com a transformação dolíder em titular de plenos poderes para alterar a política partidária esubstituir todas as lideranças como bem quisesse.

Ao mesmo tempo, foi posta em marcha uma "peronização" doLstado argentino, das universidades e da mídia. Milhares de pro-fessores universitários foram demitidos, a Suprema Corte perdeu asua autonomia e políticos proeminentes de oposição, como RicardoBalbin, líder do Partido Radical, foram presos. Grandes vitórias elei-torais, tanto em 1948 quanto em 1951 (quando Perón foi reeleitocom 64% dos votos, na primeira eleição com o sufrágio feminino},reduziram o espaço institucional da oposição a praticamente nada.Uma nova Constituição foi adotada em 1949, e a doutrina social dePerón (Justicialismo, derivado dejusticia social, "justiça social") tor-nou-se o fundamento ideológico da nação.

No começo de 1950, Perón intensificou os esforços para ex-pandir o corporativismo estatal, criando La Comunidad Organizada( A Comunidade Organizada"), a firn de arregimentar outros setoressociais que não fossem de trabalhadores em associações controla-das pelo Estado. Organização análoga já havia sido formada porempregadores em 1951, e outras foram posteriormente criadaspara os empregadores do setor público, estudantes universitários,profissionais autónomos e até mesmo estudantes colegiais, mas ja-mais adquiriram a importância e a força social do movimento sindi-cal peronista.

Paralelamente à "peronização" do Estado e ao seu domíniocorporativo crescente sobre a sociedade, tanto suas funções como:,cu poder pessoal haviam crescido. As despesas públicas literal-mente explodiram em 1947 e 1948, elevando-se a níveis equivalen-tes a 34,3% da renda nacional argentina, i.e., mais do que o dobrodo nível verificado ern 1943-44. A sociedade argentina se tornou(,ada vez mais regulamentada, e o aparato do Estado, juntamentecom o controle dos sindicatos sobre amplos segmentos do sistemalirevidenciário (conhecido como obras sociales), geraram grandesnportunidades de emprego e de vantagens para os partidários dePerón. Dessa maneira, o Estado - compreendendo as administra-ções nacional e provinciais e os empreendimentos públicos - tor-nou-se o principal agente da economia nacional argentina, facil-mente explorável por indivíduos ávidos perfazer carreira e obter pri-

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vilégios (em 1954 o números de empregados do setor público haviacrescido para 725.000 pessoas, comparado à média de 370.000funcionários entre os anos de 1940 e 1944). Criou-se uma situaçãoque se tornaria um dos problemas mais sérios da Argentina, a cres-cente corrupção política e a luta por privilégios.

A realidade, entretanto, brevemente imporia um paradeiro aoprograma nacional-populista de Perón. O rápido crescimento verifi-cado até 1948 desestabilizou a economia argentina, e foi seguidode um declínio acentuado, que atingiu seu ponto mínimo em 1952.A pesada expansão do setor público e a pressão de custos geradapelas elevações salariais conduziram à aceleração da inflação, oque foi acompanhado por sérios problemas no balanço de paga-mentos e pesadas restrições às importações. A inflação ocorriacomo consequência do orçamento desequilibrado e da demandacrescente que não era atendida pelo crescimento genuíno da pro-dução. Mas a inflação também foi uma ferramenta essencial na dis-puta distributiva entre os diferentes grupos da sociedade Os em-pregadores responderam à crescente pressão por salários mais al-tos com a elevação de preços que, a seu turno, conduzia a novasexigência salariais, numa espiral em que a Argentina iria mergulharmuitas vezes nos anos vindouros.

No Gráfico 16 pode-se observar a correÇação entre renda percapita nacional, salários reais, gastos públicos e inflação. O que sepode constatar é um tipo de ciclo económico, que pode ser denomi-nado ciclo populista. Ele começa com uma política fortemente ex-pansionista que "dá dinheiro para todos", o que no curto prazo levaa um crescimento, mas cujo preço são crescentes desequilíbrios -déficits orçamentário e comercial, elevadas pressões de custos edemandas, etc. - e crescente inflação, o que, após dois ou trêsanos, leva a economia ao declínio, necessitando de modidas enér-gicas de estabilização - desvalorização, orçamento austero c con-gelamento de preços e salários, por exemplo. Isso aconteceu nosanos de crise entre 1949 e 1952, obrigando a Argonlirui a enfrentarum primeiro plano de estabilização, imposto por Pt:ron, numa retra-tação política tão espetacular quanto a feita por Curiós Menem 40anos mais tarde.

O que então se viu foi Perón congelando os saUios o tentandocriar melhores margens de lucros para os Rmpr<í<|ad(>ms, encora-jando os investidores estrangeiros - até mosmn ;i <l<-U;stada Stan-dard Oil - a virem para a Argentina; apoiando a indiiMna agrícola,ao invés de estrangulá-la; desvalorizando o [».";<> <.• <.nlo<;ando um

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freio no crescimento da demanda interna, de forma a encorajar asexportações; tentando redirecionar os recursos para as indústriasde base, ao invés de concentrá-los nas indústrias de bens de con-sumo; e dando prioridade para as grandes indústrias. Os últimosIres anos de Perón no poder foram marcados pela luta contra a in-flação e também por um orçamento mais equilibrado e pela melho-ria no balanço de pagamentos. Nesse sentido, ele foi bem-sucedidoem reverter a espiral negativa, e a Argentina, uma vez mais, pôdeexperimentar um bom crescimento entre 1953 e 1955. O Gráfico 17oferece um amplo quadro dos acontecimentos da administração dePerón (1946-55), mostrando tanto o crescimento anual, quanto acu-mulado do Produto Nacional Bruto per capita.

GRÁFICO 16: PNB PER CAPITA. SALÁRIOS REAIS, GASTOS PÚBLICOS EINFLAÇÃO. 1946 - 1952 (VARIAÇÕES PERCENTUAIS)

1946 1947 1948 1949 1950 1951 1952

• FNB per capita U Salários reais U Inflação n Gaslos públicos/PNB

Fontes: Díaz Alejandro 1970, p. 417, 421 e 527-528; Vitelli 1999, p. 372.

Mas uma economia mais saudável não poderia salvar Perón,ainda mais agora, quando os anos da abundância populista haviamterminado. De 1952 em adiante os seus inimigos começaram a ga-nhar força, e a eles aderiram novos e poderosos oponentes, entreos quais a Igreja e alguns militares. O seu estilo de governo autoritá-rio e crescentemente arbitrário não deixava de hostilizar grande nú-mero de pessoas. Além disso, Eva Perón morreu aos 33 anos, de

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câncer, em 1952. Perón perdeu não somente um apoio pessoal,mas uma tribuna de primeira linha. Confrontações selvagens ocor-reram em 1953, e tanto os escritórios da oposição quanto o venerá-vel Jockey Club foram vandalizados. Em 1954 o pais foi abaladopor uma epidemia súbita de greves, e em meados de 1955 o paísestava à beira de uma guerra civil.

GRÁFICO 17: PIB PER CAPITA, 1946 - 1955. VARIAÇÃO ANUAL EACUMULADA (1945 = 100)

1945 1946 1947 1948 1949 1950 1951 1952 1953 1954 1955

-10 L

"J Variação Armai -Variação Acumulada

Foiiíe: Díaz Alejandro 1970, p. 417 e 421.

Demonstrações de rua pró e contra Perón se sucederam no in-verno de 1955, e choques violentos se tornaram cada vez mais co-muns. Em 11 de junho, algumas centenas de milhares de oponen-tes de Perón reuniram-se, nas festividades de Corpus Chrísti, parauma marcha silenciosa sob a bandeira papal. Poucos dias depois,uma multidão ainda maior de aliados de Perón juntou-se numa con-trademonstração, que terminou com centenas de mortes, comoconsequência de um bombardeio feito pela aviação naval contra amultidão. Em seguida, os peronistas lançaram um ataque violentocontra os seus opositores e a Igreja, com vários templos incendia-dos. Inúmeros incidentes violentos se repetiram, e em 31 de agosto- no mesmo dia em que o estado de emergência foi reintroduzido -

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Perón fez o discurso mais agressivo de sua vida, conclamando seuspartidários a fazerem justiça com as próprias mãos e prometendoque cinco oposicionistas morreriam para cada peronista morto.

/-Vvc»fi;,v responder à violêm-iu com maior violência... QuemÍ/UÍ.T que H>/a, 'ido importa ontle, i/iu- </ni'im mudar a ardem c.v-taheledJa ... pude ser morto por (/u<il</itcr<iri>f>i/ii><>uni dm nossos cair, cinco i/c/c.v

Em face dessa invocação fatal de uma guerra civil, não foi difí-cil para os oponentes de Perón nas forças armadas deslancharema revolta que, após a ameaça da marinha de bombardear o paláciopresidencial, levou à renúncia de Perón em 19 de setembro de1955. O próprio Perón se refugiou a bordo de um navio militar pa-raguaio e poucos dias depois voou para Assunção, iniciando umlongo exílio que duraria até o seu retorno triunfal à Argentina, em20 de junho de 1973. Perón deixou a Argentina, mas o peronismoficou.

RUMO AO ABISMO

Entre a renúncia de Perón, ern 1955, e o seu retorno como pre-sidente da Argentina, em 17 de outubro de 1973, o país teve 10 dife-rentes presidentes, cinco dos quais generais. Administrações mili-tares repressoras foram sucedidas por administrações civis fracas,que a seu turno foram expulsas por novas ditaduras militares, numasucessão de golpes militares, tornando o país cada vez mais difícilde ser governado. Economicamente, a Argentina caracterizou-sepor ascensões e quedas, ocasionadas por novos ciclos populistasde expansão, inflação, problemas no balanço de pagamentos, cri-ses, desvalorizações e austeros pacotes de estabilidade, tudo re-sultando em poderosas tensões sociais. O antigo atraso da Argenti-na, comparado com muitas outras nações - que havia começadonos anos 30 e se agravado nos anos de Perón - iria agora continu-ar, especialmente em comparação com outros países que, em me-ados dos anos 50, eram semidesenvolvidos ou subdesenvolvidos.

4- Page 1983. p 315.

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Isso pode ser visto no Gráfico 18, no qual o crescimento da rendapor capita na Argentina, entre 1955 e 1974, é comparado comaquele de 11 outras nações. Como pode ser visto, o crescimento daArgentina ficou entre metade e um quarto do verificado em outrospaíses. Isso indica as enormes oportunidades que a Argentina des-perdiçou, num momento internacional de muito dinamismo.

GRÁFICO 18: PIB PER CAPITA, CRESCIMENTO PERCENTUAL ACUMULADO(1955-1974)

Argentina

Turquia

México

Irlanda

Finlândia

Brasil

Itália

Coreia do Sul

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Espanha

Grécia

Portugal

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pela Argentina e sua crescente instabilidade.Em termos económicos, os problemas da Argentina foram do-

minados pela estrutura que, com todas as intenções e propósitos,já havia sido criada antes da l Guerra Mundial, e que fora chamadade economia semifechada, com uma indústria introvertida e debaixo padrão, que deveria ser protegida de várias maneiras e quesobrecarregava as indústrias de exportação com crescentes ne-cessidades de importações. O dilema argentino de meados dosanos 50 era de certo modo simples. Sem mecanismos mais fortesde proteção e de intervenção política, amplos segmentos da ex-tensa indústria que emergiu entre 1930 e 1955 estariam em gran-des dificuldades. O diferencial de desenvolvimento tecnológico,comparado com o das nações industrializadas, era demasiada-mente amplo. A esse respeito, a posição da Argentina era muitomais difícil do que a de nações emergentes, que não eram força-das a proteger uma indústria ultrapassada ou a desmantelá-la,com todos os consequentes custos económicos e sociais. AArgentina, então, afligia-se com um típico problema que usual-mente atingia velhas nações industriais, quando suas estruturaseconómicas se tornavam obsoletas em comparação com as estru-turas mais dinâmicas das nações modernas.

Uma reestruturação radical das indústrias então existentes naArgentina foi algo que nenhum governo havia contemplado seria-mente. Os industriais se mobilizaram num tobby muito importante, eos trabalhadores das indústrias eram não somente numerosos -acima de 2,3 milhões, ou 30% da força de trabalho do país, se fos-sem incluídos os trabalhadores da construção civil -, mas bem or-ganizados e ativos. Além disso, o espírito daqueles tempos era do-minado por ideologias nacionalistas de desenvolvimento que viam,numa estratégia de industrialização introvertida, planejada e prote-gida, a solução para os países menos desenvolvidos ou semide-senvolvidos. Tudo isso explica porque a Argentina continuou tantotempo num caminho que não passava de um corredor escuro.

A política de protecionismo industrial foi intensificada por tari-fas alfandegárias crescentes, mas ainda mais importante foi o arse-nal de medidas intervencionistas postas em operação na forma derestrições quantitativas às importações, licenças de importação,proibição de importações a múltiplas taxas de câmbio Em 1958, aproteção que esses diferentes instrumentos ofereciam à indústriaArgentina elevou-se a níveis extraordinários - 133% na média, parabens de capital, e 164% para artigos de consumo manufaturados,

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segundo Littie, Scitovsky & Scott5 - e esses níveis seriam elevadosainda mais nos anos seguintes.

A capacidade de exportação da indústria, evidentemente, ficoumuito limitada - nern chegava a 1 % a produção industrial argentinaque era exportada em meados dos anos 60 -, mas ao mesmo tem-po a dependência das exportações aumentou consideravelmente.Em meados dos anos 60, os bens de consumo perfaziam apenas10% das importações. O restante compreendia matérias-primas,produtos se mi ma n ufa lurados, combustíveis, material para constru-ção, máquinas, ferramentas e meios de transporte. Portanto, a de-pendência do setor tradicional com relação às exportações cresceumais ainda, mas aquele setor não mais apresentava o tipo de cres-cimento dinâmico capaz de assegurar as necessidades de importa-ção crescente das indústrias (as exportações da Argentina aumen-taram menos do que 1% anualmente entre 1958 e 1968, um núme-ro espantosamente baixo, considerando que o comércio mundialnaquele mesmo período cresceu 7,8%, anualmente). A economiaargentina continuava então sujeita a pesadas restrições e a repeti-dos choques externos, relacionados às flutuações dos produtosagrícolas nos mercados internacionais. Conseqüentemente, a lutapêlos restantes - em relação às necessidades1,- e escassos meiosde pagamento internacionais se tornou ainda mais importante.Além disso, as intervenções políticas e as regulamentações se tor-naram inevitáveis, alimentando a disputa por privilégios O grupo ousetor de atividade económica sem contatos ou influência política di-ficilmente poderia sobreviver em um ambiente onde as decisõespolíticas haviam se tornado de enorme importância económica

O controle estatal do comércio exterior t; dos fluxos de trocacresceu paralelamente a muitas outras medidas intervencionistas,até finalmente a economia argentina adquirir um;i estrutura económi-ca completamente caracterizada como neomercanlilista. O papel de-cisivo da política sobre a economia forçou c;id;i tjrupo dentro da soci-edade a se organizar, a fim de loymr sucesso no conflilo distributivoque paulatinamente guardava m<;noi; rr!.i<,,io com a contribuiçãoprodutiva de cada grupo Uma insliihilul.nle crescente e repentinastendências inflacionárias torn.ir.im ;;<• (.omponuntes constantes daluta distributiva durante íi IOIKJ.I m.iri h,i < i , i Artjoiilina em direção à

5- Litlle, Scilovsky & Si.oll

hiperinflação de 1989-90. O resultado foram novas intervençõespolíticas e a regulamentação crescente da estrutura de preços, al-ternadas com períodos de liberalização, que geravam novas ten-sões e, a seu turno, faziam com que a luta por influência política fos-se ainda mais importante como meio de competição económica.

Os gastos públicos expandiram-se pesadamente nessa econo-mia crescentemente politizada, e já em 1975 excediam a 30% doPIB. Mas o financiamento dessa expansão tornou-se crescente-mente dúbio, resultando em enormes déficits orçamentários: o défi-cit anual para 1973-75 foi, na média, equivalente a 10,3% do PIB ar-gentino - e era frequentemente coberto pela impressão de dinheiro,o que a seu turno significava novas tendências inflacionárias e cres-cente instabilidade. As expansões e contrações da economia ar-gentina tornaram o pais cada vez mais dependente de pacotes desalvamento do FMI (dez acordos, entre 1954 e 1980, o que torna aArgentina o "cliente" mais importante da América Latina), o que exi-gia medidas de austeridade e melhorias competitivas, o que imedia-tamente ocasionava grandes dissensões e greves, dando novoalento à retórica nacionalista e antiimperialista, que sempre teve umpapel importante na vida económica da Argentina.

Em termos de desenvolvimento, em meados da década de1950 a Argentina adotou urna política que pode ser denominadasubstituição de importações. A questão agora era avançar para pro-dutos tecnicamente mais sofisticados, como veículos, equipamen-tos de telecomunicações, máquinas e outros bens de capital. Seriaum passo necessário para aliviar os sérios problemas com a balan-ça comerciai que o tipo de desenvolvimento industrial havia ocasio-nado. A indústria argentina tinha pouca capacidade para entrar nes-ses novos setores de maneira ampla. Aqui, os efeitos negativos domodelo económico, sem nenhum dinamismo tecnológico ou produ-ção própria de tecnologia, se faziam sentir. O nome da solução: em-preendimentos transnacionais.

Perón foi o primeiro a dar-se conta disso, rodeado pelas ruínasda experiência nacional populista, iniciada por ele mesmo em 1946.Uma lei estimulando o investimento estrangeiro foi promulgada em1953, e um acordo inicial já havia sido assinado um ano antes coma FIAT, da Itália. Quatorze outras corporações multinacionais foramautorizadas a abrir subsidiárias no país, entre 1953 e 1955, dentreelas a Mercedes Benz e a Motores Kaiser, de Detroit. Mas foi ape-nas um modesto começo. Brevemente, Ford, Renault, Peugeot, Ci-troen, Firestone, IBM, Duperial, Olivetti, Coca-Cola e muitas outras

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grandes corporações estabeleceram-se na Argentina. O PresidenteArturo Frondizi (1958-62) tornou a implantação de novas trans-nacionais a pedra de toque de sua estratégia de desenvolvimento,que ele denominou desarrollismo ("desenvolvimentismo"). Já em1963, dos 88 empreendimentos industriais que empregavam maisdo que mil trabalhadores 35 eram controlados por estrangeiros, emuitos mercados foram dominados por firmas transnacionais insta-ladas recentemente no país.

Fazer com que as grandes corporações construíssem instala-ções industriais em um país cujo mercado poderia ser atendido mui-to mais eficientemente com produtos importados, era uma tarefaque exigia uma intervenção protecionista ainda maior. A única ma-neira de conseguir esses "mal-investimentos" era reservar a totali-dade do mercado nacional em questão para os produtos industriaisproduzidos no país. Como F.G. Donner, Presidente da General Mo-tors comentou, a GM, como qualquer outro grande fabricante de ve-ículos, "teve que escolher entre fabricar na Argentina ou retirar-sedaquele mercado". Foi assim que a Argentina conseguiu a sua in-dústria automobilística, embora em muitos casos a um custo muitoelevado para os consumidores. A produção na indústria automobi-lística argentina era muito inferior aos padrões normais internacio-nais. Em 1960 havia 21 indústrias de veículos para um mercado de100.000 carros por ano, i.e., um mercado que, para os padrões pro-dutivos do período, dificilmente seria suficiente para um ou dois fa-bricantes. Desse modo, um caminhão produzido por uma compa-nhia americana na Argentina, ern 1967, custava 145% mais caro doque nos Estados Unidos!

O grau de ineficiência, naturalmente, variava de indústria paraindústria, havendo algumas que, passado algum tempo, podiamoperar de forma relativamente eficiente, inclusive exportando umaparte da sua produção, ainda que, com alguma frequência,sub-repticiamente e com muito apoio político. Isso já era notado -até por um certo número de indústrias argentinas - no começo dosanos 70, quando as exportações industriais elevaram-se de menosde US$ 100 milhões, em 1969, para um pouco menos de US$ 900milhões, em 1974, apontando para a existência de um número limi-tado, mas não insignificante, de potencial exportador em segmen-tos de uma indústria tradicionalmente introvertida.

A instalação de corporações transnacionais na Argentina tam-bém teria efeitos importantes no balanço de pagamentos. A expec-tativa era de que esses empreendimentos aliviariam a carga criada

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pelo desenvolvimento industrial, mas o efeito imediato foi exata-rnente o oposto. A demanda de importações cresceu pesadamentequando as empresas se estabeleceram na Argentina, uma vez quenão havia matérias-primas e certos produtos disponíveis no merca-do local. Um exemplo típico, novamente, é o da indústria automobi-lística que se desenvolveu na Argentina nesse período, especial-mente em Córdoba. Entre 1959 e 1970, a balança comercial foi so-brecarregada com US$ 900 milhões de importações feitas pela in-dústria automobilística, cujas exportações, no mesmo período, tota-lizaram apenas US$ 45 milhões. Um fluxo financeiro negativo - in-vestimentos comparados com lucros repatriados - de US$ 133 mi-lhões foi registrado peio balanço de pagamentos no mesmo perío-do, fazendo com que a Argentina tivesse um déficit superior a um bi-lhão de dólares.

A esperança consistia, naturalmente, em que as corporaçõestransnacionais iriam trazer e disseminar uma nova cultura corporati-va e incrementar os processos de transferência de tecnologia e demodernização industrial. Inegavelmente foi o que aconteceu, demuitas maneiras. A Argentina ganhou acesso a indústrias que asempresas locais não teriam capacidade de desenvolver. Mas o pro-cesso foi contraditório. O desenvolvimento Argentino, com os seustraços acentuadamente mercantilistas, compeliu os novos empre-endimentos a se adaptarem a um cenário económico e político mui-to diferente daquele de seus países de origem. Foi na verdade umprocesso natural, que demonstra a importância dos marcos estrutu-rais e institucionais que circundam e moldam o mundo de negóciosde um determinado pais. Agir de uma maneira "capitalista", ou seja,da maneira como as pessoas faziam nos Estados Unidos e na Eu-ropa Ocidental, teria sido uma arrematada loucura na Argentina. Afim de esclarecer esse ponto - e ao mesmo tempo lançar luzes so-bre o processo micro-econômico típico do "modelo de desenvolvi-mento argentino" -, pode ser interessante examinar mais detida-mente o que se denomina perfil argentino de negócios - na verda-de, latino-americano, porque os tormentos da Argentina a esse res-peito foram compartilhados pelo resto da região. O que surge é umtipo específico de perfil corporativo, resultante da estrutura de eco-nomias semifechadas, com mercados domésticos limitados e forteselementos m érea niilistas.

Esse perfil foi basicamente moldado pelo alcance limitado domercado - vale dizer, do protegido mercado doméstico -, que per-mitia apenas uma pequena produção industrial, normalmente um

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quinto ou menos do que era normal em nações desenvolvidas du-rante os anos 60 e 70, exigindo um amplo mix de produtos de formaa alcançar uma produção razoável. Em vez de uma crescente espe-cialização, padronização e ganhos de escala, a indústria apresen-tou uma tendência a buscar vários mercados, o que naturalmenteafetava as suas escolhas, tanto em termos organizacionais quantotecnológicos.

Esse perfil foi também marcado pela grande incerteza com aqual as empresas tinham que lidar diariamente. Isso poderia signifi-car qualquer coisa, desde inflação galopante, cuja real consequên-cia era muito difícil de prever, a mudanças bruscas nas taxas cam-biais, ondas de greves, sérios confrontos políticos e reversões re-pentinas da política económica. Conviver nesse ambiente de incer-teza e proteger-se contra as incertezas resultantes exige, evidente-mente, elevados gastos que podem ser denominados custos socio-políticos de transação. Os empresários responderam a esse desa-fio buscando ficar o mais distante possível das incertezas, o que seconseguia parcialmente por meio da integração vertical, i e., fazen-do o máximo possível de operações dentro do próprio negócio, bemcomo constituindo vastos estoques de todosybs produtos concebí-veis. De forma muito simples, foram criadas organizações muito ca-ras e grandes estoques de commodities como precaução contra asincertezas dos mercados e os caprichos da política. Nos países de-senvolvidos, após a II Guerra Mundial, a tendência era exatamenteoposta. Crescente estabilidade, instituições confiáveis e economiaspaulatinamente mais abertas, bem como o desenvolvimento dascomunicações, tornaram os mercados mais seguros e reduziram oscustos de transação, facilitando, consequentemente, tanto a espe-cialização industrial quanto a redução de estoques

Os negócios na Argentina tornaram-se, enfim, inteiramente do-minados pela incontrolável importância da política sobre- a econo-mia nacional. Nessas circunstâncias, influenciar o sistema políticoera pré-requisito absoluto de sobrevivência, exigindo que as pesso-as mobilizassem muitos esforços em um jogo no qual havia muitopouco de utilização eficiente de recursos, mas que era ideal para aprática da corrupção, tanto para as grandes quanto para as peque-nas coisas. Os advogados e as pessoas com os nomes certos econtatos políticos eram os facilitadores estratégicos para as corpo-rações. Grandes departamentos surgiram denlro das empresaspara lidar com uma burocracia infindável e as atividades de lobby, aque abria caminho para a obtenção de licenças de importação

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vitais, contratos públicos importantes, permissões indispensáveispara iniciar operações, crédito barato, preços especiais, taxas decâmbio menores, e assim por diante. O resultado foi um colossaldesperdício de recursos, engendrando estruturas empresariasanormais e uma mentalidade empreendedora mercantílista.

Passando da esfera económica para a política, encontramosoutras importantes estruturas e conflitos que interagiam com a eco-nomia durante a triste peregrinação rumo ao abismo. O absurdo dasituação pode assirn ser descrito: o Peronismo não apenas sobrevi-veu ao exílio de Perón, como permaneceu a força política e socialmais importante da Argentina, com bases sólidas no movimentosindical daquele país. A popularidade do peronismo possibilitou queseus adeptos ganhassem cada uma das eleições de que puderamparticipar ou exercessem uma influência crucial naquelas eleições- a maioria - das quais foram excluídos. Os peronistas podiam, defacto, tanto fazer quanto destituir governos, mas não lhes era permi-tido governar diretamente. O impedimento provinha de outro gran-de ator do cenário político argentino de então, os militares. Os pero-nistas tinham o objetivo estratégico de tornar a Argentina ingover-nável sem Perón. Os militares tinham o objetivo de excluí-lo do po-der. E nenhum dos lados foi capaz de atingir seu objetivo, numa lutaque provou-se crescentemente ruinosa para a Argentina. Como ín-terlúdio dessa disputa entre militares e Peronistas, várias constela-ções dentro do Partido Radical foram periodicamente autorizadas agovernar, mas sem base sólida de poder e sem chance de conse-guir controlar os militares ou os peronistas.

Esse jogo impossível sofreu uma reviravolta importante ao finaldos anos 60, sob a cruel ditadura do General Onganía (1966-70).Novos ventos começaram a soprar na América Latina, após a revo-lução cubana. Novos grupos esquerdistas formaram-se por toda aparte, e a Argentina não foi exceção. Vários segmentos do movi-mento peronista radicalizaram-se, e uma nova geração de líderessindicais, juntamente com trabalhadores crescentemente ativos -muitos oriundos das novas fábricas controladas por estrangeirosque surgiram, por exemplo, em Córdoba -, escalaram considera-velmente a resistência laborai. O ano de 1969 provou ser um pontode inflexão nesse processo. Os estudantes e trabalhadores se uni-ram ao redor de algumas causas comuns, em uma onda de grevese manifestações que culminaram em maio de 1969 com o famosoCordobazo, quando o Governo perdeu o controle sobre a segundaprincipal cidade argentina, o centro e o motor da sua indústria.

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Page 42: A Crise Da Argentina

Igualmente preocupante, senão mais, foi o surgimento de vári-os grupos armados de resistência, tanto de inspiração peronistaquanto de inclinação marxista, em 1970. O cônsul paraguaio foi rap-tado em março de 1970, e em junho o General Aramburu, uma dasfiguras centrais no golpe que depôs Perón e Presidente da Argenti-na entre 1955 e 1958, foi executado. A direita imediatamente orga-nizou grupos correspondentes, os quais, com o apoio da polícia edos militares, revidaram de maneira brutal os atos dos ativisías deesquerda. Seguiu-se uma espiral de violência que em poucos anosconverteria a Argentina numa nação de terror.

Foi nesse estágio que os militares entregaram o pais a seu an-tigo rival. Eles chegaram à conclusão que somente Perón - que ha-via completado 75 anos em outubro de 1970 - poderia dar à Argen-tina um governo estável e um novo começo. Francamente, não ha-via mais ninguém que realmente pudesse contar com semelhanteapoio popular. Essa conversão por trás dos bastidores calçou o ca-minhou do retorno de Perón ao poder três anos mais tarde. Era a úl-tima esperança da Argentina, que rapidamente se esvaneceria. Pe-rón, já ancião, obteve urna esmagadora vitória nas eleições de1973, mas iria governar apenas por pouco^meses. No dia primeirode julho de 1974 Juan Domingo Perón morria de um ataque cardía-co. Restava para a Argentina apenas o abismo.

O ABISMO

Quando, em 20 de junho de 1973, Perón retornou a Buenos Ai-res, não havia somente centenas de milhares de partidários argenti-nos entusiasmados aguardando-o no aeroporto de Ezeiza. Essedia, de seu grande triunfo, seria encharcado de sangue, antecipan-do os terríveis dias que a Argentina teria diante de si. Peronistas dedireita e de esquerda confrontaram-se. Os peronistas de esquerdacantavam: "Perón, Evita, Pátria socialista!". Os peronistas de direitaretrucavam: "Perón, Evita, Pátria peronista!". O caos logo se insta-lou, e a força das armas se impôs. Ambos os lados estavam forte-mente armados, e a situação terminou com centenas de mortes,passando aquele dia para a história como "O Massacre de Ezeiza".

Os acontecimentos de Ezeiza eram sintomáticos da situação daArgentina no começo dos anos 70. O retorno de Perón pouco contri-buiu para arrefecer a violência. Os peronistas de esquerda, perten-centes a uma organização guerrilheira chamada de Montoneros, de-

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clararam guerra a /os burocratas, ou seja, ã velha guarda mais con-servadora de peronistas do movimento sindical. José Rucei, secre-tário-geral da poderosa CGT, foi assassinado em setembro de1973. Em janeiro de 1974, o Ejército Revolucionário dei Puoblo("ERP - Exército Revolucionário do Povo"), de inclinação trotskista,lançou um ataque maciço contra o destacamento militar da cidadede Azul. Ao mesmo tempo, a Alianza Anticomunista Argentina (AAA- "Aliança Anticomunista Argentina"), que mais tarde se tornaria tãotemida, surgiu no outro extremo.

Depois da morte de Perón, o inferno se instalou. Sua viúva, Isa-bel, que havia se tornado Presidente da Argentina, pois era Vi-ce-Presidente, deu carta branca aos militares e aos esquadrões damorte em suas campanhas contra a esquerda. Seguiu-se uma ondainacreditável de brutal repressão. Apenas no começo de 1975, cer-ca de 50 ativistas ou simpatizanies da esquerda desapareciam porsemana, numa guerra que continuaria por muitos anos e que, commuita adequação, foi denominada Ia guerra sucia ("a guerra suja").O que havia começado na Presidência de Isabel Perón continuoucom renovado vigor quando os militares assumiram o poder em1976. Nathan Shachar assim sintetizou os eventos que se sucede-ram na Argentina durante esses anos terríveis:

Os estjuudrõen (In morte começaram LI operar vários anos antex dutomada fonnal do jxxler pêlos militares. O grande terror eclodiudepois ilu morte de Perón, em 1974. As diferenças entre os alivixttixsubversivos e ai simpatizantes pusxivos aprcxeniavam-se nu /orrnude niiut cínica cortina de tuniaça. Dizia-ve, e depois foi confirmado,que quando um alivixta cru preso, ü smt acenda de endereços lor-ntiva-si' íiin grotesco roteiro para w» massacre Qualquer 11/11 c/nedela conslu^se ficava em perigo- o professor de piano, o ut;ougttei-ro ou o parente distante. Na avalanche combinatória de nomes <ix-xim surgidos, alí>o em torno de 25.001) pessoas joram mortas... ()xaxxa.i.iiiialox pelas autoridades argentinas de seus próprios cida-dãos, entre 1974 e 1982, tiveram nin curúler único. Nada jxirecidoacontecera no Ocidente desde a // (iiierra Mundial.

A repressão interna, entretanto, não era a soma total dos sofri-mentos. Os militares que assumiram o poder em março de 1976,

6- Shachar 2001, p 216, 268.

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sob a liderança do General Jorge Rafael Videla, incluíam os queacreditavam firmemente que uma guerra era necessária para unir anação, de forma duradoura, em torno de urn governo militar revolu-cionário. O expediente tornou-se mais evidente no começo dosanos 80, quando os militares, então liderados pelo General Leopol-do Galtieri, viram em urna guerra desse tipo a única forma possívelde permanecer no poder em meio a uma crise económica devasta-dora. O Chile era o alvo natural dessa loucura, e na verdade umaguerra contra o Chile esteve à beira de acontecer, mas os prováveiscustos e diversos outros faíores complicados levaram, então, à es-colha de um alvo menos difícil. No dia 2 de abril de 1982, as IlhasFalkland (ou Malvinas, como são chamadas na Argentina) foram in-vadidas, numa aventura que terminou, como será lembrado, numaderrota sumamente humilhante, mas que, contudo, abriu o caminhopara a restauração da democracia na Argentina.

A morte de Perón ocorreu também nurn momento económicocrítico. Um período de pesadelo económico de 16 anos que come-çou e que resultaria, como se vê no Gráfico 19, na redução da rendaper capita dos argentinos em 25% e na explosão da pobreza no queoutrora havia sido um país próspero>(5% dos lares argentinos vivi-am abaixo da linha de pobreza, em 1970, enquanto em 1990 estenúmero era de 27%). O desenvolvimento tornou-se crescentemen-te caótico, caracterizado, acima de tudo, por uma inflação galopan-te que, no final dos anos 80, tornou-se hiperinflação (a elevação to-tal de preços entre 1976 e abril de 1991 atingiu incompreensíveis2,1 bilhões de vezes!).

O declínio económico já se instalara durante a Presidência deIsabel Perón (meados de junho de 1974 a março de 1976), comoconsequência de uma recessão internacional que, por sua vez, eraconsequência do primeiro choque do petróleo, em 1973. A rendaper capita caiu aproximadamente 7% entre 1974 e 1976, sendo queas finanças do governo se deterioraram devido a uma forte reduçãode receitas (chegando a mais de 6% do PIB entre 1974 e 1975), re-sultando num rápido crescimento do déficit público (em 1975 atingiuo recorde de 15,4% do PIB argentino) e num acelerado crescimentoda inflação (de 24% para 182%, entre 1974 e 1975).

Esse foi o país - ern seus últimos suspiros - que os militaresassumiram em março de 1976, para iniciar aquilo que eles chama-ram de Proceso de Reorganización Nacional. O que então tentaramfazer foi, na verdade, a quadratura do círculo, ou seja, reduzir a in-flação e estabilizar a economia sem reformar os fundamentos das

80

GRÁFICO 19: RENDA PER CAPITA 1974-1990 (1980 = 100)

105

100

95

90

80

75

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1974 1976 1978 1980 1982 1984 1986 1988 1990

Fontes: FMI 2000, p. 208; CEPAL 1991

finanças do governo e eliminar o déficit do setor público. Além disso,eles estavam determinados a manter o desemprego baixo a qual-quer custo (entre outubro de 1978 e outubro de 1980 ele se mantevede fato ao redor de 2,5%). O Gráfico 20 mostra a evolução das finan-ças do governo entre 1976 e 1982. Como se constata, depois de bre-ve período de redução os gastos públicos começaram novamente aaumentarem 1978, da mesma forma que o déficit financeiro do setorpúblico. O gráfico também apresenta o que era a real dor de cabeçada economia argentina, as empresas estatais, verdadeiras máquinasgeradoras de prejuízos, que naquele período causaram entre 40% e72% do déficit total do setor público. Naturalmente não havia inflaçãoreprimida, nem houve redução nos conflitos sociais durante essesanos brutais, de constante queda nos salários reais e de incrementoda pobreza. Acima de tudo, uma rápida acumulação de débitos inter-nacionais - a dívida externa cresceu de US$ 7,9 bilhões para US$35,7 bilhões entre 1975 e 1981 -deixou o pais mais exposto do quenunca a choques externos.

Um dos movimentos rnais inovadores da gestão dos militaresfoi a forte redução das tarifas alfandegárias e a abolição da maioriadas intervenções protecionistas que tradicionalmente resguarda-vam amplos segmentos da economia argentina da competição ex-

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terna. Uma tarifa média de quase 100% foi reduzida dentro de pou-cos anos para apenas um terço (tarifas alfandegárias sobre máqui-nas e outros bens de capital foram reduzidas a zero), e muitas dasrestrições quantitativas às importações foram abolidas. Essa políti-ca se inspirava em considerações de princípios, baseados na cons-tatação de que o protecionismo industrial argentino era insustentá-vel; baseava-se ainda na vontade de combater a inflação, algo queera dificultado de forma considerável pelas fortes flutuações na po-lítica cambial. No começo houve a subvalorização do peso. alivian-do os efeitos da liberalização; logo a seguir, o oposto ocorreu, i.e.,um peso sobrevalorizado tornou as importações baratas, agravan-do as consequências da liberalização.

GRÁFICO 20' GASTOS PÚBLICOS, DÉFICIT TOTAL E DÉFICIT ORIUNDO DASEMPRESAS ESTATAIS, EM PERCENTAGEM DO PIB, 1976 - 1982

40

35

30

25

20

15

10

5

Ü1976 1977 1978 1979 1980 1981 1982

• Gastos públicos n Déf icil (total) D Déficit (empresas estatais)

Fonte: Heymann & Navajas 1990, p 45.

A política de liberalização, entretanto, não passou de um breveepisódio. Todos os seus efeitos se fizeram sentir durante dois ou(rês anos, ligando-se à profunda crise económica que começou em1981, quando então foi enterrada. Deve-se também sublinhar que a

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liberalização do comércio exterior ocorreu no pior momento dascondições macroeconômicas do país - altas taxas de inflação, fortesaída de capitais, altas taxas de juros e incertezas/instabilidade ge-rais. Ainda assim, aquela política foi tão inovadora que torna neces-sária uma análise do que aconteceu com o setor industrial, atéaquele momento tão fortemente protegido. Ao menos porque essaliberalização preparou as reformas estruturais a serem introduzidasdurante a Presidência de Menem.

O Gráfico 21 mostra a evolução da produção industrial, do em-prego e da produtividade da mão-de-obra no setor industrial entre1975 e 1987. O que se constata é um processo impressionante. Até1975, o emprego industrial na Argentina demonstrava tendência decrescimento, mas daquele ano em diante houve inflexão radical datendência, com o emprego caindo quase 40% até 1987. Conformeressaltou Adolfo Canitrot, em um ensaio de grande influência, "umadas mudanças estruturais mais importantes do período" . Enquantoisso, a produção industrial ficaria estagnada depois de um longo de-clínio entre 1979 e 1982 . O seu nível, em 1987, era 6,6% inferior aoverificado em 1975 (e muito menor, se calculado em termos per ca-pita). Ao mesmo tempo, a produtividade da mão-de-obra se elevoudramaticamente, em mais de 50%.

O curso dos acontecimentos pode ser interpretado da seguinteforma, A nova política dos militares ensejou forte processo de reno-vação e modernização da produção industrial da Argentina, que seacelerou com a liberalização do comércio exterior, tanto pela fortepressão oriunda da competição com os produtos importados, entre1979 e 1981, quanto pela possibilidade - ainda maior - de importarenormes quantidades de bens de capital a baixo custo durante omesmo período. O fato é que a importação de bens de capital maisdo que quadruplicou entre 1977 e 1980-81 (contra um crescimentode aproximadamente 2,5 vezes das importações totais). Os índus-trialistas compreenderam, para citar mais uma vez Canitrot, "que arenovação do aparato de produção era um pré-requisito para a suaperspectiva de sobrevivência em face da competição estrangeiranos mercados locais".3 E a coisa mais interessante é que o proces-so de modernização da produção aparentemente prosseguiu com

7- Canitrot 1986, p. 114.

8- Ibid.p. 112.

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renovado vigor - como pode ser facilmente verificado no gráfico -até mesmo após a política de abertura ter sido abandonada em1982. Pareceria, então, que o país estava frente a uma inflexão natendência histórica, referente ao fortalecimento do desenvolvimen-to e da competitividade da indústria argentina.

GRÁFICO 21; PRODUÇÃO INDUSTRIAL, EMPREGO E PRODUTIVIDADE DAMÃO-DE-OBRA POR TRABALHADOR, 1975-1987 (1975 = 100)

160

150

140130120110100no807060

1975 1977 1979 1981 1983 1985 1987

- Produção Industrial - Emprego li"Kf u - Produtividade da nvio-do obra

Fonte. Kalz S Kosacoff 1989. p 86,92.

Em suma, podemos dizer que o crescimento industrial argenti-no foi cada vez menor, mas, ao mesmo tempo, mais forte, duranteesse dramático período da história. O crescimento extraordinário daprodutividade que pode ser visto no Gráfico 21 é a melhor prova deque algo de capitai importância havia acontecido no setor industrialda Argentina. Outro sinal foi o rápido crescimento das exportaçõesdurante a segunda metade dos anos 70 e também no final dos anos80, um fato que decisivamente reforça a tendência iniciada algunsanos antes. O Gráfico 22 apresenta esses dados, que foram, contu-do, uma fonte de inspiração no meio de todas as desgraças vividaspela Argentina durante esses anos.

GRÁFICO 22: EXPORTAÇÕES INDUSTRIAIS 1975 - 1990(BILHÕES DE DÓLARES]

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1975 1977 1979 1981 1983 1985 1987 1989

Fonte: Bisang & Kosacoff 1993, p. 124.

O significado de tudo isso para as perspectivas da Argentinanos anos 80 era uma questão de futurologia. No começo dos anos80 a economia da Argentina estava completamente dominada pornovos choques externos — as crises da dívida —, que definitivamentedesestabilizaram a já frágil economia, iniciando uma década de re-cessão que desembocaria no caos. Foi no meio dessa situação de-sesperada que os militares se lançaram em uma guerra contra aGrã-Bretanha que, felizmente, seria a sua última cartada.

A derrota foi seguida pela redemocratização, e em dezembro de1983 Raul Alfonsín, do Partido Radical, assumiu o governo do país,então desmoralizado e sem rumo. A Argentina, que no começo doséculo XX tinha atraído milhões de imigrantes esperançosos, haviase tornado um país que muitos de seus filhos queriam abandonar, seencontrassem uma saída. Mas os tormentos da Argentina não iriamde forma alguma findar com a restauração da democracia.

Page 46: A Crise Da Argentina

SERIA O ULTIMO TANGO DE CARMENCITA?

"Poucos dos que viram aquelas faces se esquecerão dos argentinos que,no dia 10 de dezembro de !(}HÍ, ocuparam a.i ruas de Buenos Aires

puni comemorar a posse de seu novo governo, democraticamente eleito.Com expressiva alegria eles celebraram, quase que ao ponto do delírio,

crentes de que terminara finalmente o tormento iniciado há quasecinquenta anos, quando a dermhada do governo constitucional levou a

tuna sucessão de calamidades cívicas que mergulharam o pais numdeclínio geral, económico, político e social. Naquele momento,

os cidadãos argentinos alimentavam a esperança de que tudoaquilo havia ficado no passado ".

Laurence W. Levine, Inside Argentina

Com a recuperação da democracia, começou a luta da Argenti-na para sair do abismo em que mergulhara. As perdas criadas pelaespiral crescente de instabilidade e violência que prevaleceu nopaís durante décadas não se limitavam à economia e à política. Opais fora ferido na sua moral e na autopercepção. No começo dadécada de 1980 a Argentina era um pais que havia perdido a confi-ança em si. Uma profunda crise de autoconfiança se instalou, pas-sando subsequentemente a ter vida própria, com devastadorasconsequências para o resto da vida nacional. Num pais dominadopor conflitos sociais profundos, desconfiança e expectativas negati-vas, era o estado de espírito dos cidadãos que ern primeiro lugardeveria ser mudado, de modo a tornar possível o inicio de um pro-cesso sustentável de reconstrução. Mas isso não se consegue danoite para o dia, e há o risco iminente de novas dificuldades e retro-cessos capazes de deflagrar uma espiral negativa de pânico econó-mico, desespero social e uma guerra de todos contra todos, que po-deria levar o pais de volta ao abismo. Isso é o que aconteceria naArgentina no final dos anos 80 e novamente na virada do século.Era corno se esse já tão aflito país se tornasse ainda mais aflito coma maldição de Sisifo. E exatamente esse o ponto em que se encon-

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IItra a Argentina atualmente, outra vez profimdamonlo atolada. Háalguma esperança para Carmencita, ou estaríamos presenciandoseu último tango?

ALFOfISIN

Há algo trágico e magnífico nesse homem que se tornou presi-dente da Argentina em dezembro de 1983. Trágico porque RaulAlfonsin, que tinha boas intenções e também algumas boas ideiassobre como superar a crise económica do pais, acabaria afinal der-rotado por aquela crise e forçado a deixar prematuramente a presi-dência de um país imerso no caos económico. Magnífico porqueainda assim esse homem foi capaz de conduzir o país nos primeirosanos extremamente difíceis da democratização. Foi um grandeevento na história argentina quando, em julho de 1989, ele passoua presidência a Carlos Menem. Desde 1916 um presidente demo-craticamente eleito não recebia a faixa presidencial de um anteces-sor igualmente eleito democraticamente e, além disso, de outro par-tido. Isso representava importante passo adiante para a Argentina,e o maior triunfo de Alfonsin no meio do colapso económico que olevou à renúncia.

Alfonsin assumiu o poder quando o seíor público representava15% do PIB, a inflação ultrapassava a marca dos 400% e o nível deinvestimentos havia caído pela metade, comparativamente à situa-ção de um ano antes. Além disso, a economia nacional estava one-rada com uma divida externa superiora US$40 bilhões c que exigiaelevados pagamentos de juros anuais, superiores á capacidade ar-gentina de saldá-los (no final de 1983 o pá is já havia acumulado umvalor de US$ 20 bilhões de juros não amortizados). Nessa situação,apenas medidas rigorosas e penosas poderiam recolocar a econo-mia em seus próprios pés, mas Alfonsin optou pela via populista,selando o destino do país. Um novo ciclo populista estava por inici-ar-se, mas dessa vez em circunstâncias tão difíceis que o tempoentre a expansão populista e a necessidade de economizar paraestabilizar se mostrou curto demais. Em outras palavras, já se havi-am ido os tempos ern que se podia jogar um véu sobre a realidade.Aprendia-se uma grande lição para o futuro. A Argentina não podiaescapar do difícil caminho a percorrer se quisesse chegar a algumlugar, e não tardou muito para que Alfonsin se desse conta disso.

Em janeiro de 1984o Ministrada Economia, Bernardo Grispun,

iniciou uma política económica expansionista, indiferente às ideiasde crescer primeiro para redistribuir depois. A situação social daArgentina não o permitiria. O povo - pelo menos ele assim acredita-va - deve ter tudo ao mesmo tempo. Essa escolha de política eco-nómica foi, obviamente, desastrada, mas ela não era desprovida derazão, pois o governo necessitava de forte apoio popular para esta-bilizar a democracia e não apenas conseguir controlar os generais,rnas também levá-los ao tribunal, como de fato Alfonsin fez. Mas,novamente, ele teve que enfrentar o problema da nova pobreza quecomeçava a surgir. Essa foi a razão, por exemplo, para o governoiniciar programas extensivos de alimentação para milhões de po-bres (Programa de Aümentación Nacional) e aumentar o orçamentopara a educação em 25%, além da promessa de melhorias salariaissubstanciais.

Essa política expansionista acabou não produzindo qualquerexpansão, e a situação económica piorou consideravelmente ern1984, com pesados déficits nas contas públicas, inflação próximados 200% por ano, investimentos em seus níveis mais baixos, fugade capitais estimada em US$ 22 bilhões, e uma crise sem esperan-ça de solução quanto ao financiamento do serviço da dívida exter-na. No mês de rnaio de 1985, o FMI e outras instituições internacio-nais de crédito bloquearam a concessão de novos recursos para aArgentina. Muito simples, o pais quebrara. A evasão populista darealidade falira. A situação levou o Ministro das Relações Exterioresa demitir-se, e Alfonsin decidiu fazer um sério esforço para estabili-zar a economia e atacar os grandes problemas estruturais argenti-nos. No dia 14 de junho de 1985 Alfonsin declarou o estado econó-mico de guerra e anunciou um novo plano económico, o Plano Aus-tral (o nome da nova moeda que substituiu o peso).

O novo programa económico, ao qual outras medidas foramadicionadas posteriormente, foi um dos mais ambiciosos que aArgentina já tivera. Incluía tanto medidas de estabilização quantopropostas ousadas de reforma estrutural. Salários e preços seriamcongelados, o déficit orçamentário seria eliminado e acabaria aemissão monetária para financiar os gastos públicos, o Banco Cen-tral se tornaria independente, as empresas estatais seriam privati-zadas, a economia seria desregulamentada e, afinal, o comércioexterno liberalizado. O Plano Austral pode bem ser visto como en-saio do Plano Menem que viria mais tarde. Ele mostrava uma saídapara a crise, mas servia também para ilustrar a dificuldade de seguiraquela saída num pais com fortes organizações e grupos de inte-

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resse envolvidos durante décadas numa luta distributiva devasta-dora, a qual não se dispunham a abandonar.

Após um sucesso inicial, o plano sucumbiu completamente emdois anos. Alfonsín envidou tentativas corajosas de levar as refor-mas adiante, mas os obstáculos se mostravam grandes demais.Entre os obstáculos, dois merecem destaque porque constituemtambém pistas importantes para entender as ocorrências durante agestão de Menem.

O primeiro era a desordem fiscal das províncias. Alfonsin con-seguiu reduzir o orçamento nacional e foi ao ponto de transformarum déficit equivalente a 6% do PIB, em 1982, num superavit de pou-co mais de 5% ern 1985-86. Mas de que valia isso se os déficits dasprovíncias literalmente explodiram naquele mesmo período, che-gando a exceder o PIB ern mais de 7% em 1987? Aconteceu sim-plesmente que os governos das províncias compensaram as con-sequências das medidas austeras do Plano Austral tomando em-préstimos, gastando mais dinheiro e principalmente expandindo oemprego público a níveis inacreditáveis. O empreguismo públicoseria de facto um seguro-desem prego. Exemplo típico é a provínciade La Rioja, uma pobre região do noroeste argentino, administradaentão por Carlos Menem. De acordo com um artigo publicado peloThe Economist, em outubro de 1990, e apropriadamente intitulado"Letterfrom Menemland", o número de funcionários daquela provín-cia cresceu de 12.000 para mais de 40.000 entre 1983 e 1989, maisda metade da população economicamente ativa de La Rioja em1989. Diz o referido artigo: "muitos desses empregados públicosnada têm para fazer. Há escolas com mais professores do que alu-nos, e os vestíbulos dos edifícios públicos estão cheios de assalaria-dos ociosos".9 Dada essa situação, não pode haver dúvida da cons-ciência de Menem de que não haveria soluções sem uma reforma ra-dical do setor público extremamente ineficiente da Argentina.

O segundo fator eram os movimentos salariais que alimenta-vam a inflação, os gastos geradores de déficits e urn mercado detrabalho conflituoso, no qual as greves se tornaram um instrumentodiário. Os sindicatos controlados pelo peronismo se rebelaram,como já o haviam feito muitas vezes no passado, quando os ra-dicais assumiram o poder, tornando cada vez rnais difícil adminis-

9- The Economist, G de outubro de 1990, p.50.

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traro país. Durante a gestão de Alfonsín, o pais foi assolado por 13greves gerais e rnais de 1.000 outras setoriais. No total, um inacre-ditável número de 83 milhões de horas/dias de trabalho perdidasdurante o período. Esses conflitos trabalhistas eram fomentadosprincipalmente por funcionários públicos, que sofreram grandesperdas salariais com a progressiva tendência das finanças públicaspara o caos. As greves de funcionários públicos - inclusive nas pro-víncias pobres do interior, como La Rioja - foram responsáveis porcerca de 80% do total de dias de trabalho perdidos durante o perío-do de Alfonsín.

A posição de Alfonsín se tornou cada vez mais fraca a partir de1986, mergulhada numa onda de protestos populares contra as me-didas austeras do governo, de abrangentes conflitos trabalhistas,além da delicada situação relativa ao legado da ditadura militar emtermos de violações de direitos humanos. A eleição de 1987 provouser o último prego no caixão político de Alfonsín. Os peronistas re-cuperaram seu poderio, voltando a será força política mais impor-tante do país. Eles ganharam a maioria das cadeiras da Câmara deDeputados, bem como 16 dos 22 governos das províncias. O gover-no passou a ser paralisado de maneira crescente, e a situação pio-rou em todos os sentidos. A renda per capita caiu muito em 1988 e1989, os investimentos caíram a níveis ainda não atingidos no pas-sado, a inflação explodiu, a nova moeda - o austral - entrou emqueda livre, e novamente o pais estava maduro para a falência.Logo as cidades argentinas se transformaram em palcos para san-grentas pilhagens de alimentos. Fechava-se assim o trágico cicloda Argentina. A nação que um dia alimentara outros países se viaagora obrigada a testemunhar desesperadas pilhagens feitas porsuas próprias crianças famintas.

O HOMEM D E L A R I O J A

Conforme temos visto, há um forte componente de improbabili-dade na história moderna argentina, mas é difícil encontrar-se algotão improvável como Carlos Saúl Menem - o peronista que colocoude pernas para o ar tudo que havia de rnais sagrado e verdadeiropara os peronistas, o homem de hábitos orgíacos e um insaciávelapetite para o luxo, oriundo da empobrecida e remota La Rioja, es-tava agora para transformar a Argentina de maneira tão profundacomo Perón o fez no passado. Nas palavras de Nathan Shachar,

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esse "homenzinho que - independentemente das muitas acusa-ções que o autor indignado possa lançar contra ele - mudou o desti-no de seu país, na realidade de seu continente".10

Muita gente riu quando esse peronista com o jeito de um pe-queno cantor de ópera, nascido em La Rioja, em 1930, filho de imi-grantes sírios, surgiu em 1984 no pleito do Partido Justicialista paraa escolha do candidato desse partido para a presidência. LaurenceLevine, por exemplo, ex-presidente da Câmara de Comércio Esta-dos Unidos-Argentina, recorda assim a maneira como Washingtonreagiu à candidatura de Menem:

"Quando o governador do mais jiohri' provindo t/u Argentinaanunciou que disputaria as eleições, imtilu gente cm Washingtontn.-n.ioii triiKu-se í/i- tuna hniiniíli-ïni. Houve uma gargalhadaquando xr.wuhe tlti cnmfiíliituni ilew iwaiienti homem misterio-so d c luiivox ciibt'lo.\ c costeleta*. i> 'velvtigein' tia política ar-gentina ".

Todos supunham que António Cafiero, líder do Partido Pero-nista e prefeito de Buenos Aires, ganhasse facilmente a indicaçãode seu nome para as eleições presidenciais, mas estavam errados.O homenzinho de La Rioja foi direto às bases do partido e realizouuma poderosa campanha baseada em s/oganstradicionais entre osperonistas. Ele não apresentou um programa claro de governo. Oque ele principalmente fez foi pedir apoio para si mesmo, um novoPerón, um homem que o povo podia seguir, mesmo sem saber paraonde ele os levaria. E um número suficiente de peronistas fez exa-tamente isso, para torná-io candidato do partido; em seguida, umnúmero suficiente de argentinos fez o mesmo, assegurando-lheconvincente vitória na eleição presidencial de 14 de maio de 1989.

Até aquele momento, muita gente associava Menem ao pior doperonismo, e previa um novo ciclo populista, temperado com maisdemagogia nacionalista, intervencionismo estatal, corporativismo ecorrupção. Assim, a possibilidade de Menern vencer as eleições de-flagrou uma onda de pânico económico, constituindo-se num dosfatores da primeira das duas hiperinflações que aconteceram naArgentina em 1989-90 (com um aumento acumulado de preços de

10-Shachar2001,p. 295.11- Levine 2001, p. 221.

26.000% entre fevereiro de 1989 e março de 1990). Após a vitóriade Menem, a economia se tornou inadministrável. A taxa mensal deinflação, 78% em maio, elevou-se para 114% em junho e quase200% em julho, cirando um ambiente de caos generalizado que seespalhou por todo o país. Foi nessas dramáticas circunstâncias queRaul Alfonsín decidiu renunciar cinco meses antes do final de seuperíodo, passando o poder a Menem em 8 de julho de 1989. Cabiaagora ao homem de La Rioja falar e, quando falou, deixou todomundo sem fala em face de uma série de rápidas decisões que nemamigos e adversários esperavam. Dessa maneira, ele abriu uma ja-nela de oportunidades completamente inesperada para o país, tãoconfusas para os agentes económicos, políticos e sociais que ne-nhum deles teve tempo para reagir, antes que Menem assumisse ocontrole da situação e disparasse uma série de reformas.

O primeiro toque de génio de Menem aconteceu mesmo antesde ter assumido a presidência. Imediatamente após a sua vitória eleestabeleceu uma estreita cooperação com representantes do setoragroindustrial mais importante da Argentina, o conglomerado trans-nacional Bunge & Borg (BSB). Em consequência, surgiu o assimchamado Plano BB, bem como o gabinete que Menem anunciariaantes de sua posse. Economistas e díretores da B&B passaram ater papel destacado, sob a liderança do novo Ministro da Economia,Miguel Roig (que faleceu uma semana depois da sua posse, sendosubstituído por Nestor Rapanelli, outra importante figura do grupoB&B). Com essa ação, Menem eliminou boa parte da desconfiançaem relação aos peronistas que o empresariado argentino vinhaapoiando durante décadas. Além disso, ele anunciou claramenteque o novo governo pretendia seguir uma política económica res-ponsável, sem espaço para o populismo.

Mais importante ainda, do ponto de vista político e psicológico,foi a maneira como Menem mostrou que era eie que governava,não o partido, os sindicatos ou, ainda, os representantes de interes-ses ligados a antigas facções ideológicas. A Argentina se encontra-va em tal estado de crise que uma corajosa liderança se fazia ne-cessária, uma liderança capaz de superar qualquer coisa ou qual-quer pessoa que se colocasse no caminho das reformas exigidaspelo país. A posição de Menem ficou ainda mais clara quando seconheceu o ministério, no qual os peronistas importantes se torna-ram notáveis pela sua ausência. Por outro lado, Álvaro Alsogaray,líder do partido conservador, UCD, assumiu importante papel comoprincipal negociador da dívida externa.

92 93

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rA segunda ação absolutamente inesperada de Menem, em seu

jogo de xadrez, dizia respeito à política exterior de entendimentocom os EUA e a Inglaterra. Para os peronistas, tratava-se da coisamais proibida e inimaginável, mas Menem mostrou a mesma firme-za já observada quando nomeara seus ministros para a área econó-mica, todos representantes do capitalismo no país. Menem viajouimediatamente aos Estados Unidos, onde não apenas conseguiuatrair a simpatia da comunidade financeira como também estabele-ceu relações cordiais com George Bush Sénior. Visitou também aInglaterra, e em pouco tempo estavam restabelecidas as relaçõesdiplomáticas com aquele país, que fora adversário na guerra dasIlhas Falklands. Para tornar as coisas ainda mais claras, Menemdecidiu parar um projeto semi-secreto de produção de mísseis, pro-jeto esse que não era do agrado dos Estados Unidos; além disso,decidiu entrar na Guerra do Golfo, do lado da ONU e dos EstadosUnidos. Essa última atitude de Menem causou certa agitação, dadainclusive a origem árabe do novo presidente argentino. Dessa for-ma, o homenzinho de La Rioja transformou em tempo recorde aArgentina em aliado confiável dos Estados Unidos, e criou para seupaís um amplo fundo internacional de boa vontade.

Não menos importantes que essas duas inovadoras ações fo-ram as imediatas reformas estruturais lançadas por Menem no se-tor público, por meio de rápidas pnvatizações com forte sentido sim-bólico, drásticos cortes de empregos e pesado corte de gastos.Dessa maneira, Menem mostrava a importância da prioridade dasreformas estruturais, mesmo que fossem à custa das medidas deestabilização. Tratava-se de dramática inversão da ordem de priori-dades, se comparadas às prévias tentativas de reformar a econo-mia argentina, nas quais a estabilização fora completamente deixa-da fora ou então vista como prelúdio de uma reforma estrutural quenunca teve lugar. Menem apresentou duas importantes propostasde leis ao Congresso já em 1989: a Lei da Reforma do Estado e aLei de Emergência Económica. A rapidez da ação de Menern e asdramáticas consequências da primeira hiperinflação permitiramque as propostas fossem aprovadas com o apoio da oposição. Me-nem foi então capaz, com enorme velocidade e baseado em decre-tos presidenciais, de levar a cabo ampla privatizacão e desmantelaras estruturas corporativas completamente regulamentadas e prote-gidas do país.

A quarta etapa da estratégia de rápida mudança de Menemteve como alvo a inflação. Em dezembro de 1989, uma segunda

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onda de hiperinflação teve início, indicando que as primeiras medi-das tradicionais de estabilização tomadas pelo novo governo nãoeram suficientes. Um novo Ministro da Economia, António ErmanGonzález (que fora Secretário de Economia de Menem em La Rio-ja), tomou posse no dia 15 de dezembro; passados três dias, foramabolidos todos os controles de preços e cambiais, e a Argentina co-meçou novamente a lembrar uma economia de mercado. Mas oevento decisivo teria lugar no dia 1° de janeiro de 1990, com o ad-vento do assim chamado Plano Bonex, um extenso confisco daspoupanças privadas em moeda nacional. Todos os depósitos ban-cários a prazo - p/azo fijo - que podiam até ser negociados diaria-mente, foram convertidos em bónus governamentais de dez anosem dólares (Bónus Exteriores, ou Bonex), com juros pagáveis se-mestralmente. Dessa maneira, a liquidez - dinheiro, títulos de curtoprazo e depósitos bancários - foi dramaticamente cortada e cercade 60% da base monetária (M?) desapareceram. Seguiu-se umaaguda procura de liquidez, e a inflação foi drasticamente controladajá no mês de abril. Isso pode ser visto no Gráfico 23, que mostra ocomportamento da inflação mensal na Argentina em 1990.

GRÁFICO 23; INFLAÇÃO MENSAL EM 1990 (PERCENTAGEM)

Fonte. Erro 1993, p. 210.

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Uma breve recessão foi o preço a ser pago pela redução drásti-ca e brusca da procura potencial. E Menem tomou sua decisãoconsciente das suas consequências. Tratava-se, em suas própriaspalavras, de uma "cirurgia sem anestesia". E era algo novo: ne-nhum outro presidente argentino havia antes optado por uma reces-são para combater a inflação e estabilizar o país. Mas houve outroefeito do Plano Bonex que se mostrou muito importante. O país re-cebeu um copioso influxo de dólares tão necessários porque muitosargentinos se viram obrigados a usar suas poupanças em dólarespara fazer face às suas despesas diárias. Dessa maneira, o BancoCentral mais do que dobrou suas reservas internacionais entre ja-neiro e dezembro de 1990.

Muito se ganhara com as quatro rápidas ações de Menem, maso desafio de reformar a Argentina não podia ser ganho sem que seenfrentasse a mais importante das criações peronistas: a militánciaativa dos sindicatos argentinos. Nenhuma estabilidade duradourapoderia ser conseguida, e tampouco seria possível levar a cabo asérie de reformas estruturais necessárias se não chegassem a urnfim as sucessivas ondas de greves. Com isso em vista, Menemusou uma eficaz mistura de astúcia e determinação. Ele escolheu ométodo de dividir para dominar, favorecendo os que cooperavam esendo duro corn as rebeldes. O resultado foi a quebra da poderosaCGT e, onde aconteciam as greves no setor público, Menem levoua melhor. O momento decisivo veio, em setembro de 1990, quandouma greve importante na empresa telefónica Entel terminou emcompleta derrota e muitas demissões. Foi um exemplo típico do fe-nómeno do esvaziamento das greves, no qual o final de uma greveserve para desestimular outras, tendo sido comparado à greve dosmineiros na Inglaterra da Senhora Thatcher e a dos controladoresde voo enfrentada com sucesso pelo Presidente Reagan. Grevesde servidores públicos foram praticamente proibidas a partir daque-le momento, e o efeito que isso teve sobre as disputas no setor in-dustrial foi dramático, conforme se pode ver no Gráfico 24.

Finalmente, mas não menos importantes foram a nomeação deDomingo Cavallo para o Ministério da Economia, em janeiro de1991, e a Lei da Conversibilidade (que entrou em vigor em 1° deabril de 1991), que estabilizaram de maneira conclusiva a economiaargentina. A Lei da Conversibilidade garantia conversibilidade ilimi-tada à moeda argentina - denominada novo peso a partir de 1992 -na razão de 10.000 australes para um dólar, e o novo peso adquiriutambém o valor fixo de 10.000 australes, equiparando-se assim ao

dólar. O Banco Central recebeu a missão de garantir essa taxa fixade câmbio, para cujo objetivo passou a deter suficientes quantida-des de moedas conversíveis para lastrear a oferta monetária dopais. Essa missão foi complementada, em setembro de 1992, poruma lei que tornava a instituição independente e proibida terminan-temente de emprestar dinheiro ou subscrever empréstimos para ogoverno, seja o nacional ou das províncias. Era um remédio amar-go, mas de que outra forma poder-se-ia gerar confiança de longoprazo na moeda argentina?

GRÁFICO 24: DIAS DE TRABALHO PERDIDOS DEVIDO A GREVES, DADOSTRIMESTRAIS EM MILHÕES

131?

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10

9

S7G

Fonte: McGune 1996, p.146

Nos anos seguintes, Menem e Cavallo se transformaram emguardiões da rápida transformação da Argentina numa economiacada vez mais aberta, com altas taxa de crescimento e inflaçãozero. Já em 1992, Cavallo referiu-se a um milagre argentino comoiminente, e muita gente, tanto na Argentina como no exterior, pas-sou a acreditar nessa ideia. Mas na terra do tango, os sonhos apa-rentemente acabam cedo.

9697

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O VERANICO DA ARGENTINA

As reformas continuaram em ritmo acelerado durante o restan-te do primeiro período de governo de Menem (1989-1995). A eco-nomia foi amplamente desregulamentada, as tarifas foram reduzi-das substancialmente e muitas restrições às importações foramabolidas. A privatização alcançou níveis recordes, atingindo tudo:do zoológico de Buenos Aires à poderosa empresa petrolífera YPFe às Aerolíneas Argentinas. O número de servidores públicos dimi-nuiu em 200.000, grande quantidade de empresas estrangeiras seestabeleceu no país e a taxa de investimentos cresceu rapidamen-te. As exportações se expandiram, e iniciou-se uma bem-sucedidaintegração regional sob a égide do Mercosul (incluindo Argentina,Brasil, Paraguai e Uruguai), a inflação acabou e o Banco Centralpodia orgulhar-se de suas elevadas reservas e seu staius de institu-ição independente.

As reformas estruturais e a estabilidade estimularam um forteprocesso de crescimento económico que, a despeito de uma breveinterrupção em 1995 (devido à crise do peso mexicano), continuouaté meados de 1998. O Gráfico 25 mostra a variação acumulada darenda per capito entre 1990 e 1998, um período que merece o adjeti-vo "extraordinário", especialmente se é levado em conta o insatisfa-tório crescimento económico da economia nacional a partir de 1930.Em 1998, a economia argentina era 50% maior do que em 1990, edurante esse período a renda per capita cresceu quase 40%.

Uma das forcas mais dinâmicas por trás desse crescimento foio setor industrial, que revelou impressionante capacidade de reno-vação e parecia mais do que capaz de enfrentar a competição nomercado externo. Isso reforça a análise apresentada antes sobre atransformação da indústria argentina após 1975, que já havia gera-do um vigoroso crescimento de eficiência e produtividade. O mes-mo crescimento continuou depois de 1990, mas então numa atmos-fera de forte expansão industrial, A produção industrial cresceu47,5% entre 1990 e 1998, e os temores de retrocesso industrial naonda da nova política de abertura não se justificaram. Mas isso exi-giu mudanças revolucionárias que nem todas as indústrias podiamrealizar.

Foi um período de rápida modernização industrial, caracteriza-do por pesados investimentos e medidas geradoras de eficiênciacapazes de reduzir a mão-de-obra em 19% e levar a ganhos de pro-dutividade por empregado de 82%. A produtividade do trabalho na

GRÁFICO 25; RENDA PER CAPITA 1990-98 , VARIAÇÃO ACUMULADA(1990 = 100)

14013513012512011511010510095

1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998

roníe:CEPAL2D01,p.106.

indústria argentina cresceu de tal maneira nesse período que o hia-to de produtividade, comparado com o dos Estados Unidos - quehavia aumentado nas décadas dos anos 70 e 80 - diminuiu em maisde 10 pontos percentuais. Essa era de fato a "revolução de produti-vidade", uma palavra sempre presente na campanha eleitoral deMenem. Esse aumento de produtividade se refletiu lambem no au-mento das exportações industriais, que se expandiram de tal ma-neira - se bem que a partir de um nível muito baixo e com boa ajudada integração regional - que a Argentina pôde começar a aumentara sua cota no mercado mundial de produtos industriais (como ocor-reu também com as exportações de produtos agrícolas). Isso foi ob-servado principalmente no caso de produtos industriais que nãoeram baseados principalmente em recursos naturais e que em1998 representavam quase 1/3 das exportações totais argentinas.É ainda mais interessante notar que a abertura para o exterior nãolevou - ao contrário do que muita gente temia - a indústria a regre-dir a uma etapa mais ligada a produtos mais simples, baseados emrecursos naturais. Essa tendência foi de fato observada nos anos80, mas nos 90 ela se reverteu, conforme se nota no Gráfico 26.

Não se pode negar que o "selvagem" da Argentina havia con-

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seguido muito em apenas uns poucos anos. Menem recolocou opaís sobre seus pés, mas havia ainda um bom número de proble-mas para serem solucionados, além de alguns novos produzidospelas reformas. Os eventos não tardaram a mostrar a fragilidade doassim chamado "voo da Argentina para o futuro". Os problemas es-truturais centenários do pais e 60 anos de crescente inépcia admi-nistrativa não podiam ser anulados num passe de mágica. O passa-do logo alcançaria a etapa de desenvolvimento, e o voo para o futu-ro terminaria numa viagem para o abismo. A Argentina tivera seuveranico, e tempos frios e difíceis se aproximavam da terra de Car-mencita.

GRÁFICO 26: A ESTRUTURA INDUSTRIAL* EM 1980, 1990 E 1999(PERCENTAGENS] (de acordo com a intensidade do uso de insumos}

Uso intensivo detecnologia

Uso intensivo derecursos nalurats

Uso intensivo demão-de-obra

11999• 1980 D1990

(*) Exceto o setor de pelróleo.Fo/)le:KatïSSIumpo2001.p. 142.

O OUTRO LADO DA MOEDA

Carlos Menem foi reeleito em 14 de maio de 1995, recebendoaproximadamente 50% dos votos apurados. Foi seu maior triunfo.

mas também o último. A essa allura, o homem de La Rioja haviaperdido o pulso da situação. O que aconteceu foi realmente parado-xal. O país havia alcançado tal grau de normalidade que passou aser possível agora ver-se a figura do presidente, seus métodos esoluções com olhos cada vez mais críticos, e atribuir à administra-ção qualquer negócio não muito claro. Era o tempo para se ver olado menos claro do milagre e considerar os velhos problemas nãoresolvidos, e havia muitos deles, desde crimes contra direitos hu-manos à crescente pobreza. Em outras palavras, o sucesso de Me-nem se transformou ern seu pior inimigo. Ele fora suficientementebom para uma nação em profunda crise, inclinada a aceitar qual-quer coisa para sair do estado em que se achava, mas ele definiti-vamente não era o homem para governar um país normal. Dessemodo, o homem que foi o principal artífice da reforma argentinapassara a ser seu mais sério empecilho.

A corrupção passou a ser a palavra-chave nesse extraordinárioe rápido processo de transformação. O extravagante estilo de vidado presidente, os escândalos familiares, o despotismo e seus enor-mes poderes eram parte do problema, mas eram igualmente impor-tantes as condições, a extensão e a velocidade do próprio processode reformas. Muito havia para ser feito, e rapidamente. "Ação, açãoe mais ação" era a receita de Menem para reverter a espiral contra-cíonista argentina e criar urn momento económico, social e psicoló-gico apropriado para as reformas. E é fácil reconhecer que essa se-ria presumivelmente a única maneira apropriada para uma situaçãotão desesperada como a da Argentina em 1989. Nessa fúria admi-nistrativa havia lugar para qualquer tipo de erro, incompetência ad-ministrativa ou pura corrupção. O processo de privatização ilustrabem isso tudo.

A primeira coisa a ser dita é que a venda das empresas estataise outros ativos públicos foi de fato uma liquidação. Em quatro anos,umas 60 grandes estatais (empresas petrolíferas, petroquímicas,siderúrgicas e usinas elétricas, empresas de aviação, de telecomu-nicações, de gás, de material bélico, ele.) foram vendidas, 19 outraspassaram para o regime de concessão (incluindo 25.000 km de fer-rovias, o metro de Buenos Aires e estações de rádio e televisão). Ecerca de 800 propriedades públicas (edifícios, portos, silos, etc.) fo-ram vendidas. Os ativos públicos tão mal administrados - as em-presas estatais tiveram perdas de US$ 50 bilhões entre 1965 e1987 - foram liquidados a enorme velocidade, com preços muitoabaixo de seu real valor. Naturalmente, todas as propriedades em

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um pais caótico e cm estado falimentar se tornam muito deprecia-das, mas isso não impede a geração de um sentimento generaliza-do de que bens públicos estejam sendo desmantelados. Essa sen-sação se tornou progressivamente mais forte com o passar do tem-po, e o conhecimento dos escândalos ligados à corrupção, bemcomo da transformação de monopólios públicos em monopólios pri-vados, com o consequente aumento das respectivas tarifas. Issoocorreu, por exemplo, nos setores de água, eletricidade e transpor-tes. Esses aumentos de preços não eram tanto devido aos monopó-lios quanto ao fato de subsídios antes concedidos a esses setoresterem sido eliminados. Após as privatizações as coisas se tornarammais eficientes, mas também mais caras. Muita gente teve dificul-dade para entender o que estava acontecendo, e mais dificuldadeainda para pagar o custo real das coisas.

Logo surgiram os escândalos, mas a verdade é que a opiniãopública se mostrava relativamente tolerante com esses "acidentes".Uma das primeiras privatizações importantes, a da empresa telefó-nica Entel, terminou num grande escândalo envolvendo a filha deÁlvaro Alsogaray (líder do Partido Conservador e o principal negoci-ador da dívida externa). Mas isso foi pouco, comparativamente amuitas outras coisas que eventualmente vieram a ser descobertas(e muito ainda aguarda a vez de vir à luz). Elementos da máfia emesmo grupos ligados ao terrorismo internacional se envolveramna liquidação argentina e conseguiram também obter muitas con-cessões de serviços públicos que estão agora sendo oferecidas emforma de contratos.

O mais amedrontador exempja desse tipo de negócios foi Alfre-do Yabrán, um mafioso com contatos em organizações do OrienteMédio e que, usando parentes da então esposa de Menem - Zule-ma Yoma, que nasceu na Síria -, conseguiu ter um pé dentro dopróprio edifício do governo. Esse homem, que mais tarde se envol-veu na comentada morte do jornalista José-Luis Cabezas (que es-tava procurando informar-se sobre os misteriosos negócios de Ya-brán) e depois acabou se matando, ganhou a loteria nas privatiza-ções argentinas:

Um dos maiores seíores públicos do mundo foi leiloado. AlfredoYahráti deu vários lances extraordinários, os anais inevitavel-mente criaram curiosidade e inveja. Qual seria o segredo deseiis vários lances bem-sue.edidos no processo de privaüzação?Kle conseguiu o monopólio dií vendas duty frcc nos 3í aeropor-

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tos argentino.-;, contraio* exclusivos de distribuição de combustí-veis e (tlinienios uos aeroportos, transporte expresso e de segu-rança, emissão de passaportes e cédulas de identidade na pro-vinda de Ihtenos Aires. eu-. Todos esses negócios tinham algoem ciimuiu: eram vacas prontas paru seri'in ordenhadas, .wm anecessidade de qualquer grande investimento prévio.

O caso Yabrán e muito mais coisas minaram a legitimidade doprocesso de privatização que em linhas gerais, eslava funcionandobem e era absolutamente necessário para gerar eficiência e reduziro enorme déficit do setor público. Mas essa não foi a única razãopara a onda de suspeita de corrupção e abuso de poder na adminis-tração de Menem. Uma abrangente corrupção policial foi descober-ta com os horríveis atentados contra judeus que sacudiram BuenosAires em 1992 e 1994, e um grande escândalo veio à luz em 1996,envolvendo o governo no contrabando internacional de armas (omesmo tipo de escândalo que cinco anos depois resultaria na pri-são domiciliar de Menem e Domingo Cavallo, em abril de 2002). Emcima disso tudo, houve o conflito com Cavallo que, após deixar ogoverno em 1996, tornou-se uma das pessoas com mais autorida-de para denunciar a corrupção e a lei da Máfia que, a seu juízo, ca-racterizou a gestão Menem (Cavallo fez uma longa denúncia na for-ma de um livro, El Peso de Ia Vcrdad).

Ao mesmo tempo, em 1996 o governo sofreu pesada derrolaparlamentar com a rejeição da sua proposta de reforma do mercadode trabalho, e os conflitos sindicais começaram novamente a au-mentar. Naquele mesmo ano o país foi sacudido por duas grandesgreves gerais lideradas pelo movimento sindical unido. As ocorrên-cias no mercado de trabalho, que serão comenladas mais adiante,tiveram importância decisiva nesse contexto. O desemprego cres-ceu e atingiu proporções inéditas na Argentina. Mas os anos decrescimento e a normalização do país também tiveram papéis im-portantes. Agora havia claramente mais para distribuir, e isso esti-mulava as campanhas distributivas que ocupam uma grande parteda história argentina. Os protestos contra Menem começaram a setornar cada vez maiores e, em 1997, os peronistas foram completa-mente derrotados nas eleições parlamentares por uma nova alian-ça eleitoral formada pelo Partido Radical e pela Frente País Solida-

12- Shachar2001, p.278.

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rio. No final, Menem fez uma desesperada tentativa para continuarno poder, através da disputa de um terceiro termo na presidência.Isso requeria uma emenda constitucional, mas não havia o apoionecessário. Assim terminou a saga de Carlos Saúl Menem, pelomenos por enquanto, pois quem sabe se ele não voltará à presidên-cia nas eleições de 2003, ou mesmo antes. O desespero popularpode produzires mais inesperados resultados, e desespero pareceser o único ingrediente que não falta na Argentina hoje.

DE VOLTA À BEIRA DO ABISMO

A crise de Menem não passaria muito de uma tragédia pessoal,se não tivesse ocorrido na Argentina que mais uma vez enfrentavatempos difíceis. O recomeço dado ao pais pelas reformas de Me-nem logo iria passar por fortes tensões. Problemas antigos e novos,mais um bom número de forças externas, se conjugariam para ge-rar o colapso sofrido pelo país em 2001. A Argentina precisava deuma nova, vigorosa e inovadora liderança para a segunda metadedos anos 90, a fim de poder continuar crescendo e preservar o quefora iniciado por Menem. Em lugar disso, o país foi conduzido porum presidente cada vez com menos poder e desacreditado e, emseguida, por uma nova aliança (UCR e FREPASO) que logo se des-fez, em face dos grandes desafios da crise económica. Toda a clas-se politica carecia de credibilidade, e o desespero popular cresceuainda mais por não encontrar urna alternativa política. Assim, aArgentina se tornou o navio adernado de hoje.

Os desafios da Argentina na época em que o triste fim do "mila-gre argentino" começou, em 1998, eram muitos, e seria necessáriauma tese de doutorado para relatá-los completamente. Aqui nos limi-taremos aos desafios que nos parecem os mais importantes e quecontribuíram essencialmente para o colapso que se aproximava.

Conversibilidade, recessão e a crise da dívida

Primeiramente, temos as consequências de longo prazo da fa-mosa conversibilidade (currency board) criada em 1991. Poucagente questionaria a necessidade da medida quando foi tomada.Tratava-se simplesmente de uma questão de vida ou morte evitarque os políticos financiassem seus próprios erros com uma políticamonetária irresponsável e, ao mesmo tempo, havia poucas outras

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maneiras de criar confiança na moeda argentina além de dotá-la deuma contrapartida do padrão-ouro do passado. A conversibilidadefoi concebida como uma camisa-de-força para um pais que, em ler-mos económicos, se perdera tantas vezes, mas essa cami-sa-de-força pode virar um grande problema quando permanente.Ninguém teve a coragem - compreensível quando uma hiperinflaçãoainda está na memória - ou a força de livrar a Argentina dessa solu-ção de emergência, que muitas pessoas na realidade viam como pa-naceia para todos os males económicos (uma das pessoas que de-sejou a medida, mas foi impedido de adotá-la, foi Menem que, após adesvalorização do real brasileiro, no inicio de 1999, quis dolarizarcompletamente a Argentina). A conversibilidade passou de tal modoa ser vista como elemento imutável das reformas argentinas que, emmaio de 2000, a seguinte declaração podia ser lida no artigo especialdo The Economist sobre a Argentina; "Uma previsão, entretanto, pa-rece segura: a conversibilidade continuará".13

Os problemas da conversibilidade são três. Primeiro, a taxa decâmbio fixa logo gerou a supervalorização do peso com relação à for-ça competitiva da economia argentina, porque a inflação, embora emqueda, por algum tempo se manteve acima da inflação nor-te-americana. Além disso, o peso se mostrava ainda mais supervalo-rizado relativamente a muitas outras moedas, devido à valorizaçãodo dólar nos anos 90. Teoricamente, isso poderia levar a crescentesproblemas de balança comercial (exportações diminuindo ou - comono caso argentino - crescendo menos do que as importações) e umacontração da oferta monetária (dinheiro saindo do pais para pagar odéficit comercial) e gerando tendência à recessão e à deflação, istoé, um nivelamento de preços na Argentina. Um ajustamento dessetipo deveria fortalecer a competitividade da economia argentina(adaptando os preços ao nível comparativo de produtividade), res-taurar o equilíbrio da balança comercial e restabelecer uma relaçãomais razoável entre o poder de compra do dólar e do peso.

Tudo isso aconteceria, embora não no plano teórico, mas numpais real onde a deflação que se iniciara de fato em 1995 (quandoos preços na Argentina começaram a subir mais lentamente do quenos Estados Unidos) e a recessão iniciada no final de 1998 se tor-naram um processo extremamente longo, de modo que o caminho

13- The Economist. 6 de maio de 2000, Argentina survey, p.5.

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da restauração do equilíbrio se tornou rnuito difícil. O Gráfico 27 ré-trata esse processo. Note-se a evolução do ciclo (na forma de PIBper capita), a balança comercia! (déficit/superavit relativamente àsexportações) e inflação (diferenças entre os índices de preços novarejo da Argentina e Estados Unidos, sendo que o sinal positivo (+}significa redução do poder de compra do peso argentino e, conse-qüentemente, supervalorização maior relativamente ao dólar, aopasso que o sinal negativo (-) representa o oposto). O que surpre-ende é a duração do déficit da balança comercial. Isso é conse-quência da pesada sobrevalorização inicial do peso, somada à algoque geralmente não é levado em conta nos modelos teóricos, isto é,quando, com base em crédito externo, tornam-se disponíveis meiosinternacionais de pagamentos, o déficit pode ser mantido durantelongo período. Mas isso é também a própria essência do segundogrande problema da conversibilidade.

GRÁFICO 27: BALANÇA COMERCIAL*, PIB PER CAPITA, E INFLAÇÃO'1991-2001

252015105D

-ò-10-15-20-25-30-35-40-45

J lECEOI

1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001

• Balança Comercial n PI8 per capita • tiflação

* Superavit/Déficit como percentagem das exportações argentinas." Variação percentual anual, 1991 representado pelo período abril/dezembroDiferença do Índice de preços no varejo entre Argenlina e EUA (unidades percen-

tuais ).Fontes: CEPAL 2001 e 2001A; ERRO 1993; Bureau of Labor Slatislics 2002.

A única maneira de fugir da camisa-de-força do currency boardé a tomada de empréstimos. Dessa maneira, qualquer déficit podeser financiado e a oferta monetária expandida (com base em crédi-tos estrangeiros). Assim, a inexistência real de flexibilidade das po-líticas monetária e fiscal criada pela conversibilidade pode ser con-tornada principalmente pelo financiamento externo, mas se trata deperigoso caminho para trilhar porque uma dívida externa rapida-mente crescente cria um ónus na forma de juros e amortizações apagar que, diante de eventual queda do crédito externo, se transfor-ma em coveiro da economia nacional. E foi exatamente isso queaconteceu na Argentina. O Gráfico 28 mostra a escalada explosivada dívida externa dos anos 90. O aumento do endividamento exter-no se deveu ao aumento da dívida dos setores privado e público,sendo o primeiro o autor mais dinâmico nos anos 90.

GRÁFICO 28: ENDIVIDAMENTO EXTERNO, 1992-2001EM BILHÕES DE USS

160

1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001*

(') Setembro.Fouíe: CEPAL, 2001 A, p. 514-515.

No final dessa década, as despesas corn juros e amortizaçõesque teoricamente deveriam ser pagas igualaram praticamente o va-lor total das exportações argentinas de mercadorias. Em tais cir-

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cunstâncias um país está falido, a menos que receba o necessárioinfluxo de capitais externos. Mas as coisas não podiam continuar as-sim indefinidamente, e o momento da verdade chegara no final dadécada de 1990, quando se tornara cada vez mais turbulento o cená-rio mundial na onda da crise asiática. Desde meados de 2001, quan-do os credores descobriram que a Argentina havia chegado a umbeco sem saída, o financiamento externo secou completamente, ex-ceto dos recursos de organizações internacionais como o FMI.

No final, e este constitui o terceiro aspecto problemático daconversibilídade, o sistema cambial argentino ficou apoiado em ba-ses muito frágeis. A existência de amplas reservas no Banco Centralnão foi decisiva nesse sentido. Tudo girava ao redor da confiançaque o público em geral, as instituições e técnicos pudessem ter nadisposição e na habilidade do governo argentino de continuar comessa política. Comum número crescente de pessoas duvidando des-sa possibilidade, faltou confiança, a despeito da grande quantidadede reservas acumuladas, e assim o pesadelo argentino estava nova-mente de volta. Todas as pessoas queriam livrar-se da moeda nacio-nal (e, em muitos casos, do próprio pais), e ninguém se dispunha aemprestar dinheiro ao governo. Dessa maneira, restava às autorida-des confiscar tanto dinheiro quanto possível e de várias maneiras,como foi feito muitas vezes desde o último ano, na forma de conver-são compulsória da dívida interna nacional - totalizando US$ 50 bi-lhões - em empréstimos mais favoráveis ao governo, na forma de re-dução de salários e aposentadorias de funcionários públicos (porexemplo, menos 13% das pensões acima de 500 dólares), na formade suspensão de pagamentos a fornecedores do governo e, final-mente, após ter sido abandonada a conversíbilidade, em janeiro de2002, na forma de uma conversão a pesos de todos os depósitos emdólar, a uma taxa de câmbio inferior à do mercado. Foi, nas palavrasde Steve Hanke, um amplo "roubo legalizado".14

Da hiperinflação ao hiperdesemprego

Durante 100 anos a Argentina se permitiu tolerar muita inefi-ciência nos setores público e privado. Foi um lastro que se tornoucada vez mais pesado no desenvolvimento argentino, tendo sido

14- Hanke 2002.

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grandemente responsável pelo retrocesso do país na maior partedo século XX. Tivemos oportunidade de ver como o protecionismodeu abrigo a um desenvolvimento industrial inferior, como o empre-go no setor público se converteu em desperdício em larga escalados recursos produtivos do país, como as decisões políticas, confli-tos de interesses e corrupção se tornaram fatores de sucesso maisimportantes do que as atividades produtivas e a moral de todo urnpaís se degradou de tal maneira que as pessoas começaram a veradisputa distributiva como um caminho para a felicidade. Essa era aherança que Menem - ou qualquer um interessado sinceramentenos problemas do país - foi obrigado a enfrentar. A solução de Me-nem foi forçar uma revolução da produtividade, desmantelando in-sistente e rapidamente as estruturas político-corporativas que colo-cam em ação a totalidade desse ruinoso cicio de ineficiência. Masuma decisão revolucionária desse tipo estava fadada a ter conse-quências de todos os tipos.

Conforme vimos no caso da indústria, as reformas produziramum crescimento de produtividade sem paralelo, o mesmo aconte-cendo com várias empresas privatizadas. A consequência foi umagrande queda do nível de emprego, sendo que no setor industrialcorrespondeu, entre 1990 e 1998, a 1/5 dos empregados. Mas osmaiores cortes de empregos aconteceram nas empresas privatiza-das, que foram exemplos típicos da ineficiência que caracterizou osetor público durante várias décadas. Dos 319.000 empregadosexistentes nessas atividades em 1989, apenas 67.000 continuavamno final de 1993. Ao mesmo tempo, colocaram-se freios no que ha-via anteriormente sustado o crescimento do desemprego em situa-ções similares, isto é, a possibilidade de expandir o emprego no se-tor público. Além disso, o esforço para melhorar a eficiência dessesetor redundou na redução de pessoal em cerca de 10%, isto é,200.000 empregados no mesmo período.

O resultado dessas drásticas medidas foi uma explosão de de-semprego que, em poucos anos, transformou uma das mais impor-tantes características do desenvolvimento argentino, que era o bai-xo nível de desemprego. A tendência de crescimento do desempre-go já era aparente nos anos 80, mas tornara-se então muito maior,conforme se observa no Gráfico 29, que também mostra a evoluçãodo subemprego (pessoas trabalhando menos de 35 horas devido àfalta de oportunidades de trabalho).

As pessoas jovens foram especialmente atingidas: no final dadécada de 1990 estimava-se que 920.000 jovens entre 15 e 24

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anos não estavam trabalhando ou estudando. Simultaneamentehouve um enorme crescimento da economia informal, que semprehavia sido importante na Argentina. Dentro desse quadro, haviatambém o alto custo de despedir empregados (na década de 90, aprevidência social e outros encargos sociais representavam cercade 50% dos salários brutos, isto é, mais do que na Suécia e em ou-tros países desenvolvidos) e rígidos regulamentos trabalhistas, her-dados principalmente do primeiro governo de Perón.

GRÁFICO 29: DESEMPREGO E SUBEMPREGO, 1978-2001 (MÊS DEOUTUBRO,PERCENTAGENS)

• Desemprego D Subemprego

FOJIÍC: INDEC2001.

A explosão da pobreza

O choque de desemprego dos anos 90 teve parte importantena perda de popularidade da administração de Menem após 1995,trazendo também de volta os sérios conflitos sociais. Mas o choquedo desemprego foi igualmente a razão crucial do rápido aumento dapobreza e das crescentes disparidades de renda.

A pobreza pode ser definida de várias maneiras, muitas vezesem relação à pobreza ou à riqueza de outras pessoas (pobreza re-

lativa}, que não será usada aqui. Definiremos pobreza como umarelação entre renda disponível e o custo de certa quantidade debens e serviços tidos como necessários para urna vida tolerável. Deacordo corn informações oficiais argentinas,15 o valor desses bense serviços variava entre US$ 133 e US$ 154 mensais por adulto, emmaio de 2001, dependendo da região argentina em que essa pes-soa vivia. Por outro lado, a pobreza extrema - indigência - é defini-da como uma renda que sequer dá acesso a uma "cesta básica"que resulta numa quantidade diária de 2,700 calorias para uma pes-soa adulta. Isso, na mesma data, correspondia aos valores de US$55 a USS 65 mensais por adulto. Deve ser acrescentado que a po-breza de renda não diz muito sobre a pobreza acumulada, porexemplo, na fornia de habitação, bens de capital e educação. E issode forma alguma deixa de ser importante num país como a Argenti-na, onde parte substancial dos novos pobres provém cada vez maisda classe média. Por exemplo, entre 95 e 97% de todas as famíliasargentinas, em 1998, possuíam seu televisor, refrigerador e fogão,e 3/4 possuíam máquina de lavar. E a população argentina tem umpadrão relativamente alto de educação: em 2000, apenas 8% dapopulação urbana economicamente ativa não tinham educaçãoelementar, e quase 30% haviam recebido alguma forma de educa-ção pós-secundária (incluindo 15% com títulos).

Mas que significa isso tudo se outras pessoas têm muito maise, igualmente importante, se a própria pessoa já teve dias melho-res? Para grande parle da população argentina - e nisso ela diferemuito do resto da América Latina, exceto o Uruguai - a pobreza éuma situação nova, que teve início, para a maior parte das pessoas,com o colapso dos anos 80, quando a renda per capita do país caiuem quase 25%, conforme vimos anteriormente.

Vinte e seis por cento de todas as famílias e 36% dos habitan-tes do país foram contados como pobres em maio de 2001. Issocorresponde a pouco mais de 13 milhões de indivíduos. Mas a po-breza era muito mal distribuída nesse extenso país. Na cidade deBuenos Aires apenas 11 % eram pobres, ao passo que quase 40%eram pobres na Grande Buenos Aires (excluindo a cidade). A po-breza nas províncias do nordeste abrangia mais de 50% da popula-ção. Não menos interessante é o fato de a pobreza ser um fenôme-

15- INDEC2002.

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no do passado recente. Podemos ver isso no Gráfico 30, com a aju-da de números para toda a Grande Buenos Aires. Como ponto dereferência, a proporção de pobres era menos de 5% no começo dosanos 80, mas cresceu a níveis inacreditáveis nos períodos de hi-perinflação.

GRÁFICO 30: POBREZA E ECTREMA POBREZA NA GRANDE BUENOS AIRES,MAIO 1991-2001 E OUTUBRO 2001 (INDIVÍDUOS EM PERCENTAGEM DAPOPULAÇÃO TOTAL)

• Extrema Ribreza D Pobreza (incluindo os extremamente pobres!

Fonte: INDEC 2002A, p.3/8 e 4/8.

Em outubro de 1989, 47,4% da população de Buenos Aires fo-ram classificados como pobres! Pelo gráfico se pode verificar que apobreza caiu muito nos primeiros tempos de Menem no poder, eisso indiscutivelmente significou melhoria expressiva se comparadocom os anos desastrosos no final dos 80, mas a partir da crise de1995 a pobreza voltou a crescer, atingindo níveis inéditos. A ten-dência do aumento da pobreza parou ern outubro de 2001, quandoalcançou 35%. Pode-se notar também que foi a pobreza extremaque cresceu mais no período, quase que quadruplicando entremaio de 1994 e outubro de 2001. Isso significa que no final de 2001havia praticamente 1,5 milhão de pessoas extremamente pobres

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em Buenos Aires! Esses dados tornam muito claro que a Argentinade hoje é um barril de pólvora de frustração, desespero e miséria, ecriam um cenário lúgubre mas necessário para as imagens de mul-tidões desesperadas que frequentemente nos são mostradas dacrise argentina.

A distribuição de renda se tornou cada vez mais desigual no úl-timo quarto de século. Em 1974, o hiato de renda entre os mais ri-cos e os 10% mais pobres da população era de 2,2 vezes. Ern 1990esse valor subira para 15,4 vezes, e em 1998 atingiu 24,6 vezes. Jáse disse que a pobreza é mais suportável quando partilhada por to-dos, o que não foi o caso argentino.

A máquina pública desestabilizadora

Há muito tempo a Argentina tem vivido além de seus meios, eessa característica passou a fazer parte da cultura popular e políti-ca. Contrariando a realidade com dinheiro emprestado ou com infla-ção, essa característica se transformou num esporte nacional quequase sempre terminou mal. O setor público passou a desempe-nhar um papel destacado nesse processo que forjou um pais comum número demasiado de espertalhões de olhos abertos para apro-veitar uma boa oportunidade à custa dos outros. As reformas deMenern se preocupavam muito com o objetivo de levar o setor públi-co - o maior pecador da sociedade argentina - a se comportar bem,e assim o fez durante alguns anos, enquanto o imposto inflacionárionão estava disponível e a disciplina orçamentaria se mantinha comsuficiente rigor.

Durante a primeira metade dos anos 90 as finanças públicasargentinas se mantiveram mais ou menos equilibradas. A privatiza-ção desempenhou importante papel ao eliminar uma causa funda-mental do déficit e gerar recursos com a venda de propriedades pú-blicas. Mas os cortes de empregos e urn sistema tributário mais efi-ciente também colaboraram nesse saneamento fiscal. Conforme sevê no Gráfico 31, porém, as coisas mudaram após 1995, com pesa-dos déficits - se bem que menores, comparativamente ao passado- tanto no âmbito nacional como nas províncias. Isso produziu rápi-do endividamento, e o custo do seu financiamento passou a contri-buir para gerar maiores déficits. O Gráfico 32 mostra a evolução dosgastos públicos totais, o total da dívida pública e os custos do seu fi-nanciamento no período 1993-2000. Para tornar o problema maisclaro, o Gráfico 33 registra o aumento percentual desses três itens.

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Page 60: A Crise Da Argentina

Vê-se claramente o impressionante crescimento do valor dos servi-ços da dívida durante o período sob observação. Em 1993 essescustos estavam pouco abaixo de 6% do lotai de gastos públicos,chegando aos 13% em 2000!

GRÁFICO 31: RESULTADOS FINANCEIROS LÍQUIDOS DO SETOR PUBLICOCOMO PERCENTAGENS DO GASTO PUBLICO, 1993-2000

1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000

Fonte: Ministério de Economia 2002

Nesse mesmo contexto, é relevante mencionar a impressio-nante estrutura do setor público da Argentina. A rnaior parte da co-leta de impostos é centralizada, com a receita sendo encaminhadadiretamente para o governo nacional; por outro lado, as despesassão amplamente descentralizadas, e as províncias, em 2000, repre-sentaram 40% de todos os gastos públicos (45% sem os custos doserviço da dívida). Isso cria campo fértil para uma ampla competi-ção distributiva dentro da própria máquina governamental, conver-tendo as províncias em gastadores pródigos que, por sua vez, pas-sam o maior número possível de contas a pagar para o governocentral. O resultado é a confusão fiscal, e sempre que o governocentral tem procurado conter os gastos das províncias elas ampli-am seus débitos por sua própria conta. Isso foi visível durante osanos de crise de 1999 e 2000, quando o endividamento das provin-

1-14

cias cresceu uns 50% (enquanto a dívida total aumentara em 14%).Os déficits das províncias em 2000 chegaram a 9% dos respectivosorçamentos.

GRÁFICO 32: DÍVIDA PÚBLICA, GASTO PÚBLICO E CUSTOS DO SERVIÇO DADÍVIDA, 1993-2000 (EM BILHÕES DE DÓLARES)

1996 1997 199B 1999 2000

l Divida Pública L ' Gasto l Custus do Serviço da Divida

Fcwfes. Centro de Economia Internacional 2002, Ministério de Economia 2002.

A isso tudo deve-se acrescentar o grande e crescente déficit dosistema previdenciáno que, no terceiro trimestre de 2000, alcança-va 1,75 bilhão de dólares, correspondendo a 40% sem cobertura fi-nanceira. Trata-se de um ónus cada vez mais pesado nas finançaspúblicas argentinas, e apenas pode ser reduzido por meio de dolo-rosos cortes em gastos sociais ou pesados aumentos de contribui-ções previdenciárias, algo que na atual crise de desemprego nin-guém em sã consciência se atreveria a sugerir.

Em condições como essa a estabilidade não é alcançável, e osistema de conversibilidade estava para entrar em colapso a qual-quer momento sob a pressão da dívida pública. Novamente comoMinistro da Economia - dessa vez tendo Fernando de Ia Rua comopresidente - Domingo Cavallo fez um último esforço desesperado,em 2001, para salvar a conversibilidade na base da Lei do Déficit

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Page 61: A Crise Da Argentina

Zero, que compelia o governo nacional a gerar um déficit igual azero todos os meses. Mas já era tarde: a conversibilidade e a eco-nomia argentina não tinham salvação.

GRÁFICO 33: DÍVIDA PÚBLICA, GASTO PÚBLICO E CUSTOS DO SERVIÇO DADÍVIDA, 1993-2000, VARIAÇÕES PERCENTUAIS (1993 = 100)

300

250

200

1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000

l Divida Rjblica D Gasto Rjblico • Cuslos do Serviço da Divida

s Centro de Economia Internacional 2002] Ministério de Economia 2002.

Merco sul

Um problema menor, mas ainda assim de grande importância acurto prazo para o processo da crise após 1998, foi a instituição decooperação regional entre Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai,conhecida como Mercosul (Mercado Comum do Sul). O Mercosulfoi criado em 1991 como uma área de livre comércio, com o propósi-to de vir a transformar-se futuramente numa união aduaneira con-vencional.

Os primeiros anos do Mercosul foram de muito sucesso, e a in-tegração do mercado regional progrediu apreciavelmente. Como sepode ver no Gráfico 34, as exportações argentinas ao Mercosulquase que quadruplicaram entre 1990 e 1997, tendo o Brasil comoo parceiro comercial mais importante. As exportações para o Brasilem 1997 representaram 30% do total das exportações argentinas,

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sendo 3,7 vezes maiores do que as vendas para os Estados Unidos,o segundo parceiro comercial mais importante. Mas essa dependên-cia com relação ao mercado brasileiro se mostraria desastrosa quan-do o Brasil se divorciou completamente do espirito de cooperaçãoque fundamentava o Mercosul e desvalorizou drasticamente o realem janeiro de 1999- Subitamente a relação de preços entre os doispaíses se alterou em 30% a favor do Brasil, isto é, os preços brasilei-ros se tornaram 30% mais baixos. O efeito foi dramático, aumentan-do os problemas económicos que a Argentina já experimentara nasegunda metade de 1998. Num ano as exportações da Argentinapara o Brasil diminuíram US$ 2,26 bilhões, redução que respondepor 73% das perdas em exportações do país em 1999. O setor auto-mobilístico foi o mais atingido, tendo as suas exportações para o Bra-sil sido reduzidas em mais da metade. Isso explica em boa medida acatastrófica queda de produção dessa indústria na primeira metadede 1999, comparativamente ao mesmo período do ano anteriorEssas ocorrências colocaram a cooperação regional em lamentávelsituação, e o seu futuro atualmente se mostra incerto.

GRÁFICO 34: EXPORTAÇÕES E IMPORTAÇÕES TOTAIS AO MERCOSUL,1989-2000 (USD BN)

1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000

• Exportação (Total) D Mercosul

Fonte: Ministério de Economia 2002.

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Page 62: A Crise Da Argentina

A crise de confiança

No dia 1° de março de 2002, Eduardo Duhalde, que assumira apresidência no dia 1 ° de janeiro, pronunciou um importante discursona abertura do ano parlamentar. No seu pronunciamento ele des-creveu a essência da crise nacional:

/•'az dois meses que esta assembleia con/lou-me a responsabili-dade governamental... num fiais cm bancarrota e àx vésperas ilaanarquia . O poro não confia nos políticos c em seus represen-tantes. O povo não st' sente representado pêlos MUS lideres sin-dicais c tampouco pêlos lideres do comércio c da indústria e,além disso, não tem confiança nu administração da justiça.Igualmente sério c o fato de a confiança liava- se perdido tam-bém no seio da própria sociedade... a profunda decadência mo-ral que lem erodido a confiança entre o.\ cidadão.i tem lambemminado a confiança nas instituições pithlicas e pervertido as re-gras básicas da vida social.. enfrenta-nos hoje o enorme desafioda reconstrução th tiosso capital social, cujos componentes fun-damentai* são a capacidade do povo de cooperar num pró/elocomum, confiar uns nos outros nas instituições suciais e .vt-n.v re-presentantes, juntamente com um código ético de conduta aoqual todos devem aderir e um espirito cívico de apreciar a vidanuma democracia e de lutar por um futuro melhor."'

Nessas palavras o novo presidente da Argentina resumiu a cri-se de confiança que, de forma decidida, influencia todos os outrosproblemas do país. Essa crise tem uma longa história. Sua escala-da se deu durante décadas de conflitos distributivos destrutivos, po-pulismo, caça de privilégios, corrupção institucionalizada, númerocrescente de conflitos violentos e instabilidade, culminando com obarbarismo da Guerra Fria, a tragédia das Ilhas Malvinas e o caosda hiperinflação. Foi a própria espinha dorsal da sociedade argenti-na que sofreu uma violenta agressão durante esse longo processo,sendo que esse traumático ferimento está sempre presente, prontopara ser reaberto e levar toda a sociedade à ruína.

A sensação de viver numa sociedade completamente deterio-rada e de ser levado novamente ao abismo cresceu progressiva-

16- Duhalde 2002.

mente na segunda metade dos anos 90, juntamente com os escân-dalos de corrupção denunciados, os incompreensíveis atos de vio-lência jamais esclarecidos e, igualmente importante, o infindávelfluxo de histórias de pesadelos dos dias de Guerra Suja. Às mãesda Plaza de Mayo juntaram-se agora as avós da Plaza de Mayo,com a finalidade de chamar a atenção pública para os filhos dos de-saparecidos que foram sequestrados e em seguida colocados soba proteção de pais adotivos. Isso tornou possível a instigação denovos processos criminais contra os responsáveis pela GuerraSuja, pois dessa vez as acusações se referiam a sequestros de cri-anças, um crime que continua como tal enquanto as vitimas perma-necem em poder dos raptores.

As crises morais e de confiança que estou comentando aquinão podem ser facilmente quantificadas, mas isso não impede quese reconheça a sua importância para uma sociedade civilizada.Muito simplesmente, diz respeito à essência mais básica da vidasocial, o capital representado pela confiança mútua e regras efica-zes de intercâmbio, sem o que tudo o mais se torna mais difícil oumesmo impossível. É esse capital que tem faltado na Argentina, e asua recuperação pode exigir muito tempo.

SERIA O ULTIMO TANGO DE CARMENCITA?

O colapso aconteceu em dezembro de 2001, depois de maisde três anos de crescimento maciço da pobreza, altíssimo desem-prego e uma recessão económica que tem custado aos argentinos,em média, 11 % da sua renda per capita. A situação do presidenteFernando de Ia Rua não alimentava esperanças. Sua base de po-der rapidamente ruiu e, após as eleições de outubro de 2001, a opo-sição peronista voltara a ser a principal força política. O estado de-plorável do país tornava claro que o colapso era iminente e que osdias da conversibilidade estavam contados. Uma rápida fuga dopeso já começara em 2001, com a resultante diminuição das reser-vas do Banco Central. A oferta monetária encolheu, piorando aindamais a recessão e resultando em pesada perda de receita tributária.Ern seu desespero, diversos governos de províncias começaram aemitir bónus -patacôn, lecop, /ecoretc.-para, entre outras coisas,pagar o funcionalismo (essas moedas paralelas chegavam, emabril de 2002, a seis bilhões de pesos). Para frear a crescente fugado peso, vários controles foram impostos sobre transações bancári-

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as e de trocas de moeda, em dezembro: entre outras coisas, as limi-tações às retiradas das contas bancárias, que passaram a ser co-nhecidas como "corralito". Tratava-se de urn confisco em rnassadas poupanças populares. A situação tornara-se insustentável, e opresidente renunciou no dia 20 de dezembro, após um par de diasde conflitos sangrentos e caos generalizado. O Ministro DomingoCavallo havia renunciado um dia antes.

Antes do final de dezembro, mais três presidentes (Ramón Pu-erta, Adolfo Rodriguez Saá e Eduardo Camano} haviam assumidoseus poderes - e renunciaram -, e no dia 1° de janeiro de 2002 operonista Eduardo Duhalde assumiu a presidência. A economia dopais estava agora em queda livre, e a conversibilidade fora abando-nada há poucos dias. Desde então todos os gráficos estavam apon-tando na direção errada. Nas propostas orçamentarias apresenta-das em fevereiro, o governo avaliou uma queda do PIB argentino de4,9% ern 2002, mas nenhum observador endossaria tão otimistaprevisão fesse orçamento deverá entrar na história como um dosmais realistas jamais preparados, e sua base tributária já tinha en-trado em colapso em março). Naquele mesmo mês um declínio de8,4% foi previsto pelo The Economist Inteltigence Unit, e a avalia-ção do FMI feita em março se aproximava desse mesmo valor, masoutros cálculos ainda mais pessimistas estão circulando. Se essasestimativas forem correias, estamos para ver a maior debacle eco-nómica da história argentina, com uma perda per capita de 10% oumais num ano e uma queda acumulada nos últimos quatro anos demais de 20%!

O peso foi desvalorizado em mais de 100% tão logo a conversi-bilidade foi abandonada, e a inflação, o pior pesadelo argentino, co-meçou a fazer-se sentir imediatamente. Os preços no atacado jáhaviam subido 25,7% em março, e não é difícil antecipar o risco deuma devastadora combinação de hiper-recessão e hiperinflação(algo que forçaria o pais a aceitar uma dolarização convencionalcomo sua única saída). A produção industrial, a construção civil, ovolume de comércio, as exportações, as importações e a receita tri-butária despencaram, e certos setores - a indústria automobilísticacomo exemplo mais importante - foram completamente paralisa-dos no começo daquele ano. Além disso, o sistema bancário haviade fato quebrado, significando pesadas perdas para credores es-trangeiros, bem corno para os donos de poupanças na Argentina eo próprio governo. Em fevereiro, a Fundación Libertad, sediada ernRosário, calculou que seriam necessários empréstimos externos de

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uns US$ 50 bilhões para tirar a Argentina dessa situação: "para sairda crise a Argentina necessita mais do que apoio financeiro, precisade um Plano Marshall".17

Eles podem ter acertado em seus cálculos, mas os créditos doano passado do FMI, de USS 28 bilhões, ajudaram muito pouco, eeu pessoalmente estou convencido de que nem mesmo um PlanoMarshall poderia ajudar, a menos que muitas outras coisas, impro-váveis no presente, também acontecessem. Não há solução fácilpara a Argentina e, como já vimos, os problemas do pais vão alémdos problemas económicos. Para atacar os enormes problemas daeconomia, uma nova liderança política é necessária, com o apoio ea confiança requeridos para realizar as reformas que consolidem eampliem o grande progresso que teve lugar na primeira metade dosanos 90. No momento não há o menor sinal de que isso possaacontecer. Ao mesmo tempo, devemos reconhecer que sem umaação firme para aliviar os problemas mais sérios da pobreza nãohaverá qualquer possibilidade de se chegar ao mínimo de estabili-dade social necessário para tirar a Argentina da crise.

Há muito mais coisas em jogo do que as mencionadas neste li-vro. É o futuro da Argentina como uma sociedade democrática queserá decidido dentro dos próximos poucos anos, ou talvez antes.Devemos entender que em condições "normais" argentinas, umaintervenção militar teria tido lugar já muito tempo. Mas os militaresestavam desacreditados após a Guerra das Malvinas, a GuerraSuja e o colapso económico do início dos anos 80 que, por algumtempo, interrompeu a normalidade trágica dos golpes de estado. Aomesmo tempo, não é difícil ver que esse período de graça pode ter-minar um dia se a Argentina continuar a se afundar na crise.

Muito triste para a Argentina, muito triste para a Carmencita deEvert Taube que, como na canção, se encontrava sentada "no ban-co sobre urna manta e com uma rosa no seu peito", e apenas queriadançar um tango.

17- Fundación Libertad 2002.

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