52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

24
7/28/2019 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder http://slidepdf.com/reader/full/52836850-foucault-michel-o-sujeito-e-o-poder 1/24 Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow M ICH EL FO UCA Uma Trajetória Filosófica Para além do estruturalismo e da hermenêutica  Tradução: Vera Porto Carrero Introdução: Traduzida por Antonio Carlos Maia

Transcript of 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

Page 1: 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

7/28/2019 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

http://slidepdf.com/reader/full/52836850-foucault-michel-o-sujeito-e-o-poder 1/24

Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow

M I C H E L F O U C AUma TrajetóriaFilosófica

Para além doestruturalismo e da

hermenêutica

 Tradução: Vera Porto CarreroIntrodução: Traduzida por Antonio

Carlos Maia

Page 2: 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

7/28/2019 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

http://slidepdf.com/reader/full/52836850-foucault-michel-o-sujeito-e-o-poder 2/24

hiFOPÉNSÉ UNIVERSITÁRIA

O Sujeito e o Poder

FOUCAULT, Michel.

I

Por que estudaro poder: a

questão dosujeito1

As idéias que eu gostaria de discutir aqui nãorepresentam nem uma teoria nem uma metodologia.

Eu gostaria de dizer, antes de mais nada, qual foio objetivo do meu

trabalho nos últimos vinte anos. Não foi analisar ofenômeno do poder nem elaborar os fundamentos de talanálise.

Meu objetivo, ao contrário, foi criar uma históriados diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, osseres humanos tornaram-se sujeitos. Meu trabalho lidoucom três modos de objetivação que transformam osseres humanos em sujeitos.

O primeiro é  o modo da investigação, que tentaatingir o estatuto de ciência, como, por exemplo, aobjvetivação do sujeito do discurso na grammairegénérale,1 na filologia e na linguística. Ou, ainda, aobjetivação do sujeito produtivo, do sujeito quetrabalha, na análise das riquezas e na economia. Ou, umterceiro exemplo, a objetivação do simples fato de estarvivo na história natural ou na biologia.

Na segunda parte do meu trabalho, estudei aobjetivação do sujeito naquilo que eu chamarei de"práticas divisoras". O sujeito é dividido no seu interior eem relação aos outros. Este processo o objetiva.Exemplos: o louco e o são, o doente e o sadio, oscriminosos e os "bons meninos".

1 Este texto foi escrito em inglês por Michel Foucault.

I Em francês, no original (N. do

Page 3: 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

7/28/2019 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

http://slidepdf.com/reader/full/52836850-foucault-michel-o-sujeito-e-o-poder 3/24

Finalmente, tentei estudar — meu trabalho atual— o modo pelo qual um ser humano torna-se um sujeito.Por exemplo, eu escolhi o domínio da sexualidade —como os homens aprenderam a se reconhecer comosujeitos de "sexualidade".

Assim, não é o poder, mas o sujeito, que constituio tema geral de minha pesquisa.

É verdade que me envolvi bastante com aquestão do poder. Pareceu-me que, enquanto o sujeitohumano é colocado em relações de produção e designificação, é igualmente colocado em relações depoder muito complexas. Ora, pareceu-me que a históriae a teoria econômica forneciam um bom instrumentopara as relações de produção e que a lingüística e asemiótica ofereciam instrumentos para estudar asrelações de significação; porém, para as relações do

poder, não temos instrumentos de trabalho. O únicorecurso que temos são os modos de pensar o poder combase nos modelos legais, isto é: o que legitima o poder?Ou então, modos de pensar o poder de acordo com UM modelo institucional, isto é: o que é o Estado?

Era, portanto, necessário estender as dimensõesde uma definição de poder se quiséssemos usá-la aoestudar a objetivação do sujeito.

Será preciso uma teoria do poder? Uma vez queuma teoria assume uma objetivação prévia, ela não

pode ser afirmada como uma base para um trabalhoanalítico. Porém, este trabalho analítico não podeproceder sem uma conceituação dos problemastratados, conceituação esta que implica um pensamentocrítico — uma verificação constante.

A primeira coisa a verificar é o que eu deveriachamar de "necessidades conceituais". Eu compreendoque a conceituação não deveria estar fundada numateoria do objeto — o objeto conceituado não é o únicocritério de uma boa conceituação. Temos que conheceras condições históricas que motivam nossaconceituação. Necessitamos de uma consciênciahistórica da situação presente.

A segunda coisa a ser verificada é o tipo derealidade com a qual estamos lidando.

Certa vez, um escritor expressou, num jornalfrancês bem conhecido, sua surpresa: "Por que a noçãode poder é discutida por tantas pessoas hoje em dia?Trata-se de um tema tão importante? É ela tãoindependente que pode ser discutida sem se levar emconsideração outros problemas?"

A surpresa deste escritor me surpreende. Nãoacredito que esta questão tenha sido levantada pela

3

Page 4: 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

7/28/2019 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

http://slidepdf.com/reader/full/52836850-foucault-michel-o-sujeito-e-o-poder 4/24

primeira vez no século XX. De qualquer maneira, não setrata, para nós, apenas de uma questão teórica, mas deuma parte de nossa experiência. Gostaria de mencionarduas "formas patológicas" — aquelas duas "doenças dopoder" — o fascismo e o estalinismo. Uma dasnumerosas razões pelas quais elas são, para nós, tãoperturbadoras é que, apesar de sua singularidadehistórica, elas não são originais. Elas utilizam eexpandem mecanismos já presentes na maioria dassociedades. Mais do que isto: apesar de sua próprialoucura interna, utilizaram amplamente as idéias e osartifícios de nossa racionalidade política.

O que necessitamos é de uma nova economia dasrelações de poder — entendendo-se economia numsentido teórico e prático. Em outras palavras: desdeKant, o papel da filosofia é prevenir a razão de

ultrapassar os limites daquilo que é dado naexperiência; porém, ao mesmo tempo — isto é, desde odesenvolvimento do Estado moderno e da gestãopolítica da sociedade —, o papel da filosofia é tambémvigiar os excessivos poderes da racionalidade política. Oque é, aliás, uma expectativa muito grande.

Todos têm consciência de tais fatos tão banais.Porém, o fato de serem banais não significa que nãoexistam. O que temos que fazer com eles é descobrir —ou tentar descobrir — que problema específico e talvez

original a eles se relaciona.A relação entre a racionalização e os excessos dopoder político é evidente- E não deveríamos precisaresperar pela burocracia ou pelos campos deconcentração para reconhecer a existência de taisrelações. Mas o problema é: o que fazer com um fato tãoevidente?

Devemos julgar a razão? Em minha opinião, nadaseria mais estéril. Primeiro, porque o campo a sertrabalhado não tem nada a ver com a culpa ou ainocência. Segundo, porque não tem sentido referir-se àrazão como uma entidade contraria à não-razão. Porúltimo, porque tal julgamento nos condenaria arepresentar o papel arbitrário e enfadonho doracionalista ou do irracionalista.

Devemos investigar este tipo de racionalismo queparece específico da cultura moderna e que se originana Aufklärung?2 Acredito que esta foi a abordagem dealguns membros da Escola de Frankfurt. Meu objetivo,contudo, não é iniciar uma discussão em seus trabalhos,apesar de serem, na maior parte, importantes e

valiosos. Ao contrário, eu sugeriria uma outra forma deinvestigação das relações entre a racionalização e o

Page 5: 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

7/28/2019 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

http://slidepdf.com/reader/full/52836850-foucault-michel-o-sujeito-e-o-poder 5/24

poder.Seria mais sábio não considerarmos como um

todo a racionalização da sociedade ou da cultura, masanalisá-la como um processo em vários campos, cadaum dos quais com uma referência a uma experiênciafundamental: loucura, doença, morte, crime,sexualidade etc.

Considero a palavra racionalização perigosa. Oque devemos fazer é analisar racionalidades específicasmais do que evocar constantemente o progresso daracionalização em geral.

A despeito da Aufkfärung ter sido uma fase muitoimportante da nossa história e do desenvolvimento datecnologia política, acredito termos que nos referir aprocessos muito mais remotos se quisermos

compreender como fomos capturados em nossa própriahistória.

Gostaria de sugerir uma outra forma deprosseguir em direção a uma nova economia dasrelações de poder, que é mais empírica, maisdiretamente relacionada à nossa situação presente, eque implica relações mais estreitas entre a teoria e aprática. Ela consiste em usar as formas de resistência

contra as diferentes formas de poder como um ponto departida. Para usar uma outra metáfora, ela consiste emusar esta resistência como um catalisador químico demodo a esclarecer as relações dc poder, localizar suaposição, descobrir seu ponto de aplicação e os métodosutilizados. Mais do que analisar o poder do ponto devista de sua racionalidade interna, ela consiste emanalisar as relações de poder através do antagonismodas estratégias.

Por exemplo, para descobrir o que significa, nanossa sociedade, a sanidade, talvez devêssemosinvestigar o que ocorre no campo da insanidade; e o quese compreende por legalidade, no campo da ilegalidade.E, para compreender o que são as relações de poder,talvez devêssemos investigar as formas de resistência eas tentativas de dissociar estas relações.

Para começar, tomemos uma série de oposiçõesque se desenvolveram nos últimos anos: oposição aopoder dos homens sobre as mulheres, dos pais sobre osfilhos, do psiquiatra sobre o doente mental, da medicinasobre a população, da administração sobre os modos de

vida das pessoas.Não basta afirmar que estas são lutas

5

2 Em alemão no original (N. do T.).

Page 6: 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

7/28/2019 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

http://slidepdf.com/reader/full/52836850-foucault-michel-o-sujeito-e-o-poder 6/24

antiautoritárias; devemos tentar definir maisprecisamente o que elas têm em comum.

1)São lulas "transversais"; isto é, não sãolimitadas a um país. Sem dúvida, desenvolvem-semais facilmente e de forma mais abrangente emcertos países, porém não estão confinadas a umaforma política e econômica particular de governo.2)O objetivo destas lutas são os efeitos de poderenquanto tal. Por exemplo, a profissão médicanão é criticada essencialmente por ser umempreendimento lucrativo, porém, porque exerce,um poder sem controle, sobre os corpos daspessoas, sua saúde, sua vida e morte.3)São lutas "imediatas" por duas razões. Em taislutas, criticam-se as instâncias de poder que lhessão mais próximas, aquelas que exercem sua ação

sobre os indivíduos. Elas não objetivam o "inimigomor", mas o inimigo imediato. Nem esperamencontrar uma solução para seus problemas nofuturo (isto é, liberações, revoluções, fim da lutade classe). Em relação a uma escala teórica deexplicação ou uma ordem revolucionária quepolariza o historiador, são lutas anárquicas.Porém, estes não são seus aspectos mais

originais; os que se seguem me parecem maisespecíficos:

4)São lutas que questionam o estatuto doindivíduo: por um lado,afirmam o direito de ser diferente e enfatizam tudoaquilo que toma osindivíduos verdadeiramente individuais. Por outro lado,atacam tudo aquiloque separa o indivíduo, que quebra sua relação com osoutros, fragmenta a vida comunitária, força o  indivíduoa se voltar para si mesmo e o liga a sua própriaidentidade de um modo coercitivo.

Estas lutas não são exatamente nem a favor nemcontra o "indivíduo"; mais que isto, são batalhascontra o "governo da individualização".

5) São uma oposição aos efeitos de poderrelacionados ao saber, acompetência e à qualificação: lutas contra os privilégiosdo saber. Porém, sãotambém uma oposição ao segredo, à deformação e àsrepresentações mistificadoras impostas às pessoas.

Não há nada de "cientificista" nisto (ou seja, umacrença dogmática no valor do saber científico), nem é

Page 7: 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

7/28/2019 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

http://slidepdf.com/reader/full/52836850-foucault-michel-o-sujeito-e-o-poder 7/24

uma recusa cética ou relativista de toda verdadeverificada. O que é questionado é a maneira pela qual osaber circula e funciona, suas relações com o poder. Emresumo, o regime du savoir.3

6) Finalmente, todas estas lutas contemporâneasgiram em torno daquestão: quem somos nós? Elas são uma recusa a estasabstrações, do estadode violência econômico e ideológico, que ignora quemsomos individualmente, e também uma recusa de umainvestigação científica ou administrativa que determinaquem somos.

Em suma, o principal objetivo destas lutas éatacar, não tanto "tal ou tal" instituição de poder ougrupo ou elite ou classe, mas, antes, uma técnica, umaforma de poder.

Esta forma de poder aplica-se à vida cotidianaimediata que categoriza o indivíduo, marca-o com suaprópria individualidade, liga-o à sua própria identidade,impõe-lhe uma lei de verdade, que devemos reconhecere que os outros têm que reconhecer nele. É uma formade poder que faz dos indivíduos sujeitos. Há doissignificados para a palavra sujeito: sujeito a alguémpelo controle e dependência, e preso à sua própriaidentidade por uma consciência ou autoconhecimento.Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga e

toma sujeito a.Geralmente, pode-se dizer que existem três tiposde lutas: contra as formas de dominação (étnica, social ereligiosa); contra as formas de exploração que separamos indivíduos daquilo que eles produzem; ou contraaquilo que liga o indivíduo a si mesmo e o submete,deste modo, aos outros (lutas contra a sujeição, contraas formas de subjetivação e submissão). Acredito que nahistória podemos encontrar muitos exemplos destestrês tipos de lutas sociais, isoladas umas das outras oumisturadas entre si. Porém, mesmo quando estãomisturadas, uma delas, na maior parte do tempo,

prevalece. Por exemplo, nas sociedades feudais, as lutascontra as formas de dominação étnica ou socialprevaleciam, mesmo que a exploração econômica possater sido multo importante como uma das causas derevolta.

No século XIX, a luta contra a exploração surgiuem primeiro plano.

7

3 Em francês no original (N. do T.).

Page 8: 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

7/28/2019 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

http://slidepdf.com/reader/full/52836850-foucault-michel-o-sujeito-e-o-poder 8/24

E, atualmente, a luta contra as formas de sujeição— contra a submissão da subjetividade — está setornando cada vez mais importante, a despeito de aslutas contra as formas de dominação e exploração nãoterem desaparecido. Muito pelo contrário.

Eu suponho que não é a primeira vez que a nossasociedade se confrontou com este tipo de luta. Todosaqueles movimentos dos séculos XV e XVI, e quetiveram a Reforma como expressão e resultadomáximos, poderiam ser analisados como uma grandecrise da experiência ocidental da subjetividade, e comouma revolta contra o tipo de poder religioso e moral quedeu forma, na Idade Média, a esta subjetividade. Anecessidade de ter uma participação direta na vidaespiritual, no trabalho de salvação, na verdade que

repousa nas Escrituras — tudo isto foi uma luta por umanovasubjetividade.

Eu sei que objeções podem ser feitas. Podemosdizer que todos os tipos de sujeição são fenômenosderivados, que são meras conseqüências de outrosprocessos econômicos e sociais: forças de produção,luta de classe e estruturas ideológicas que determinama forma de subjetividade.

Sem dúvida, os mecanismos dc sujeição não

podem ser estudados fora de sua relação com osmecanismos de exploração e dominação. Porém, nãoconstituem apertas o "terminal" de mecanismos maisfundamentais. Eles mantêm relações complexas ecirculares com outras formas.

A razão pela qual este tipo de luta tende aprevalecer em nossa sociedade deve-se ao fato de que,desde o século XVI, uma nova forma política de poder sedesenvolveu de modo contínuo. Esta nova estruturapolítica, como todos sabem, é o Estado. Porém, a maior

parte do tempo, o Estado é considerado um tipo depoder político que ignora os indivíduos, ocupando-seapenas com os interesses da totalidade ou, eu diria, deuma classe ou um grupo dentre os cidadãos.

E isto é verdade. Mas eu gostaria de enfatizar ofato de que o poder do Estado (e esta é uma das razõesda sua força) é uma forma de poder tantoindividualizante quanto totalizadora. Acho que nunca,na história das sociedades humanas — mesmo na antigasociedade chinesa —, houve, no interior das mesmasestruturas políticas uma combinação tão astuciosa das

técnicas de individualização e dos procedimentos detotalização.

Page 9: 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

7/28/2019 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

http://slidepdf.com/reader/full/52836850-foucault-michel-o-sujeito-e-o-poder 9/24

Isto se deve ao fato de que o Estado modernoocidental integrou, numa nova forma política, umaantiga tecnologia de poder, originada nas instituiçõescristãs. Podemos chamar esta tecnologia de poderpastoral.

Antes de mais nada, algumas palavras sobre estepoder pastoral.

Dizia-se que o cristianismo havia gerado umcódigo de ética fundamentalmente diferentedaquele do mundo antigo. Em geral, enfatiza-se

menos o fato de que ele propôs e ampliou as novasrelações de poder no mundo antigo.

O cristianismo é a única religião a se organizarcomo uma Igreja. E como tal, postula o princípio de quecertos indivíduos podem, por sua qualidade religiosa,

servir a outros não como príncipes, magistrados,profetas, adivinhos, benfeitores e educadores, mascomo pastores. Contudo, esta palavra designa umaforma muito específica de poder.

1)É uma forma de poder cujo objetivo final éassegurar a salvação individual no outro mundo.2)O poder pastoral não é apenas uma forma depoder que comanda; deve também estarpreparado para se sacrificar pela vida e pelasalvação do rebanho. Portanto, é diferente do

poder real que exige um sacrifício de seus súditospara salvar o trono.3)É uma forma de poder que não cuida apenas dacomunidade como um todo, mas de cada indivíduoem particular, durante toda a sua vida.4)Finalmente, esta forma de poder não pode serexercida sem o conhecimento da mente daspessoas, sem explorar suas almas, sem fazer-lhesrevelar os seus segredos mais íntimos. Implica umsaber da consciência e a capacidade de dirigi-la.

Esta forma de poder é orientada para a salvação(por oposição ao poder politico). É oblativa (poroposição ao princípio da soberania); é individualizante(por oposição ao poder jurídico); é co-extensiva à vida econstitui seu prolongamento; está ligada a produção daverdade — a verdade do próprio indivíduo.

Mas podemos dizer que tudo isto faz parte dahistória; a pastoral, se não desapareceu, pelo menosperdeu a parte principal de sua eficácia.

Isto é verdade, mas suponho que deveríamosdistinguir dois aspectos do poder pastoral — por um

lado, a institucionalização eclasiástica, que desapareceuou pelo menos perdeu sua força desde o século XVIII, e,

9

Page 10: 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

7/28/2019 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

http://slidepdf.com/reader/full/52836850-foucault-michel-o-sujeito-e-o-poder 10/24

por outro, sua função, que se ampliou e se multiplicoufora da instituição eclesiástica.

Um fenômeno importante ocorreu no século XVIII— uma nova distribuição, uma nova organização destetipo de poder individualizante.

Não acredito que devêssemos considerar o"Estado moderno" como uma entidade que sedesenvolveu, acima dos indivíduos, ignorando o queeles são e até mesmo sua própria existência, mas, aocontrário, como uma estrutura muito sofisticada, naqual os indivíduos podem ser integrados sob umacondição: que a esta individualidade se atribuísse umanova forma, submetendo-a a um conjunto de modelosmuito específicos.

De certa forma, podemos considerar o Estadocomo a matriz moderna da individualização ou uma

nova forma do poder pastoral.Algumas palavras mais sobre este poder pastoral.1)Podemos observar uma mudança em seuobjetivo. Já não se trata mais de uma questão dedirigir o povo para a sua salvação no outromundo, mas, antes, assegurá-la neste mundo. E,neste contexto, a palavra salvação tem diversossignificados: saúde, bem-estar (isto é, riquezasuficiente, padrão de vida), segurança, proteçãocontra acidentes. Uma série de objetivos

"mundanos" surgiu dos objetivos religiosos dapastoral tradicional, e com mais facilidade, porqueesta última, por várias razões, atribuiu-se algunsdestes objetivos como acessório; temos apenasque pensar no papel da medicina e sua função debem-estar assegurados, por muito tempo, pelasIgrejas católica e protestante.2)Concomitantemente, houve um reforço daadministração do poder pastoral. Às vezes, estaforma de poder era exercida pelo aparelho do

Estado ou, pelo menos, por uma instituiçãopública como a polícia. (Não nos esqueçamos deque a força policial não foi inventada, no séculoXVIII, apenas para manter a lei e a ordem, nempara assistir os governos em sua luta contra seusinimigos, mas para assegurar a manutenção, ahigiene, a saúde e os padrões urbanos,considerados necessários para o artesanato e ocomércio.) Outras vezes, o poder se exerciaatravés de empreendimentos privados,

sociedades para o bem-estar, de benfeitores e, deum modo geral, de filantropos. Porém, as

Page 11: 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

7/28/2019 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

http://slidepdf.com/reader/full/52836850-foucault-michel-o-sujeito-e-o-poder 11/24

instituições antigas como a família eramigualmente mobilizadas, nesta época, paraassumir funções pastorais. Também era exercidopor estruturas complexas como a medicina, queincluíam as iniciativas privadas, com venda deserviços com base na economia de mercado, masque incluíam instituições públicas como oshospitais.3)Finalmente, a multiplicação dos objetivos eagentes do poder pastoral enfocava odesenvolvimento do saber sobre o homem emtorno de dois pólos: um, globalizador equantitativo, concernente à população; o outro,analítico, concernente ao indivíduo.E isto implica que o poder do tipo pastoral, que

durante séculos — por mais de um milênio — foi

associado a uma instituição religiosa, definida, ampliou-se subitamente por todo o corpo social; encontrou apoionuma multiplicidade de instituições. E, em vez de umpoder pastoral e de um poder político, mais ou menosligados um ao outro, mais ou menos rivais, havia uma"tática" individualizante que caracterizava uma série depoderes: da família, da medicina, da psiquiatria, daeducação e dos empregadores.

No final do século XVIII, Kant escreveu, num jornalalemão — o Bertiner Monatschrift —, um pequeno texto.

O título era Was heisst Aufklärung? que foi por muitotempo, e ainda é, considerado um trabalho de poucaimportância.

Porém, não posso deixar de achá-lo muitointeressante e perturbador, visto que foi a primeira vezque um filósofo propôs, como uma tarefa filosófica, ainvestigação não apenas do sistema metafísico ou dosfundamentos do conhecimento científico, mas umacontecimento histórico — um acontecimento recente eaté mesmo contemporâneo.

Quando, em 1784, Kant perguntou: Was heisst  Aufklärung?, ele queria dizer: o que está acontecendoneste momento? O que está acontecendo conosco? Oque é este mundo, esta época, este momento precisoem que vivemos?

Em outras palavras: o que somos, enquanto Aufklärer, enquanto parte do Iluminismo? Façamos umacomparação com a questão cartesiana: quem sou eu?Eu, enquanto sujeito único, mas universal e a-histórico— eu para Descartes é todo mundo, em todo lugar e atodo momento?

Kant, porém, pergunta algo mais: o que somosnós? num momento muito preciso da história. A questão

11

Page 12: 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

7/28/2019 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

http://slidepdf.com/reader/full/52836850-foucault-michel-o-sujeito-e-o-poder 12/24

de Kant aparece como uma análise de quem somos nóse do nosso presente.

Creio que este aspecto da filosofia adquiriu cadavez maior importância. Hegel. Nietzsche...

O outro aspecto da "filosofia universal" nãodesapareceu. Mas a tarefa da filosofia como uma análisecrítica de nosso mundo tornou-se algo cada vez maisimportante. Talvez, o mais evidente dos problemasfilosóficos seja a questão do tempo presente e daquiloque somos neste exato momento.

Talvez, o objetivo hoje em dia não seja descobrir oque somos, mas recusar o que somos. Temos queimaginar e construir o que poderíamos ser para noslivrarmos deste "duplo constrangimento" político, que éa simultânea individualização e totalização própria as

estruturas do poder moderno.A conclusão seria que o problema político, ético,social e filosófico de nossos dias não consiste em tentarliberar o indivíduo do Estado nem das instituições doEstado, porém nos liberarmos tanto do Estado quanto dotipo de individualização que a ele se liga. Temos quepromover novas formas de subjetividade através darecusa deste tipo de individualidade que nos foi impostohá vários séculos.

Como se exerce o poder?*

Para certas pessoas, interrogar-se sobre o "como"do poder seria limitar-se a descrever seus efeitos, semnunca relacioná-los nem a causas nem a uma natureza.Seria fazer deste poder uma substância misteriosa que,sem dúvida, se evita interrogar em si mesma, porpreferir não "colocá-la em questão". Neste mecanismo,que não se explicita racionalmente, suspeita-se de umfatalismo. Mas sua desconfiança não nos mostra que

elas supõem que o poder é algo que existe com suaorigem, sua natureza e suas manifestações?

Este texto foi traduzido do original em francês. (N. do T.)

Se provisoriamente atribuo um certo privilégio àquestão do "como", não é que eu deseje eliminar aquestão do quê e do porquê. É para colocá-las de outromodo; ou melhor: para saber se é legítimo imaginar um

"poder" que reúne um quê, um porquê, e um como.Grosso modo, eu diria que começar a análise pelo

Page 13: 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

7/28/2019 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

http://slidepdf.com/reader/full/52836850-foucault-michel-o-sujeito-e-o-poder 13/24

"como" é introduzir a suspeita de que o "poder" nãoexiste; é perguntar-se, em todo caso, a que conteúdossignificativos podemos visar quando usamos este termomajestoso, globalizante e substantificador; é desconfiarque deixamos escapar um conjunto de realidadesbastante complexo, quando engatinhamosindefinidamente diante da dupla interrogação: "O que éo poder? De onde vem o poder?" A pequena questão,direta e empírica: "Como isto acontece?", não tem porfunção denunciar como fraude uma "metafísica" ou uma"ontologia" do poder; mas tentar uma investigaçãocrítica sobre a temática do poder.

1. "Como" não no sentido de "Como se manifesta?", mas"Como se exerce?", "Como acontece quando os

indivíduos exercem, como se diz seu poder sobre osoutros?"

Deste "poder" é necessário distinguir,primeiramente, aquele que exercemos sobre as coisas eque dá a capacidade de modificá-las, utilizá-las,consumi-las ou destruí-las — um poder que remete aaptidões diretamenteinscritas no corpo ou mediatizadas por dispositivos instrumentais.Digamos

que, neste caso, trata-se de "capacidade". O quecaracteriza, por outro lado, o "poder" que analisamosaqui, é que ele coloca em jogo relações entre indivíduos(ou entre grupos). Pois não devemos nos enganar: sefalamos do poder das leis, das instituições ou dasideologias, se falamos de estruturas ou de mecanismosde poder, é apenas na medida em que supomos que"alguns" exercem um poder sobre os outros. O termo"poder" designa relações entre "parceiros" (entendendo-se por isto não um sistema de jogo, mas apenas — epermanecendo, por enquanto, na maior generalidade —um conjunto de ações que se induzem e se respondemumas às outras).

É necessário distinguir também as relações depoder das relações de comunicação que transmitemuma informação através de uma língua, de um sistemade signos ou de qualquer outro meio simbólico. Semdúvida, comunicar é sempre uma certa forma de agirsobre o outro ou os outros. Porém, a produção e acirculação de elementos significantes podemperfeitamente ter por objetivo ou por conseqüências

efeitos de poder, que não são simplesmente um aspectodestas. Passando ou não por sistemas de comunicação,

13

Page 14: 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

7/28/2019 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

http://slidepdf.com/reader/full/52836850-foucault-michel-o-sujeito-e-o-poder 14/24

as relações de poder tem sua especificidade."Relações de poder", "relações de comunicação",

"capacidades objetivas" não devem, então, serconfundidas. O que não significa que se trata de trêsdomínios separados; e que haveria, de um lado, odomínio das coisas, da técnica finalizada, do trabalho eda transformação do real; e, do outro, o dos signos, dacomunicação, da reciprocidade e da fabricação dosentido; enfim, o da dominação dos meios de coação, dedesigualdade e de ação dos homens sobre os homens.4Trata-se de três tipos de relação que, de fato, estãosempre imbricados uns nos outros, apoiando-sereciprocamente e servindo-se mutuamente deinstrumento. A aplicação de capacidade objetiva, nassuas formas mais elementares, implica relações decomunicação (seja de informação prévia, ou de trabalho

dividido); liga-se também a relações de poder (seja detarefas obrigatórias, de gestos impostos por umatradição ou um aprendizado, de subdivisões ou derepartição mais ou menos obrigatória do trabalho). Asrelações de comunicação implicara atividadesfinalizadas (mesmo que seja apenas a "correta"operação dos elementos significantes) e induzemefeitos de poder pelo fato de modificarem o campo deinformação dos parceiros. Quanto às relações de poderpropriamente ditas, elas se exercem por um aspecto

extremamente importante através da produção e datroca de signos; e também não são dissociáveis dasatividades finalizadas, seja daquelas que permitemexercer este poder (como as técnicas de adestramento,os procedimentos de dominação, as maneiras de obterobediência), seja daquelas que recorrem, para sedesdobrarem, a relações de poder (assim na divisão dotrabalho e na hierarquia das tarefas).

Sem dúvida, a coordenação entre estes três tiposde relação não é uniforme nem constante. Não há, numa

sociedade dada, um tipo geral de equilíbrio entre asatividades finalizadas, os sistemas de comunicação e asrelações de poder. Há, antes, diversas formas, diversoslugares, diversas circunstâncias ou ocasiões em queestas inter-relações se estabelecem sobre um modeloespecífico. Porém, há também "blocos" nos quais oajuste das capacidades, os feixes de comunicação e asrelações de poder constituem sistemas regulados econcordes. Seja, por exemplo, uma instituição escolar:sua organização espacial, o regulamento meticuloso que

rege sua vida interior, as diferentes atividades aí organizadas, os diversos personagens que aí vivem e se

4 Quando Habermas distingue dominação, comunicação e atividadefinalizada, ele não vê aí, acredito, três domínios diferentes, mas três" "

Page 15: 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

7/28/2019 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

http://slidepdf.com/reader/full/52836850-foucault-michel-o-sujeito-e-o-poder 15/24

encontram, cada um com uma função, um lugar, umrosto bem definido — tudo isto constitui um "bloco" decapacidade-comunicação-poder. A atividade queassegura o aprendizado e a aquisição de aptidões ou detipos de comportamento aí se desenvolve através detodo um conjunto de comunicações reguladas (lições,questões e respostas, ordens, exortações, signoscodificados de obediência, marcas diferenciais do"valor" de cada um e dos níveis de saber) entraves detoda uma série de procedimentos de poder(enclausuramento, vigilância, recompensa e punição,hierarquia piramidal).

Estes blocos onde a aplicação de capacidades

técnicas, o jogo das comunicações e as relações depoder estão ajustados uns aos outros, segundo fórmulasrefletidas, constituem aquilo que podemos chamar,alargando umpouco o sentido da palavra, de "disciplinas". A análiseempírica de certas disciplinas — de sua constituiçãohistórica — apresenta, por isto mesmo, um certointeresse. Primeiramente, porque as disciplinasmostram, segundo esquemas artificialmente claros edecantados, a maneira pela qual os sistemas definalidade objetiva, de comunicações e de poder podemse articular uns sobre os outros. Porque eles mostramtambém diferentes modelos de articulação ora comproeminência das relações de poder e de obediência(como nas disciplinas de tipo monástico ou de tipopenitenciário), ora com proeminência das atividadesfinalizadas (como nas disciplinas das oficinas ou doshospitais); ora com a proeminência das relações decomunicação (como nas disciplinas de aprendizagem);como também com uma saturação dos três tipos derelação (como talvez na disciplina militar, onde uma

pletora de signos marca, até a redundância, relações dcpoder fechadas e cuidadosamente calculadas paraproporcionar um certo número de efeitos técnicos).

E aquilo que se deve compreender pordisciplinarização das sociedades, a partir do século XVIIIna Europa, não é, sem dúvida, que os indivíduos quedela fazem parte se tornem cada vez mais obedientes,nem que elas todas comecem a se parecer comcasernas, escolas ou prisões; mas que se tentou umajuste cada vez mais controlado — cada vez mais

racional e econômico — entre as atividades produtivas,as redes de comunicação e o jogo das relações de poder.

15

Page 16: 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

7/28/2019 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

http://slidepdf.com/reader/full/52836850-foucault-michel-o-sujeito-e-o-poder 16/24

Abordar o tema do poder através de uma análisedo "como" é, então, operar diversos deslocamentoscríticos com relação à suposição de um "poder"fundamental. É tomar por objeto de análise relações de

 poder  e não um poder; relações de poder  que sãodistintas das capacidades objetivas assim como dasrelações de comunicação; relações de poder, enfim, quepodemos perceber na diversidade de seu encadeamentocom estas capacidades e estas relações.

2. Em que consiste a especificidade das relações de poder?

O exercício do poder não é simplesmente umarelação entre "parceiros" individuais ou coletivos; é um

modo de ação de alguns sobre outros. O que quer dizer,certamente, que não há algo como o "poder" ou "dopoder" que existiria globalmente, maciçamente ou emestado difuso, concentrado ou distribuído: só há poderexercido por "uns" sobre os "outros"; o poder só existeem ato, mesmo que, é claro, se inscreva num campo depossibilidade esparso que se apóia sobre estruturaspermanentes.

Isto quer dizer também que o poder não é  daordem do consentimento; ele não é, em si mesmo,

renúncia a uma liberdade, transferência de direito,poder de todos e de cada um delegado a alguns (o quenão impede que o consentimento possa ser umacondição para que a relação de poder exista e semantenha); a relação de poder pode ser o efeito de umconsentimento anterior ou permanente; ela não é, emsua própria natureza, a manifestação de um consenso.

Será que isto quer dizer que é necessário buscar ocaráter próprio às relações de poder do lado de umaviolência que seria sua forma primitiva, o segredo

permanente e o último recurso — aquilo que aparece emúltima instância como sua verdade, quando coagido atirar a máscara e a se mostrar tal qual é? De fato, aquiloque define uma relação de poder é um modo de açãoque não age direta e imediatamente sobre os outros,mas que age sobre sua própria ação. Uma ação sobre aação, sobre ações eventuais, ou atuais, futuras oupresentes. Uma relação de violência age sobre umcorpo, sobre as coisas; ela força, ela submete, elaquebra, ela destrói; ela fecha todas as possibilidades;não tem, portanto, junto de si, outro pólo senão aqueleda passividade; e, se encontra uma resistência, a únicaescolha é tentar reduzi-la. Uma relação de poder, ao

Page 17: 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

7/28/2019 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

http://slidepdf.com/reader/full/52836850-foucault-michel-o-sujeito-e-o-poder 17/24

contrario, se articula sobre dois elementos que lhe sãoindispensáveis por ser exatamente uma relação depoder: que "o outro" (aquele sobre o qual ela se exerce)seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim comoo sujeito de ação; e que se abra, diante da relação depoder, todo um campo de respostas, reações, efeitos,invenções possíveis.

O funcionamento das relações de poder,evidentemente, não é uma exclusividade do uso daviolência mais do que da aquisição dos consentimentos;nenhum exercício de poder pode, sem dúvida, dispensarum ou outro e frequentemente os dois ao mesmotempo. Porém, se eles são seus instrumentos ou efeitos,não constituem, contudo, seu princípio ou sua natureza.O exercício do poder pode perfeitamente suscitar tantaaceitação quanto se queira: pode acumular as mortes e

abrigar-se sob todas as ameaças que ele possaimaginar. Ele não é em si mesmo uma violência que, àsvezes, se esconderia, ou um consentimento que,implicitamente, se reconduziria. Ele é um conjunto deações sobre ações possíveis; ele opera sobre o campode possibilidade onde se inscreve o comportamento dossujeitos ativos; ele incita, induz, desvia, facilita ou tornamais difícil, amplia ou limita, torna mais ou menosprovável; no limite, ele coage ou impede absolutamente,mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou vários

sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são suscetíveisde agir. Uma ação sobre ações.O termo "conduta", apesar de sua natureza

equivoca, talvez seja um daqueles que melhor permiteatingir aquilo que há de específico nas relações depoder. A "conduta" é, ao mesmo tempo, o ato de"conduzir" os outros (segundo mecanismos de coerçãomais ou menos estritos) e a maneira de se comportarnum campo mais ou menos aberto de possibilidades. Oexercício do poder consiste em "conduzir condutas" eem ordenar a probabilidade. O poder, no fundo, é menosda ordem do afrontamento entre dois adversários, ou dovínculo de um com relação ao outro, do que da ordem do"governo". Devemos deixar para este termo asignificação bastante ampla que tinha no século XVI. Elenão se referia apenas às estruturas políticas e à gestãodos Estados; mas designava a maneira de dirigir aconduta dos indivíduos ou dosgrupos: governo das crianças, das almas, dascomunidades, das famílias, dosdoentes. Ele não recobria apenas formas instituídas e

legítimas de sujeição política ou econômica; mas modosde ação mais ou menos refletidos e calculados, porém

17

Page 18: 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

7/28/2019 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

http://slidepdf.com/reader/full/52836850-foucault-michel-o-sujeito-e-o-poder 18/24

todos destinados a agir sobre as possibilidades de açãodos outros indivíduos. Governar, neste sentido, éestruturar o eventual campo de ação dos outros. Оmodo de relação próprio ao poder não deveria, portanto,ser buscado do lado da violência e da luta, nem do ladodo contrato e da aliança voluntária (que não podem sermais do que instrumentos); porém, do lado deste modode ação singular — nem guerreiro nem jurídico — que éo governo.

Quando definimos o exercício do poder como ummodo de ação sobre as ações dos outros, quando ascaracterizamos pelo "governo" dos homens, uns pelosoutros — no sentido mais extenso da palavra, incluímosum elemento importante: a liberdade. O poder só seexerce sobre "sujeitos livres", enquanto "livres" —entendendo-se por isso sujeitos individuais ou coletivos

que têm diante de si um campo de possibilidade ondediversas condutas, diversas reações e diversos modosde comportamento podem acontecer. Não há relação depoder onde as determinações estão saturadas — aescravidão não é uma relação de poder, pois o homemestá acorrentado (trata-se então de uma relação físicade coação) — mas apenas quando ele pode se deslocare, no limite, escapar. Não há, portanto, um confrontoentre poder e liberdade, numa relação de exclusão(onde o poder se exerce, a liberdade desaparece); mas

um jogo muito mais complexo: neste jogo, a liberdadeaparecerá como condição de existência do poder (aomesmo tempo sua precondição, uma vez que énecessário que haja liberdade para que o poder seexerça, e também seu suporte permanente, uma vezque se ela se abstraísse inteiramente do poder quesobre ela se exerce, por isso mesmo desapareceria, edeveria buscar um substituto na coerção pura e simplesda violência); porém, ela aparece também como aquiloque só poderá se opor a um exercício de poder quetende, enfim, a determiná-la inteiramente.

A relação de poder e a insubmissão da liberdadenão podem, então, ser separadas. O problema centraldo poder não é o da "servidão voluntária" (comopoderíamos desejar ser escravos?): no centro da relaçãode poder, "provocando-a" incessantemente, encontra-sea recalcitrância do querer e a intransigência daliberdade. Mais do que um "antagonismo" essencial,seria melhor falar de um "agonismo"5 — de uma relaçãoque é, ao mesmo tempo, de incitação recíproca e deluta; trata-se, portanto, menos de uma oposição de

termos que se bloqueiam mutuamente do que de umaprovocação permanente.

Page 19: 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

7/28/2019 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

http://slidepdf.com/reader/full/52836850-foucault-michel-o-sujeito-e-o-poder 19/24

3. Como analisar a relação de poder?

Podemos, ou melhor, eu diria que é perfeitamentelegítimo analisá-la em instituições bem determinadas;

estas últimas constituindo um observatório privilegiadopara as atingir — diversificadas, concentradas,ordenadas e levadas, parece, ao seu mais alto grau deeficácia; numa primeira abordagem, é aí que podemospretender ver aparecer a forma e a lógica de seusmecanismos elementares. Contudo, a análise dasrelações de poder nos espaços institucionais fechadosapresenta alguns inconvenientes. Primeiramente, o fatode uma parte importante dos mecanismos operados poruma instituição ser destinada a assegurar sua própriaconservação apresenta o risco de decifrar, sobretudo

nas relações de poder "intra-institucionais", funçõesessencialmente reprodutoras. Em segundo lugar, aoanalisarmos as relações de poder a partir dasinstituições, nos expomos de nelas buscar a explicação ea origem daquelas; quer dizer, em suma, de explicar opoder pelo poder. Enfim, na medida em que asinstituições agem essencialmenteatravés da colocação de dois elementos em jogo: regras(explícitas ousilenciosas) e um aparelho, corremos o risco de

privilegiar exageradamente um ou outro na relação depoder e, assim, de ver nestas apenas modulações da leie da coerção.

Não se trata de negar a importância dasinstituições na organização das relações de poder. Masde sugerir que é necessário, antes, analisar asinstituições a partir das relações  de poder, e não oinverso; e que o ponto de apoio fundamental destas,mesmo que elas se incorporem e se cristalizem numainstituição, deve ser buscado aquém.

Retomemos a definição segundo a qual o exercício

do poder seria uma maneira para alguns de estruturar ocampo de ação possível dos outros. Deste modo, o queseria próprio a uma relação de poder é que ela seria ummodo de ação sobre ações. O que quer dizer que asrelações de poder se enraízam profundamente no nexosocial; e que elas não reconstituem acima da"sociedade" uma estrutura suplementar com cujaobliteração radical pudéssemos talvez sonhar. Viver em

19

5 O neologismo usado por Foucault está baseado na palavra grega (PALAVRAGREGA) que significa "um combate".O termo sugeriria, portanto, um combate físico no qual os opositores

Page 20: 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

7/28/2019 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

http://slidepdf.com/reader/full/52836850-foucault-michel-o-sujeito-e-o-poder 20/24

sociedade é, de qualquer maneira, viver de modo queseja possível a alguns agirem sobre a ação dos outros.Uma sociedade "sem relações de poder" só pode seruma abstração. O que, diga-se de passagem, tornaainda mais necessária, do ponto de vista politico, aanálise daquilo que elas são numa dada sociedade, desua formação histórica, daquilo que as torna sólidas oufrágeis, das condições que são necessárias paratransformar umas, abolir as outras. Pois, dizer que nãopode existir sociedade sem relação de poder não querdizer nem que aquelas que são dadas são necessárias,nem que de qualquer modo o "poder" constitua, nocentro das sociedades, uma fatalidade incontornável;mas que a análise, a elaboração, a retornada da questãodas relações de poder, e do "agonismo" entre relaçõesde poder e intransitividade da liberdade, é uma tarefa

política incessante; e que é exatamente esta a tarefapolítica inerente a toda existência social.

Concretamente, a análise das relações de poderexige que estabeleçamos alguns pontos:

1.O sistema das diferenciações que permitem agir sobrea ação dos outros: diferenças jurídicas ou tradicionais deestatuto e  de privilégio; diferenças econômicas naapropriação das riquezas e dos bens; diferenças delugar nos processos de produção; diferençaslingüísticas ou culturais; diferenças na habilidade e nascompetências etc. Toda relação dc poder operadiferenciações que são, para ela, ao mesmo tempo,condições e efeitos.2.O tipo de objetivos perseguidos por aqueles que agemsobre a ação dos outros: manutenção de privilégios,acúmulo de lucros, operacionalidade da autoridadeestatutária, exercício de uma função ou de uma

profissão.3. As modalidades instrumentais: de acordo com o fatode que o poder se exerce pela ameaça das armas, dosefeitos da palavra, através das disparidadeseconômicas, por mecanismos maia ou menos complexosde controle, por sistemas de vigilância, com ou semarquivos, segundo regras explicitas ou não,permanentes ou modificáveis, com ou sem dispositivosmateriais etc.4. As formas de institucionalização: estas podem

misturar dispositivos tradicionais, estruturas jurídicas,fenômenos de hábito ou de moda (como vemos nas

Page 21: 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

7/28/2019 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

http://slidepdf.com/reader/full/52836850-foucault-michel-o-sujeito-e-o-poder 21/24

relações de poder que atravessam a instituiçãofamiliar); elas podem também ter a aparência de umdispositivo fechado sobre si mesmo com seuslugares específicos, seus regulamentos próprios, suasestruturas hierárquicas cuidadosamente traçadas, euma relativa autonomia funcional (como nas instituiçõesescolares ou militares); podem também formar sistemasmuito complexos, dotados de aparelhos múltiplos, comono caso do Estado que tem por função constituir oinvólucro geral, a instância de controle global, oprincípio de regulação e, até certo ponto também, dedistribuição de todas as relações de poder num conjuntosocial dado.5. Os graus de racionalização: o funcionamento dasrelações de poder comoação sobre um campo de possibilidade pode ser mais ou

menos elaborado emfunção da eficácia dos instrumentos e da certeza doresultado (maior ou menor refinamento tecnológico noexercício do poder) ou, ainda, em função do custoeventual (seja do "custo" econômico dos meiosutilizados, ou do custo em temos de reação constituídopelas resistências encontradas). O exercício do podernão é um fato bruto, um dado institucional, nem umaestrutura que se mantém ou se quebra: ele se elabora,se transforma, se organiza, se dota de procedimentos

mais ou menos ajustados.Eis por que a análise das relações de poder numa

sociedade não pode se prestar ao estudo de uma sériede instituições, nem sequer ao estudo de todas aquelasque mereceriam o nome de "política". As relações depoder se enraizam no conjunto da rede social. Isto nãosignifica, contudo, que haja um princípio de poder,primeiro e fundamental, que domina até o menorelemento da sociedade; mas que há, a partir destapossibilidade de ação sobre a ação dos outros (que é co-extensiva a toda relação social), múltiplas formas dedisparidade individual, de objetivos, de determinadaaplicação do poder sobre nós mesmos e sobre os outros,de institucionalização mais ou menos setorial ou global,organização mais ou menos refletida, que definemformas diferentes de poder. As formas e os lugares de"governo" dos homens uns pelos outros são múltiplosnuma sociedade: superpõem-se, entrecruzam-se,limitam-se e anulam-se, em certos casos, e reforçam-seem outros. É certo que o Estado nas sociedadescontemporâneas não é simplesmente uma das formasou um dos lugares — ainda que seja o mais importante— de exercício do poder, mas que, de um certo modo,todos os outros tipos de relação de poder a ele se

21

Page 22: 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

7/28/2019 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

http://slidepdf.com/reader/full/52836850-foucault-michel-o-sujeito-e-o-poder 22/24

referem. Porém, não porque cada um dele derive. Mas,antes, porque se produziu uma estatização contínua dasrelações de poder (apesar de não ter tomado a mesmaforma na ordem pedagógica, judiciária, econômica,familiar). Ao nos referirmos ao sentido restrito dapalavra "governo", poderíamos dizer que as relações de

poder foram progressivamente governamentalizadas,ou seja, elaboradas, racionalizadas e centralizadas naforma ou sob a caução das instituições do Estado.

4.Relações de poder e relações estratégicas

A palavra estratégia é correntemente empregadaem três sentidos. Primeiramente, para designar aescolha dos meios empregados para se chegar a um fim;trata-se da racionalidade empregada para atingirmosum objetivo. Para designar a maneira pela qual umparceiro, num jogo dado, age em função daquilo que elepensa dever ser a ação dos outros, e daquilo que eleacredita que os outros pensarão ser a dele; em suma, amaneira pela qual tentamos ter uma vantagem sobre ooutro. Enfim, para designar o conjunto dosprocedimentos utilizados num confronto para privar oadversário dos seus meios de combate e reduzi-lo arenunciar à luta; trata-se, então, dos meios destinadosa obter a vitória. Estas três significações se reúnemnas situações de conforto — guerra ou jogo — onde o

objetivo é agir sobre um adversário de tal modo que aluta lhe seja impossível. A estratégia se define entãopela escolha das soluções "vencedoras". Porém, énecessário ter em mente que se trata de um tipo bemparticular de situação; e que há outros em que se devemanter a distinção entre os diferentes sentidos dapalavra estratégia.

Ao nos referirmos ao primeiro sentido indicado,podemos chamar "estratégia de poder" ao conjunto dosmeios operados para fazer funcionar ou para manter um

dispositivo de poder. Podemos também falar deestratégia própria às relações de poder na medida emque estas constituem modos de ação sobre a açãopossível, eventual, suposta dos outros. Podemos entãodecifrar em termos de "estratégias" os mecanismosutilizados nas relações de poder. Porém, o ponto maisimportante é evidentemente a relação entre relações depoder e estratégias de confronto. Pois, se é verdade queno centro das relações de poder e como condiçãopermanente de sua existência, há uma "insubmissão" e

liberdades essencialmente renitentes, não há relaçãode poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem

Page 23: 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

7/28/2019 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

http://slidepdf.com/reader/full/52836850-foucault-michel-o-sujeito-e-o-poder 23/24

inversão eventual; toda relação de poder implica, então,pelo menos de modo virtual, uma estratégia de luta,sem que para tanto venham a se superpor, a perder suaespecificidadee finalmente a se confundir. Elas constituemreciprocamente uma espécie de limite permanente, deponto de inversão possível. Uma relação de confrontoencontra seu termo, seu momento final (e a vitória deum dos dois adversários) quando o jogo das reaçõesantagônicas é substituído por mecanismos estáveispelos quais um dentre eles pode conduzir de maneirabastante constante e com suficiente certeza a condutados outros; para uma relação de confronto, desde quenão se trate de luta de morte, a fixação de uma relaçãode poder constitui um alvo — ao mesmo tempo seucompletamento e sua própria suspensão. E, em troca,

para uma relação de poder, a estratégia de lutaconstitui, ela também, uma fronteira: aquela onde aindução calculada das condutas dos outros não podemais ultrapassar a réplica de sua própria ação. Comonão poderia haver relações de poder sem pontos deinsubmissão que, por definição, lhe escapam, todaintensificação e toda extensão das relações de poderpara submetê-los conduzem apenas aos limites doexercício do poder; este encontra então sua finalidadeseja num tipo de ação que reduz o outro à impotência

total (uma "vitória" sobre o adversário substitui oexercício do poder), seja numa transformação daquelesque são governados em adversários. Em suma, todaestratégia de confronto sonha em tornar-se relação depoder; e toda relação de poder inclina-se, tanto aoseguir sua própria linha de desenvolvimento quanto aose deparar com resistências frontais, a tornar-seestratégia vencedora.

De fato, entre relação de poder e estratégia deluta, existe atração reciproca, encadeamento indefinidoe inversão perpétua. A cada instante, a relação de poderpode tornar-se, e em certos pontos se torna, umconfronto entre adversários. A cada instante também asrelações de adversidade, numa sociedade, abremespaço para o emprego de mecanismos de poder.Instabilidade, portanto, que faz com que os mesmosprocessos, os mesmos acontecimentos, as mesmastransformações possam ser decifrados tanto no interiorde uma história das lutas quanto na história dasrelações e dos dispositivos de poder. Não serão nem osmesmos elementos significativos, nem os mesmos

encadeamentos, nem os mesmos tipos deinteligibilidade que aparecerão, apesar de se referirem a

23

Page 24: 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

7/28/2019 52836850 Foucault Michel O Sujeito e o Poder

http://slidepdf.com/reader/full/52836850-foucault-michel-o-sujeito-e-o-poder 24/24

um mesmo tecido histórico e apesar de que cada umadas duas análises deve remeter à outra. E é justamentea interferência das duas leituras que faz aparecer estesfenômenos fundamentais de "dominação" que a históriaapresenta em grande parte das sociedades humanas. Adominação é uma estrutura global de poder cujasramificações e conseqüências podemos, às vezes,encontrar, até na trama mais tênue da sociedade;porém, e ao mesmo tempo, é uma situação estratégicamais ou menos adquirida e solidificada num conjuntohistórico de longa data entre adversários. Podeperfeitamente acontecer que um fato de dominação sejaapenas a transcrição de um dos mecanismos de poderde uma relação de confronto e de suas conseqüências(uma estrutura política derivada de uma invasão);também pode ocorrer que uma relação de luta entre

dois adversários seja o efeito do desenvolvimento dasrelações de poder com os conflitos e as clivagens queela encadeia. Porém, o que toma a dominação de umgrupo, deuma casta ou de uma classe, e as resistências ou asrevoltas às quais ela seopõe um fenômeno central na história das sociedades éo fato de manifestarem, numa forma global e maciça, naescala do corpo social inteiro, a integração das relaçõesde poder com as relações estratégicas e seus efeitos de

encadeamento recíproco.