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Page 1: Análise: "Do Inferno"

A o st uç o a ativa de Do I fe o : Co o Ja k, O Est ipado se tornou um quadrinho pulp

Por: Pedro Correia

Publicado originalmente entre 1989 e 1996 nos EUA e no Reino Unido (pelas

editoras Top Shelf Productions e Knockabout Comics, respectivamente), Do I fe o

foi dividido em dez publicações durante sua concepção, posteriormente compiladas

em um encadernado definitivo publicado pela Knockabout Comics em 1999 (fig. 1). Nos

EUA, além das publicações originais, a editora Top Shelf Productions publicou um encadernado

definitivo em 2004 (fig. 2) compilando as dez edições originais.

Já no Brasil, houveram duas publicações: a primeira, dividida em 4 volumes,

publicada pela Via Lettera entre 2000 e 2001 e uma publicação definitiva pela Veneta em 2014

(figuras 3 e 4, respectivamente).

A obra é um trabalho independente de Alan Moore e Eddie Campbell: fora da

forma convencional do autor de criar HQs nos seus trabalhos iniciais – utilizando o

método de produção dos comics i se idos u ei o Ma vel-DC –, seja com

te ti as fa t sti as o o V de Vi ga ça ou t ata do de supe -heróis como

Wat h e e Mi a le a . Do I fe o age ais o o u a o a et o ue diz respeito à linha do tempo dos quadrinhos: Moore coloca o gênero pulp dentro dos

Fig. 1 e fig. 2: publicações originais e o encadernado definitivo publicado pela Knockabout Comics e o encadernado definitivo pela

Top Shelf Productions.

Fig. 3 e Fig.4: Publicações brasileiras

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grandes quadrinhos novamente analisando a trajetória do serial killer mais misterioso

da história numa narrativa policial: Jack, O Estripador.

O enredo constrói a linha do tempo dos assassinatos do estripador no final do

século XIX, assim como a motivação para os crimes e a suposta identidade do assassino

em série. Os desenhos de Eddie Campbell (Alec, Bacchus e Batman: The Order Of

Beasts) agem como uma metalinguagem para a obra apresentando traços difíceis de

serem entendidos muitas vezes – assim como a história, visto que até hoje a real

identidade do assassino permanece desconhecida. Ainda assim, o roteirista ironiza o

fato de não se saber a identidade do assassino citando uma frase no começo do

décimo capítulo onde é citado o fato de várias pessoas estarem dispostas a serem o

he i a olo a o i i oso a adeia, o ue u a a o te eu; so ando isso ao fato

de ele ter um conhecimento da anatomia humana, o que se retira disso são as teorias

conspiratórias que os assassinatos estavam ligados à coroa inglesa, à maçonaria e a um

médico bem-sucedido.

Na construção do roteiro, Moore demonstra uma densa pesquisa a respeito do

assunto, recolhendo pistas, citações, teorias da conspiração, opiniões, relatos, artigos

e livros que dessem sustentação à teoria da suposta identidade do assassino, suas

Fig.5: Campbell determina bem o sujeito de cada quadro mas desenha de forma que os outros elementos que compões a narrativa

ficam difíceis de serem interpretados criando uma certa metalinguagem com a história

Fig. 6 e fig.7: Nestas duas cenas, William Gull vê, respectivamente, um homem vendo tevê com um pôster de Marilyn Monroe na

parede e um prédio "arranha-céu". Na segunda cena, Moore relata que quis mostrar como se o protagonista tivesse um vislumbre

de como o local seria depois de 100 anos.

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crenças, motivações e como se desenrolaram os fatos conhecidos pelo público como

os mais característicos da mitologia por trás do caso – como a carta que começa com

Do I fe o , a dada pa a a polí ia o u i hu a o, a frase pichada com giz

junto a um dos corpos e o fato de uma das mulheres que foi assassinada ter se

passado por outra mulher, que também foi assassinada pouco tempo depois. A edição

brasileira lançada pela editora Veneta reúne um apêndice com falas do roteirista onde

ele detalha o estudo, mostra mapas de Londres na época dos crimes, os livros lidos

para construir a narrativa, sua opinião em relação aos fatos e como ele construiu uma

série de cenas que mais parecem delírios do protagonista (figuras 6 e 7).

Todas essas informações são coletadas em diversos livros, artigos e anais da

polícia da época e mostram como o roteirista conseguiu reunir tudo como um

verdadeiro quebra-cabeças. Tudo isso se istu a o u to ue da voz do auto de Moore, ou seja, a história apresenta várias características místicas, desconstruções e

ironias características do autor: sua voz, predominantemente mística em seus

trabalhos (como Promethea, Monstro do Pântano com, inclusive, a criação do

personagem John Constantine e TOP 10), misturando o ocultismo com magia e

aprofundamento psicológico de seus personagens (figuras 6 e 7) – sejam eles

protagonistas ou não –; suas desconstruções colocando histórias em situações

diferente do que estamos acostumados.

No aso de Do I fe o essa des o st uç o se d ao ost a u lado ais humano da história, normalmente vemos as teorias sobre Jack, O Estripador como

uma e tidade , o se sa e seu o e, seu osto, sua pe so alidade, p ofiss o, e fi , nada se sabe sobre a pessoa do assassino – o p p io uad i ho se ha a Do

Fig. 8 e 9: O parlamento das árvores e John Constantine lutando contra um demônio respectivamente. Apesar de na segunda imagem o

roteiro não ser de autoria de Moore, toda a concepção do personagem como exorcista e mago é sua criação.

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I fe o , assi omo o filme, adaptação da HQ, o que passa uma ideia de algo sobre-

humano. Qua do Moo e des o st i toda essa itologia po t s do pe so age juntando todas as peças de várias teorias de várias pessoas, o que fica por fim é um

sentimento de que o personagem foi humanizado por fim. Essa mesma desconstrução

de Moo e fi a p ese te e out as o as do auto o o Watchmen o de pessoas o u s s o supe -he is e V De Vi ga ça o de, ua do V o e, Eve ti a sua

máscara e vê a si mesma, demonstrando que a anarquia começaria, teoricamente,

o s es os, o de V é apenas um ideal – ou u a ideia, pois elas s o p ova

de alas .

Por fim, sua ironia se dá justamente no fato de tudo isso ser uma teoria da

conspiração que envolve a nobreza: um médico bem-sucedido servindo à coroa inglesa

contra 4 prostitutas, além do fato de o próprio autor considerar a teoria incorreta e

achar simplesmente que seria um bom ponto de partida para uma ficção. Em outras

o as do auto , o ue pode os o se va u a i o ia etali guísti a o Mo st o do P ta o ua do Moo e se ap oveita do fato de Le Wei se desp e de do o to pu li ado e House Of Secrets #92” para criar a revista regular do personagem.

Aproveitando-se desse fato, Moo e dete i a a e ist ia de v ios o st os do p ta o e ia o pa la e to das vo es .

Fig. 10: Caricatura de "Jack, The Ripper" publicada na revista Punch em 1888. A caricatura retrata o assassino como sendo um

"Nemesis Ghost", ou seja, um fantasma, retirando sua característica humana. Talvez a necessidade de o retratar como um

fantasma se dê ao fato de a política da época não ter tido êxito na busca do assassino.

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Além dessa exploração história que os autores criam, a história traz uma série

de inovações para os quadrinhos: a narrativa de uma teoria conspiratória

transformada em ficção de um quadrinho Pulp, os desenhos extremamente escuros e

Campbell utiliza constantemente hachuras para completar o visual noir e dar o toque

londrino do século XIX à narrativa visual (mesmo que o artista tenha uma capacidade

de desenho extraordinária), o fato de ter começado a ser publicado em uma revista

regular (Taboo) e depois ter continuado como projeto independente dos artistas e ser

um quadrinho em preto e branco fora das revistas de quadrinhos da Europa, visto que

os trabalhos independentes são, geralmente, mais bem trabalhados nos traços e nas

o es. Out o fato ue dife e Do I fe o das de ais pu li aç es eu opeias o fato de te saído se ializado, dife e te das ovelas g fi as da Band Dessinée que saem em

álbuns com histórias fechadas e dos comics europeus publicados em revistas de

quadrinhos como a 2000 A.D. e a Warrior.

Em seu aspecto especificamente visual, a obra apresenta uma narrativa visual

que guia os olhos do leitor por toda a página, o que faz os desenhos serem analisados

por inteiro quase que de forma natural.

Fig. 11: Campbell possui uma capacidade de desenho extraordinária, o que indica que muitas vezes seus desenhos têm um visual

de "garrancho" proposital, como nas cenas em que Gull comete os assassinatos. Na cena acima a igreja é desenhada com traços

finos e sombras bem definidas em estilo fotográfico – seu domínio em geral se mostra mais do que necessário para desenhar de

forma clara.

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Campbell provavelmente escolheu tal traço para retratar a narrativa por se

assemelhar bastante às charges clássicas, pinturas e desenhos da Europa de antes,

durante e pouco após as revoluções – francesa e industrial.

As relações entre tais imagens e os desenhos de Campbell não se restringem

apenas aos aspectos visuais: assim como Moore faz uma relação entre a característica

ode ista da figu a d’O Est ipado , Ca p ell utiliza a elaç o est tica entre seus

desenhos e imagens produzidas na época onde ocorreram revoluções importantes

para a humanidade como um todo. Estendendo ainda mais a discussão, Gull ironiza o

fato de ser um assassino e sentir que os verdadeiros monstros somos nós do século XX

e XXI, porém as revoluções anteriormente citadas foram levadas à frente por meio de

violência, poluição, egocentrismo e egoísmo utilizando pautas como melhoria da

ualidade de vida da so iedade e dese volvi e to de o eitos o o di eitos hu a os .

Fig. 12 e 13: Imagens produzidas entre os séculos XVIII e XIX

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Obviamente essas revoluções criaram conceitos essenciais para a manutenção

da vida em sociedade, porém, se a crítica de Gull estiver certa, todas as atrocidades

cometidas até chegarmos neste ponto foram quase que em vão. De qualquer forma,

tais discussões são levantadas de forma completa o suficiente, tanto no enredo quanto

nos desenhos, de forma que fica clara a necessidade de esta obra ter sido criada por

Moore e Campbell – provavelmente outro roteirista ou outro desenhista, ou se a

própria equipe criativa fosse out a, o esultado fi al fosse t o satisfat io ua to Do I fe o , po a dupla o seguiu e t ega u a o a p i a pa a a a te se ue ial de forma completa onde ambas as partes conseguem se completar numa metalinguagem,

fazer referências às mesmas coisas de maneiras diferentes ao mesmo tempo e

produzir uma complexidade narrativa e argumentativa que requer anos de

experiência.

Fig. 14 e 15: A tomada da Bastilha e fábricas inglesas durante o período da revolução industrial

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REFERÊNCIAS

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Acesso em: 25 de setembro de 2016.

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<http://kleiton1.rssing.com/chan-6165969/all_p21.html#item419>. Acesso em: 25 de

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<https://www.amazon.com.br/Hell-Alan-Moore-

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<https://www.amazon.com.br/Do-Inferno-Alan-

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Fig. 4: <http://d26lpennugtm8s.cloudfront.net/stores/103/495/products/do-inferno-

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Fig. 15: <https://3.bp.blogspot.com/-

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de setembro de 2015.