O Finado Matias Pascal - Luigi Pirandello

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1 LUIGI PIRANDELLO O FINADO MATIAS PASCAL ÍNDICE I. Premissa II. Premissa segunda (filosófica) à guisa de desculpa III. A casa e a toupeira IV. Foi assim V. Maturação VI. Tac tac tac VII. Mudo de trem VIII. Adriano Meis IX. Um pouco de névoa. X. Pia de água benta e cinzeiro XI. De noite, olhando o rio XII. O olho e Papiano XIII. A pequena lanterna XIV. As proezas de Max XV. Eu e a minha sombra XVI. O retrato de Minerva XVII. Reencarnação XVIII. O finado Matias Pascal Extraído do livro Biblioteca dos prêmios Nobel de Literatura Editora Opera Mundi Rio de Janeiro, 1970.

Transcript of O Finado Matias Pascal - Luigi Pirandello

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LUIGI PIRANDELLO

O FINADO MATIAS

PASCAL

ÍNDICE

I. Premissa

II. Premissa segunda (filosófica) à guisa de desculpa

III. A casa e a toupeira

IV. Foi assim

V. Maturação

VI. Tac tac tac

VII. Mudo de trem

VIII. Adriano Meis

IX. Um pouco de névoa.

X. Pia de água benta e cinzeiro

XI. De noite, olhando o rio

XII. O olho e Papiano

XIII. A pequena lanterna

XIV. As proezas de Max

XV. Eu e a minha sombra

XVI. O retrato de Minerva

XVII. Reencarnação

XVIII. O finado Matias Pascal

Extraído do livro Biblioteca dos prêmios Nobel de Literatura

Editora Opera Mundi

Rio de Janeiro, 1970.

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I

PREMISSA

Uma das raras coisas, a única talvez que eu soubesse ao certo, era esta: que me chamava

Matias Pascal. E disso tirava partido. Todas as vezes que algum dos meus amigos ou

conhecidos demonstrava ter perdido o juízo a ponto de me procurar para um conselho ou

sugestão, eu encolhia os ombros, fechava os olhos e respondia:

— Eu me chamo Matias Pascal.

— Obrigado, meu caro. Isso eu já sei.

— E lhe parece pouco?

Nem a mim parecia grande coisa. Mas naquele tempo eu ignorava o que significava o fato de

não saber nem mesmo aquilo e de não poder responder prontamente:

— Eu me chamo Matias Pascal.

Com certeza aparecerá alguém para se condoer de mim, imaginando a atroz desgraça de um

infeliz que, de repente, descobre... Afinal de contas: nem pai, nem mãe, nem como foi ou

como não foi; e, com certeza há de se indignar com a corrupção dos costumes, os vícios, a

tristeza dos tempos que podem provocar tantos males a um pobre inocente.

Esteja à vontade. Mas é meu dever avisá-lo de que não se trata exatamente disso. Poderia

expor aqui numa árvore genealógica a origem e descendência de minha família e demonstrar

que não só conheci meu pai e minha mãe, como também meus antepassados e suas ações,

nem todas realmente louváveis.

— E então?

Aí está: o meu caso é muito mais estranho e diferente; tão diferente e estranho, que me

proponho a narrá-lo.

Por cerca de dois anos fui, não sei se caçador de ratos ou guardador de livros, na biblioteca

legada ao nosso Município por um tal Monsenhor Boccamazza ao morrer em 1830. É óbvio

que esse Monsenhor devia conhecer muito pouco a índole e os hábitos de seus concidadãos;

ou talvez esperasse que o seu legado viesse acender naqueles ânimos o amor pelo estudo. Até

agora não acendeu, e o afirmo em louvor de meus concidadãos. O Município demonstrou tão

pouco reconhecimento ao Boccamazza que nem sequer consentiu em lhe erigir um simples

busto. Quanto aos livros, ficaram por muitos e muitos anos amontoados num vasto e úmido

depósito, e foram retirados depois (imaginem em que estado) e colocados na afastada e

abandonada igrejinha de Santa Maria Liberale. Aí os livros foram confiados a ociosos

protegidos que, por duas liras ao dia, os guardavam (ou não guardavam), suportando durante

algumas horas o bafio do mofo e da velharia.

Tal sorte coube também a mim. Desde o primeiro dia formulei tão mísero conceito dos

livros, impressos ou manuscritos que não me teria posto a escrever se não julgasse

verdadeiramente estranho o meu caso e em condições de servir de ensinamento a algum

leitor curioso que, na eventualidade de se realizar finalmente a antiga esperança de

Monsenhor Boccamazza, viesse porventura parar nesta biblioteca. Lego a esta biblioteca

este meu manuscrito, mas com o compromisso de ninguém o abrir a não ser cinqüenta anos

após a minha terceira, última e definitiva morte.

Uma vez que no momento (e Deus sabe o quanto isto me dói) estou morto já duas vezes, mas

a primeira por engano, e a segunda... Vocês vão ouvir.

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II

PREMISSA SEGUNDA (FILOSÓFICA)

À GUISA DE DESCULPA

O conselho para escrever veio de meu reverendo amigo Dom Eligio Pellegrinotto,

presentemente responsável pelos livros da Biblioteca Boccamazza e a quem confio o

manuscrito, logo que estiver terminado.

Escrevo aqui na igrejinha à luz que vem da clarabóia da cúpula. Fico na abside, reservada ao

bibliotecário e fechada por uma baixa grade de madeira com pequenas colunas, enquanto

Dom Eligio arqueja sob o encargo que assumiu de dar um pouco de ordem a esta verdadeira

babilônia de livros. Temo que ele jamais termine. Antes dele ninguém havia cuidado de

saber que espécie de livros aquele Monsenhor doara ao Município. Imaginava-se que quase

todos deveriam tratar de assuntos religiosos. Dom Eligio descobriu, para maior consolo seu,

uma enorme variedade de assuntos na biblioteca de Monsenhor, e como os livros foram

apanhados daqui e dali no depósito e misturados da forma que vinham, a confusão é

indescritível. Pela vizinhança, estabeleceram-se falsas e absurdas amizades entre estes

livros. Dom Eligio Pellegrinotto me disse, por exemplo, que sofreu as maiores dificuldades

para separar um tratado mui licencioso Da Arte de Amar as Mulheres, de 1571, escrito por

Anton Muzio Porro, de uma Vida e Morte de Faustino Materucci, Beneditino de Polirone,

que alguns chamavam bem-aventurado, biografia editada em Mântova, no ano de 1625. Por

causa da umidade as capas dos dois volumes se haviam ligado fraternalmente. No livro

segundo daquele tratado licencioso se discorre longamente sobre a vida e as aventuras

monacais.

Muitos livros curiosos e agradabilíssimos foram pescados das prateleiras da biblioteca por

Dom Eligio Pellegrinotto, que ficava o dia inteiro trepado numa escada de acendedor de

lampiões. Todas as vezes que descobre algum atira-o do alto sobre a grande mesa que está no

centro. A igrejinha retumba; ergue-se uma nuvem de poeira e fogem duas ou três aranhas

apavoradas. Pulo a grade da abside e dou caça às aranhas na grande mesa empoeirada,

usando o próprio livro; depois, abro-o e me ponho a folheá-lo.

Pouco a pouco tomei o gosto por leituras. Dom Eligio diz que o meu livro deveria seguir o

modelo desses que ele vai desencovando na biblioteca, e impregnar-se do seu particular

sabor. Encolho os ombros e respondo que não é problema para mim. E depois outra coisa me

entretém.

Todo suado e empoeirado, Dom Eligio desce da escada e vem tomar um pouco de ar na

hortazinha que ele arranjou de fazer surgir aqui, atrás da abside, toda protegida em volta por

gravetos e estacas.

— Pois é, meu reverendo amigo — digo-lhe, sentado no murinho, com o queixo apoiado no

castão da bengala, enquanto ele atende às suas alfaces. — Nosso tempo já não me parece

adequado para escrever livros, nem por brincadeira. Em relação também à literatura, bem

como a tudo o mais, devo repetir o meu estribilho: Maldito seja Copérnico!

— Oh! Oh! Oh! Mas que tem Copérnico a ver com isso! — exclama Dom Eligio,

erguendo-se com o rosto afogueado sob o chapelão de palha.

— Tem muita coisa, sim, Dom Eligio. Porque quando a Terra não girava...

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— Ora, essa! Mas se ela sempre girou!

— Não é verdade. O homem não sabia, logo era como se não girasse. Mesmo agora, para

alguns, não gira. Sabe o que outro dia um velho camponês me respondeu ao que lhe disse

sobre o movimento da Terra? Que era uma boa desculpa para os bêbedos. Afinal de contas,

nem mesmo o senhor pode pôr em dúvida que Josué fez parar o Sol. Mas vamos deixar isto

para lá. No tempo em que a Terra não girava e o homem, vestido de grego ou romano,

desempenhava tão nobre papel e se tinha em alta estima deleitando-se com a própria

dignidade, nesse tempo acredito que se pudesse aceitar uma narração minuciosa e cheia de

ociosos particulares. Lê-se ou não se lê em Quintiliano, corno o senhor me ensinou, que a

história devia ser feita para contar e não para provar?

— Não nego — respondeu Dom Eligio — mas também é verdade que nunca foram escritos

livros tão minuciosos e com mais secretos particulares, como depois que, segundo suas

palavras, a Terra se pôs a girar.

--Está bem! O senhor conde levantou-se cedo, precisamente às oito e meia... A senhora

condessa vestiu um hábito lilás com ricas flores de renda no pescoço... Teresinha morria de

fome... Lucrécia estava perdida de amor... Oh! Santo Deus! E quer que me importe com

isso? Estamos ou não estamos em cima de um invisível pião movimentado por um raio de

sol, em cima de um grãozinho de areia que roda, roda loucamente, sem saber por que, sem

chegar jamais a um destino, como se sentisse prazer em rodar assim, para nos proporcionar

ora um pouco mais de calor, ora um pouco mais de frio, e para nos fazer morrer, muitas vezes

conscientes de todas as pequenas tolices cometidas depois de cinqüenta ou sessenta

rotações? Copérnico, Copérnico, meu caro Dom Eligio, arruinou a humanidade

irremediavelmente. Agora, todos nós nos adaptamos à nova concepção da nossa infinita

pequenez, considerando-nos menos que zero no Universo, com todas as nossas belas

descobertas e invenções; então, que valor o senhor quer que tenham as notícias, já não digo

das nossas misérias particulares, mas até mesmo das calamidades gerais? As nossas, agora,

são histórias de vermes. O senhor leu sobre aquele pequeno desastre das Antilhas? Nada. A

Terra, coitadinha, cansada de girar sem meta, como quer aquele cônego polaco, teve um

pequeno movimento de impaciência e soprou um pouco de fogo por uma de suas tantas

bocas. Quem sabe o que lhe teria provocado aquela espécie de bílis? Talvez a estupidez dos

homens que nunca foram tão enfadonhos como agora. Basta. Vários milhares de vermes

torrados. E vamos para frente. Quem fala mais nisso?

Dom Eligio Pellegrinotto me faz observar que, mesmo realizando os maiores esforços para

cruelmente dilacerar e destruir as ilusões que a sábia natureza nos havia proporcionado com

tão boas intenções não o conseguimos. Por sorte, o homem se distrai facilmente.

Isso é verdade. O nosso Município, em certas noites marcadas no calendário, não permite

que se acendam os lampiões e muitas vezes, se o tempo está nublado, deixa ficar tudo no

escuro.

Isso quer dizer, no fundo, que até hoje acreditamos que a lua não esteja no céu para outra

coisa, a não ser para nos iluminar de noite, assim como o sol, durante o dia, e ainda as

estrelas, para nos oferecerem um magnífico espetáculo. Seguramente. E muitas vezes

esquecemos, e de bom grado, que somos átomos infinitesimais, a fim de podermos respei-

tar-nos e admirar-nos reciprocamente. Somos capazes de nos engalfinhar por um pedacinho

de terra ou de nos queixar a propósito de certas insignificâncias que se estivéssemos

realmente compenetrados do que somos, deveriam parecer-nos misérias incalculáveis.

Pois bem, em virtude dessa distração providencial, mais do que pela extravagância do meu

caso, falarei de mim, porém o mais brevemente possível fornecendo apenas as notícias que

achar necessárias.

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Algumas delas não me serão muito honrosas, mas eu me encontro em condição tão

excepcional que posso considerar-me já fora da vida e, portanto, sem obrigações e sem

escrúpulos de qualquer espécie.

Comecemos.

III

A CASA E A TOUPEIRA Apressei-me em dizer, no inicio, que havia conhecido meu pai. Não o conheci. Tinha quatro

anos e meio quando ele morreu. Em viagem à Córsega, numa embarcação de sua

propriedade e em meio a certos negócios que ali fazia, não voltou mais, tendo morrido em

três dias de uma febre perniciosa, contando então com trinta e oito anos de idade. Deixou

relativa fortuna para a mulher e os dois filhos, Matias (que seria eu, e fui) e Roberto, dois

anos mais velho.

Algumas das pessoas mais idosas do lugar até hoje se comprazem em dizer que a riqueza de

meu pai teve origens misteriosas.

Segundo afirmam fora ganhador em um jogo de cartas, em Marselha, com o comandante de

um navio mercante inglês. Depois de haver perdido todo o dinheiro que trazia consigo, o

comandante teria comprometido também uma enorme carga de enxofre embarcada na

longínqua Sicília por conta de um negociante de Liverpool; então, desesperado, fazendo-se

ao largo, afogou-se em alto mar. Assim, aliviado também do peso do comandante, o navio

chegara a Liverpool. Sorte que ele tivesse por lastro a malignidade dos meus concidadãos...

Possuíamos terras e casas. Sagaz e aventureiro, meu pai nunca teve para os seus negócios

uma sede estável; sempre rodando com aquela sua embarcação, comprava onde havia

maiores vantagens e logo revendia mercadorias de toda espécie. Como não se sentia tentado

por empresas muito grandes e arriscadas, investia pouco a pouco seus lucros em terras e

casas, esperando assim repousar entre as riquezas duramente conquistadas, na companhia da

mulher e dos filhos.

Primeiramente adquiriu as terras das Due Riviere, ricas em oliveiras e amoreiras; em

seguida, a propriedade da Stía, também ricamente beneficiada por uma bela nascente de

água, que foi captada para o moinho; depois, toda a colina do Sperone, o melhor vinhedo da

nossa região; e, por fim, San Rocchino, onde edificou uma deliciosa residência de campo.

Além da casa em que habitávamos adquiriu mais duas outras e todo aquele quarteirão, agora

reduzido e arranjado em arsenal.

Sua morte, quase repentina, foi a nossa ruína. Minha mãe, inepta para cuidar da herança,

viu-se obrigada a recorrer a uma pessoa que devia sentir-se na obrigação de testemunhar um

pouco de reconhecimento por todos os benefícios recebidos de meu pai, e que além do zelo e

da honestidade, era altamente remunerado.

Santa mulher, a minha mãe! De índole esquiva e muito plácida, tinha pouquíssima

experiência da vida e dos homens. Ouvindo-a falar, dir-se-ia uma criança. Falava pelo nariz e

ria da mesma forma, como se tivesse vergonha de rir, apertando os lábios. De compleição

muito delicada, após a morte de meu pai esteve sempre com a saúde abalada. Nunca se

queixou de seus males, aceitando-os resignadamente e os considerando conseqüência natural

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da sua desventura.

Como talvez esperasse morrer de pesar, é bem provável quem ainda agradecesse a Deus por

conservá-la com vida para o bem dos filhos.

Tinha por nós uma ternura verdadeiramente mórbida, cheia de palpitações e sobressaltos,

querendo-nos sempre perto, como se receasse nos perder. Bastava nos afastarmos um pouco

para as criadas começarem a busca pela vasta casa.

Como cega, se deixara inteiramente guiar pelo marido; quando este morreu, sentiu-se

perdida no mundo. E não saiu mais de casa, a não ser aos domingos de manhã cedo para ir à

missa acompanhada pelas duas velhas criadas, quem tratava como pessoas da família.

Dentro de casa só eram ocupados três cômodos, ficando o resto entregue aos escassos

cuidados das criadas e às nossas diabruras.

Na casa exalava-se de todos os antigos móveis e das cortinas desbotadas aquele bafio

particular das coisas velhas, como se fora o hálito de outra época. Lembro-me que mais de

uma vez olhei em torno de mim, com a estranha consternação provocada pela imobilidade

silenciosa daqueles velhos objetos, há anos ali sem uso e sem vida.

Entre aqueles que mais freqüentemente nos visitavam havia uma irmã de meu pai, solteirona

extravagante e orgulhosa, morena e com dois olhos abelhudíssimos. Chamava-se

Escolástica. Em todas essas visitas demorava pouquíssimo, pois estando conversando de

repente se enfurecia e ia embora sem se despedir de ninguém. Quando pequeno eu tinha

muito medo dela. Eu a olhava espantado quando a via levantar-se de um salto, furiosa, e a

ouvia gritar, voltada para minha mãe e batendo o pé raivosamente no chão:

— Está sentindo o vazio? A toupeira! A toupeira! Referia-se a Malagna, o administrador que

às escondidas cavava a nossa sepultura.

Tia Escolástica queria a todo custo que minha mãe se casasse de novo. Segundo o costume,

as cunhadas não têm destas idéias nem dão tais conselhos.

Ela tinha um sentimento áspero e opressivo da justiça e, certamente mais por isso que por

nosso amor, não podia tolerar que aquele homem nos roubasse até não poder mais. Ora,

devido à absoluta inércia e cegueira de minha mãe, não via outro remédio senão um segundo

marido. E o designava até na pessoa de um pobre homem, chamado Jerônimo Pomino.

Era viúvo, com um filho que ainda vive e se chama Jerônimo também e que é muito amigo

meu, ou melhor, mais que amigo, como direi mais tarde. Desde menino vinha com o pai a

nossa casa e era o desespero meu e de meu irmão Berto.

O pai, quando jovem, havia longamente aspirado à mão de tia Escolástica, que não quisera

saber dele, como de nenhum outro. Mas não exatamente por não se sentir disposta a amar.

Dizia que a mais leve suspeita de traição, mesmo por pensamento, poderia levá-la a trucidar

o bem-amado. Para ela, todos os homens eram fingidos, velhacos e traidores. Até Pomino?

Não, vejam só, Pomino não. Mas tinha percebido muito tarde. De todos os homens havia

conseguido descobrir alguma traição, com a qual se deleitava ferozmente. Mas de Pomino,

nada; pelo contrário, o pobre coitado tinha sido um mártir da mulher.

E por que ela não se casava com ele? Ora, essa é boa, porque Pomino era viúvo! Tinha

pertencido a outra mulher, na qual poderia pensar. E depois se via a cem milhas de distância,

que, apesar da timidez, que ele estava apaixonado e se percebia por quem...

Como se minha mãe pudesse algum dia consentir! Aquilo teria parecido verdadeiro

sacrilégio. Tampouco acreditava que tia Escolástica falasse seriamente, e ria, com aquele seu

jeito particular, diante dos enfurecimentos da cunhada e das exclamações do pobre senhor

Pomino, que se encontrava presente a tais discussões e para o qual a solteirona arremessava

os mais exagerados elogios.

Imagino quantas vezes ele terá exclamado, mexendo-se na cadeira, como num instrumento

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de tortura:

— Louvado seja Deus!

Era um homenzinho limpo, arrumado, dos olhinhos azuis e mansos, e creio quem se

empoasse e tivesse também a fraqueza de passar nas faces um pouco de ruge, mas só um

pouquinho. Certamente ele se sentia orgulhoso por ter conservado até aquela idade os

cabelos penteados com enorme cuidado, formando pastinhas sobre a testa e que ele

recompunha freqüentemente com as mãos.

Não sei como teriam andado nossos negócios se minha mãe, evidentemente não por si, mas

considerando o futuro dos filhos, tivesse seguido o conselho de tia Escolástica, casando-se

com o senhor Pomino. Está fora de dúvida que os negócios não teriam sofrido pior sorte do

que nas mãos de Malagna (a toupeira!).

Quando Berto e eu crescemos, grande parte dos nossos bens tinha desaparecido. Teríamos

podido salvar das garras daquele ladrão o resto, que nos teria permitido viver se não

abastadamente, pelo menos sem passar necessidades. Mas fomos dois vadios. Não quisemos

assumir responsabilidades, continuando a viver como nossa mãe nos havia acostumado em

pequenos.

Ela não quisera nem ao menos nos mandar à escola. Um tal Pinzone foi nosso preceptor. Seu

verdadeiro nome era Francisco, ou João Del Cinque, mas todos o chamavam Pinzone e de tal

forma se havia habituado com o nome que ele mesmo se chamava assim.

Sua magreza era tanta que infundia horror. Altíssimo de estatura, mais alto seria, santo Deus,

se o busto, como se cansado de continuar subindo, não se tivesse curvado embaixo da nuca

em discreta corcunda, de onde o pescoço parecia sair dificultosamente, semelhante ao de um

frango depenado como uma protuberância que subia e descia. Pinzone se esforçava muitas

vezes por reter entre os dentes e os lábios, como para morder, castigar e esconder, um risinho

cortante que lhe era próprio. Mas o esforço em parte era vão, porque o risinho, não podendo

sair pelos lábios assim aprisionados, escapava-lhe pelos olhos, mais agudo e impertinente

que nunca.

Com aqueles olhinhos ele devia ver em nossa casa muitas coisas quem nenhum de nós via.

Não falava, talvez porque achasse que não era seu dever falar, ou porque, segundo me parece

mais provável, ele se divertisse venenosamente em segredo. Fazíamos dele o que nós

queríamos. E ele ia deixando. Mas depois, como se desejasse ficar em paz com a própria

consciência, no momento em quem menos esperávamos, ele nos traía.

Um dia, por exemplo, nossa mãe ordenou que nos levasse à igreja, estava próxima a Páscoa e

devíamos nos confessar. Depois da confissão, uma rápida visitinha à enferma esposa de

Malagna, e em seguida diretamente para casa. Imaginem que divertimento! Mas na rua nós

dois propusemos a Pinzone uma fugida. Pagar-lhe-íamos um bom litro de vinho, e ele em

vez de nos levar à igreja e à casa de Malagna nos deixaria ir a Stía para procurar ninhos.

Pinzone aceitou felicíssimo, esfregando as mãos e com os olhos faiscantes. Bebeu. Fomos à

propriedade. Bancou o maluco em nossa companhia por cerca de três horas, ajudando-nos a

trepar nas árvores e trepando ele também. Mas de tardinha, de volta a casa, logo que nossa

mãe lhe perguntou se havíamos feito a confissão e a visita:

— Bom, vou dizer. . . — respondeu o mais descaradamente possível.

E narrou coisa por coisa o quem tínhamos feito.

De nada adiantavam as vinganças que tirávamos dessas traições. E me lembro que não eram

de brincadeira. Uma vez Berto e eu, sabendo que ele costumava dormir à espera do jantar

sentado no banco da saleta de entrada, pulamos às escondidas da cama onde estávamos de

castigo. Conseguimos descobrir um tubo de estanho, de clister, com dois palmos de

comprimento e enchemo-lo com água e sabão no depósito de lavar roupa, e assim armados

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fomos cautelosamente até ele, aproximamos o tubo de suas narinas e... Ziffff! Vimo-lo saltar

até o teto.

O quanto devêssemos progredir nos estudos com um preceptor dessa ordem não será difícil

imaginar. A culpa não era toda de Pinzone. Até pelo contrário, contanto que nos fizesse

aprender alguma coisa e não olhasse método nem disciplina, recorrendo a mil expedientes

para prender de algum modo nossa atenção. E muitas vezes o conseguia, principalmente

comigo, já quem eu era mais suscetível a me deixar impressionar. Ele tinha uma erudição

curiosa e bizarra, sendo versadíssimo em calembur, e conhecia toda espécie de poesia

burlesca e macarrônica. Citava aliterações, anominações e versos correlativos, encadeados e

retrógrados de todos os poetas desocupados e ociosos, compondo também não poucas rimas

extravagantes.

Lembro-me que um dia em San Rocchino nos fez repetir, não sei quantas vezes, na colina em

frente, este seu eco:

Eco:

Em alma de mulher, quem representa — (Dor).

E a amada cruel não me há de querer mais? — (Jamais).

Mas quem és tu quem choras enquanto impreco? — (Eco).

E nos dava para decifrar todos os Enigmas em oitava rima, de Júlio César Croce, e os sonetos

de Moneti e de outro ociosíssimo que tivera a coragem de se esconder sob o nome de Catão

de Utica. Transcrevera-os com tinta suja de tabaco, nas páginas amareladas de um velho

caderno.

— Atenção, ouçam este outro de Stigliani. Que beleza! O quem será? Ouçam:

Sou duas, muito embora uma pareça e o quem era um eu faço em dois também; contra

infindáveis quem há pela cabeça aquela me usa com os cinco quem tem. Meus dois umbigos,

um de cada lado, marcam-me onde a boca se inicia.

Eu com dentes não mordo de bom grado e se não mordo, não terei valia.

Nos meus dois pés é quem os dois olhos tenho e é com os dedos nos olhos quem me

empenho.¹

(¹Nota – Tesoura)

Parece-me vê-lo ainda, recitando embevecido com os olhos semicerrados e fazendo

castanholas com os dedos.

Minha mãe estava convencida de bastar para as nossas necessidades pessoais o que Pinzone

nos ensinava, e ouvindo-nos recitar os enigmas de Croce ou de Stiglian provavelmente

achava que tínhamos conhecimentos de sobra. Tia Escolástica não era da mesma opinião, e

não tendo conseguido impringir na cunhada o seu querido Pomino, passou a nos atazanar.

Mas Berto e eu nos apoiávamos na proteção de nossa mãe e não lhes dávamos importância, e

ela só faltava morrer de raiva. Se tivesse conseguido passar despercebida, certamente nos

teria espancado até arrancar o couro. Lembro-me que um dia, indo-se embora zangadíssima,

como de costume, topou comigo num dos cômodos abandonados. Agarrou-me pelo queixo,

apertando-o com força e dizendo:

—Engraçadinho! Engraçadinho! Engraçadinho! — Enquanto isso chegava cada vez mais

perto o meu rosto perto do seu, fixando-me dentro dos olhos, até que emitiu uma espécie de

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grunhido e me largou, entre os dentes:

—Focinho de cachorro!

Ela implicava sobretudo comigo, eu que afinal de contas me dedicava muito mais que Berto

aos estrambóticos ensinamentos de Pinzone. Mas com certeza devia ser por causa do meu

jeito plácido e irritante e dos grossos óculos recentes que me haviam coagido a usar para me

endireitar um olho, e ignoro o porquê dele olhar por conta própria e sei lá em que direção.

Aqueles óculos eram um verdadeiro martírio. Até que um dia eu os joguei fora, dando ao

meu olho a liberdade de agir segundo bem entendesse. Tanto mais que, mesmo direito este

olho não me teria feito bonito. Eu era sadio e me bastava.

Aos dezoito anos, me invadiu o rosto enorme barba avermelhada e crespa, com prejuízo do

meu não grande nariz, que se viu perdido por causa da proximidade da fronte, larga e grave.

Talvez se estivesse em poder do homem a faculdade de escolher o nariz adequado ao próprio

rosto, ou se diante de um infeliz oprimido por um nariz muito grande para a sua cara

macilenta, pudéssemos dizer-lhe: —Este nariz me serve, vou ficar com ele —talvez eu

tivesse trocado o meu, de bom grado. E assim em relação aos olhos e tantas outras partes do

meu rosto. Mas sabendo que tal não é possível, e resignado às minhas feições, não me

preocupava com esses detalhes.

Berto, pelo contrário, bonito de rosto e de corpo (ao menos comparado a mim), não

conseguia afastar-se do espelho e se alisava, se acariciava e esbanjava dinheiro sem fim com

as gravatas mais novas, os perfumes mais finos e o vestuário. Um dia, para aborrecê-lo,

apanhei do seu guarda-roupa uma casaca novinha em folha, um elegantíssimo colete de

veludo preto, um precioso chapéu e fui assim paramentado à caça.

Batta Malagna, entretanto, vinha lamentar-se junto de minha mãe a propósito dos maus

negócios que o obrigavam a contrair dívidas onerosíssimas para fazer frente às nossas

excessivas despesas e aos inúmeros trabalhos de reparação de que as terras necessitavam

constantemente.

— Tivemos outro belo prejuízo! — dizia cada vez que entrava.

A neblina tinha destruído as oliveiras em flor em Due Riviere. Ou então a filoxera tinha

devastado os vinhedos do Sperone. Era preciso plantar as videiras americanas, resistentes ao

mal. Portanto, outras dívidas. Depois aconselhou a vender o Sperone, depois Due Riviere,

depois San Rocchino. Restavam as casas e a propriedade da Stía, com o moinho. Minha mãe

esperava o dia em que ele viesse anunciar que a nascente havia secado.

É verdade que nós fomos ociosos e gastávamos sem controle; mas também é verdade que um

ladrão mais ladrão do que Batta Malagna não nascerá nunca mais na face da terra. É o

mínimo que posso dizer a seu respeito, em consideração para com o parentesco que fui

obrigado a contrair com ele.

Teve a arte de nunca nos deixar faltar coisa alguma enquanto minha mãe viveu. Mas aquela

facilidade, aquela liberdade levada ao capricho que nos deixava gozar servia para esconder o

abismo que, após a morte de minha mãe, devorou somente a mim, já que meu irmão teve a

sorte de contrair em tempo um casamento vantajoso.

O meu casamento, ao contrário...

— Mas terei de falar, Dom Eligio, do meu casamento? Trepado lá em cima na sua escada,

Dom Eligio Pellegrinotto me responde:

— E como não? Claro que sim. Discretamente. . .

— Que discretamente, que nada! O senhor sabe muito bem que...

Dom Eligio ri e com ele toda a igrejinha abandonada. Em seguida me aconselha:

— Se eu estivesse no seu lugar, senhor Pascal, haveria primeiro de ler alguma novela de

Bocácio ou de Bandello. Por causa do estilo, o estilo...

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Dom Eligio liga muito ao estilo! Ufa! Jogo tudo no papel de qualquer maneira, como me

vem.

Coragem, pois Adiante!

IV

FOI ASSIM

Um dia, na caça, parei estranhamente impressionado diante de um palheiro baixo e pançudo

com uma penelinha no alto do eixo.

— Eu te conheço — dizia-lhe — eu te conheço.

Depois, de repente, exclamei:

— Ora essa! Batta Malagna!

Peguei um tridente que estava ali no chão e cravei na pança com tanta volúpia que a

panelinha no alto do eixo por pouco não caiu. E eis que Batta Malagna, suando e ofegante,

usando o chapéu de lado.

Tudo escorregava nele: escorregavam-lhe daqui e dali, ao longo do enorme rosto as

sobrancelhas e os olhos; escorregava-lhe o nariz por cima do desenxabido bigode e da

barbixa; escorregavam-lhe os ombros da articulação do pescoço; escorregava-lhe a enorme e

flácida pança quase até o chão, porque devido à proeminência que ela formava sobre suas

perninhas maciças, o alfaiate, para vesti-las era obrigado a cortar-lhe as calças o mais

folgadamente possível. Assim, de longe, parecia usar uma roupa comprida, dando a

impressão de que a pança lhe tocava os pés.

Com tal rosto e tal corpo, não entendo como é que Malagna conseguia ser o ladrão que era.

Mesmo os ladrões, creio, devem ter certa apresentação que ele não parecia possuir.

Caminhava devagar, a pança pendente, as mãos sempre para trás, e arrancava com o maior

sacrifício aquela voz mole que miava. Gostaria de saber como ele argumentava com a

própria consciência pelos furtos, continuamente perpetradas em nosso prejuízo. Não tendo a

necessidade de roubar, uma razão, uma desculpa para si mesmo deveria arranjar. Talvez

roubasse pretendendo se distrair de algum modo, coitado.

Devia ser, no íntimo, tremendamente atormentado por uma dessas esposas que se fazem

respeitar.

Havia cometido o erro de se casar com alguém de condição muito superior à sua. Ora, se essa

mulher fosse casada com um homem de igual condição talvez não fosse tão impertinente

como era com Malagna, a quem naturalmente diante do mínimo pretexto devia demonstrar

que tivera nascimento ilustre e que na sua casa se fazia dessa forma e daquela. E eis Malagna

obediente, agindo dessa maneira a fim de parecer um cavalheiro. Mas como lhe custava!

Como suava!

A Senhora Guendalina, logo depois casamento, foi atacada por um mal de que nunca se

livrou, pois a cura exigia um sacrifício superior às suas forças: mais nem menos, privar-se de

certos doces com trufas, que eram muito de seu agrado e de outras gulodices símiles também,

sobretudo do vinho. Não que bebesse muito. Duvido. Era de nobre linhagem. Mas é que não

devia beber nem um dedo sequer.

11

Berto e eu, quando rapazolas, éramos algumas vezes convidados para almoçar em casa de

Malagna. Que delícia ouvi-lo fazer, com o devido respeito, um sermão à mulher sobre a

continência enquanto ela comia e devorava com a maior volúpia os pratos mais suculentos!

— Não admito — dizia ele — que pelo momentâneo prazer que experimenta a garganta

mediante a passagem de uma garfada, como esta, por exemplo, (e engolia a garfada) se deva

depois passar mal um dia inteiro. Que gosto pode ter? Quanto a mim, tenho a certeza de que

me sentiria depois profundamente aviltado. Rosina! (chamava a criada). Traga-me um

pouco mais. Boa esta maionese!

— Agora chega! — esbravejava a mulher. — Eu queria ver você passando mal do estômago.

Aprenderia a ter consideração para com sua mulher.

— O que, Guendalina! E não tenho? — exclamava Malagna, enquanto se servia de vinho.

A mulher, como única resposta, levantava-se da mesa, arrancava-lhe o copo das mãos, e ia

jogar o vinho pela janela. — E por quê? — gemia o pobre, pasmado.

E ela:

— Por que é um veneno para mim? Todas as vezes que você me vir colocando um dedo de

vinho no copo, tire-o das minhas mãos e vá jogá-lo pela janela, assim como eu fiz, entendeu?

Malagna, mortificado, me olhava sorridente, olhava Berto, olhava a janela, olhava o copo e

dizia depois:

— Oh! Deus! Mas então você é uma menina? Eu, agir pela violência? Não, minha cara. Você

por você mesma, com a própria razão deveria controlar-se...

— Mas como? — gritava a mulher. — Com a tentação diante dos olhos? Vendo você beber

tanto, saboreando, examinando o vinho contra a luz, só para me aborrecer? Pois escute: se

você fosse outro marido para não me fazer sofrer...

Muito bem, Malagna chegou a este ponto: não bebeu mais vinho, para dar exemplo de

continência à mulher e não a fazer sofrer.

E no final das contas, roubava... Bem, alguma coisa era preciso que ele fizesse.

Logo depois ficou sabendo que a Senhora Guendalina bebia às escondidas o seu vinhozinho.

Como se pudesse bastar, para não lhe fazer mal, que o marido não desconfiasse. E então ele

também recomeçou a beber, mas fora de casa para não aborrecer a mulher.

Continuou a roubar, isso é verdade. Mas sei que, de todo coração, desejava que a mulher lhe

desse uma recompensa pelas aflições sem fim que lhe causava. Em outras palavras, desejava

que ela, um belo dia, se resolvesse a lhe dar um filho. Aí está: o furto passaria então a ter uma

finalidade, uma desculpa. O que não se faz pelo bem dos filhos?

A mulher definhava dia a dia e Malagna nem sequer ousava exprimir-lhe seu ardentíssimo

desejo. Talvez ela fosse estéril, por natureza. Era preciso ter muito cuidado com o seu mal. E

se acabasse morrendo de parto? Deus a livrasse... E além do mais havia o risco de não levar a

termo a gestação do desejado filho.

Dessa forma ele se resignava.

Era sincero? Não o demonstrou suficientemente com a morte da Senhora Guendalina.

Chorou-a, chorou-a muito e sempre a recordou com uma devoção tão respeitosa que não quis

admitir no seu lugar outra dama de nobre linhagem — o quê? — e o teria feito se quisesse,

pois já estava rico. Casou-se com a filha de um administrador rural, sadia, rija, robusta e

alegre; e o fez unicamente para que não houvesse dúvida quanto à prole desejada. Se ele se

apressou um pouquinho demais deixemos de lado, afinal é preciso considerar que ele não era

mais nenhum rapazinho e não tinha tempo a perder.

Eu conhecia Olívia desde pequena. Era filha de Pedro Salvoni, nosso administrador em Due

Riviere.

12

Por sua causa, fiz minha mãe alimentar não sei quantas esperanças de que eu estivesse

criando juízo e tomando gosto pelo campo. Com tal consolo, coitadinha, ela vivia no sétimo

céu! Mas um dia a terrível tia Escolástica lhe abriu os olhos:

— Você não está vendo, sua boba, que ele vai sempre a Due Riviere?

— Isso mesmo, para a colheita das olivas.

— De uma oliva, de uma oliva somente, toleirona!

Minha mãe então me passou um pito em boas condições, exortando-me a que evitasse o

pecado mortal de induzir em tentação e perder para sempre uma pobre moça, etc., etc.

Mas não havia perigo. Olívia era honesta, de uma honestidade inabalável, porque

fundamentada na consciência do mal que trataria a si mesma se cedesse. Justamente essa

consciência a livrava da insípida timidez dos pudores fingidos, tornando-a ousada e

desenvolta.

Como ria! Seus lábios eram duas cerejas, e que dentes! Mas daqueles lábios nem um beijo

sequer. Dos dentes sim, uma ou outra mordida, por castigo, quando eu a agarrava pelos

braços e não largava antes de lhe dar um beijo, ao menos nos cabelos.

Nada mais.

Ora, tão bela, tão jovem e fresca, a esposa de Batta Malagna... Vejam só. Quem tem coragem

de recusar certas dádivas do destino? No entanto Olívia sabia muito bem a maneira pela qual

Malagna enriquecera. Certo dia, falando-me a respeito, acusou e condenou Malagna. E,

depois, exatamente por causa daquela riqueza, se casou com ele.

Decorre, entretanto, o primeiro ano de casamento e nada de filhos.

Malagna, desde tanto tempo, apoiado na convicção de que não tivera filhos da primeira

mulher somente devido à esterilidade ou contínua enfermidade desta, não podia suspeitar

que no seu segundo casamento a falta fosse dele. E começou a fazer cara feia para Olívia.

— Nada?

— Nada.

Esperou ainda um ano, o terceiro, mas em vão. Então passou a tratá-la com aspereza. Por

fim, após outro ano, tendo perdido completamente a esperança e no auge da exasperação,

pôs-se a maltratá-la sem controle. Gritava-lhe que a sua aparência exuberante o havia

enganado e que somente por causa de um filho ela fora elevada ao posto outrora ocupado por

uma verdadeira dama, à memória da qual ele jamais teria feito semelhante afronta.

A pobre da Olívia não respondia, não sabia o que dizer. Vinha sempre a nossa casa desabafar

com minha mãe, que a confortava com palavras amigas e animando-a a não perder as

esperanças ainda, enfim ainda era jovem, muito jovem.

— Vinte anos ?

— Vinte e dois...

Pois então! Quantos casos! Os filhos podiam nascer até depois de quinze anos de

matrimônio...

Quinze? Mas e ele? Ele já era velho. E se... Ele já era velho. E se...

Desde o primeiro ano, Olívia suspeitava que, bem, entre ele e ela, como dizer? a falta fosse

dele mais que sua, muito embora ele se obstinasse em negar. Mas se podia provar? Olívia ao

casar jurara consevar-se honesta, e não queria, nem para reconquistar a paz, quebrar o ju-

ramento.

Como eu sei estas coisas? Esta é boa, como sei!

Não já disse que ela vinha desabafar em nossa casa? Disse também que a conhecia desde

pequena. E depois a via chorar pelo indigno tratamento e pela estúpida e provocante

presunção daquele velho repelente. E... Devo mesmo dizer tudo? Aliás, não. Basta.

Consolei-me logo. Tinha naquele tempo (ou acreditava ter) muitas coisas pela cabeça. Tinha

13

até dinheiro que fornece certas idéias as quais sem o dito não surgiriam. No entanto havia

alguém que abominavelmente me ajudava a gastar esse dinheiro: Jerônimo II Pomino, que

jamais estava suficientemente provido, graças à sábia parcimônia paterna.

Mino era como a nossa sombra, alternadamente, minha e de Berto. Mudava com

maravilhosa faculdade simiesca, segundo andasse com Berto ou comigo. Quando se

agarrava com Berto se tornava um dândi; e o pai, que também tinha veleidades e elegância,

alargava um pouco os cordões da bolsa. Mas com Berto a coisa durava pouco. Ao ver-se

imitado até no modo de caminhar, meu irmão perdia a paciência, talvez temendo o ridículo, e

o maltratava com intuito de se livrar dele. Mino então voltava a se agarrar comigo. E o pai a

apertar os cordões da bolsa.

Eu tinha mais paciência porque me divertia às custas dele. Depois me arrependia.

Reconhecia que havia forçado minha natureza em algumas façanhas ou exagerado a

demonstração dos meus sentimentos, só pelo gosto de o ver embasbacado ou de metê-lo em

alguma embrulhada, da qual naturalmente eu também sofria as conseqüências.

Mino, a propósito de Malagna, cujas proezas matrimoniais eu lhe havia contado, me disse

um dia, na caça, que estava de olho numa pequena pela qual cometeria qualquer loucura.

Tratava-se justamente da filha de uma prima de Malagna. Era capaz da loucura. Tanto mais

que a moça não se mostrava esquiva. Mas até aquele momento não conseguira falar com ela.

— Com certeza você não teve coragem, aposto! — disse eu, rindo.

Mino negou, mas corou muito ao negar.

— No entanto falei com a criada — apressou-se a acrescentar. E soube de umas muito boas.

Ela me disse que o seu querido Malagna andava sempre por lá e que tramava alguma perfídia

de comum acordo com a prima, que é uma velha bruxa.

— O que será?

— Sei lá! Diz que ele vai ali chorar sua desgraça de não ter filhos. A velha, áspera e

carrancuda, lhe responde que é bem feito. Parece que esta, com a morte da primeira esposa,

meteu na cabeça que a filha se casaria com Malagna, empregando todos os esforços a fim de

alcançar o objetivo. Depois, desiludida, teria dito cobras e lagartos daquele bestalhão,

inimigo dos parentes, traidor do próprio sangue, etc., etc. E se teria aborrecido também com

a filha que não soubera atrair o tio. Agora que finalmente o velho se mostra tão arrependido

por não ter dado aquela alegria à sobrinha, que se imagina que a bruxa esteja arquitetando?

Tapei os ouvidos com as mãos, gritando a Mino: Cale a boca!

Aparentemente, não. Mas no fundo eu era muito ingênuo naquele tempo. Todavia, tendo

conhecimento das cenas que se haviam dado e se davam na casa de Malagna, achei que as

suspeitas da criada tinham algum fundamento. E decidi, para o bem de Olívia, ver se

conseguia apurar algo. Mino me deu o endereço da bruxa, fazendo-me recomendações em

relação à moça.

— Esteja tranqüilo — respondi-lhe — deixo-a para você, que coisa!

Na manhã seguinte, soube casualmente por minha mãe que se vencia uma letra naquele dia.

E sob esse pretexto fui desencovar Malagna na casa da viúva Pescatore.

Eu correra de propósito e me precipitei para dentro da casa todo ofegante e suado.

— Malagna, a letra!

Eu já sabia que a sua consciência não era limpa. Mas se ainda o ignorasse, naquele dia sem

dúvida teria percebido a verdade ao vê-lo ficar de pé num salto, pálido e contrafeito,

balbuciando

— Que... que let... que letra?

— A letra tal, assim, assim, que vence hoje... Foi mamãe quem me mandou vir aqui. --Está

tão preocupada!

14

Batta Malagna caiu sentado, exalando num ah! interminável todo o terror que por um

instante o havia sufocado.

— Mas está feito! ... Tudo feito! ... Deus do céu! Que susto... A renovei por três meses

pagando os juros, naturalmente. Você deu toda esta corrida por tão pouco?

E riu-se, riu-se, balançando a enorme pança. Convidou-me para sentar, apresentando-me às

senhoras.

Matias Pascal, Mariana Dondi, viúva Pescatore, minha prima. Romilda, minha sobrinha.

Fez questão de que eu bebesse alguma coisa, para me refazer da corrida.

— Romilda, se você não se incomoda...

Como se estivesse na sua casa.

Romilda levantou-se, interrogando a mãe com o olhar e, apesar dos meus protestos, voltou

com uma bandeja onde havia um cálice e uma garrafa de vermute. Imediatamente e sem

conter a irritação, a mãe se levantou dizendo à filha:

— Não! Não! Dê-me isto.

Tomou-lhe a bandeja das mãos e saiu, para voltar logo depois com outra bandeja de laca,

novinha em folha, ostentando uma esplêndida licoreira: um elefante prateado, com um tonel

de vidro no dorso e uma porção de copinhos pendurados em redor, tilintando.

Eu teria preferido o vermute. Bebi o licor. Malagna e a mãe beberam também. Romilda, não.

Demorei um pouco para ter outra desculpa e voltar. Disse que desejava logo tranqüilizar

minha mãe quanto antes à letra e que voltaria dentro de alguns dias para gozar mais à

vontade da companhia das senhoras.

Não pareceu, pelo modo de me cumprimentar, que Mariana Dondi, viúva de Pescatore,

recebesse com muito prazer a noticia de uma segunda visita; mal me estendeu a mão, gélida,

seca, nodosa, amarelada. Abaixou os olhos e apertou os lábios. Compensou-me a filha, com

simpático sorriso que prometia cordial acolhida, e com o olhar doce e triste daqueles olhos

que me causaram desde o princípio tão forte emoção. Olhos de estranha cor verde,

profundos, intensos, sombreados por longíssimos cílios. Olhos noturnos, entre os cabelos

negros como ébano, ondulados, que lhe desciam pela fronte e faziam sobressair viva

brancura da pele.

A casa era modesta. Mas já entre os velhos móveis se notavam vários objetos

recém-chegados, pretensiosos e deslocados na ostentação da sua novidade muito evidente:

dois grandes lampiões de louça, por exemplo, ainda intactos, com uns globos de vidro

esmerilhado de estranho formato, em cima de humilíssimo console de mármore amarelado,

servindo de suporte a um espelho escuro numa moldura redonda e descascada aqui e ali e

abrindo-se na saia como um bocejo de esfomeado. Havia ainda defronte do pequeno divã

desengonçado, uma mesinha com os quatro pés dourados e a parte superior de porcelana

pintada cone vivíssimas cores. Depois uma prateleira de laca japonesa, etc., etc., e por cima

destes objetos novos os olhos de Malagna se detinham com evidente complacência, como o

fizera com a licoreira traduzida em triunfo pela prima.

As paredes da sala eram quase inteiramente cobertas de velhas e não feias estampas.

Malagna quis fazer-me admirar algumas, dizendo que eram obra de Francisco Antônio

Pescatore, seu primo, gravador de grandes méritos (que morreu louco em Turim, acrescentou

em voz baixa) cujo retrato fez questão de me mostrar também.

— Executado com as próprias mãos, defronte do espelho.

Olhando Romilda, depois a mãe, havia pensado um pouco antes: ―com certeza se parece com

o pai‖. Mas diante do retrato não sabia o que pensar.

Não quero arriscar suposições ultrajantes. Considero Mariana Dondi, a viúva Pescatore,

capaz de tudo. Mas como imaginar um homem, e um belo homem além de tudo, capaz de se

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sentir atraído por ela? Só se fosse um louco mais louco que o marido.

Contei a Mino as impressões daquela primeira visita. Falei de Romilda com uma admiração

tão ardente que ele logo se inflamou, felicíssimo com o meu entusiasmo e a minha

aprovação.

Perguntei-lhe suas intenções. A mãe tinha todo o jeito de bruxa. Mas a filha podia-se jurar

que era honesta. Nenhuma dúvida quanto aos infames desígnios de Malagna. Portanto urgia

a todo o custo salvar a moça.

— E como? — perguntou Pomino, fascinado por minhas palavras.

— Como? Veremos. Antes de tudo será necessário averiguar uma porção de coisas, tirar

tudo a limpo, estudar bem. Você sabe que a gente não pode tomar uma resolução assim, sem

mais nem menos. Deixe por minha conta, eu o ajudarei. Gosto desta aventura.

— Sim... Mas... — objetou Pomino, timidamente, começando a se sentir ansioso ao ver-me

tão aceso. — Você por acaso estaria falando em casamento?

— Não digo nada por enquanto. Será que você está com medo?

— Não, por quê?

—Porque vejo você correndo muito. Vamos devagar, examinando todos os pontos. Se

viermos a comprovar que ela é realmente o que deveria ser, boa, ajuizada e virtuosa (bela não

há dúvida que é, e você gosta dela, não é?). Pois imaginemos que de fato esteja exposta, pela

malvadez da mãe e do outro canalha, a um gravíssimo perigo, a um comércio infame. Você

hesitaria diante de um ato meritório e de uma obra santa de salvação?

—Eu? Não!... Respondeu Pomino. — Mas... E meu pai?

— Ele se oporia? Por qual razão? Pelo dote, não é? Por outra coisa não pode ser! Porque ela,

sabe? é filha de um artista, de um gravador de grande mérito, que morreu... Morreu, isto é,

morreu convenientemente em Turim... Mas seu pai é rico e só tem você, e pode muito bem

ceder à sua vontade sem ligar para o dote. E se depois se ele não se persuadir não precisa ter

medo: um vôozinho para fora do ninho e tudo se arranja. Pomino, você não tem coração?

Pomino riu-se e eu então lhe provei por A + B que ele havia nascido marido assim como se

nasce poeta. Descrevi-lhe em cores vivas e sedutoras a felicidade da vida conjugal ao lado da

sua Romilda: o afeto, os cuidados, a gratidão que ela teria por ele, seu salvador. E para

concluir:

— Agora você deve encontrar a maneira de se fazer notar por ela, de lhe falar ou escrever.

Neste momento talvez uma carta sua fosse para ela, assediada por aquela aranha, uma tábua

de salvação. Freqüentarei a casa enquanto isso e, sempre alerta, saberei o momento oportuno

para você se apresentar. Estamos entendidos?

— Perfeitamente.

E por que todo aquele meu frenesi para casar Romilda? Por nada. Repito, pelo gosto de

deixar Pomino embasbacado. Eu falava, falava e todas as dificuldades desapareciam. Era

impetuoso e não levava as coisas a sério. Talvez por isso as mulheres me amassem, não

obstante aquele meu olho um pouco vesgo e meu corpo não belo. Desta vez o meu ardor

provinha também do desejo de desfazer a mesquinha teia urdida por aquele velho imundo,

impedindo que ele realizasse seus intentos. E também por causa da pobre Olívia, por que

não? Animado pela esperança de fazer algum bem à moça, que na verdade me havia

impressionado grandemente.

Que culpa tenho se Pomino executou tão timidamente as minhas prescrições? Que culpa

tenho se Romilda, em vez de se enamorar de Pomino se enamorou de mim, eu que todavia

lhe falava sempre dele? Que culpa, enfim, se a perfídia de Mariana Dondi, me levou a crer

que a minha habilidade e as minhas saídas extravagantes em pouco tempo lhe tivessem

vencido a desconfiança e realizando até o milagre de fazê-la rir, mais de uma vez? Eu a vi

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pouco a pouco entregar os pontos; senti-me bem recebido; pensei que a velha tendo um

jovem em casa, rico (eu ainda me acreditava rico) e apresentando não duvidosos sinais de

paixão pela filha tivesse finalmente desistido da sua iníqua idéia.

Eu deveria ter levado em consideração o fato de nunca mais ter encontrado Malagna na casa

dela e que não devia ser sem motivo que eu só fosse recebido de manhã. Mas quem prestava

atenção a tais pormenores? Era natural que, para ter mais liberdade, eu propunha passeios no

campo, o que é mais agradável de manhã. E eu estava apaixonado por Romilda embora

continuasse sempre a falar do amor de Pomino. Apaixonado como um maluco por aqueles

belos olhos, pelo narizinho, pela boca, por tudo, até mesmo por uma pequena verruga que ela

tinha na nuca e por uma cicatriz quase invisível numa das mãos, que eu beijava, beijava e

beijava... Por conta de Pomino, perdidamente.

Nada de grave teria acontecido, provavelmente, até um dia (estávamos na Stía e havíamos

deixado a mãe admirando o moinho), Romilda, abandonando a já prolongadíssima

brincadeira do tímido namorado distante, num inesperado acesso de choro se enlaçou no

meu pescoço suplicando-me, toda trêmula, que tivesse piedade dela e a levasse de qualquer

maneira para longe da sua casa e daquela megera, de todos, imediatamente. . .

Longe? Como podia levá-la para longe?

Durante muitos dias, ainda fascinado por ela, procurei um meio, disposto a tudo,

honestamente. E já começava a predispor minha mãe à notícia do meu próximo casamento,

naquela altura inevitável por questão de consciência, quando vi chegar uma carta sequíssima

de Romilda, dizendo-me que não pensasse mais nela e não voltasse à sua casa, considerando

terminadas para sempre as nossas relações.

Ah! Sim? Mas como? Que teria acontecido?

No mesmo dia Olívia correu, chorando, a nossa casa para anunciar a minha mãe que era a

mulher mais infeliz do mundo e que a paz do seu lar estava para sempre destruída. Seu

marido havia conseguido a prova de que não era dele a culpa de não terem filhos. E viera

com a notícia, triunfante.

Eu estava presente à cena. Não sei o que fiz para me conter. Deteve-me o respeito por minha

mãe. Sufocado pela ira e pela náusea, fugi para me trancar no quarto e sozinho com as mãos

entre os cabelos comecei a me perguntar como era possível que Romilda, depois de tudo o

que se passara entre nós, se pudesse prestar a tanta infâmia! Ah! Digna filha de tal mãe! Não

somente ao velho enganaram vilmente ambas: eu fôra ludibriado também! Tal e qual a mãe

ela se servira de mim ignominiosamente, visando o infame objetivo e a indigna cobiça! E

enquanto isso a pobre Olívia arruinada...

Antes de anoitecer, saí diretamente à casa de Olívia. Levava comigo no bolso a carta de

Romilda.

Olívia, em lágrimas, guardava suas coisas e queria voltar à casa do pai ao qual, por

prudência, não fizera nem uma alusão sobre o que vinha sofrendo.

— Mas agora que tenho mais a fazer aqui? Acabou-se. Se ao menos ele se tivesse metido

com outra ainda podia ser. . .

— Ah! Então você sabe — perguntei-lhe — com quem se meteu?

Bateu muitas vezes com a cabeça e entre soluços escondeu o rosto entre as mãos.

— Uma moça! — exclamou, erguendo os braços. — E a mãe! A mãe de acordo, entende? A

própria mãe!

— A mim você vem dizer isto? Tome, leia.

E lhe estendi a carta. Olhou-a aturdida. Depois a tomou perguntando:

— Que quer dizer?

Mal sabia ler. Quase me suplicava que lhe poupasse aquele esforço em tal momento.

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— Leia — insisti.

Enxugando os olhos desdobrou a folha e se pôs a interpretar as letras, lentamente, soletrando.

Depois das primeiras palavras procurou a assinatura e me fitou esbugalhando os olhos:

— Você?

— Dê-me aqui — disse-lhe eu. — Vou ler para você ouvir a carta toda.

Mas ela apertou o papel contra o seio:

— Não! — gritou. — Não a devolvo mais! Isto agora me serve!

— E para que poderia servir? — perguntei-lhe sorrindo amargamente. — Para mostrar a ele?

Em toda esta carta não há uma única palavra que dissuada seu marido daquilo em que

acredita, felicíssimo. Embrulharam você muito bem!

— É verdade! É verdade! — gemeu Olívia. — Ele chegou aqui berrando que eu tivesse

muito cuidado para não pôr em dúvida a honorabilidade da sua sobrinha!

—E então? — disse novamente sorrindo. — Está vendo? Você não obterá coisa alguma

negando. Deve ter muito cuidado! E deve até que é verdade, absolutamente verdade que ele

pode ter filhos ... Entende?

Por qual razão mais ou menos um mês depois Malagna espancou a mulher furiosamente e

ainda com espuma na boca me invadiu a casa, gritando que exigia imediatamente uma

reparação por eu lhe haver desonrado e arruinado uma pobre órfã? Acrescentou que para não

fazer escândalo preferia silenciar. Por piedade daquela pobrezinha e não tendo ele filhos,

havia decidido adotar como sua a criança quando nascesse. Mas agora que Deus finalmente

lhe dava a consolação de ter um filho legítimo nascido da sua própria esposa não podia

mais, em sã consciência, servir de pai para o de sua sobrinha.

— Matias, tome uma providência! Repare a sua falta! — concluiu congestionado pelo furor.

— E já! Obedeça-me imediatamente! E não me obrigue a falar mais ou a fazer algum

desatino!

Chegados a este ponto raciocinemos um pouco. Eu já sofri de tudo no mundo. Mesmo passar

por imbecil ou por coisa pior não me seria grande desgraça. Pois estou como fora da vida e

nada mais me importa. Se chegado a este ponto é somente pela lógica.

Parece-me evidente que Romilda não tenha feito algum mal no que se refere a induzir o tio

ao engano. De forma contrária, como se explicaria que Malagna tivesse logo, entre

pancadaria, atirado no rosto da mulher a traição culpando-me junto de minha mãe por ter

ultrajado a sobrinha?

Romilda afirma que pouco depois daquele nosso passeio na Stía a mãe, ao ouvir a confissão

do amor que então a ligava indissoluvelmente, vociferou exasperada que nunca na vida

consentiria em que ela se casasse com um vadio já quase à beira do abismo. Uma vez que ela

havia provocado o pior mal que pode sobrevir a uma jovem, não restava mais à previdente

mãe outra saída a não ser tirar o melhor partido possível desse mal. E era fácil entender qual

fosse. Quando Malagna chegou à hora habitual, a mãe saiu com uma desculpa qualquer

deixando a filha sozinha com o tio. E então Romilda, chorando copiosamente — diz —

lançou-se aos pés dele dando-lhe a entender sua desgraça e o que a mãe pretendia dela;

pediu-lhe que interferisse para convencer a mãe a agir de outra forma, pois pertencia a um

homem a quem desejava conservar-se fiel.

Malagna enterneceu-se até certo ponto. Disse-lhe que sendo menor, ainda se encontrava sob

a tutela da mãe que, se quisesse, poderia até agir contra mim judicialmente; ele também

conscientemente não aprovaria um casamento com um doidivanas da minha espécie,

gastador e sem miolos; logo não tomaria o partido desse casamento. Disse ainda que era

preciso sacrificar algo à natural ira materna e que isso afinal seria a sorte da moça. Concluiu

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que sob a condição de guardarem o mais completo sigilo, tudo que ele poderia fazer era

servir de pai ao nascituro uma vez que não tinha filhos e há tanto tempo desejava um.

É possível alguém ser mais honesto?

Tudo o que havia roubado ao pai ele devolveria ao filho por nascer.

Que culpa ele tem se eu, ingrato, acabei por estragar tudo?

Dois, não! Com os diabos! Não, dois, não!

Pareceram-lhe demais, talvez porque Roberto já tinha contraído um matrimônio vantajoso e

achou que não tivesse causado suficiente dano a meu irmão a ponto de ter que devolver-lhe a

sua parte.

Vê-se que no meio de gente tão honesta, todo o mal fora provocado por mim. E que portanto

eu deveria expiá-lo.

No começo recusei desdenhosamente. Depois, devido aos pedidos de minha mãe que já via a

ruína de nossa casa e esperava que eu, de algum modo, pudesse me salvar casando-me com a

sobrinha do inimigo, acabei cedendo e me casei.

Sobre a minha cabeça pairava terrível a ira de Mariana Dondi, viúva Pescatore.

V

MATURAÇÃO

A bruxa não sabia dar tréguas.

— De que lhe adiantou? — perguntava-me. — Não devia bastar você ter entrado na minha

casa como um ladrão para enganar minha filha e a arruinar? Não devia ter bastado?

— Não, cara sogra! — respondia-lhe. — Porque se tivesse ficado teria feito a vocês um

favor, prestado um serviço...

— Está ouvindo? — berrava então para a filha. — E ainda por cima tem a coragem de se

gabar da bela proeza que praticou com aquela... — e aqui, uma série de palavras obscenas

referentes à Olivia. E com as mãos nos quadris e os cotovelos apontados para frente: — Mas

de que lhe adiantou? Desta forma não arruinou também o seu filho? Mas que importa isso a

ele? Também dele é o outro, é dele...

Nunca deixava de esguichar esse veneno, pois sabia dos efeitos que provocava no ânimo de

Romilda, enciumada por causa do filho de Olívia que nasceria entre conforto e alegria,

enquanto o seu viria ao mundo em meio às atribulações e na incerteza do amanhã.

Aumentavam-lhe ainda mais os ciúmes quando uma ou outra mulher, fingindo de nada

saber, vinha trazer-lhe notícias da tia Olívia que estava tão contente e feliz com a graça que

finalmente Deus lhe quisera conceder. Ah, Olívia se transformara numa flor: nunca tinha se

mostrado tão bela e sadia.

E Romilda ali jogada em cima de uma poltrona com náuseas, pálida, desfeita, feia, sem um

momento agradável, nem sequer vontade de falar ou abrir os olhos.

Isso também era culpa minha? Tudo indicava que sim. Ela não me podia mais ver nem ouvir.

E foi pior quando, para salvar a propriedade da Stía com o moinho, precisamos vender as

casas e minha pobre mãe se viu obrigada a entrar no inferno onde eu morava.

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Aliás, aquela venda de nada serviu. Malagna, com o filho por nascer, que o habilitava então

a não ter mais reservas nem escrúpulos, fez a última: entrou em acordo com os agiotas e, às

escondidas, comprou as casas por uma ninharia. As dívidas que pesavam sobre Stía ficaram

a descoberto; e a propriedade, bem como o moinho, foi posta pelos credores sob

administração judiciária. E fomos liquidados.

Que fazer então? Quase sem esperança pus-me à procura de uma ocupação, fosse qual fosse,

a fim de prover as necessidades mais urgentes da família. Eu era inepto para tudo e a fama

das minhas façanhas juvenis e da minha vagabundagem por certo não encorajava ninguém a

me dar trabalho. E as cenas que eu presenciava diariamente e das quais participava na minha

casa me tiravam a calma necessária para me recolher um pouco e considerar o que teria

podido e sabido fazer.

Causava-me verdadeiro asco ver minha mãe ali em contato com a viúva Pescatore. Minha

santa velhinha, não mais inconsciente, mas irresponsável pelos seus erros provenientes de

não ter percebido até que ponto ia a iniqüidade dos homens, ficava ali toda encolhida com as

mãos no colo, os olhos baixos, sentada num cantinho, como se não tivesse a certeza de poder

permanecer naquele lugar e como se estivesse sempre à espera de partir dentro em pouco se

Deus o quisesse... E não incomodava nem mesmo o ar. De vez em quando sorria a Romilda,

piedosamente; não ousava se aproximar dela, pois alguns dias após a sua chegada, tendo

acorrido para lhe prestar auxílio, fora rudemente repelida pela bruxa.

— Pode deixar comigo, pode deixar; sei o que devo fazer.

Como Romilda realmente necessitasse de auxílio naquele momento fiquei calado. Mas em

geral estava sempre atento para que ninguém faltasse com o respeito à minha mãe.

Percebia que essa vigilância irritava profundamente minha sogra e minha mulher; receava

que na minha ausência as duas desabafassem a ira maltratando-a. Sabia que minha mãe

jamais me diria coisa alguma. E tal pensamento me torturava. Quantas e quantas vezes olhei

nos seus olhos para ver se havia chorado! Sorria, acariciando-me com o olhar e depois

perguntava:

— Por que me olha assim?

— Não se sente bem, mamãe?

Fazia-me apenas um gesto com a mão e respondia:

— Bem, não está vendo? Vá ver sua mulher, ande! --Está passando mal, coitadinha.

Resolvi escrever a Roberto propondo-lhe que levasse nossa mãe para a sua casa. Não

pensava em me livrar de um peso que teria suportado tão de bom grado mesmo nos apuros

em que me encontrava, mas visava o bem dela, unicamente.

Berto respondeu que não podia. Não podia porque era melindrosíssima sua situação diante

da família da mulher e da própria mulher após os nossos reveses. Ele vivia às custas do dote

dela e não poderia lhe impor coisa alguma. Dizia que talvez lá nossa mãe se encontrasse em

situação desagradável, pois também ele convivia com a sua sogra, que era muito boa, mas

que podia deixar de o ser devido aos ciúmes e atritos inevitáveis entre sogras. Portanto seria

preferível ela continuar comigo. Ao menos naqueles seus últimos anos de vida não se

afastaria da terra natal nem seria forçada a mudar de costumes. Enfim declarava-se

pesarosíssimo porque não podia me prestar o mínimo socorro pecuniário como era seu

desejo, de todo o coração.

Profundamente indignado escondi a carta de minha mãe. Se a exasperação não me tivesse

ofuscado o raciocínio, teria considerado que um rouxinol, ao dar as penas da cauda, poderá

dizer: resta-me o dom do canto. Mas se é um pavão a se desfazer das penas da cauda, o que

lhe resta? Para Berto teria sido enorme sacrifício e perda irreparável quebrar mesmo um

pouco do equilíbrio, graças ao qual ele podia viver convenientemente, e talvez até com certo

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ar de dignidade, às custas da mulher. Além da bela presença, das maneiras refinadas e da

pose de senhor elegante, nada mais possuía para dar à mulher; nem sequer uma migalha de

coração, que talvez o recompensasse pelo distúrbio que pudesse acarretar a minha pobre

mãe. Mas, paciência... Ele era assim, Deus lhe havia dado somente um pouquinho de

coração. O que é que ele podia fazer, pobre irmão?

No entanto os apertos cresciam e eu não encontrava modo de remediar a situação. Foram

vendidas as jóias de minha mãe, caras recordações! A viúva Pescatore, temendo que dentro

em pouco minha mãe e eu ficássemos reduzidos a viver da sua rendazinha dotal de quarenta

e duas liras mensais tornava-se cada dia mais carrancuda e desconfiada. Eu previa a explosão

do seu furor, contido desde muito tempo pela presença e reserva de minha mãe. Vendo-me

girar pela casa qual mosca sem cabeça, aquele tufão de mulher me arremessava olhares

precursores de tempestade. Eu saía para cortar a corrente e impedir a descarga. Mas temendo

por minha mãe voltava a casa.

Um dia não cheguei a tempo. A tempestade finalmente se desencadeara por banalíssimo

pretexto: por causa da visita das duas velhas criadas a minha mãe.

Uma delas, não tendo podido economizar coisa alguma pois mantivera uma filha viúva com

três filhos, logo se empregou para servir numa outra casa. Mas a outra, Margarida, sozinha

no mundo e mais afortunada, podia repousar a sua velhice graças ao pé-de-meia acumulado

durante os longos anos de serviço em nossa casa. Parece que com as duas boas mulheres,

fiéis companheiras de tanto tempo, minha mãe pouco a pouco tivesse se queixado de seu

mísero estado. Imediatamente Margarida, a boa velhinha, lhe propusera que se fosse embora

com ela para a sua casa; tinha dois pequenos quartos limpinhos, com um terraço cheio de

flores que dava para o mar. Ficariam juntas, em paz. Oh! Ela se sentia feliz em ainda poder

servir a minha mãe e demonstrar seu afeto e devoção.

Mas minha mãe podia aceitar a oferta daquela pobre velhinha? Daí a cólera da viúva

Pescatore.

Encontrei-a com os punhos estendidos contra Margarida, a qual lhe fazia frente

corajosamente, enquanto minha mãe, apavorada, com os olhos cheios de lágrimas e toda

trêmula, se segurava com ambas as mãos à outra velhinha.

Ver minha mãe naquela atitude foi o mesmo que perder a luz dos olhos. Agarrei por um

braço a viúva Pescatore atirando-a para longe. Ela se aprumou num segundo e correu ao meu

encontro com a intenção de pular em cima de mim. Mas se deteve em minha frente.

— Fora daqui! — gritou — Você e sua mãe, rua! Fora da minha casa!

— Ouça — disse-lhe com a voz trêmula pelo violento esforço que fazia para me conter. —

Vá você embora agora com as suas pernas e não me provoque mais. Vá embora para o seu

bem! Vá embora!

Romilda, chorando e gritando, levantou-se da poltrona e veio atirar-se nos braços da mãe:

— Não! A senhora comigo, mamãe! Não me deixe aqui sozinha!

Mas aquela digna mãe a repeliu, inflamada pela cólera:

---Você não quis? Pois agora fique com ele, este ladrão! Eu vou só!

Mas não foi, evidentemente.

Dois dias depois, tendo visitado Margarida, surgiu debaixo de grande furor tia Escolástica

para levar consigo minha mãe.

A cena merece ser reproduzida.

Naquela manhã a viúva Pescatore estava fazendo pão com as mangas arregaçadas, a saia

levantada e enrolada na cintura para não se sujar. Vendo chegar minha tia ela se voltou,

continuando a amassar e ignorando o que se passava. Minha tia não fez caso. Ela entrara sem

cumprimentar ninguém, dirigindo-se diretamente a minha mãe como se esta fosse a única

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pessoa na casa.

— Imediatamente, ande, vá aprontar-se! Arrume suas coisas depressa, vamos!

Falava sem continuidade e com ímpeto. O nariz adunco e altivo fremia no rosto amarelo,

contraindo-se enquanto os olhos faiscavam.

A viúva Pescatore calada.

Tendo terminado de preparar a massa e arremessando-a do alto na masseira,

propositalmente. Respondia assim ao que dizia minha tia. Esta então aumentou a dose. A

outra, batendo cada vez mais fortemente: — ―Claro! — Naturalmente! — Como não? —

Mas é Tópico!‖. Não bastando, foi pegar o rolo e o colocou ali perto como dizendo: tenho

isto também.

Antes não o tivesse feito! Tia Escolástica deu um pulo, arrancou furiosamente o pequeno

chale que trazia nos ombros e o atirou para minha mãe:

— Vamos! Deixe tudo. Vamos embora imediatamente!

E foi plantar-se em frente da viúva Pescatore, que deu um passo atrás, ameaçadora, como se

quisesse brandir o rolo. Tia Escolástica, pegando com as duas mãos o montão de massa o

emplastrou na cabeça da outra e, de punhos cerrados, empurrava tudo pelo nariz, pelos olhos,

pela boca, por onde pegasse. Depois segurou minha mãe pelo braço arrastando-a para fora.

O que se seguiu foi para mim somente. A viúva Pescatore, rugindo de raiva, arrancou a

massa da cara e dos cabelos empastados, vindo atirar aquilo em cima de mim enquanto eu ria

em convulsão. Pegou-me pela barba e arranhou-me todo e, como louca, jogou-se no chão

tirando as roupas. Enquanto isso minha mulher (sit venia verbo) vomitava do outro lado,

entre agudíssimos gritos, e eu pedia à velha que rolava pelo chão:

— As pernas! Por favor, não me mostre as pernas!

A partir daquele momento tomei gosto em rir de todas as minhas desgraças e tormentos.

Vi-me ator da tragédia mais cômica do mundo: minha mãe, fugindo, daquela forma com uma

doida; minha mulher, do outro lado, que... bem, deixemos para lá; Mariana Pescatore ali no

chão; e eu, que não tinha mais pão para o dia seguinte, com a barba toda emplastrada, o rosto

arranhado e encharcado, não sabia se de sangue ou de lágrimas de tanto rir. Fui ao espelho

para me certificar: eram lágrimas, mas havia também sinais das garras. Ah, naquele

momento como fiquei satisfeito com o meu olho! De tão desesperado se havia posto a olhar

mais que nunca para outro lugar por sua própria conta. E saí de casa, disposto a não voltar

antes de encontrar algo com que pudesse me manter, em companhia de minha mulher.

Cheio de raiva pela minha irresponsabilidade de tantos anos, imaginava que toda aquela

desgraça não inspiraria a ninguém compaixão nem consideração. Merecia o que sofria. Uma

única pessoa poderia ter piedade: aquele que se havia apoderado de todos os nossos haveres.

Mas imaginem se Malagna se sentiria na obrigação de vir em meu socorro depois do que se

passara entre nós.

O socorro me veio de quem eu menos esperava.

Tendo passado o dia inteiro fora de casa, ao entardecer dei com Pomino que, fingindo não

me ver, queria seguir adiante.

— Pomino!

Ele se voltou com rosto contrafeito e parou com os olhos baixos:

--- Que é que você quer?

— Pomino! — repeti mais alto, sacudindo-o pelo ombro e rindo da sua carranca. — Você

está zangado mesmo?

Oh, ingratidão humana! E ainda por cima Pomino ressabiado comigo por causa da traição

que eu lhe havia feito. Tampouco foi possível convencê-lo de que a traição tinha sido sua e

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ele deveria não só me agradecer mas até beijar o chão onde eu pisasse.

Eu ainda estava embriagado por aquela cruel alegria que se apoderara de mim ao ver-me no

espelho.

— Está vendo estas marcas de unhas? — disse-lhe. — Foi ela quem as fez!

— Ro... quero dizer, sua mulher?

— A mãe dela!

Contei o como e o porquê. Sorriu quase imperceptivelmente. Talvez pensasse que aquilo não

teria acontecido com ele pois se encontrava numa situação bem diversa da minha e possuía

outro temperamento.

Veio-me a tentação de lhe perguntar, já que estava tão magoado, por que então não se casara

com Romilda fugindo com ela como havia aconselhado, a fim de evitar que por sua ridícula

timidez e indecisão me tivesse acontecido a desgraça de me apaixonar por ela. Na

superexcitação em que me encontrava teria muitas outras coisas a lhe dizer. Mas me contive

e lhe perguntei, estendendo-lhe a mão, com quem estava andando naqueles dias.

— Com pessoa alguma! — suspirou. - E me entedio e me aborreço mortalmente!

Pela irritação com que proferiu tais palavras, pareceu-me entender a verdadeira razão da

grande mágoa de Pomino. Era isto: talvez não lamentasse a perda de Romilda tanto quanto a

companhia que lhe viera a faltar: Berto já tinha ido embora; comigo não podia mais contar

pois havia Romilda no meio; logo, o que restava ao pobre Pomino?

— Case-se, meu caro! — disse-lhe eu. — Você vai ver como é bom!

Mas ele abanou a cabeça sutilmente, e com os olhos fechados ergueu uma das mãos:

— Nunca! Nunca mais!

— Bravo, Pomino! Mantenha-se firme! Desejando companhia estou às suas ordens, a noite

inteira se você quiser.

Revelei a ele o propósito que fizera ao sair de casa, expondo-lhe também minha

desesperadora situação. Pomino se comoveu como um amigo de verdade, e me ofereceu o

pouco de dinheiro que levava consigo. Agradeci de todo o coração, explicando que o auxílio

não me adiantaria porque no dia seguinte estaria na mesma. Precisava era de um emprego.

— Espere aí! — exclamou Pomino. — Você sabe que meu pai agora está na Administração

Municipal?

— Não. Mas imagino.

— Assessor Municipal da Instrução Pública.

— Isto eu não imaginaria.

— Ontem à noite, no jantar... Espere! Você conhece Romitelli?

— Não.

— Como não! Aquele sujeito da Biblioteca Boccamazza. É surdo, quase cego, abobalhado e

não se agüenta mais nas pernas. Ontem à noite no jantar meu pai dizia que a biblioteca está

reduzida a um estado miserável e é preciso tomar uma providência com a máxima urgência.

Aí está o lugar para você!

--- Bibliotecário? — exclamei. — Mas eu...

— Por que não? Romitelli não era? ...

A razão me convenceu.

Pomino me aconselhou a mandar tia Escolástica falar com seu pai. Seria melhor.

No dia seguinte fui visitar minha mãe e falei sobre o assunto com ela, pois tia Escolástica se

recusou a aparecer. E assim, quatro dias depois me tornei bibliotecário. Sessenta liras por

mês. Mais rico do que a viúva Pescatore! Podia cantar vitória.

Nos primeiros meses foi quase um divertimento com aquele Romitelli, ao qual não houve

meio de fazer entender que estava aposentado e não precisava mais comparecer à biblioteca.

23

Todas as manhãs, à mesma hora, nem um minuto antes nem um minuto depois, eu o via

despontar em cima dos quatro pés (incluídas as duas bengalas, uma em cada mão, que lhe

serviam melhor que os pés). Assim que chegava retirava do bolso do colete um velho relógio

de cobre e o pendurava na parede com toda a sua formidável corrente: sentava-se, as duas

bengalas entre as pernas, tirava do bolso o barrete, a caixa de rapé e um enorme lenço de

quadrados vermelhos e pretos; aspirava uma imensa pitada de rapé, limpava o nariz, abria a

gaveta da mesa e de lá apanhava um alfarrábio pertencente à biblioteca: Dicionário

Histórico dos Musicistas, Artistas e Amadores Mortos e Vivos, impresso no ano de 1758, em

Veneza.

— Senhor Romitelli! — gritava-lhe eu, vendo-o executar todas essas operações

tranquilissimamente, sem dar o mínimo sinal de perceber a minha presença.

Mas com quem eu falava? Não escutava nem tiro de canhão. Balançava-o pelo braço e ele

então se voltava, apertava os olhos, contraía todo o rosto para me olhar e depois mostrava os

dentes amarelos, talvez pretendendo assim sorrir. Aí abaixava a cabeça em cima do livro

como se quisesse improvisar um travesseiro. Mas ele só lia daquele modo, a dois centímetros

de distância e com um olho apenas. Lia alto:

— Birnbaum, João Abraão ... Birnbaum, João Abraão mandou imprimir... Birnbaum João

Abraão mandou imprimir em Lípsia, no ano de 1738... em Lípsia, no ano de 1738... um

opúsculo in 89... in 8°: Observações imparciais sobre uma passagem delicada do Musicista

crítico. Mitzler... Mitzler inseriu êste escrito no primeiro volume da sua Biblioteca musical:

Em 1739...

E continuava assim, repetindo duas ou três vezes nomes e datas para gravá-los na memória.

Porque lia tão alto não sei dizer. Repito, não escutava nem tiro de canhão.

Eu ficava a olhar estupefato. O que podia importar àquele homem, a dois passos da sepultura

(de fato morreu quatro meses após a minha nomeação) que Birnbaum João Abraão tivesse

mandado imprimir em Lípsia, no ano de 1738, um opúsculo in 8°...Se ao menos não lhe

custasse tanto sacrifício a leitura! Era preciso reconhecer que não podia dispensar aquelas

datas e noticias sobre os musicistas (ele, tão surdo!), artistas e amadores, mortos e vivos até

1758. Já que a biblioteca é um lugar para se ler talvez ele acreditasse que o bibliotecário

fosse obrigado a ler, pois nunca vira aparecer por lá vivalma. E teria pegado aquele livro

inteiramente ao acaso? Era tão abobalhado que esta suposição é provável, mais provável que

a primeira.

Na grande mesa do centro havia uma camada de poeira da altura de um dedo. E eu, para

reparar de algum modo a cruel ingratidão dos meus concidadãos, tracei em grandes letras

esta inscrição:

A

MONSENHOR BOCCAMAZZA

MUNIFICENTÍSSIMO DOADOR

EM PERENE TESTEMUNHO DE GRATIDÃO

SEUS CONCIDADÃOS

COLOCARAM ESTA LÁPIDE.

De vez em quando das prateleiras se precipitavam dois ou três livros acompanhados de

certos ratos, tão grandes quanto coelhos.

Foram para mim como a maçã de Newton.

— Achei! — exclamei contentíssimo. — Eis a minha ocupação enquanto Romitelli lê o seu

Birnbaum.

24

E escrevi um elaboradíssimo requerimento ao insigne Cavaleiro Jerônimo Pomino, Assessor

Municipal da Instrução Pública, a fim de que a Biblioteca Boccamazza ou de Santa Maria

Liberale fosse com a maior urgência provida de pelo menos dois gatos, cuja manutenção

quase não acarretaria despesas à Administração Municipal considerando que os supraditos

animais teriam com que se nutrir em abundância graças ao provento da caça. Acrescentava

que não seria mal equipar a biblioteca com meia dúzia de ratoeiras supridas da necessária

isca, para não dizer queijo, palavra vulgar que como subalterno não julguei conveniente

submeter aos olhos de um Assessor Municipal da Instrução Pública.

Remeteram-me dois gatinhos tão míseros que logo se apavoraram diante dos respeitáveis

ratos e que, para não morrerem de fome, se aboletavam nas ratoeiras a comer o queijo. Todas

as manhãs eu os encontrava aprisionados, magros, abatidos, sem força nem vontade de miar.

Reclamei e vieram então dois belos gatões, lépidos e graves que sem perda de tempo se

puseram a cumprir a missão. As ratoeiras também executavam sua tarefa, fornecendo-me os

ratos vivos. Uma tarde, despeitado pela imperturbável indiferença de Romitelli diante dos

meus esforços e vitórias, como se ele tivesse apenas a obrigação de ler e os ratos de comer os

livros da biblioteca, resolvi antes de sair introduzir dois bichos vivinhos na gaveta de sua

mesa. Esperava atrapalhar ao menos na manhã seguinte a insuportabilíssima leitura habitual.

Mas qual! Abrindo a gaveta e percebendo os bichos que se safavam diante do nariz,

voltou-se para mim, que não me agüentava e caía na gargalhada, me perguntando:

— O que houve?

— Dois ratos, senhor Romitelli!

— Ah! Sim, ratos... — disse tranqüilamente.

Eram da casa e ele estava habituado. E recomeçou, como se nada tivesse acontecido, a leitura

do seu alfarrábio.

Num Tratado das Árvores de João Vitório Soderini, lê-se que os frutos amadurecem "parte

em conseqüência do calor e parte em conseqüência do frio; o calor obtém a força da cocção

que é a simples causa da maturação". Mas João Vitório Soderini ignorava que, além do calor,

os vendedores de frutas experimentaram outra causa da maturação. Muitas vezes as frutas

são colhidas prematuramente sem atingirem a necessária condição que as torna saudáveis e

saborosas, porque os vendedores a fim de pedirem um preço mais elevado as levam ao

mercado antes da época natural e as fazem amadurecer machucando-as e amassando-as.

Assim se operou a maturação da minha alma — prematuramente.

Em pouco tempo tornei-me outro, diferente do que era antes. Morto Romitelli encontrei-me

sozinho e sufocado pelo tédio nesta igrejinha afastada entre todos estes livros,

tremendamente só, mas também sem vontade de companhia. Bem que poderia demorar na

biblioteca somente algumas horas por dia. Mas tinha vergonha de aparecer pelas rua assim

reduzido à miséria. De casa fugia como se fosse uma prisão.

Melhor aqui, repetia comigo mesmo. Então o que fazer? A caça aos ratos, mas podia bastar?

Quando aconteceu pela primeira vez de me encontrar com um livro entre as mãos, apanhado

de uma das prateleiras ao acaso, experimentei um calafrio de horror. Será que eu acabaria

igual a Romitelli reduzido a sentir-me na obrigação de ler, eu, bibliotecário, por todos os que

não vinham à biblioteca? E arremessei o livro no chão. Mas o apanhei novamente e comecei

a ler, também com um só olho porque o outro se recusava a semelhante prática.

Li de tudo um pouco, desordenadamente, mas sobretudo livros de filosofia. Como pesam! E,

no entanto, quem os saboreia e os incorpora vive nas nuvens. Perturbaram ainda mais o meu

cérebro já não muito certo. Quando a cabeça me ardia, fechava a biblioteca e me dirigia por

um caminhozinho íngreme até uma solitária nesga de praia.

A vista do mar me fazia cair em atônito medo que se transformava aos poucos em intolerável

25

opressão. Sentava-me na areia e afastava os olhos do mar, abaixando a cabeça. Mas ouvia

por toda a praia o prolongado fragor das ondas e lentamente deixava escorregar entre os

dedos a areia densa e pesada, murmurando:

— Sempre assim, até a morte, sem alteração, nunca...

Na imobilidade da condição daquela minha existência me sugeria pensamentos repentinos e

estranhos, quais lampejos de loucura. Punha-me de pé em um salto a fim de sacudir tudo

aquilo de cima de mim e começava a passear ao longo da praia. Então via o mar atirando sem

cessar as suas cansadas ondas sonolentas, via as areias abandonadas ali e gritava com raiva

agitando os punhos:

— Mas por quê? Por quê?

E molhava os pés.

Talvez o mar estendesse um pouco mais algumas ondas só para admoestar-me:

—―Veja, meu caro, o que se ganha em procurar certos porquês: você molha os pés. Volte à

sua biblioteca! A água salgada estraga os sapatos e dinheiro para jogar fora você não tem.

Volte à biblioteca e deixe os livros de filosofia. Por que não vai ler que Birnbaum João

Abraão mandou imprimir em Lípsia no ano de 1738 um opúsculo in-8°? Com certeza há de

tirar maior proveito."

Um dia vieram anunciar-me que minha mulher já estava com as dores do parto.

Imediatamente fui para casa correndo como uma flecha. Fugia de mim mesmo para não ficar

nem um minuto mais face a face comigo, a pensar que meu filho já ia nascer. Um filho,

naquela situação!

Assim que cheguei à porta de casa minha sogra me agarrou pelo ombro fazendo-me

rodopiar:

— Um médico! Depressa! Romilda está morrendo!

Uma notícia dessas à queima-roupa! Não sentia mais as pernas e não sabia de que lado me

virar. Enquanto corria dizia: "Um médico! Um médico!" E as pessoas paravam no caminho

esperando que eu parasse e explicasse o que havia acontecido. Me sentia puxar pelas

mangas, via diante de mim rostos pálidos, consternados. Afastava e evitava todos:

—Um médico! Um médico!

O médico entretanto já estava lá na minha casa. Ofegante e em mísero estado, após ter

rodado todas as farmácias, voltei desesperado e furibundo, a primeira menina já havia

nascido. Faziam-se todos os esforços para que a outra viesse à luz.

— Duas!

Parece-me vê-las ainda no berço, uma ao lado da outra. Arranhavam-se entre si com aquelas

mãozinhas tão finas e contraídas por selvagem instinto que incutia horror e piedade. Míseras,

míseras, mais do que os dois gatinhos que todas as manhãs eu encontrava dentro das

ratoeiras. Elas também não tinham forças para miar, como eles. E, vejam só, arranhavam-se!

Separei-as e ao primeiro contato com aquelas carninhas tenras e frias tive um arrepio novo,

um tremor de ternura inefável: eram minhas!

Uma delas morreu alguns dias depois. A outra, ao contrário, quis dar-me tempo para me

afeiçoar a ela, com todo o ardor de um pai que não possuindo outra coisa faz do pequenino

ser que lhe deve a vida o objetivo único de seus dias. Teve a crueldade de morrer quando já

contava com quase um ano e se tornara tão engraçadinha com seus cachinhos de ouro que eu

enrolava nos dedos e beijava sem me saciar nunca.

Chamava-me "papai" — e eu lhe respondia imediatamente "minha filha". E ela de novo,

"papai". Sem razão, como se chamam os pássaros entre si.

Morreu ao mesmo tempo minha querida mãe, no mesmo dia, quase à mesma hora. Não sabia

como dividir meus cuidados e minha dor. Deixava minha pequenina repousando e corria

26

para perto de minha mãe que não pensava em si nem na sua morte e me perguntava pela

netinha, desesperada por não poder revê-la mais nem beijá-la pela última vez. E me durou

nove dias essa tortura! Pois bem! Depois de nove dias e nove noites de assídua vigília, sem

fechar os olhos nem por um minuto... Muitos talvez se sentissem envergonhados de

confessá-lo, mas é humano, tão humano! No momento não sofri. Permaneci um instante num

sombrio e terrível estupor e adormeci. Tive que dormir primeiro. Quando despertei

assaltou-me raivosa e feroz a dor pela minha filhinha e pela minha pobre mãe que não viviam

mais... E por pouco não enlouqueci. Durante uma noite inteira vaguei pelas ruas e pelos

campos, não sei com que idéias na cabeça. Sei que por fim dei comigo na Stía, perto das

águas do moinho. Um tal Filipe, velho moleiro ali de guarda, levou-me consigo e me fez

sentar um pouco além debaixo das árvores me falando longamente sobre minha mãe, meu

pai, lembrando os bons tempos longínquos. Disse-me que eu não devia chorar nem me

desesperar daquela forma porque fora para cuidar da minha pequenina filha que a boa

avózinha partira e que, no outro mundo e com a criança no colo, haveria de lhe falar sempre

de mim e não a deixaria sozinha nunca.

Três dias depois Roberto, como se quisesse pagar todas aquelas lágrimas, me enviou

quinhentas liras. Dizia que queria que eu providenciasse uma sepultura digna de nossa mãe.

Mas tia Escolástica já havia providenciado.

Aquelas quinhentas liras ficaram por algum tempo entre as páginas de um alfarrábio da

biblioteca.

Depois serviram para mim. E foram — como direi — a causa da minha primeira morte.

VI

TAC TAC TAC... Somente lá dentro, aquela bolinha de marfim correndo graciosamente na roleta em sentido

inverso ao disco parecia jogar:

— Tac tac tac. . .

Ela só. Certamente não jogavam aqueles que a olhavam, suspensos no suplício causado pelo

seu capricho. Em cima dos quadrados amarelos da mesa de jogo quantas mãos haviam

levado, como em oferenda à deusa cruel, ouro, ouro e mais ouro. Quantas mãos tremiam na

angustiosa espera, apalpando inconscientemente o ouro da próxima aposta enquanto os

olhos suplicantes pareciam dizer à bolinha:

— Será onde você quiser, onde você quiser!

Tinha ido parar ali, em Monte Carlo, por acaso.

Foi depois de uma das habituais cenas com minha sogra e minha mulher. Oprimido e abatido

pela dupla e recente desgraça não sabia mais me resignar ao nojo de viver daquela forma.

Miserável, sem probabilidade nem esperança de melhorar minha situação e sem o doce

conforto de minha filha, sem a mínima recompensa por tanta amargura, resolvi fugir daquele

torturante lugar. E saí a pé, com as quinhentas liras de Berto no bolso.

No caminho pensara em seguir para Marselha, partindo da estação ferroviária da aldeia

vizinha para onde eu me dirigira. Chegando a Marselha talvez embarcasse com uma

27

passagem de terceira classe para a América, e assim à aventura.

Poderia acontecer algo pior do que o sofrimento na minha casa? Iria ao encontro de outras

cadeias, mas por certo pesariam menos do que aquelas que ainda me prendiam. E depois,

veria outros países, outra gente, outra vida e, pelo menos, me livrara da opressão que me

sufocava e esmagava.

Ao chegar a Nice, desanimado, senti que me faltava coragem. Já havia algum tempo que os

meus ímpetos juvenis estavam abatidos. O tédio me corroera e a dor me alquebrara. Grande

parte do desânimo provinha da escassez de dinheiro para me arriscar a tal aventura ao

encontro de uma vida inteiramente desconhecida e sem garantias.

Em Nice, ainda não resolvido a voltar para casa e rodando pela cidade, aconteceu-me parar

em frente a uma grande loja na Avenue de la Gare, onde havia uma indicação em grandes

letras douradas:

Dépôt de Roulettes de Précision

Várias estavam expostas, de todos os tamanhos, com outros apetrechos do jogo e vários

opúsculos, trazendo na capa o desenho da roleta.

Sabe-se que os infelizes facilmente se tornam supersticiosos, embora depois zombem da

credulidade dos outros e das próprias esperanças pelas superstições nunca realizadas.

Recordo que ao ler o título de um daqueles opúsculos ―Méthode pour gagner à la roulette‖

me afastei da loja com desdenhoso sorriso de comiseração. Mas tendo dado alguns passos

voltei atrás (por curiosidade, ora, não por outro motivo!) e com aquele mesmo desdenhoso

sorriso de comiseração nos lábios entrei na loja e comprei o opúsculo.

Não sabia absolutamente no que consistia o jogo nem como funcionava. Pus-me a ler, mas

compreendi mal.

—Talvez seja — pensei — pelo fato de quase não conhecer o Francês.

Ninguém havia me ensinado e o pouquinho que sabia aprendera folheando os livros da

biblioteca. Por não ter segurança quanto à pronúncia temia fazer os outros rirem se me

ouvissem falar.

No começo minha indecisão em entrar provinha justamente desse temor. Refletindo, conclui

que se chegara inclinado a me aventurar até a América, desprovido de tudo e sem conhecer o

inglês nem o espanhol, por que então com o francês de que dispunha e a orientação do

opúsculo não me arriscaria a ir a Monte Carlo, ali a dois passos?

―Nem minha sogra nem minha mulher", dizia comigo no trem, "sabem da existência deste

dinheiro que me resta. Irei atirá-lo ali para acabar com todas as tentações. Espero conservar o

suficiente para pagar o meu retorno a casa. Senão...‖

Ouvira dizer que não faltavam sólidas árvores no jardim em redor da casa de jogo. Poderia

me enforcar numa delas com o cinto fazendo até uma bonita figura. Diriam:

— Quem sabe quanto terá perdido este pobre homem!

Imaginava encontrar algo mais bonito, digo francamente. A entrada não é feia. Se vê que

tiveram a intenção de erguer um templo à Fortuna com aquelas oito colunas de mármore.

Uma porta principal e duas laterais. No alto destas estava escrito Tirez e meus

conhecimentos chegavam até ali. Chegaram até o Poussez da porta principal, que evidente-

mente queria dizer o contrário. Empurrei e entrei.

Péssimo gosto! E irrita. Poderiam ao menos oferecer aos que vão lá deixar tanto dinheiro a

satisfação de se verem esfolados num local menos suntuoso e mais belo. Todas as grandes

cidades atualmente se orgulham de ter um belo matadouro. Os pobres animais, entretanto

desprovidos de educação, não sabem apreciar o cenário da carnificina. É verdade que a

28

maior parte das pessoas que vão jogar não estão interessadas na decoração daquelas cinco

salas, e os que se sentam nos divãs em redor muitas vezes não estão em condições de

perceber a duvidosa elegância do tecido do estofado.

Ali se sentam sempre certos desgraçados cujo cérebro foi singularmente desmantelado pela

paixão do jogo. Ficam estudando a lei das probabilidades meditando seriamente nos golpes a

tentar, toda uma arquitetura de jogo, consultando apontamentos referentes à instabilidade

dos números. Querem deduzir a lógica do acaso, o mesmo que dizer extrair sangue das

pedras. E estão certíssimos de conseguir hoje ou amanhã.

Mas não se deve achar coisa alguma surpreendente.

— Ah, o 12! O 12! — dizia-me um senhor de Lugano, homenzarrão capaz de sugerir as mais

consoladoras reflexões sobre as resistentes energias da raça humana. — O 12 é o rei dos

números. É o meu número! Nunca me trai! É verdade que ele muitas vezes se diverte em me

fazer raiva, mas depois me compensa pela minha fidelidade.

Era apaixonado pelo número 12 aquele homenzarrão, e não sabia falar de outra coisa.

Contou-me que no dia anterior o seu número não quisera sair nem uma única vez. Mas ele

não se dera por vencido e sempre apostava no 12. Lutara obstinadamente até o fim, quando

os croupiers anunciam:

-- Messieurs, aux trois derniers!

Pois bem, na primeira daquelas três últimas jogadas, nada. Nada na segunda. Na terceira e

última, zás: o 12.

— Ele me falou! — concluiu, com os olhos brilhantes de alegria. — ele me falou!

É verdade que tendo perdido o dia inteiro não lhe sobrara senão poucos escudos, de sorte que

fora impossível refazer-se. Mas o que importa? O número 12 lhe havia falado!

Ouvindo tais palavras vieram-me à mente quatro versos do pobre Pinzone cujo caderno de

calembur e das rimas estrambóticas de sua autoria, reencontrado durante a mudança de casa,

acha-se agora na biblioteca. E quis recitá-los a meu companheiro:

Cansado estava de buscar em vão

A Fortuna cruel e avarenta.

Mas um dia a encontrei. Desilusão:

A presunçosa deusa era sarnenta!

Depois de me ouvir, segurou a cabeça com ambas as mãos contraindo dolorosamente todo o

rosto. Olhei-o, surpreso, e consternado.

— Que tem?

— Nada. Estou rindo — respondeu.

Ria-se daquela forma! Doía-lhe tanto a cabeça que não podia rir.

E agora vão apaixonar-se pelo número 12!

Antes de tentar a sorte, embora sem ilusões, quis observar por algum tempo a fim de

compreender o jogo.

Não o achei absolutamente complicado, segundo o opúsculo me levara a crer.

No meio da mesa, em cima do pano verde numerado, estava encaixada a roleta. Em volta os

jogadores, homens e mulheres, velhos e jovens, de todos os países e todas as condições, em

parte sentados, em parte de pé, apressavam-se nervosamente a dispor montes e montinhos de

moedas e notas em cima dos números amarelos dos quadrados; aos que não conseguiam

chegar suficientemente perto ou que preferiam manter-se afastados, diziam ao croupier os

números e as cores eu que pretendiam jogar. O croupier imediatamente, com maravilhosa

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destreza, dispunha as apostas segundo a indicação. Fazia-se silêncio, um silêncio estranho e

ansioso resultante de violências refreadas, quebrado de quando em vez pela monótona e

sonolenta voz dos croupiers:

— Messicurs, faites vos jeux!

Enquanto de outras mesas vinham outras vozes igualmente monótonas:

— Le jeu est fait! Ricr, necessidades va plus!

Por fim o croupier lançava a bolinha na roleta: — Tac tac tac. . .

E todos os olhos se voltavam para ela com expressões diversas: de ânsia, de desafio, de

angústia, de terror. Atrás dos que haviam tido a sorte de encontrar uma cadeira, os que

permaneciam de pé se empurravam para entrever mais uma vez suas apostas.

A bola atingia finalmente o seu destino e o croupier repetia com a voz habitual a fórmula,

anunciando o número que saíra e a cor.

Arrisquei a primeira aposta de alguns escudos na mesa da esquerda no vinte e cinco,

inteiramente ao acaso. E fiquei eu também a olhar a pérfida bolinha, mas sorrindo e com uma

espécie de cócega interna e curiosa no ventre.

A bola parou e:

— Vingt-cinq! --anuncia o croupíer.. — Rouge, impair et passe!

Ganhara! Estendia a mão em cima do meu montezinho multiplicado, quando um senhor

altíssimo de poderosos ombros muito levantados sustentando uma pequena cabeça, os

óculos de ouro no nariz achatado, a fronte fugidia, os cabelos longos e lisos na nuca, a barba

e o bigode alourados e meio grisalhos como os cabelos me afastou e, sem a menor cerimônia,

tomou para si o meu dinheiro.

No meu pobre e timidíssimo francês quis chamar-lhe a atenção do seu erro, involuntário sem

dúvida!

Era alemão e falava o francês pior do que eu, porém com coragem de leão. Caiu em cima de

mim afirmando que o erro era meu e que o dinheiro lhe pertencia.

Olhei em volta de mim estupefato. Ninguém abria a boca, nem mesmo o meu vizinho que me

vira colocar aqueles poucos escudos no vinte e cinco. Olhei os croupiers. Imóveis,

impassíveis, como estátuas. ―Ah, é assim?‖ disse comigo mesmo e calmamente deitei a mão

nos outros escudos que havia colocado na mesa diante de mim e dei o fora.

— Eis um método, pour gagner à la roulette — pensei — que não consta no meu opúsculo. E

quem sabe se no fundo não é o único!"

Mas a sorte, não sei por quais secretos fins quis dar-me um solene e memorável desmentido.

Aproximando-me de outra mesa onde se jogava forte, fiquei primeiro a sondar as pessoas ali

em redor. Eram na maior parte senhores de casaca; havia algumas senhoras e mais de uma

pareceu-me equívoca. A vista de certo homenzinho muito louro de grandes olhos azuis e

injetados, contornados por longos cílios quase brancos, não me deu grande confiança no

princípio. Ele também usava casaca, mas se notava que não estava habituado. Quis vê-lo na

prova: apostou forte, perdeu. Não se desconcertou, jogou forte novamente. Bem, aquele não

viria atrás dos meus cobrezinhos. Embora tivesse sofrido aquela decepção envergonhei-me

da suspeita. Tanta gente ali atirando punhados de ouro e prata como se fosse areia, sem

qualquer receio, por que então eu iria temer por minha insignificância?

Notei um rapaz palidíssimo com um grosso monóculo no olho esquerdo e que afetava um ar

de sonolenta indiferença. Sentava-se negligentemente. Tirava do bolso das calças suas

moedas, colocava-as ao acaso em um número qualquer e sem olhar, puxando os fios do

bigode nascente, aguardava que a bola caísse. Perguntava então ao vizinho se havia perdido.

Eu o vi perder sempre.

Aquele seu vizinho era um senhor magro de uns quarenta anos de idade, elegantíssimo; mas

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tinha o pescoço muito longo e fino, quase sem queixo; possuía os olhinhos negros e vivos e

ostentava uma vasta cabeleira negra. Era evidente que se divertia respondendo

afirmativamente ao rapaz. Ele algumas vezes ganhava.

Coloquei-me ao lado de um gordo senhor de pele tão morena que as olheiras e as pálpebras

pareciam cobertas de fuligem. Tinha os cabelos grisalhos e cor de ferrugem e a

barba quase toda negra e anelada. Exibia força e saúde e no entanto, como se a corrida da

bola de marfim lhe provocasse asma, punha-se a arquejar fortemente. Nas raras vezes em

que percebia as pessoas que se viravam para vê-lo, cessava olhando com um sorriso nervoso,

mas recomeçava a arquejar até ver terminada a corrida da bola.

Pouco a pouco a febre do jogo me contagiou também. No começo não tive sorte. Depois fui

tomado por uma bizarra embriaguez e agia quase automaticamente por repentinas e

inconscientes inspirações. Jogava sempre depois dos outros, no último instante e

imediatamente readquiria a consciência e a certeza de que iria ganhar. E ganhava. Logo no

início não jogava muito, mas aos poucos ia jogando mais, cada vez mais, sem contar. Aquela

espécie de lúcida embriaguez crescia em mim e não se obscurecia por uma ou outra perda,

pois era como se tudo estivesse previsto; algumas vezes chegava até a dizer comigo mesmo:

—Bem, vou perder este lance, devo perder.— Sentia-me eletrizado. Tive então a inspiração

de arriscar tudo. E ganhei. Os ouvidos me zuniam, estava todo suado e frio. Pareceu-me que

um dos croupiers, surpreendido pela minha sorte persistente, me observava. Na agitação em

que me encontrava senti no olhar daquele homem um desafio e arrisquei tudo de novo, o que

possuía de meu e o que havia ganho, sem pensar duas vezes; minha mão encaminhou-se para

o número de antes, o 35; estive para retirá-la; mas ali, ali de novo, como se alguém me

ordenasse!

Fechei os olhos. Devia estar palidíssimo. Fez-se um grande silêncio e tive a impressão de

que era para mim somente, como se todos estivessem suspensos na minha terrível ansiedade.

A bola girou uma eternidade, com uma lentidão que exasperava minha insuportável tortura.

Por fim caiu.

Aguardava que o croupier, com a voz habitual (pareceu-me excessivamente longe),

anunciasse:

— Trente-cinq, noir, impair et passei

Peguei o dinheiro e me afastei como um ébrio. Caí sentado num divã, prostrado; apoiei a

cabeça no encosto, por uma repentina e irresistível necessidade de dormir e de restaurar-me

com um pouco de sono. Já estava quase cedendo quando senti sobre mim um peso material

que logo me fez sobressaltar. Quanto havia ganhado? Abri os olhos, mas tive que os fechar

em seguida: a cabeça me rodava. O calor lá dentro sufocava. Como? Já era noite? Havia

entrevisto as luzes acesas. E por quanto tempo jogara? Ergui-me lentamente. Saí.

Lá fora ainda estava claro. A frescura do ar me reanimou. Muita gente passeava por ali,

alguns pensativos ou solitários; outros, em grupos de dois ou três tagarelando e fumando.

Observava todos. Era novo no lugar e gostaria de me mostrar menos encabulado e estudava

os mais desenvoltos e desembaraçados. Quando menos esperava um desses empalidecia, os

olhos paravam, emudecia, e atirando o cigarro entre as risadas dos companheiros fugia:

voltava para a sala de jogo. Por que riam os companheiros? Eu também sorria,

instintivamente, olhando como um cretino.

— A toi, mon chéri! — ouvi falando-me baixo uma voz feminina um tanto rouca.

Voltei-me e vi uma daquelas mulheres que estavam sentadas comigo em volta da mesa,

estender-me sorrindo uma rosa. Segurava outra para si. Comprara-as havia pouco na banca

de flores lá no vestíbulo.

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Será então que eu tinha um ar tão estúpido e idiota?

Assaltou-me violenta raiva. Recusei sem agradecer e procurei afastar-me. Porém ela me

segurou um braço, rindo e fingindo diante dos outros certo ar de intimidade comigo falou-me

baixo e apressadamente. Compreendi que, tendo assistido pouco antes às minhas jogadas

bem sucedidas, me propunha que jogássemos juntos. Segundo as minhas indicações ela

jogaria por mim e por ela.

Estremeci todo e desdenhosamente a larguei ali mesmo.

Voltando à sala de jogo eu a vi conversando com um senhor baixote, moreno, barbudo, de

olhos um pouco vesgos, espanhol pelo aspecto. Dera-lhe a rosa, pouco antes oferecida a

mim. Pelos gesto de ambos percebi que falavam a meu respeito e fiquei de sobreaviso.

Entrei numa outra sala e me aproximei da primeira mesa sem intenção de jogar. E eis que

logo depois o tal senhor, mas sem a mulher, aproxima-se também da mesa simulando não me

ver.

Passei então a olhar resolutamente, dando a entender que eu havia muito bem notado a sua

presença e que ele se enganara a meu respeito.

Ele não tinha jeito de ser nenhum patife. Eu o vi jogar e forte, e perdeu três vezes

consecutivas. Batia incessantemente as pálpebras pelo esforço que custava a vontade de

esconder o turbamento. Na terceira jogada perdida me olhou e sorriu.

Deixei-o ali e voltei à outra sala para junto da mesa onde ganhara.

Os croupiers haviam se revezado. A mulher estava lá no mesmo lugar. Fiquei atrás para não

me fazer ver e verifiquei que ela jogava modestamente e nem todas as vezes. Passei para

frente e ela me viu; estava para jogar e se deteve, esperando evidentemente que eu jogasse

para fazer o meu jogo. Mas esperou em vão. Quando o croupier disse: — Le jeu est faít!

Rícri necessidades va plus! — olhei e ela me ergueu um dedo, ameaçando-me. Levei muito

tempo sem jogar, mas excitando-me de novo à vista dos outros jogadores e sentindo que se

reacendia em mim a inspiração de antes, não liguei mais para ela e recomecei.

Por qual misteriosa sugestão eu seguia tão infalivelmente a variabilidade imprevisível dos

números e das cores? Seria somente prodigiosa adivinhação na inconsciência? E como se

explicam então certas obstinações loucas, absolutamente loucas, cuja recordação ainda me

provoca arrepios quando considero que eu arriscava tudo, até a vida, naquelas jogadas que

eram verdadeiros desafios à sorte? Tive realmente o sentimento de uma força quase

diabólica em mim naqueles momentos, através da qual eu domava e fascinava a fortuna,

ligando ao meu o seu capricho. E essa convicção não estava só em mim, propagara-se entre

os demais e rapidamente quase todos passaram a seguir o meu jogo arriscadíssimo. Não sei

quantas vezes passou o vermelho sobre o qual eu me obstinava em jogar; jogava no zero e

saía o zero. Até mesmo o tal rapaz que tirava as moedas do bolso das calças se entusiasmara;

o gordo senhor moreno arquejava mais que nunca. A agitação crescia de momento em

momento em volta da mesa; eram frêmitos de impaciência, movimentos de breves gestos

nervosos, um furor mal contido, angustiante, terrível. Os próprios croupiers haviam perdido

a rígida impassibilidade.

Em face de uma jogada formidável tive uma espécie de vertigem. Senti pesar sobre mim

tremenda responsabilidade. Desde cedo em jejum eu era todo vibração, trêmulo pela longa e

violenta emoção. Não resisti mais e depois daquela jogada retirei-me vacilante. Senti

agarrar-me por um braço. Superexcitado e com os olhos lançando chamas, aquele espanhol

barbudo e atarracado queria a todo custo reter-me. Eram onze e um quarto e os croupiers

convidavam para as três últimas jogadas. Estourariam os a banca!

Falava-me num italiano adulterado e engraçadíssimo, enquanto eu com as idéias

desordenadas me obstinava em responder na minha língua, explicando-lhe que não

32

agüentava mais e queria sair.

Deixou-me ir mas veio atrás. Subiu comigo no trem para Nice e me convidou a jantar com

ele e a me hospedar no seu hotel.

Não me desagradou muito no começo a admiração quase temerosa que o homenzinho

parecia felicíssimo em me tributar como se eu fora um taumaturgo. Algumas vezes a vaidade

humana se deixa perniciosamente incensar por certos apreços indignos e mesquinhos.

Comparava-me a um general que houvesse vencido árdua e desesperadíssima batalha por

acaso. Começava a cair em mim e achava aquela companhia cada vez mais maçante.

Ao descer em Nice, tendo sido vãos os esforços para me livrar dele, acabamos indo jantar

juntos. Confessou ter mandado a tal mulherzinha do cassino me falar. Há três dias que lhe

fornecia dinheiro para ela tentar a sorte. Com certeza a mulherzinha ganhara muito naquela

noite seguindo o meu jogo, porquanto à saída não se fizera mais ver.

— Que podo facer? A pobresita terá encontrado alquén mejor que ió. Estó viejo. E

agradecio a Deus que me livró desta ...

Disse-me que se encontrava em Nice fazia uma semana e todas as manhãs ia a Monte Carlo,

onde até aquela noite não tivera sorte. Queria saber o que eu fazia para ganhar. Certamente

teria compreendido o jogo ou possuía alguma regra infalível.

Pus-me a rir respondendo-lhe que até a manhã daquele dia jamais tinha visto nem pintada

uma roleta e que não imaginara que iria jogar nem ganhar daquela forma. Ele não se

convenceu, imaginando lidar com um tratante consumado, e habilmente mudou o rumo da

conversa. E com maravilhosa desenvoltura, naquela sua língua metade espanhol metade sabe

Deus o que era, fez-me a proposta que já tentara através à companheira.

— Desculpe, mas não pode ser! — exclamei, procurando atenuar com um sorriso o meu

ressentimento. — Será possível que o senhor realmente acredite que possa haver regras ou

segredos para esse jogo? É preciso sorte! Hoje fui bem sucedido, amanhã talvez não seja.

— Por que, como podo devir, no quis avantaciarse de la fortuna?

Tomando conhecimento de que as minhas posses eram limitadas, ele me propôs uma

sociedade na qual ele entraria com o dinheiro e eu com a sorte.

— Talvez então percamos! — concluí sorrindo — Se o senhor me julga assim tão

afortunado, combinemos que o senhor jogará forte onde eu jogar pouco, assim como

aconteceu hoje. E, se der certo...

Não me deixou terminar e deu uma estranha gargalhada maliciosa e recusou minha proposta.

Se eu jogasse forte com ele, bien, em caso contrário, gracias!

Olhei-o tentando compreender o que queria dizer, pois sem dúvida no seu riso e nas suas

palavras havia uma injuriosa suspeita em relação a mim. Alterei-me e lhe pedi uma

explicação.

Deixou de rir, mas ficou no rosto a marca do riso que desaparecera.

— Digo que no, que no lo faré. Basta.

Bati fortemente com a mão na mesa e com a voz irritada continuei:

— Definitivamente não! É preciso que o senhor diga e explique o que insinuou com suas

palavras e seu riso imbecil! Não compreendo!

À medida que eu falava, notei que ele empalidecia e se encolhia. Evidentemente estava para

me pedir desculpas. Levantei-me indignado, dando de ombros:

— Eu desprezo o senhor e a sua suspeita que eu nem consigo imaginar o que seja!

Paguei a conta e saí.

Conheci um homem venerável e digno de ser admirado por sua singularíssima inteligência.

Creio que ninguém avaliaria os seus dotes vendo-o usar obstinadamente aquelas calças

33

xadrez claras, muito apertadas nas míseras pernas. As roupas que vestimos, o seu corte e a

sua cor podem despertar os mais estranhos pensamentos a nosso respeito.

Mas naquele momento sentia uma raiva ainda maior porque não parecia estar mal vestido.

Não estava de casaca mas usava uma roupa preta de luto decentíssima. Como era possível

que vestido com a mesma roupa o alemão me houvesse tomado por um bobalhão e me

tivesse apanhado o dinheiro, e depois ser tomado por embusteiro?

— Talvez seja por causa da barba – eu pensava enquanto caminhava — ou dos cabelos muito

curtos.

Procurava um hotel qualquer onde me pudesse fechar e ver quanto ganhara. Parecia estar

cheio de dinheiro. Trazia um pouco espalhado por toda parte, nos bolsos do paletó, das

calças e do colete, ora prata, ora notas. Devia ser em muito grande quantidade!

Ouvi bater duas horas. As ruas estavam desertas e passou um carro vazio. Tomei-o.

Sem possuir praticamente coisa alguma conseguira apurar onze mil liras! Fazia longo tempo

que não via semelhante quantia e achei que era muito. Mas pensando na minha vida de

outrora senti grande humilhação diante de mim mesmo. Dois anos de biblioteca e mais o

acompanhamento de todas as outras desgraças iam a tal ponto me amesquinhado o coração?

Comecei a morder-me com o meu novo veneno, olhando o dinheiro ali na cama:

— Vá, homem virtuoso, manso bibliotecário, vá, retorne à casa e aplaque com este tesouro a

viúva Pescatore. Ela pensará que foi roubado e imediatamente nutrirá por você grandíssima

estima. Se isso não parecer digna recompensa para o que você sofreu, vá para a América,

segundo havia deliberado primeiramente... Assim munido seria possível. Onze mil liras!

Que riqueza!

Recolhi o dinheiro, atirei-o na gaveta da cômoda e me deitei. Mas não consegui conciliar o

sono. Que devia fazer afinal? Voltar a Monte Carlo e restituir aquele extraordinário ganho?

Ou me contentar com ele gozando-o modestamente? Mas como? Acaso dispunha de ânimo e

meios para gozar alguma coisa com aquela família que arranjara? Teria vestido menos

pobremente a minha mulher que, além de não procurar mais me agradar, fazia de tudo para

me contrariar e andava despenteada o dia inteiro, sem espartilho, de chinelos e com as roupas

caindo por todos os lados. Talvez julgasse que para um marido de minha marca não valia a

pena se embelezar mais. Aliás, após o grave perigo ocorrido no parto sua saúde não se

restabelecera mais. Quanto ao ânimo se tornara cada dia mais áspera, não só comigo mas

com todos.

Esse rancor e a falta de um afeto vivo e verdadeiro alimentaram nela uma desleixada

preguiça. Nem sequer se afeiçoara à menina, cujo nascimento foi simultâneo ao da outra

morta com poucos dias. Fora para ela uma derrota em face ao belo filho de Olívia, nascido

um mês mais tarde, saudável e sem dificuldades no final de uma gravidez feliz. As privações,

os desgostos e os atritos haviam negramente eriçado os nossos ânimos, extinguindo toda a

possibilidade de afeto e tornando para ambos a convivência odiosa. Com onze mil liras

poderia acaso restaurar a paz em casa e fazer renascer o amor iniquamente destruído pela

viúva Pescatore? Loucuras! E então? Partir para a América? Mas por que iria eu procurar tão

longe a Fortuna, quando tudo indicava que ela me tinha detido em Nice sem que eu tivesse

percebido defronte daquela loja de apetrechos de jogo? Cumpria-me ser digno dela, se é que

de fato ela pretendia conceder-me os seus favores. Vamos! Ou tudo ou nada! Em conclusão,

eu retornaria ao que era antes. E o que representavam onze mil liras?

No dia seguinte voltei a Monte Carlo. Voltei por doze dias a fio. Não tive mais nem meios

nem tempo de me assombrar com os favores mais fabulosos que os extraordinários da sorte.

Estava fora de mim e inteiramente louco. Não sinto assombro agora, sabendo infelizmente o

34

golpe que ela me preparava favorecendo-me daquela maneira e naquela proporção. Em nove

dias cheguei a acumular uma serra verdadeiramente enorme, e jogando como um alucinado.

A partir do nono dia comecei a perder e foi um abismo. Faltou-me a prodigiosa inspiração

que não encontrava mais alimento na minha esgotada energia nervosa. Não pude parar a

tempo. Quando parei e voltei a mim não agi por minhas forças e sim pela violência de um

espetáculo horrendo, não raro naquele lugar.

Eu entrava nas salas de jogo na manhã do décimo-segundo dia, quando aquele senhor de

Lugano, o tal apaixonado pelo número 12 veio ter comigo, perturbado e ofegante, a fim de

me anunciar, mais com gestos do que por palavras, que alguém acabava de se matar lá fora

no jardim. Imediatamente pensei que fosse o espanhol e senti remorso. Tinha certeza de que

ele me ajudaria a ganhar. No primeiro dia após a nossa discussão ele não quisera jogar onde

eu jogava e perdia sempre; nos dias subseqüentes, vendo-me ganhar com certa persistência,

tentara fazer o meu jogo porém fui eu que não quis mais. Como guiado pela mão da Fortuna,

presente e invisível, pusera-me a rodar de mesa em mesa. Fazia dois dias que não o via,

exatamente quando começara a perder e talvez justamente por isso não me perseguisse mais.

Correndo ao lugar indicado, tinha certeza de encontrá-lo estendido no chão morto. Mas em

vez dele encontrei aquele rapazinho pálido que simulava um ar de sonolenta indiferença,

retirando as moedas dos bolsos das calças sem nem sequer olhar.

Parecia menor no meio da aléia com os pés unidos, como se primeiro tivesse se deitado para

não se machucar ao cair. Um braço estava junto do corpo e o outro um pouco suspenso, com

a mão crispada e o indicador ainda na posição de atirar; perto da mão o revólver e mais

adiante o chapéu. Julguei primeiramente que a bala lhe tivesse saído pelo olho esquerdo, de

onde uma grande quantidade de sangue já coagulado havia escorrido pela face. Mas o sangue

esguichara dali mesmo e um pouco das narinas e dos ouvidos, e jorrara também em

abundância do pequeno orifício no lado direito da testa e estava coagulado na areia amarela.

Uma dúzia de vespas zumbia em torno e algumas vinham pousar, vorazes, no olho. Entre

tantos que olhavam ninguém pensara em afastá-las. Tirei do bolso um lenço e o estendi por

cima daquele mísero rosto horrivelmente desfigurado. Ninguém aprovou: desaparecera o

melhor do espetáculo.

Fugi. Voltei a Nice para ir embora naquele mesmo dia.

Levava comigo cerca de oitenta e duas mil liras.

Podia imaginar tudo, menos que na noite daquele mesmo dia fosse acontecer a mim algo

semelhante.

VII

MUDO DE TREM

Refletia:

―Vou resgatar a Stia e me retirar para o campo, onde serei moleiro. A gente vive melhor

perto da terra, e debaixo talvez ainda melhor.

―Cada ofício tem no fundo alguma consolação. Até do coveiro. O moleiro pode consolar-se

com o barulho das moendas e a farinha voando pelo ar, cobrindo-lhe o corpo.

"Tenho certeza de que atualmente não se rasga nem um saco sequer lá no moinho. Mas,

35

assim que o resgatar, viverão atrás de mim anunciando que quebrou isso, que se arrebentou

aquilo, enguiçou não sei mais o quê.

"Igual ao tempo em que minha mãe e Malagna administravam.

"Enquanto eu atender ao moinho, o administrador rural me roubará os produtos do campo.

E se ao invés disto eu me puser a cuidar deste, o moleiro me roubará a moenda. O moleiro

daqui, o administrador de lá... farão a gangorra e eu... no meio, a gozar.

"Talvez o melhor fosse tirar do venerando baú da minha sogra uma das velhas roupas de

Francisco Antônio Pescatore preservadas pela viúva com cânfora e grãos de pimenta quais

santas relíquias, e com ela vestir Mariana Dondi mandando-a bancar o moleiro e ficar em

cima do administrador.

―O ar do campo certamente faria bem a minha mulher. Talvez algumas árvores percam as

folhas ao vê-la e os passarinhos emudeçam. Esperemos que a nascente não seque. Quanto a

mim, continuarei bibliotecário, sempre sozinho, em Santa Maria Liberale."

Assim pensava, enquanto o trem corria. Não podia fechar os olhos sem rever, com terrível

precisão, o cadáver do rapaz lá na aléia, pequeno e estendido sob as grandes árvores imóveis

na fresca manhã. Era preciso que me consolasse com outro pesadelo menos sangrento, ao

menos materialmente: o de minha sogra e minha mulher. E me divertia imaginando a cena da

chegada após aqueles treze dias de desaparecimento misterioso.

Quando eu entrasse (e era como se estivesse vendo), ambas fingiriam a mais desdenhosa

indiferença. Apenas uma olhada que significaria:

— O quê! Você de novo? Não tinha quebrado o pescoço? Elas, caladas; eu, calado.

Mas pouco depois, sem dúvida a velha começaria a cuspir veneno por causa da provável

perda do meu emprego.

Eu havia levado a chave da biblioteca. À notícia do meu desaparecimento teriam arrombado

a porta por ordem da polícia e, não me achando lá dentro morto nem havendo notícias

minhas, as autoridades municipais talvez tivessem esperando três, quatro, cinco dias ou uma

semana o meu regresso. Depois teriam dado a algum outro desocupado o meu lugar.

Então? Que estava fazendo ali sentado? Não fora eu mesmo que me pusera no olho da rua?

Que ficasse por lá. Duas pobres mulheres não tinham a obrigação de manter um vagabundo,

um malfeitor que fugia assim e quem sabe para quais outras proezas, etc., etc.

Eu, calado.

Aos poucos o veneno de Mariana Dondi crescia por causa do meu despeitoso silêncio,

aumentava, explodia. E eu ali, ainda calado!

No fim de algum tempo tiraria do bolso do paletó a carteira e começaria a contar em cima da

mesa as minhas notas de mil: uma, duas, três, quatro...

Arregalamento de olhos, queixos caídos por parte de Mariana Donde e minha mulher.

Depois:

— Onde você as roubou?

—...setenta e sete, setenta e _tenta e nove, oitenta, oitenta e uma, quinhentas, seiscentas,

setecentas e vinte e cinco liras e quarenta centavos no bolso.

Calmamente então eu recolheria as notas, recolocá-las-ia na carteira e me ergueria.

—Vocês não me querem mais em casa, não é? Ótimo, agradeço! Vou-me embora e passem

bem!

Ria-me ao imaginar essas coisas.

Os meus companheiros de viagem me observavam e sorriam também, disfarçadamente.

Para assumir um ar mais sério punha-me a pensar nos credores entre os quais deveria dividir

aquelas notas. Escondê-las não podia. De que me serviriam escondidas?

Nem adiantava pensar em gozar o dinheiro, pois os cães dos meus credores não o iriam

36

permitir. Para serem indenizados com o moinho e os produtos da propriedade, devendo

pagar a administração que devorava tudo insaciavelmente como as duas mós do moinho,

quem sabe quantos anos ainda teriam que esperar? Com uma oferta em dinheiro talvez me

desembaraçasse deles vantajosamente. E fazia os cálculos:

— Tanto para aquela peste do Recchioni: tanto para Filipe Brísigo, esperando que sirvam

para pagar os funerais (não sugaria mais o sangue dos que não tinham dinheiro); tanto para

Cichin Lunaro, o turinense; tanto para a viúva Lippani... Quem mais? Puxa! Isso não acaba!

Della Piana, Bossi e Margottina... Eis o meu lucro!

No fim das contas seria para eles o que eu ganhara em Monte Carlo! Que raiva do prejuízo

dos dois últimos dias, pois eu estaria rico novamente... rico!

Os grandes suspiros que comecei a dar chamaram ainda mais a atenção dos meus

companheiros de viagem, que pouco antes sorriam. Eu não encontrava sossego. A tarde caía.

O ar parecia cinza. O tédio da viagem era insuportável.

Na primeira estação italiana comprei um jornal, com a esperança de que me ajudasse a

dormir. Desdobrei-o e à claridade da luz elétrica pus-me a ler. Tive assim a consolação de

saber que o castelo de Valençay, posto em leilão pela segunda vez, fora adjudicado ao senhor

Conde De Castellane pela soma de dois milhões e trezentos mil francos. As terras em volta

do castelo abrangiam dois mil e oitocentos hectares, representando a mais vasta propriedade

da França.

— Quase como a Stía.

Li que o Imperador da Alemanha recebera em Potsdam a Embaixada Marroquina e que o

Secretário de Estado, Barão de Richtofen assistira à recepção. A missão, apresentada depois

à Imperatriz, ficara para o almoço e quem sabe a quantidade de alimentos devorados!

Também o Tzar e a Tzarina da Rússia haviam recebido em Peterhof uma missão tibetana

especial que apresentara às Suas Majestades os presentes do Grão-Lama.

— Os presentes do Grão-Lama? — perguntei a mim mesmo, fechando os olhos, pensativo.

— Que podem ser?

Papoulas. Foi por isso que adormeci. Mas papoulas de reduzido efeito, pois logo despertei

com o solavanco do trem parando numa outra estação.

Olhei o relógio. Eram oito e um quarto. Mais uma horinha e chegaria.

Ainda com o jornal na mão virei a página a fim de procurar algum outro presente melhor que

os do Grão-Lama. Os olhos foram parar em cima de um

SUICÍDIO

Assim, em grifo.

Pensei imediatamente que seria o de Monte Carlo e me apressei a ler. Detive-me surpreso à

primeira linha impressa em letras miúdas: Telegrama de Miragno.

— Miragno? Quem se teria suicidado na minha terra?

Li: "Ontem, sábado 28, foi descoberto nas águas de um moinho um cadáver em estado de

adiantada putrefação...'"

Repentinamente minha vista se turvou, parecendo-me discernir na linha seguinte o nome da

minha propriedade e, como lutava com dificuldade para ler com um só olho aquelas letras

miúdas, fiquei de pé, a fim de me aproximar um pouco mais da luz.

"...putrefação. O moinho está situado numa propriedade chamada Stía, a cerca de dois

quilômetros da nossa cidade. Ao local acorreram as autoridades judiciárias e o cadáver foi

retirad para as constatações legais.

Tendo ficado sob vigilância, foi mais tarde reconhecido como sendo do nosso..."

37

O coração me subiu à garganta e olhei, fora de mim, meus companheiros de viagem que

dormiam.

—Ao local acorreram... Retirado... Sob vigilância... Foi reconhecido como sendo do nosso

bibliotecário...

— Eu?

―Ao local acorreram... mais tarde... como sendo do nosso bibliotecário Matias Pascal,

desaparecido há vários dias.

Causa do suicídio: questões financeiras.‖

— Eu?... Desaparecido... Reconhecido... Matias Pascal...

Reli ferozmente, o coração aos pulos, não sei quantas vezes aquelas poucas linhas. No

primeiro ímpeto todas as minhas energias vitais se insurgiram violentamente para protestar,

como se aquela notícia, tão irritante, no seu impassível laconismo, pudesse, também para

mim, ser verdadeira, Mas se não o era para mim, para os outros era verdadeira. E aquela

certeza que os outros tinham da minha morte desde o dia anterior, era-me ultraje insuportável

e esmagador... Olhei novamente os meus companheiros de viagem e como se eles

repousassem naquela certeza, e tive a tentação de arrancá-los daquelas incômodas e penosas

posições, sacudindo-os e despertando-os para gritar que não era verdade.

— Será possível?

E reli ainda mais uma vez a atordoante notícia.

Não me continha mais. Teria preferido que o trem parasse. Ou que corresse a toda

velocidade. Naquela marcha monótona de duro autômato, surda e grave, aumentava-me cada

vez mais a excitação. Enterrava as unhas nas mãos abrindo-as e fechando-as continuamente.

Desdobrava o jornal. Dobrava-o novamente no lugar da notícia, que relia e que já sabia de

cor, palavra por palavra.

— Reconhecido! Mas será que me tenham reconhecido? ... Em estado de adiantada

putrefação ... Xi!

Vi-me por um instante lá na água esverdeada, podre, inchado, horrível, boiando... No arrepio

instintivo cruzei os braços no peito e com as mãos me apalpei, me apertei.

— Eu? Não! Quem teria sido? Por certo se parecia comigo. . . Talvez usasse barba, como

eu... O mesmo corpo que eu tenho... E me reconheceram! ... Desaparecido há vários dias...

Eu queria saber quem se apressou tanto a me reconhecer. Seria possível que aquele infeliz se

assemelhasse tanto a mim? Vestido como eu? Talvez tenha sido Mariana Dondi, a viúva

Pescatore, oh! Pescou-me imediatamente, reconheceu-me imediatamente! É claro que não se

enganou, logo ela! "É ele! É ele! Meu genro! Ah! Pobre Matias! Meu pobre filho!" E talvez

também se tenha posto a chorar, talvez se tenha ajoelhado junto do cadáver do infeliz já que

não lhe pôde aplicar um pontapé e gritar: "Levante-se daqui, não sei quem é você".

Fremia. Finalmente o trem parou numa outra estação. Abri a porta e desci precipitadamente,

com a confusa idéia de fazer algo, imediatamente: um telegrama urgente desmentindo a

notícia.

O salto que dei ao sair do vagão me salvou: sacudiu-me do cérebro aquela estúpida fixação,

fazendo-me entrever um clarão... A minha libertação, a liberdade, uma vida nova!

Trazia comigo oitenta e duas mil liras e não estava mais obrigado a entregá-las a ninguém!

Estava morto, morto. Não tinha mais dívidas, não tinha mais mulher, não tinha mais sogra.

Ninguém! Livre! Completamente livre! O que podia desejar mais?

Com todos esses pensamentos na cabeça devia ter ficado numa atitude estranhíssima, lá na

plataforma da estação. Deixara aberta a porta do vagão. Vi uma porção de gente em volta de

mim, gritando-me não sei o quê. Um me balançou e me empurrou berrando:

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— O trem vai partir!

— Ora, deixe que parta, caro senhor! Gritei-lhe. — Mudo de trem!

Assaltara-me entretanto uma dúvida: a notícia teria sido desmentida em Miragno com o

reconhecimento do engano? Os parentes do verdadeiro morto já teriam corrigido a falsa

identificação?

Antes de me alegrar cumpria-me averiguar. Mas como obter notícias precisas e detalhadas?

Procurei nos bolsos o jornal. O deixara no trem. Me virei e vi os trilhos desertos que se

desenrolavam em pedaços brilhantes na noite silenciosa e me senti perdido, no vazio, naque-

la triste estaçãozinha. Uma dúvida mais forte me assaltou então: e se eu tivesse sonhado?

Mas não:

'Telegrama de Miragno. Ontem, sábado 28... ―

Era capaz de repetir de cor o telegrama, palavra por palavra. Não restavam dúvidas! No

entanto aquilo só não podia bastar.

Olhei a estação. Li o nome: ALENGA.

Encontraria ali outros jornais? Lembrei-me de que era domingo. De manhã teria saído o

único jornal impresso em Miragno: O Folheto. De qualquer maneira, deveria obter um

exemplar a fim de colher as informações detalhadas de que necessitava. Mas como esperar

encontrar em Alenga O Folheto? Pois bem, telegrafaria sob um falso nome para a redação do

jornal. Conhecia o diretor Miro Colzi ou Cotovia, como o chamavam em Miragno, desde

quando em rapaz publicara sob esse título gentil seu primeiro e último volume de versos.

Mas não seria estranho um pedido de exemplares do seu jornal de Alenga? Certamente a

notícia mais "interessante" da semana e a parte sensacional do número devia ser o meu

suicídio. Acaso não me exporia ao risco de que o inesperado pedido fizesse nascer nele

alguma suspeita?

―Mas qual!" pensei em seguida. ―Não lhe pode passar pela cabeça que eu não tenha

realmente morrido afogado. Há de procurar a razão do pedido em alguma outra notícia

sensacional do seu número de hoje. Há tempos combate na Administração Municipal em

prol do encanamento da água e da instalação do gás. Acreditará que o pedido tenha sido por

causa da sua campanha."

Entrei na estação.

Por sorte o cocheiro do único carro, o do correio, ainda se achava ali conversando com os

empregados ferroviários. O centro distava cerca de três quartos de hora da estação e o

percurso era todo em subida.

Meti-me no decrépito carro desengonçado e sem luzes e tocamos prá frente na escuridão da

noite.

Tinha tantas coisas em que pensar! Entretanto violenta impressão da notícia

despertava em mim aquela negra e desconhecida solidão que, por um instante me fazia sentir

no vazio ao ver os trilhos desertos. Medrosamente eu me sentia desligado da vida,

sobrevivente de mim mesmo e perdido na expectativa de viver além da morte, sem entrever

ainda de qual maneira.

Perguntei ao cocheiro se em Alenga havia uma agência de jornais.

— Como? Não, senhor.

-- Não se vendem jornais em Alenga?

— Ah, sim senhor. Quem vende é o farmacêutico Grottanelli.

— E há um hotel?

— Há a hospedaria do Palmentino.

Ele descera do seu assento para aliviar um pouco o velho cavalo estropiado que bufava com

as ventas do chão. Eu mal o divisava. Ele acendeu o cachimbo e eu o vi entre clarões e

39

pensei: ―Se ele soubesse quem está levando...‖

Mas imediatamente dirigi a pergunta a mim mesmo:

―Mas quem é que ele está levando? Nem eu próprio sei. Quem sou eu agora? Vejamos. Um

nome, ao menos um nome é preciso arranjar imediatamente, pelo menos para assinar o

telegrama e evitar embaraços caso me perguntem na hospedaria. Por enquanto basta resolver

este problema. Como me chamo?‖

Nunca supusera que a escolha de um nome e um sobrenome fosse custar tanto esforço e me

atormentar tanto. O sobrenome especialmente! Juntava as sílabas ao acaso e surgiam certos

nomes como Strozzaní, Parbetta, Martoni, Bartusi que me irritavam ainda mais os nervos.

Não via neles sentido de espécie alguma. Como se, no fundo os sobrenomes precisassem

disso... Ora, vamos, qualquer um... Martoni, por exemplo, por que não? Carlos Martoni...

Uff! Até que enfim! Mas logo depois encolhia os ombros:

―Carlos Martello...‖ E o tormento recomeçava.

Cheguei sem haver decidido ainda. Felizmente o farmacêutico era também agente

telegráfico e postal, droguista, vendedor de papel, jornaleiro, uma besta e não sei mais o quê,

não me indagou o nome. Comprei um exemplar dos poucos jornais que ele recebia: O

Caffaro e O Século XIX, de Gênova. Perguntei depois se podia encontrar O Folheto, de

Miragno.

Tinha uma cara de coruja o tal Grottanelli, com dois olhos redondíssimos parecendo de vidro

sobre os quais ele abaixava, dir-se-ia com dificuldade, certas pálpebras cartilaginosas.

— O Folheto? Não conheço.

— É um jornaleco de província semanal - expliquei. — Gostaria de comprar o número de

hoje.

— O folheto? Não conheço — insistia ele.

— Está muito bem! Não faz mal se o senhor não o conhece. Eu lhe pago as despesas de um

vale telegráfico à redação. Queria dez ou vinte exemplares amanhã ou o quanto antes. É

possível?

Não respondia. Com os olhos fixos, sem olhar, continuava a repetir:

— O Folheto? Não conheço.

Finalmente se dispôs a fazer o vale telegráfico que eu ditei, indicando para a remessa o

endereço da farmácia.

No dia seguinte após uma noite insone agitada por tempestuoso afluxo de pensamentos,

recebi na hospedaria quinze exemplares do Folheto.

Nos dois jornais de Gênova que me apressara a ler ao ficar só não encontrava sinal algum. As

mãos me tremiam desdobrando O Folheto. Na primeira página, nada. Procurei nas duas do

meio e imediatamente me saltou aos olhos um sinal de luto no alto da terceira página e

embaixo, em grandes letras, o meu nome.

MATIAS PASCAL

Ninguém tinha notícias dele já fazia alguns dias. Dias de tremenda consternação e

inenarrável angústia para a desolada família, consternação e angústia compartilhadas pela

maior parte dos nossos concidadãos que o estimavam pela bondade da alma, pela

jovialidade do caráter e pela natural modéstia que lhe permitira suportar sem abatimento e

com resignação o destino adverso que nestes últimos tempos o arrastara de despreocupada

riqueza à condição humilde.

40

Depois do primeiro dia da inexplicável ausência a família se dirigiu à Biblioteca

Boccarnazza, onde zelosíssimo de seu trabalho passava o dia a enriquecer com doutas

leituras a sua viva inteligência, achou a porta fechada. Diante daquela porta fechada surgiu

negra e trepidante suspeita, logo afastada pela esperança que durou vários dias e que aos

poucos se enfraquecia, de que ele se houvesse ausentado por alguma secreta razão.

Mas ai! A verdade seria infelizmente aquela!

A morte recente da mãe adoradíssima e da única filhinha, após a perda dos bens de família,

perturbara profundamente o ânimo do nosso pobre amigo. Cerca de três meses atrás já

tentara, durante a noite, pôr fim aos seus míseros dias exatamente nas águas daquele

moinho que lhe recordava os passados esplendorosos da sua casa e os seus tempos de

ventura.

... Nenhuma dor maior

Que recordar

Os tempos de ventura

Na miséria...

Com lágrimas nos olhos e soluçando diante do cadáver encharcado e desfeito falava um

velho moleiro, fiel e devotado à família dos antigos patrões. Lúgubre a noite caíra. Uma

lanterna vermelha fora colocada ali no chão junto ao cadáver, guardado por dois

Carabineiros Reais, enquanto Filipe Brins (nós o assinalamos para admiração das pessoas

de bem) narrava e chorava conosco. Ele havia conseguido naquela triste noite impedir que

o infeliz levasse a efeito o violento propósito. Mas da segunda vez Filipe Brina não se

encontrava mais presente e pronto para detê-lo. E Matias Pascal permanecera toda noite e

metade do dia imerso nas águas do moinho.

Sequer tentamos descrever a pungente cena que se seguiu no local quando anteontem, ao

cair da tarde, a viúva desconsolada encontrou-se diante dos míseros despojos irre-

conhecíveis do dileto companheiro que havia partido ao encontro da filhinha.

Toda a população compartilhou da sua dor e quis demonstrá-lo acompanhando o cadáver à

sua derradeira morada, onde breves e comoventes palavras de adeus foram proferidas pelo

nosso Assessor Municipal, o cavaleiro Pomino.

Enviamos à pobre família imersa em tanto luto e ao irmão Roberto, ausente de Miragno, as

nossas mais sentidas condolências e com o coração dilacerado dizemos, pela última vez, ao

nosso bom Matias:

— Adeus, querido amigo, adeus!

M. C.

Mesmo sem as duas iniciais teria identificado no autor do necrológio a pessoa do Cotovia.

Mas cumpre confessar que por mais que eu estivesse preparado, a vista do meu nome

impresso ali sob aquela lista negra, longe de me alegrar me acelerou as batidas do coração e

que depois de algumas linhas fui forçado a interromper a leitura. A "tremenda consternação e

inenarrável angústia'" da minha família não me fizeram rir, tampouco o amor e a estima dos

meus concidadãos pelas minhas virtudes e por meu zelo ao trabalho. A lembrança daquela

tristíssima noite na Stía transformada à prova mais evidente do meu suicídio me surpreendeu

inicialmente, qual imprevista e sinistra participação do acaso. Depois me provocou remorso

e vergonha.

41

Não! Não me matara por causa de minha mãe e de minha filha, muito embora naquela noite

o suicídio me tivesse tentado! Fugira desesperadamente. Mas naquela hora eu voltava de

uma casa de jogo onde a Fortuna do modo mais estranho me sorrira e continuava a me sorrir.

No meu lugar se matara outro, forasteiro por certo, a quem eu roubava o pranto dos parentes

e amigos distantes e condenava — oh supremo escárnio! — a suportar o que não lhe

pertencia: as falsas lamentações e até a oração fúnebre do empoado e honorabilíssimo

Pomino!

Tal foi a impressão à leitura do meu necrológio no Folheto.

Mas depois refleti que aquele pobre homem certamente não morrera por minha causa e não

seria desmentindo a minha morte que eu o faria viver outra vez. Compreendi que aprovei-

tando da sua morte eu absolutamente não estava burlando os seus parentes e que, pelo

contrário, lhes prestava um benefício. Para eles, de fato o morto era eu; poderiam esperar que

o desaparecido ainda voltasse um dia.

Restavam minha mulher e minha sogra. Deveria realmente acreditar no sofrimento da

família pela minha morte e em toda aquela "inenarrável angústia" naquela "pungente dor" da

fúnebre noticia? Bastaria, pelo amor de Deus, abrir um pouquinho os olhos e ver aquele

pobre morto para perceber que não era eu. Uma esposa, a não ser que realmente o queira, não

confunde assim tão facilmente outro homem com o seu próprio marido.

Elas se apressaram a me reconhecer naquele cadáver? A viúva Pescatore esperava que

Malagna, comovido e talvez não isento de remorsos pelo meu bárbaro suicídio, viesse em

socorro da pobre viúva? Pois se elas estavam contentes eu estava ainda mais!

— Morto? Afogado? Uma cruz e não se fala mais nele!

Levantei-me, estirei os braços e dei um longuíssimo suspiro de alívio.

VIII

ADRIANO MEIS

Tratei de me transformar em outro homem, levado mais por uma necessidade íntima e pelas

exigências da Fortuna do que pelo intuito de enganar aos outros com uma leviandade talvez

não tão deplorável, mas certamente indigna de louvores.

Não havia razões para eu estar satisfeito com aquele desgraçado Matias Pascal que, por bem

ou por mal, resolveram exterminar nas águas de um moinho. Depois de tantas tolices

cometidas talvez não merecesse melhor sorte.

Gostaria que dali por diante e também no meu íntimo não restassem mais vestígios de Matias

Pascal.

Via-me só, e mais só do que estava não poderia ser na face da terra, desvencilhado no

presente de todo elo e toda obrigação. Livre, novo, inteiramente senhor de mim, sem mais o

fardo do meu passado e com o futuro pela frente que forjaria à minha vontade.

Ah, um par de asas! Como me sentia leve!

O sentimento que as passadas vicissitudes me haviam dado não deveria ter mais razão para

mim. Adquiriria um novo sentimento da vida, sem nem de longe me lembrar da desastrada

42

experiência do finado Matias Pascal.

Dependeria de mim. Podia e devia ser o artífice do meu novo destino, dentro das proporções

que a Fortuna quisera oferecer-me.

— Antes de mais nada — dizia comigo mesmo — terei cuidado com esta liberdade. Eu a

conduzirei comigo, por caminhos planos e sempre novos e jamais a farei levar vestes

pesadas. Fecharei os olhos e passarei adiante quando o espetáculo da vida se me apresentar

desagradável. Procurarei manter contato com as coisas ditas animadas e buscarei belas

paisagens e amenos lugares tranqüilos. Dar-me-ei pouco a pouco uma nova educação e me

transformarei com amoroso e paciente trabalho. Assim poderei dizer que vivi duas vidas e

fui dois homens.

Já em Alenga procurara, poucas horas antes de partir, um barbeiro a fim de me aparar a

barba. Queria mandar raspar o rosto, com o bigode e tudo, ali mesmo. Porém o receio de

despertar alguma suspeita no lugarejo me detivera.

O barbeiro era, além de alfaiate, velho. Tinha os rins empenados pelo antigo hábito de se

curvar sempre na mesma posição e usava óculos na ponta do nariz. Mais do que barbeiro

seria alfaiate. Caiu tal e qual um flagelo de Deus em cima daquela barbaça que não me

pertencia mais, armado de respeitável tesoura de tosquiar carneiros que precisava ser

agarrada com as duas mãos. Nem sequer me arrisquei a respirar. Fechei os olhos e só os abri

quando me senti sacudir levemente.

O bom sujeito, todo suado, me estendia um espelhinho para eu lhe dizer se havia atuado bem.

Aquilo me pareceu demais!

— Não, obrigado — protegi-me. — Pode guardá-lo. Não gostaria de lhe fazer medo.

Arregalou os olhos e:

— A quem?

— A este espelhinho, ora. Bonitinho! Deve ser antigo...

Era redondo, com o cabo de osso entalhado. Quem sabe qual a sua história, de onde vinha e

como tinha ido parar ali naquela alfaiato-barbearia. Mas para não desfeitear o dono, que não

cessava de me olhar perplexo, resolvi submeter-me à apreciação para julgar se ele havia

atuado bem!

Entrevi, em conseqüência daquela primeira devastação, que monstro em breve surgiria da

necessária e radical alteração dos traços de Matias Pascal! E eis uma nova razão para odiá-lo!

O queixo pequeníssimo, pontudo e retraído que ele havia escondido por tantos e tantos anos

debaixo de toda aquela barba me pareceu uma traição. Daquele momento em diante eu

exibiria aquela coisinha ridícula! E que nariz me deixara como herança! E o olho!

— Ah, este olho — pensei — assim em êxtase de um lado, continuará pertencendo àquele

cretino, mesmo no meu novo rosto! Tudo que poderei fazer é escondê-lo da melhor maneira

possível atrás de uns óculos de vidros coloridos que irão cooperar para me tornar o aspecto

mais amável. Deixarei crescer os cabelos e, com esta bela fronte larga, os óculos e a cara toda

raspada, parecerei um filósofo alemão. Não omitindo uma sobrecasaca e um chapelão de

abas largas.

Sem outra saída, o filósofo tinha que ser a pulso com aquele estranho aspecto. Munir-me-ia

de discreta e risonha filosofia a fim de atravessar esta pobre humanidade que, malgrado os

meus esforços em contrário, se me afigurava um tanto ridícula e mesquinha.

Quanto ao meu nome, foi-me oferecido no trem que me levava de Alenga a Turim.

Eu viajava com dois senhores que discutiam animadamente sobre iconografia cristã,

mostrando-se ambos muito eruditos para um ignorante como eu.

O mais jovem dos dois, de rosto pálido coberto por cerrada e áspera barba negra,

demonstrava uma satisfação especial ao afirmar, baseado em São Justino Mártir, em

43

Tertuliano e em não sei mais quem, que Jesus Cristo era feíssimo.

Falava com uma voz cavernosa contrastando estranhamente com o seu ar inspirado.

— Sim, claro, feíssimo. Cirilo de Alexandria também afirma que Cristo foi o mais feio dos

homens.

O outro, um velhote magríssimo, tranqüilo na sua palidez ascética mas com uma prega nos

cantos da boca insinuando sutil ironia, todo empertigado, o longo pescoço esticado como se

estivesse debaixo de uma canga, afirmava que não se devia confiar nas testemunhas antigas.

— Porque a Igreja, nos primeiros séculos, estava inteiramente preocupada em que se

consubstanciasse a doutrina e o espírito dos seu inspirados e não cuidava das aparências

externas deste.

Então vieram a falar da Verônica e de duas estátuas na cidade de Paneade, tidas como

imagens de Cristo e da hemorroíssa.

— Claro — saltou o jovem barbudo. — Mas se não há mais dúvidas agora! Aquelas duas

estátuas representam o Imperador Adriano com a cidade ajoelhada aos seus pés.

O velhote continuava a defender pacificamente a sua opinião, que devia ser contrária, pois o

outro, irredutível, olhando-me e obstinava-se a repetir:

— Adriano!

— Beroníke, em grego. De Beroníke, depois Verônica...

— Adriano! (como se falasse a mim).

— Ou então, Verônica, vera icon, deturpamento probabilíssimo...

— Adriano! (a mim)

—... Porque a Beroníke dos Atos de Pilatos...

— Adriano!

Repetiu Adriano não sei quantas vezes e sempre com os olhos voltados em minha direção.

Quando ambos desceram numa estação e fiquei só no compartimento, me debrucei para fora

e os segui com os olhos. Discutiam ainda, afastando-se.

O velhote perdeu a paciência e começou a correr.

— Quem o diz? — perguntou-lhe alto o jovem, parado com ar de desafio.

O outro se voltou e gritou:

— Camilo De Meis!

Pareceu também que ele gritasse aquele nome para mim, enquanto mecanicamente eu

repetia: ―Adriano...‖ Joguei fora o De e guardei o Meis.

Adriano Meis! Sim... Adriano Meis soa bem...

Achei que o nome se enquadrava otimamente no meu rosto raspado e de óculos,

adaptando-se aos cabelos, ao chapelão e à sobrecasaca que passaria a usar.

Adriano Meis. Perfeitamente! Batizaram-me.

Suprimida a lembrança da minha vida precedente e com o ânimo decidido a recomeçar

daquele ponto uma vida nova, encontrava-me invadido por verdadeira alegria infantil. Sentia

a consciência virgem e transparente e o espírito alerta e pronto a tirar proveito de tudo na

construção do meu novo eu. E a alma tumultuava-me na alegria da nova liberdade. Jamais

vira daquela forma os homens e as coisas, e entre mim e eles o ar de repente se desanuviara e

se me apresentavam fáceis e leves as novas relações que se estabeleceriam, porquanto dali

em diante eu quase não iria ter necessidade deles para a minha satisfação íntima. Oh, leveza

deliciosa da alma, serena e inefável embriaguez! De repente a Fortuna me desembaraçara de

todos os emaranhamentos, me afastara da vida comum, tornando-me um espectador alheio à

contenda em que os outros continuavam a se debater e me advertia intimamente:

— Você vai ver o quanto é curioso olhar a vida de fora! Olhe ali um que estraga o próprio

44

fígado e aborrece um pobre velho, afirmando que Cristo foi o mais feio dos homens...

Eu sorria. Tinha vontade de sorrir por tudo e a qualquer coisa: às árvores dos campos

correndo ao meu encontro com estranhíssimas atitudes na sua fuga ilusória; às casas

espalhadas aqui e ali, onde me divertia imaginando seus donos com os rostos inchados de

tanta raiva da névoa inimiga das oliveiras, ou então com os braços levantados e os punhos

cerrados contra o céu que não queria mandar água. Sorria aos passarinhos que debandavam,

apavorados com aquela coisa negra correndo pelo campo fazendo barulho; sorria ao ondular

dos fios telegráficos, através dos quais passavam certas noticias para os jornais, como de

meu suicídio no moinho; sorria às pobres mulheres dos cantoneiros que apresentavam a

bandeirola enrolada, grávidas e com o chapéu dos maridos na cabeça.

Todavia meu olhar caiu na aliança que eu ainda conservava no anular esquerdo. Recebi

violentíssimo choque. Fechei os olhos e apertei uma das mãos na outra tentando arrancar o

arozinho de ouro, às escondidas, para não vê-lo mais. Pensei nos dois nomes gravados

internamente: Matias-Romilda, e a data do casamento. Que devia fazer?

Abri os olhos e com as sobrancelhas franzidas permaneci um momento contemplando a

aliança na palma da mão. Em volta de mim tudo se tornara sombrio.

Eis ainda uns restos das cadeias que me ligavam ao passado! Pequeno anel, leve e ao mesmo

tempo tão pesado! Ora, as cadeias já estavam partidas, portanto era só jogar fora aquele

último elo.

Estava para atirá-lo pela janela, quando me detive. Eu já era excepcionalmente favorecido

pelo acaso que era prudente não confiar demais nele. Devia acreditar em tudo, até mesmo

que um anelzinho atirado em pleno campo pudesse ser encontrado casualmente por um

camponês e, passando de mão em mão fizessem descobrir a verdade: que o afogado da Stía

não era o bibliotecário Matias Pascal.

"Não, não," pensei, "em lugar mais seguro... Mas onde?"

Naquele momento o trem parou novamente. Veio-me uma idéia, cuja execução me repugnou

um pouco no início. Digo-o para me servir de desculpa junto dos que amam o belo gesto,

pessoas pouco meditativas que não gostam de se lembrar que a humanidade também está

oprimida por certas necessidades às quais deve obedecer, mesmo quem está esmagado por

uma profunda dor. César, Napoleão e, por quanto pareça indigno, até a mulher mais bela...

Basta. De um lado estava escrito Homens, do outro, Senhoras. Ali deixei cair a minha

aliança.

Numa tentativa de dar certa consistência àquela minha nova vida criada no vazio, pus-me a

devanear em torno de Adriano Meis e do seu passado, indagando quem teria sido meu pai,

onde eu nascera, etc. e esforçando-me por ver e fixar tudo devagar e nos mínimos detalhes.

Obviamente, era filho único.

— Mas único do que sou... Mas qual! Aposto que há muitos nestas mesmas condições, meus

irmãos... Deixa-se o chapéu e o paletó, com uma carta no bolso, no parapeito de uma ponte.

E depois, em vez do sujeito se jogar no rio, vai embora tranqüilamente, rumo da América ou

a outro lugar qualquer. No fim de alguns dias, um cadáver irreconhecível é pescado. Será o

tal da carta encontrada na ponte. E não se fala mais nele! Quanto a mim, é verdade que não

houve deliberação de minha parte: nem carta, nem paletó nem chapéu... Sou igual aos meus

irmãos, porém com a vantagem de gozar sem remorsos a minha liberdade. Quiseram

fazer-me este presente, e então...

Então digamos filho único. Nascido... Seria prudente não precisar o lugar do nascimento.

Como fazer? Ninguém nasce em cima das nuvens, tendo a lua por parteira, embora na

biblioteca eu tenha lido que os antigos a fizeram exercer também esta função e que por isso

as mulheres grávidas a invocavam com o nome de Lucina.

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Em cima das nuvens não. Mas num navio, por exemplo, pode-se muito bem nascer. Aí está,

nascido em viagem. Os meus pais viajavam para quê? Para que eu nascesse navio... Vamos,

seriamente! Uma razão plausível para uma senhora viajar nos dias de dar à luz... E se meus

pais tivessem ido morar na América? Por que não? Tantos vão. Até Matias Pascal, coitado,

não queria ir? E então? Estas oitenta e duas mil liras teriam sido ganhas por meu pai lá na

América? Que nada! Com oitenta e duas mil liras no bolso, certamente teria esperado que a

mulher tivesse tido o filho comodamente em terra firme. E depois, asneiras! Um emigrado

hoje em dia não ganha mais assim tão facilmente oitenta e duas mil liras na América. Meu

pai, a propósito, como se chamava? Paulo. Sim, Paulo Meis. Meu pai, Paulo Meis, se iludira,

como tantos outros. Lutara e sofrera por três, quatro anos; depois, humilhado, escrevera de

Buenos Aires uma carta a meu avô...

Ah, eu fazia questão de tê-lo conhecido, um bom velhinho, como aquele que pouco antes

descera do trem, o estudioso de iconografia cristã.

Misteriosos caprichos de fantasia! Por que inexplicável necessidade eu imaginava naquele

momento meu pai, aquele Paulo Meis, um estouvado? Sim, havia dado muitos

aborrecimentos a meu avô: casara-se contra a vontade dele e fugira para a América.

Certamente ele, também afirmava que Cristo era feíssimo. E feio mesmo ele, o vira na

América, já que veio embora correndo, com a mulher em vésperas de ter o filho, assim que

recebeu o socorro de meu avô.

Mas por que nascido exatamente na viagem? Não seria melhor nascer logo de uma vez na

América, na Argentina, poucos meses antes do retorno de meus pais à pátria? Claro! Meu

avô se enternecera pelo netinho inocente e só por minha causa perdoara o filho. Assim eu,

bem pequenino, atravessara o Oceano, talvez em terceira classe e, durante a viagem,

apanhara uma bronquite da qual, só por milagre, não havia morrido. Ótimo! Meu avô me

contava sempre esse caso. Eu não deveria lamentar o fato de não ter morrido com poucos

meses. Não. Porque no fundo, que dores eu sofrera na vida? Uma só, para dizer a verdade: a

morte do meu pobre avô, na companhia de quem eu crescera. Meu pai, Paulo Meis,

desmiolado e ávido de liberdade, depois de alguns meses fugira novamente para a América,

deixando a mulher e o filho com o velho. Lá morreu de febre amarela. Aos três anos, ficara

órfão também de mãe e, portanto, sem lembrança dos meus pais, tendo deles só essas

escassas notícias. Mas havia mais. Não sabia nem sequer com precisão o lugar do meu

nascimento. Na Argentina, está bem! Mas onde? Meu avô o ignorava porque meu pai não o

dissera, ou porque se havia esquecido e eu, logicamente, não podia lembrar.

Resumindo:

a) filho único de Paulo Meis; b) nascido na América, Argentina, sem outra indicação; c)

vindo para a Itália com poucos meses (bronquite); d) sem lembrança e quase sem notícias

dos pais; e) crescido com o avô.

Onde? Um pouco por toda parte. Primeiro, em Nice. Lembranças confusas: Place Massena,

Promenade, Avenue de la Gare... Depois, Turim.

Para lá me dirigia naquele momento onde esperava resolver vários assuntos: escolher uma

rua e uma casa em que meu avô me deixara até a idade de dez anos, entregue aos cuidados de

uma família que imaginaria de lá mesmo, a fim de assumir ares locais. Propunha-me também

seguir com a fantasia e com a própria realidade a vida de Adriano Meis quando criança.

Esta construção fantástica de uma vida não vivida realmente mas colhida aos poucos nas

pessoas e nos lugares proporcionou-me estranha e nova alegria, não isenta de certa tristeza,

nos primeiros tempos da minha vagabundagem. Fiz disso uma ocupação. Vivia não apenas o

presente mas o passado dos anos que Adriano Meis na realidade não vivera.

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Guardei muito pouco ou nada daquilo que havia imaginado antes. Nada se inventa que não

tenha alguma raiz mais ou menos profunda na realidade. Mesmo as coisas mais estranhas

podem ser verdadeiras, nenhuma fantasia chega a conceber certas inverossimilhanças e

loucuras que irrompem do seio tumultuoso da própria vida. Mas a realidade viva e palpitante

como se apresenta diversa das invenções que dela extraímos! De quantas coisas substanciais,

detalhadíssimas, inimagináveis necessita a nossa invenção para se tornar novamente a

própria realidade de onde foi tirada, de quantos fios necessita para se reatar ao

complicadíssimo emaranhado da vida - fios que nós cortáramos pretendendo que essa

invenção se tornasse uma coisa à parte!

E o que era eu senão um homem inventado? Urna invenção ambulante que queria devia por

força permanecer à parte, embora se apoiando na realidade.

Assistindo à vida dos outros e observando-a minuciosamente via-lhes os infinitos elos e ao

mesmo tempo via também os meus fios cortados. Podia reatar esses fios com a realidade?

Quem sabe onde me teriam arrastado? Talvez se transformassem logo em rédeas de cavalos

soltos que despedaçariam o pobre carro da minha necessária invenção. Não. Eu devia reatar

esses fios somente com a fantasia.

Acompanhava pelas ruas e jardins os meninozinhos de cinco a dez anos e estudava-lhes os

movimentos e os jogos, recolhia-lhes as expressões a fim de com tudo isso compor aos

poucos a infância de Adriano Meis. E o fiz tão bem que ela acabou assumindo na minha

mente uma consistência quase real.

Não quis inventar uma nova mãe. Teria sido uma profanação à memória viva e dolorosa da

minha verdadeira mãe. Mas um avô! Quis criá-lo imaginado o inicio dessas minhas

fantasias.

Oh, de quantos avós verdadeiros, de quantos velhinhos seguidos e observados em Turim, em

Milão, em Veneza, em Florença, se compôs o meu avô! De um eu tirava a caixinha de rapé,

feita de osso, e o enorme lenço de quadros vermelhos e pretos; daquele, a bengala; de um

terceiro, os óculos e a barba cobrindo todo o rosto; de um quarto, o modo de caminhar e

assoar o nariz; de um quinto, o modo de falar e rir. Arranjei um velhinho sagaz e arrebatado,

amante das artes, homenzinho sem preconceitos que preferiu em vez de me fazer seguir

regularmente os estudos instruir-me ele mesmo através da sua viva conversa ou me levando

de cidade em cidade, por museus e galerias.

Ao visitar Milão, Pádua, Veneza, Ravena, Florença, Prúsia, trazia sempre comigo tal qual

uma sombra o fantástico avozinho que me falou através de um velho cicerone.

Mas eu queria também viver para mim no presente. Assaltava-me de quando em vez a idéia

da minha liberdade sem limites, única, e experimentava uma felicidade repentina e tão

intensa que me transportava numa espécie de encantamento. Sentia a minha liberdade

invadir-me o peito num profundo suspiro que me arrebatava a alma. Só! Só! Senhor de mim!

Sem dar conta de nada a ninguém! Podendo ir aonde quisesse! E aquela felicidade me seguia

por toda parte. Ah, lembro-me de um crepúsculo em Turim, nos primeiros meses da minha

nova vida à beira do rio Pó, junto da ponte que retém o ímpeto das águas que ali fremem

raivosas através de uma comporta; o ar era de uma transparência maravilhosa e todas as

coisas em sombra pareciam esmaltadas naquela limpidez. E eu olhando senti-me tão ébrio de

liberdade que tive medo de não resistir e enlouquecer.

Já havia efetuado da cabeça aos pés a minha transformação exterior e era outro homem:

barba raspada, óculos de vidro azul-claro, cabelos compridos despenteados artisticamente...

Detinha-me algumas vezes a conversar comigo mesmo diante de um espelho e me punha a

rir.

— Adriano Meis! Homem feliz! É uma pena esta sua cara... Mas enfim, o que é que tem

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isso? Se não fosse pelo olho daquele imbecil você não seria tão feio, apesar da esquisitice

estouvada do seu rosto. Quer saber? Você provoca o riso das mulheres, é isso. Mas no fundo

a culpa não é sua. Se o outro não tivesse usado os cabelos tão curtos, você não seria agora

obrigado a usar os seus tão compridos; e certamente não é por seu gosto que você anda com

a cara raspada deste jeito. Paciência! Quando as mulheres se rirem, ria-se você também. É o

melhor que tem a fazer.

Vivia comigo e de mim, exclusivamente. Apenas trocava algumas palavras com os donos

dos hotéis, os garçons, os vizinhos de mesa, mas nunca desejando puxar conversa. Pela

minha reserva em relação aos outros percebi que absolutamente não gostava de mentir. Os

outros também demonstravam pouca vontade de falar comigo. Talvez devido ao meu

aspecto estranho me tomassem por algum estrangeiro. Lembro-me que em Veneza não

houve meio de tirar da cabeça de um velho gondoleiro que eu era alemão ou austríaco. Na

verdade eu nascera na Argentina e meus pais eram italianos. A minha verdadeira

‖estrangeirice" era muito diferente e só eu a conhecia: eu não era mais coisa alguma. Não

havia registro oficial do meu nome em lugar nenhum a não ser em Miragno, porém como

morto e com o outro nome.

Isso não me afligia. Todavia, passar por austríaco não me agradava. Nunca tivera ocasião de

fixar o meu espírito na palavra "pátria". Antes tinha outras coisas em que pensar! Mas na

ociosidade de então começava a adquirir o hábito de refletir sobre várias coisas que não me

interessariam nem de longe. Aquilo me arrastava contra a vontade e muitas vezes me

aborrecia. Mas alguma coisa era preciso que eu fizesse, quando me cansava de perambular e

olhar. Com o intuito de afastar as inúteis e enfadonhas reflexões, punha-me às vezes a encher

folhas inteiras de papel com a minha nova assinatura tentando modificar o talhe da letra,

segurando a pena de modo diverso. Porém rasgava o papel e jogava fora a pena. Poderia

perfeitamente ser analfabeto! A quem iria escrever? Não recebia nem receberia cartas de

ninguém.

Tal pensamento me fazia dar um mergulho no passado. Revia a casa, a biblioteca, as ruas de

Miragno, a praia e me perguntava: — Será que Romilda ainda está de luto? É provável, a fim

de salvar as aparências. Que fará? — E a imaginava, tal e qual tantas vezes eu a vira lá em

casa. E imaginava a viúva Pescatore com certeza execrando a minha memória. E pensava:

"Nenhuma das duas terá ido uma vez sequer ao cemitério visitar o coitado que morreu tão

barbaramente. Quem sabe onde me terão sepultado! Talvez eu não tenha feito jus à mesma

soma que tia Escolástica despendeu com a sepultura de minha mãe. Roberto não terá tido

maiores cuidados, censurando o que fiz e achando que afinal eu poderia viver com as duas

liras diárias do meu emprego de bibliotecário. Por certo meu corpo jaz miseravelmente no

cemitério dos pobres. Ora, vamos esquecer essas bobagens. Lamento por aquele infeliz que

talvez contasse com parentes mais humanos que os meus e capazes de tratarem-no melhor.

Mas também que importava? Livrara-se do trabalho de pensar!"

Continuei ainda por algum tempo a viajar. Desejei sair da Itália e visitei as belas regiões do

Reno até Colônia, seguindo o rio a bordo de um vapor. Parei nas cidades principais:

Mannheim, Worms, Mogúncia, Bingen, Coblença... Gostaria de ter ido além de Colônia

ultrapassando a Alemanha, pelo menos até a Noruega. Mas achei melhor impor certo freio à

minha liberdade. O dinheiro que trazia comigo deveria servir-me para toda a vida e não era

muito. Talvez eu vivesse ainda uns trinta anos. E daquela forma, fora de toda lei, sem

documentos legais que comprovassem a minha existência real encontrava-me na

impossibilidade de arranjar um emprego. E se não quisesse ficar reduzido a uma situação

desagradável urgia que me limitasse a viver com pouco. Feitas as contas eu não deveria

gastar mais de duzentas liras por mês. Não era muito, mas já por bem dois anos vivera até

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com menos, e não somente eu. Adaptar-me-ia, portanto.

Já me cansava de andar perambulando, sempre solitário e mudo. Começava a sentir

necessidade de um pouco de companhia. Dei por isso num triste dia de novembro, em Milão,

logo depois da minha pequena viagem à Alemanha.

Fazia frio e a chuva ameaçava cair com a noite. Debaixo de um lampião notei um velho

vendedor de fósforos e que sua caixa, presa a tiracolo impedia-o de se resguardar no

surradíssimo agasalho que trazia aos ombros. Dos punhos cerrados contra o queixo

pendia-lhe uma Gordinha até os pés. Inclinei-me e descobri entre os seus sapatões rasgados

um cãozinho minúsculo, de poucos dias, tremendo todo de frio e gemendo sem cessar ali

agachado. Pobre bichinho! Perguntei ao velho se o vendia. Disse que sim e o venderia ba-

rato, embora valesse muito. Ah, o bichinho se transformaria num belo cão.

— Vinte e cinco liras...

O pobre cachorrinho continuou a tremer sem de maneira alguma se orgulhar daquela

avaliação. Evidentemente sabia que o seu dono, por aquele preço, não avaliava os seus

futuros méritos e sim a imbecilidade que acreditara ler na minha cara.

Eu tivera tempo de refletir que adquirindo o cão faria sem dúvida um amigo fiel e discreto

que me consideraria e gostaria de mim, sem precisar perguntar obrigatoriamente quem era

eu, de onde vinha e se meus documentos estavam em ordem. Mas também passaria a pagar

uma taxa, eu que não pagava mais nenhuma! Aquilo iria comprometer a minha liberdade e

me pareceu uma ofensa que eu estivesse para lhe fazer.

— Vinte e cinco liras? Passe bem! — disse ao velho vendedor.

Enterrei o chapéu até os olhos e debaixo da chuva fininha que já peneirava do céu me afastei,

considerando pela primeira vez que era bela a minha liberdade sem limites mas era também

tirana, pois nem sequer me permitia comprar um cachorrinho.

IX

UM POUCO DE NÉVOA

Se o primeiro inverno foi rígido, chuvoso ou nevoento, eu quase não percebi pelas distrações

das viagens e na embriaguez da nova liberdade. Mas o segundo já me surpreendia um tanto

cansado da vagabundagem e deliberado a me impor um freio. E percebia que havia um

pouco de névoa e fazia frio. Percebia que embora o meu ânimo se recusasse a se identificar

com a cor do tempo, não deixava de sofrer as conseqüências deste.

Censurava-me:

— "Acaso você queria que o céu ficasse sempre claro a fim de você poder gozar serenamente

a sua liberdade?"

Divertira-me bastante correndo aqui e ali. Adriano Meis tivera naquele ano a sua juventude

despreocupada. Mas já era preciso que se tornasse um homem e se recolhesse em si mesmo e

adotasse modestos e tranqüilos hábitos de vida. Oh, ser-lhe-ia fácil ser livre como era e sem

obrigações de espécie alguma!

Assim julgava. E me pus a pensar em qual cidade seria conveniente fixar moradia, uma vez

que eu não podia mais continuar qual pássaro sem ninho.

Ajustar-me a uma existência regular. Mas onde? Numa cidade grande ou pequena? Não

sabia decidir.

49

Fechava os olhos e com o pensamento voava às cidades que visitara, passando de uma a

outra e detendo-me em cada uma até rever com precisão aquela tal rua, tal praça, tal lugar, de

onde conservava mais viva lembrança. E dizia:

— Ali estive! Neste momento quanta vida me escapa e que prossegue a se agitar aqui e ali,

variavelmente! E em quantos lugares disse: "Gostaria de morar aqui!" E invejei os habitantes

que tranqüilamente, com seus hábitos e ocupações de todo dia, ali podiam morar sem

conhecer o penoso sentimento de precariedade que paira no espírito de quem viaja.

Esse penoso sentimento de precariedade me dominava ainda e não me deixava amar o leito

onde dormiam os vários objetos que me rodeavam.

Cada objeto costuma transformar-se em nós, de acordo com as imagens que evoca e agrupa

em torno de si. Evidentemente um objeto pode agradar por si mesmo, pela diversidade de

sensações agradáveis que suscita numa percepção harmoniosa. Mais freqüentemente o

prazer que um objeto proporciona não se encontra no objeto em si mesmo. A fantasia o

embeleza com imagens caras. Nem o percebemos mais tal e qual ele é e sim como se fora

animado pelas imagens que nossos hábitos associam a ele. No objeto amamos o que nele

colocamos de nós, a alma que ele assume para nós é somente formada pelas nossas

recordações numa recíproca harmonia.

Como iria eu encontrar tudo isso num quarto de hotel?

Mas uma casa minha, toda minha, poderia ainda desejar? O dinheiro era pouco... E uma

casinha modesta de poucos cômodos? Devagar. Primeiro era preciso ver, considerar bem

tantos aspectos. Ser inteiramente livre só era possível com a valise na mão, hoje aqui,

amanhã ali. Fixado num lugar e proprietário de uma casa? Ah, imediatamente registros e

taxas! E não me inscreveriam no cadastro policial? Mas é claro! E como? Com um nome

falso?

E então talvez investigações secretas sobre mim por parte da polícia... Conclusão:

aborrecimentos, atrapalhações! Não, nada disso. Previa que nunca mais poderia ter uma casa

minha com objetos meus. Mas alugaria um quarto mobiliado na casa de alguma família.

Deveria afligir-me por tão pouco?

O inverno despertava em mim essas reflexões melancólicas e o Natal, já próximo, que em

todos inspira o desejo de recolhimento no calor e na intimidade do lar.

Certamente não sentia falta da intimidade da minha casa. Mas recordava com saudades a da

casa paterna, já destruída desde tanto tempo. Consolaria-me a idéia de que o meu Natal não

seria mais alegre se o passasse em Miragno (arrepiava-me), entre minha mulher e minha

sogra.

Para rir e me distrair eu me imaginava com um bom panettone embaixo do braço diante da

porta da minha casa.

-- Com licença? Aqui ainda moram as senhoras Romilda Pescatore, viúva Pascal, e Mariana

Dondi, viúva Pescatore?

--Sim. Mas quem é o senhor?

--Eu seria o falecido marido da senhora Pascal, aquele bom sujeito que morreu afogado no

ano passado. Venho do outro mundo para passar as festas em família, com a licença dos

superiores. Partirei imediatamente!"

Revendo-me assim morreria de medo a viúva Pescatore? Quem? Ela? Imagine só! Eu, sim.

Ela me teria feito remorrer ao cabo de dois dias.

Cumpria persuadir-me de que a minha sorte consistia justamente em ter conseguido ficar

livre da mulher, da sogra, das dívidas, das aflições humilhantes da minha primeira vida. Não

devia bastar ser completamente livre como era? Afinal eu tinha ainda toda uma vida diante

de mim. Quem sabe quantas eram sós como eu?

50

"Sim, mas esses tais — induzia-me a refletir o mau tempo com aquela maldita névoa

— ou são forasteiros, ou têm uma casa em algum lugar à qual um dia poderão regressar; ou

se não têm poderão ter uma amanhã. E enquanto isso contarão com a hospitalidade de algum

amigo. E você será sempre aonde for um forasteiro, eis a diferença. Forasteiro da vida,

Adriano Meis.

Respirava fundo, aborrecido, exclamando:

— Está bem, vamos resolver isso... Não tenho amigos? Pois passarei a ter...

No restaurante que frequentava naqueles dias um senhor vizinho de mesa mostrara-se

inclinado a travar relações comigo. Teria uns quarenta anos. Um tanto calvo, moreno, usava

óculos de ouro que não se seguravam bem no nariz, talvez por causa do peso da corrente

também de ouro. Ah, que homenzinho gentil! Imaginem que quando se levantava da cadeira

e punha o chapéu na cabeça parecia logo outro — parecia um rapazinho. O defeito estava nas

pernas tão pequenas que não tocavam o chão se estava sentado. Não se levantava e sim

descia da cadeira. Procurava remediar o defeito usando saltos altos. Que há de mal nisso?

Faziam muito barulho seus saltos mas tornavam muito gentilmente imperiosos os seus

passinhos de perdiz.

Era um excelente homem — engenhoso, talvez caprichoso e volúvel, mas com pontos de

vista pessoais e originais. E além de tudo era cavaleiro.

Dera-me o seu cartão de visita. — Cavaleiro Tito Lenzi.

Esse cartão de visita quase foi um pretexto de infelicidade para mim por causa do triste papel

que julguei ter feito por não lhe dar também o meu cartão. Eu ainda não possuía cartões de

visita e provava certo escrúpulo em mandá-los imprimir com o meu novo nome.

Insignificâncias! Então não se pode passar sem cartões de visita? Dá-se o próprio nome de

viva voz e pronto.

Assim fiz, mas disse o meu verdadeiro nome... basta!

Como conversava bem o cavaleiro Tito Lenzi! Até latim sabia. E como citava Cícero!

— A consciência? Mas a consciência não serve, meu caro! A consciência como guia não

basta. Talvez bastasse se nós nos concebêssemos isoladamente e se ela não fosse aberta aos

outros. Na consciência existe uma relação essencial entre o meu ser que pensa e os outros

seres em que penso. Não é um absoluto que se baste a si mesmo. Quanto aos sentimentos e

inclinações, os gostos desses em quem eu penso e em quem o senhor pensa não se refletem

em mim ou no senhor, não nos sentimos nem satisfeitos, nem tranqüilos, nem alegres. Tanto

é verdade que todos nós lutamos para que os nossos sentimentos, nossos pensamentos,

nossas inclinações e nossos gostos se reflitam na consciência dos outros. E se tal não

acontece é porque o ar do momento não se presta a transportar e fazer florescer os germes...

Os germes da sua idéia na mente dos outros, meu caro, o senhor não pode dizer que a sua

consciência lhe basta. Para que lhe basta? Para viver sozinho? Para secar na sombra? Ora!

Ouça, odeio a retórica, velha coruja mentirosa e fanfarrona que inventou esta bela frase

pretensiosa: ―Tenho a minha consciência e basta.‖ É isso! Cicero já dissera: Mea mihi

conscientia pluris est quam hominum sermo. Cícero tem eloqüência, mas... Deus me livre!

Mais enjoado que um principiante de violino!

Eu o teria abraçado. No entanto, o gentil homenzinho não quis perseverar nessas conversas

sutis das quais acabei de dar uma amostra. Passou a entrar nas confidências. E eu que já

acreditava fácil e bem encaminhada a nossa amizade senti logo certo embaraço e que uma

força íntima me obrigava a me afastar e a me retirar. Enquanto ele falava a conversa tratou de

assuntos vagos e tudo correu bem. Mas o meu companheiro queria que eu falasse.

— O senhor não é de Milão, não é verdade?

— Não...

51

— De passagem?

— Sim...

— Bela cidade Milão, hein?

— Pois é...

Eu parecia um papagaio ensinado. Quanto mais as suas perguntas me envolviam mais eu me

afastava com as minhas respostas. E em breve fui parar na América. Mas assim que o

homenzinho soube que eu nascera na Argentina pulou da cadeira, vindo apertar-me

calorosamente a mão:

— Parabéns! Como o invejo! Ah, a América... Já estive lá.

Havia estado? Sai desta!

— Neste caso — apressei-me em explicar — quem merece parabéns é o senhor pois eu posso

praticamente dizer que não estive lá, apesar de ser onde nasci. Quando deixei minha terra

contava apenas alguns meses de idade e os meus pés não tocaram o solo americano.

— Que pena! Exclamou pesaroso. — Mas há de ter parentes por lá, não?

— Não, ninguém...

— Ah, então veio para a Itália com toda a família... Onde se estabeleceram?

Encolhi os ombros.

— Ah — suspirei embaraçado — um pouco aqui, um pouco ali... Não tenho família e...

Ando por toda parte!

— Que beleza! Por toda parte... Não tem mesmo ninguém?

— Ninguém...

— Deve ser um homem feliz! Como o invejo!

— E o senhor, tem família? ---indaguei para desviar o rumo da conversa.

— Não, infelizmente! — suspirou sombriamente. — Sou só e sempre fui só!

— Então, como eu!...

— Mas eu me aborreço! — explodiu. — Para mim a solidão... Sim, em resumo: estou

cansado. Tenho muitos amigos. Mas acredite, não é agradável numa certa idade ir para casa

e não encontrar ninguém. Ah! Existem os que compreendem e os que não compreendem. A

situação de quem compreende é muito pior, porque no final se encontra sem energia e sem

vontade. Com efeito, quem compreende diz: ―Não devo fazer isto, não devo fazer aquilo para

não cometer esta ou aquela besteira‖ Muitíssimo bem! Mas a partir de certo ponto percebe

que a vida é toda uma grande besteira. E então me diga, o que significa não ter cometido

alguma besteira? Significa pelo menos não ter vivido!

— Mas o senhor — procurei confortá-lo — bem... Afinal, ainda está em tempo, felizmente...

— De cometer uma besteira? Mas acredite, já cometi tantas! — retorquiu envaidecidamente

com um gesto e um sorriso, — já viajei como o senhor e... Aventuras, aventuras... Até

mesmo curiosas e picantes me aconteceram. Ouça. Em Viena, uma noite...

Caí das nuvens. Como! Aventuras amorosas, ele? Três, quatro, cinco, na Áustria, na França,

na Itália... Até na Rússia? E que aventuras! Cada qual mais ousada que a outra... Eis, para dar

outra amostra, um trecho de diálogo entre ele e uma senhora casada:

ELE: — Pensando bem, cara senhora... Trair o marido, Deus meu! A fidelidade, a

honestidade, a dignidade... Três imensas e santas palavras, com sufixos grandiosos. E depois

a honra! Outra palavra imensa... Mas na prática, acredite, a coisa é outra coisa de

pouquíssimos momentos! Pergunte às suas amigas que se aventuraram.

A SENHORA CASADA: — Sim! E todas tiveram em seguida um grande desengano!

ELE: — Mas é lógico! Compreende-se! Porque detidas por aquelas imensas palavras

levaram um ano, seis meses, muito tempo a se resolverem. E o desengano provém da

52

desproporção entre a essência do fato e a excessiva preocupação causada. É preciso resolver

logo! Penso uma coisa e faço. É tão simples!

Bastava olhar e considerar um pouco a sua minúscula e ridícula pessoa e perceber que ele

mentia, sem necessidade de outras provas.

Ao espanto seguiu-se um profundo sentimento de vergonha por ele não se dar conta do

miserável efeito que naturalmente produziam suas bazófias, e vendo-o mentir com tanta

desenvoltura e tanto gosto... E ele não precisava mentir. Enquanto eu que não podia

dispensar a mentira sofria todas as vezes que proferia alguma e sentia a alma torturada.

Vergonha e raiva. Tinha ímpetos de lhe agarrar um braço, gritando:

— Perdão, caro senhor, por quê? Por quê?

Entretanto eram razoáveis e naturais em mim a vergonha e a raiva e percebi, refletindo bem,

que teria sido tola àquela pergunta. Se o homenzinho se empenhava tanto em me fazer

acreditar nas suas aventuras a razão era sua necessidade de mentir. Enquanto eu... Eu era

obrigado. Afinal para ele era um divertimento e quase o exercício de um direito, enquanto

que para mim era uma obrigação desagradável e uma verdadeira condenação.

E que resultava de tal reflexão? Ah, pobre de mim! Eu, condenado inevitavelmente a mentir

pela minha condição nunca teria um verdadeiro amigo... Nem uma casa. Amizade quer dizer

confiança. E como iria eu confiar a alguém o segredo da minha vida sem nome nem passado,

surgida como um cogumelo do suicídio de Matias Pascal? Poderia ter somente relações

superficiais, permitindo-me apenas com os meus semelhantes uma breve troca de palavras

indiferentes.

Eram os inconvenientes da minha sorte. Paciência! Iria desencorajar-me por isso?

— Viverei comigo e de mim, como vivi até agora!

Mas francamente receava que a minha companhia não me contentasse nem me compensasse.

Tocando o rosto e o sentindo raspado, passando a mão pelos cabelos compridos ou

endireitando os óculos no nariz, assaltava-me estranha impressão: parecia-me quase não ser

mais eu mesmo e não era como se eu tocasse em mim.

Eu modificara a minha aparência para os outros, não para mim. Diante de mim mesmo

precisava estar assim mascarado? E se tudo aquilo que eu havia imaginado sobre Adriano

Meis não iria servir para os outros, para quem então serviria? Para mim? Mas eu só poderia

acreditar naquilo sob a condição que outros acreditassem também.

Se o tal Adriano Meis não tinha coragem de mentir e em vez de se atirar na vida se afastava

e retornava ao hotel cansado de se ver só, naqueles tristes dias de inverno pelas ruas de

Milão, e se fechava na companhia do falecido Matias Pascal, eu previa que os meus negócios

começariam a andar mal. Não era um divertimento o que se preparava para mim. E a minha

bela sorte, então...

Mas talvez a verdade fosse que na minha liberdade sem limites tornava-se difícil começar a

viver de qualquer maneira que fosse. Quando estava para tomar uma resolução me sentia

impedido por inúmeros empecilhos, sombras e obstáculos.

E de novo ia parar nas ruas. Observava tudo, parava diante de todas as mínimas coisas,

refletia longamente sobre qualquer insignificância. Cansado entrava num café, lia algum

jornal, olhava a gente entrando e saindo e por fim saía também. Mas considerar a vida como

espectador estranho não me dava a impressão de ter utilidade nem objetivo. Via-me perdido

naquela agitação humana. E o barulho, o fermento contínuo da cidade me aturdiam.

— Oh, por que os homens — perguntava a mim mesmo ansiosamente — se esforçam tanto

por tornar cada vez mais complicado o funcionamento das suas vidas? Por que todo este

aturdimento de máquinas? E que fará o homem quando as máquinas fizerem tudo? Perceberá

53

então que o assim chamado progresso nada tem a ver com a felicidade? Diante de todas as

invenções com que a ciência crê honestamente enriquecer a humanidade? Que alegria

experimentamos?

No dia anterior num trem elétrico dei com um pobre coitado destes que não conseguem

deixar de comunicar aos outros tudo o que lhes vai pela cabeça:

— Que bela invenção! Com duas moedinhas em poucos minutos rodo metade de Milão.

Via apenas as duas moedinhas do percurso aquele infeliz, sem pensar que o seu

ordenadozinho ia todo embora e não lhe bastava para viver no meio de toda a atarantação

daquela vida fragorosa, com trem elétrico, luz elétrica, etc., etc.

A ciência tem a ilusão de tornar mais fácil e mais cômoda a existência! Mesmo admitindo

que a torne realmente mais fácil com todas as suas máquinas tão difíceis e complicadas,

pergunto: para quem está condenado a uma luta vã existe pior colaboração do que tornar a

vida fácil e quase mecânica?

Voltava ao hotel.

Num corredor suspensa no vão de uma janela havia uma gaiola com um canarinho. Fugindo

dos outros e não sabendo o que fazer, punha-me a conversar com o canarinho. Eu imitava a

sua voz com os lábios e ele realmente acreditava que alguém lhe falasse e escutava, colhendo

talvez no meu pispissio caras notícias de ninhos, de folhas, de liberdade... Agitava-se na

gaiola, voltava-se, saltava, olhava de lado sacudindo a cabecinha me respondia, perguntava,

escutava ainda. Pobre passarinho! Ele me enternecia, mas eu nem sequer sabia o que lhe

havia dito.

Não acontece a nós homens algo semelhante? Não acreditamos que a natureza a nos fale? E

não nos parece apreender um sentido nas suas vozes misteriosas uma resposta aos nossos

desejos, às ansiosas perguntas que lhe dirigimos? No entanto a natureza na sua infinita

grandeza talvez não tenha a mais leve suspeita da nossa existência e da nossa ilusão vã.

Mas vejam a que conclusões uma brincadeira ocasionada pela ociosidade pode conduzir um

homem condenado a ficar sozinho consigo mesmo! Quase me vinha vontade de me

esbofetear. Acaso estava na emergência de me tornar um filósofo? Não, não, ora, a minha

conduta não era lógica. Assim não resistiria mais tempo. Era preciso que eu vencesse todo

escrúpulo e reserva e tomasse a todo custo uma resolução.

Em resumo, devia viver, viver, viver.

X

PIA DE ÁGUA BENTA E CINZEIRO

Alguns dias depois estava em Roma para fixar residência.

Por que Roma e não outro lugar? Vejo agora a razão verdadeira, após tudo o que me

aconteceu, mas não a direi para não estragar a minha narração com reflexões que a esta altura

seriam inoportunas. Escolhi Roma porque me agradou mais que todas as cidades e porque a

julguei mais conveniente para acolher com indiferença, entre tantos forasteiros, um

forasteiro como eu.

A escolha da casa, isto é, de um pequeno quarto decente numa tranqüila rua na casa de uma

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família pacata, me custou muito trabalho. Finalmente encontrei o que desejava na Rua

Ripetta, com vista para o rio. A primeira impressão que me causou a família da qual iria ser

hóspede foi pouco favorável. Tanto que, de volta ao hotel, fiquei muito tempo considerando

se não seria preferível procurar ainda mais antes de decidir.

Em cima da porta havia duas placas: PALEARI de um lado e PAPIANO do outro, e debaixo

desta um cartão de visita preso por dois preguinhos de cobre, onde se lia: Silvia Caporale.

Veio atender-me um velho de uns sessenta anos (Paleari? Papiano?) em ceroulas de algodão

e os pés nus enfiados num par de chinelos imundos, despido da cintura para cima e

mostrando as rosadas carnes banhudas sem um pêlo, com as mãos ensaboadas e um

borbulhante turbante de espumas na cabeça.

— Oh, desculpe! — exclamou. -- Pensei que fosse a criada... Tenha paciência, o senhor me

encontra assim... Adriana! Terêncio! Depressa, vamos! Há uma pessoa aqui... Tenha

paciência, um momentinho, por favor... O que deseja?

— Aqui se aluga um quarto mobiliado?

— Sim, senhor. Eis a minha filha. O senhor falará com ela. Vamos, Adriana, o quarto!

Apareceu toda confusa uma mocinha pequenina, loura, pálida, olhos azuis, doces e tristes,

como todo o seu rosto. Adriana, como eu! "Oh, veja só!" pensei. "Nem que fosse de

propósito!"

— Mas onde está Terêncio? — perguntou o homem do turbante de espuma.

— Meu Deus, papai, sabe muito bem que está em Nápoles, desde ontem. Saia logo daqui! Se

visse como está... — respondeu-lhe a mocinha mortificada, com uma vozinha branda que

apesar da leve irritação exprimia a delicadeza de sua índole.

O velho se retirou repetindo ―é mesmo!‖ enquanto arrastava os chinelos e continuava a

ensaboar a cabeça calva e a barba grisalha.

Não pude deixar de sorrir com benevolência para não mortificar ainda mais a moça. Ela

fechou um pouco os olhos evitando surpreender o meu sorriso.

Logo no início deu-me a impressão de não passar de uma menina. Mas observando-lhe bem

a expressão do rosto percebi que já era mulher. Vestia um peignoir que a tornava um pouco

desajeitada, não se adaptando às formas de seu pequeno corpo. Estava de meio luto.

Falando baixíssimo e evitando olhar-me (quem sabe a impressão que lhe causei no início!),

levou-me através de um corredor escuro ao quarto que eu deveria alugar. Aberta a porta senti

o peito se alargar recebendo o ar e a luz que entravam por duas amplas janelas defronte do

rio. Bem no fundo se avistava o Monte Mario, a Ponte Margherita e todo o novo bairro dos

Prati até o Castelo de Santo Angelo. Dominava-se a velha Ponte de Ripetta e a nova que se

construía ao lado; mais além a Ponte Humberto e todas as velhas casas de Tordinona que

seguiam a ampla curva do rio. Do outro lado, no fundo, descobriam-se as verdes alturas do

Janículo com o enorme Chafariz de São Pedro em Montorio e a estátua eqüestre de

Garibaldi.

Em virtude da extensão daquela vista aluguei o quarto, que possuía também uma graciosa e

simples decoração em branco e azul-claro.

— Este terraço aqui ao lado — explicou-me a mocinha seriamente — nos pertence também,

ao menos por enquanto. Irão pô-lo abaixo por causa da projetura.

— Perdão... por causa de quê?

— Projetura... saliência do edifício ... Não é assim que se diz? Mas ainda demora. Só quando

terminarem as obras — disse apontando em direção do rio.

Ouvindo-a falar baixo e com tanta circunspecção, sorri e disse:

— Ah, sim?

Ofendeu-se. Baixou os olhos e apertou um pouco os lábios entre os dentes. Para lhe ser

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agradável falei também com gravidade:

— Desculpe, não há crianças em casa?

Balançou a cabeça sem abrir a boca. Talvez ela tivesse sentido na minha pergunta uma ponta

de ironia devido ao seu jeito de menina. Apressei-me a reparar, pois não houvera de minha

parte aquela intenção:

— Não alugam outros quartos?

— Este é o melhor — retrucou sem me olhar. — Se não é do seu agrado...

— Oh, não... Perguntei para saber se...

— Alugamos outro — disse levantando os olhos afetando indiferença. — Do outro lado,

dando para a rua. — Está ocupado por uma hóspede que está conosco há dois anos. Dá aulas

de piano... Mas não em casa...

Esboçou um sorriso muito leve e triste. E acrescentou:

— Aqui moramos eu, meu pai e meu cunhado...

— Paleari?

— Não, Paleari é meu pai. Meu cunhado se chama Terêncio Papiano. Mas vai embora com o

irmão, que no momento está conosco. Minha irmã morreu há seis meses.

Para mudar de conversa indaguei sobre o preço do aluguel. Combinamos tudo

imediatamente e perguntei se era preciso dar algum sinal.

— Faça como achar melhor. Se quiser deixar o nome.

Apalpei os bolsos, sorrindo nervosamente, e disse:

— Não tenho aqui um cartão de visita... Eu me chamo Adriano, justamente vi que é também

o seu nome. Será que isto a aborrece?

— Claro que não! Por quê? — disse notando evidentemente o meu curioso embaraço e rindo

dessa vez como verdadeira menina.

Eu também ri e acrescentei:

— Então, se não a aborrece, eu me chamo Adriano Meis. Tudo pronto! Poderei vir hoje

mesmo à tarde? Ou é melhor amanhã cedo?

Respondeu-me "como achar melhor", mas eu saí com a impressão de que lhe proporcionaria

um grande prazer se não voltasse mais. Eu ousara não dar a devida consideração aos seus

ares circunspectos.

Poucos dias depois verifiquei que a pobre moça não podia deixar de apresentar toda aquela

seriedade porque estava sobre os seus ombros toda a responsabilidade da casa, a qual sem ela

não funcionaria.

O pai, Anselmo Paleari, o velho que surgira na minha frente com um turbante de espuma na

cabeça tinha também os miolos de espuma. No mesmo dia em que mudei compareceu ao

meu quarto dizendo que vinha não tanto para renovar as desculpas pelo modo pouco decente

com que se apresentara da primeira vez, e sim pelo prazer de travar conhecimento com a

minha pessoa já que eu tinha o aspecto de um estudioso ou talvez de um artista:

— Estou errado?

— Está. Artista... De maneira alguma! Estudioso... Assim, assim... Gosto de ler alguns

livros.

— Oh, e o senhor sabe escolher os bons! — exclamou, olhando os dorsos dos poucos livros

que estavam na escrivaninha. — Um dia vou mostrar os meus, está bem? Eu também possuo

bons livros. Eh!

Encolheu os ombros e ficou ali abstrato e com o olhar perdido, evidentemente sem se

lembrar mais de coisa alguma, nem onde estava, nem com quem falava. Repetiu ainda duas

vezes: "Eh! Eh!" com os ângulos da boca contraídos para baixo e me deu as costas para ir

embora sem me dizer coisa alguma.

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No momento, espantei-me; mas quando no seu quarto me mostrou os livros, segundo

prometera, entendi não só aquela pequena abstração como tantas outras coisas. Os livros

traziam títulos deste gênero: La Mort et l'audelà — L'homme et ses corps — Les sept

príncipes de Vhomme — Karma — La clef de la Théosopliíe — A B C de la Théosophie — La

doctrine secrète — Le Plan Astral — etc, etc.

Estava inscrito na escola teosófica o senhor Anselmo Paleari.

Haviam forçado a sua aposentadoria de chefe de seção em não sei que Ministério antes da

época e o arruinaram, não só financeiramente. Tendo ficado livre e senhor do seu tempo, ele

se aprofundara inteiramente nos seus fantásticos estudos e nas suas nebulosas meditações,

abstraindo-se mais que nunca da vida material. Pelo menos metade da sua pensão ia embora

na aquisição daqueles livros. Já formara uma pequena biblioteca. Porém a doutrina teosófica

não o satisfazia completamente. Por certo era atormentado pelo caruncho da crítica, pois ao

lado dos livros de teosofia possuía rica coleção de ensaios e os estudos filosóficos antigos e

modernos, bem como livros de pesquisas científicas. Nos últimos tempos entregara-se

também a experiências de espiritismo.

Descobrira na professora de piano, a sua inquilina, extraordinárias faculdades mediúnicas

ainda não bem desenvolvidas mas que sem dúvida se desenvolveriam com o tempo e com o

exercício até se revelarem superiores às de todos os médiuns mais célebres.

Posso atestar jamais ter visto num rosto vulgarmente feio, como dessas máscaras

carnavalescas, dois olhos mais dolentes do que os da professora Sílvia Caporale. Eram

pretíssimos, intensos, ovais, dando a impressão de terem atrás um contrapeso de chumbo,

igual ao das bonecas automáticas. Já tinha mais de quarenta anos e um considerável bigode

debaixo do nariz, redondo como uma bola e sempre aceso.

Soube depois que essa pobre mulher vivia desesperada de amor e bebia. Consciente de ser

feia e velha, bebia de raiva. Em certas noites voltava à casa num estado verdadeiramente

deplorável: o chapéu caído para um lado, a bola do nariz da cor de uma cenoura e os olhos

semicerrados mais dolentes que nunca.

Jogava-se na cama e imediatamente todo o vinho bebido se transformava em infinita torrente

de lágrimas. Cabia então à pobre mamãezinha da casa tomar conta dela, confortando-a até

tarde da noite. Compadecia-se e a piedade vencia a náusea. Sabia que a outra era só no

mundo e infelicíssima, com um desespero e uma raiva que a levavam a odiar a vida, contra a

qual atentara duas vezes. Aos poucos a moça conseguia que a infeliz lhe prometesse que

seria ajuizada e não faria mais aquilo. E no dia seguinte ela aparecia toda arrebicada e com

trajeitos semiescos, transformada repentinamente em menina ingênua e caprichosa.

As poucas liras que de vez em quando ganhava, ensaiando cançonetas com atrizes

principiantes de café-concerto, eram gastas em bebidas ou em acessórios embelezantes. Não

pagava o aluguel do quarto nem o pouco que lhe davam de comer em casa. Mas não a

podiam mandar embora. O que seria das experiências do senhor Anselmo Paleari?

Mas no fundo havia outra razão. Dois anos antes, com a morte da mãe, desfizera-se da sua

casa indo morar com a família Paleari. Confiara cerca de seis mil liras apuradas na venda dos

móveis a Terêncio Papiano para um negócio que este lhe propusera, certíssimo e lucrativo.

As seis mil liras desapareceram.

Quando ela própria, lacrimejando me fez essa confissão, pude desculpar o senhor Anselmo

Paleari — cuja maluquice eu supusera ser o único motivo para ele conservar uma mulher

daquela espécie em contato com a filha.

Em relação à pequena Adriana, que se mostrava tão instintivamente boa e ajuizada, não

havia por que temer. Mais que tudo ela se sentia ofendida na alma por aquelas práticas

misteriosas do pai e aquela evocação de espíritos através da inquilina.

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A pequena Adriana era religiosa. Percebera-o desde os primeiros dias por causa de uma pia

de água benta de vidro azul pendurada na parede junto de minha cama, acima da mesa de

cabeceira. Deitara-me com o cigarro aceso na boca e me pusera a ler um daqueles livros de

Paleari. Distraído, deixei a ponta do cigarro na pia de água benta. No dia seguinte havia um

cinzeiro em cima da mesinha. Indaguei-lhe se a troca tinha sido feita por ela, que corou

levemente e respondeu:

— Bem, desculpe, achei que o senhor precisava mais de um cinzeiro.

— Mas havia água benta lá dentro?

— Havia. Temos em frente à igreja de São Roque...

E saiu. Será então que ela me queria santificar, essa minúscula mamãezinha, já que tinha ido

apanhar na igreja água benta para mim? Para mim e para ela, com certeza. O pai não devia

usar. Se houvesse recipiente parecido no quarto de Sílvia Caporale deveria ser de vinho

santo.

Eu me sentia suspenso e num estranho vazio, e qualquer incidente sem importância me ar-

rastava a longas reflexões. O incidente da pia de água benta me levou a pensar que desde

menino eu não mais observava as práticas religiosas e só rezara no tempo em que Pinzone

me acompanhava com Berto à igreja por ordem de minha mãe. Nunca sentira necessidade de

perguntar a mim mesmo se tinha realmente uma fé. E Matias Pascal morrera sem os

confortos religiosos.

Repentinamente eu me senti numa condição muito falsa. Para todos os que me conheciam eu

me livrara do pensamento mais incômodo e aflitivo que se possa ter, enquanto se vive: o da

morte. Quem sabe quantos em Miragno diziam:

— Feliz dele, finalmente! De qualquer maneira resolveu o problema.

Entretanto eu não tinha resolvido coisa alguma. Encontrava-me ali com os livros de Paleari

nas mãos, e esses me ensinavam que os mortos se achavam em condições idênticas à minha.

Nas "cascas" do Kâmaloka, sobretudo os suicidas, os quais o senhor Leadbeater, autor do

Plan Astral (premier degré du monde invisible, d'après la fhéosophie), apresentam-se

excitados por toda espécie de apetites humanos que eles não satisfazem, desprovidos do

corpo carnal que ignoram ter perdido.

Eu refletia e quase poderia acreditar que tivesse realmente me afogado no moinho da Stía, e

continuasse na ilusão de viver ainda.

Sabe-se que certas espécies de loucuras são contagiosas. A de Paleari, por mais que no

começo eu a repelisse, por fim me contagiou. Não que eu acreditasse mesmo estar morto.

Não teria sido um grande mal, pois o mais difícil é morrer e não acredito que os mortos

sintam o triste desejo de retornar à vida. Percebi que ainda tinha que morrer. Aí estava o mal.

E eu não pensava na morte! Depois do meu suicídio na Stía não vira outra coisa pela frente

senão a vida. E eis que o senhor Anselmo Paleari constantemente me apresentava a sombra

da morte.

Não sabia falar de outro assunto, aquele bendito homem! Porém falava com tanto fervor e

com tanto entusiasmo que da conversa escapavam-lhe certas imagens e expressões tão

singulares, que ao escutá-lo me passava logo a vontade de me livrar dele e me mudar para

outro lugar. A doutrina e a fé do senhor Paleari, embora me parecessem às vezes pueris, eram

no fundo reconfortantes. E porque me invadira a idéia de que mais cedo ou mais tarde eu

morreria de verdade não me desagradava ouvi-lo falar daquele modo.

— Há lógica? — indagou-me, depois de ler-me um trecho de um livro de Finot, cheio de

uma filosofia tão sentimentalmente macabra que parecia o sonho de um coveiro

morfinômano com a vida dos vermes nascidos da decomposição do corpo humano.

— Há lógica? Matéria, sim, matéria. Admitamos que tudo seja matéria. E a forma, o modo, a

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qualidade? Existe a pedra e existe o éter imponderável. No meu próprio corpo há a unha, o

dente, o cabelo, e há também o finíssimo tecido ocular. Quem lhe diz que não? Aquilo que

chamamos alma será matéria também; mas o senhor admitirá que não é matéria como a unha,

o dente, o cabelo. Será matéria como o éter. O éter o senhor admite como matéria e alma não.

Há lógica? Matéria, sim, senhor. Siga o meu raciocínio e veja aonde chego, admitindo tudo.

Vejamos a Natureza. Consideramos o homem como herdeiro de uma série inumerável de

gerações, não é verdade? O produto de uma elaboração bem lenta da Natureza. O senhor,

meu caro senhor Meis, afirma que também que ele é um animal, um crudelíssimo animal e

que em seu conjunto é pouco apreciável? Admito isso também e digo: o homem representa

na escala dos seres um degrau não muito elevado. Do verme ao homem, coloquemos oito,

coloquemos sete, coloquemos cinco degraus. Mas que diabo! A Natureza fatigou-se

milhares, milhares e milhares de séculos para subir esses cinco degraus, do verme ao

homem; teve que evoluir, não é? Essa matéria para atingir como forma e substância este

quinto degrau e se tornar este animal que rouba, que mata, que mente, mas que é também

capaz de escrever a Divina Comédia, senhor Meis, e de se sacrificar como fez sua mãe e a

minha. E de repente, zás! volta à estaca zero? Há lógica? Meu nariz, meu pé se transformarão

em vermes, não minha alma, com os diabos! Alma também é matéria, mas diferente do meu

pé e do meu nariz. Há lógica?

— Desculpe, senhor Paleari — objetei — um grande homem passeia, cai, bate a cabeça e

fica apalermado. Onde está a alma?

O senhor Anselmo ficou um instante a olhar, como se repentinamente lhe tivesse caído uma

pedra aos pés. — Onde está a alma?

— Sim, o senhor ou eu passeio, caio, bato a cabeça, fico apalermado. Onde está a alma?

O senhor Paleari juntou as mãos e, com expressão de benévola piedade, retorquiu:

— Mas santo Deus, por que deseja cair e bater a cabeça, caro senhor Meis?

— Por uma hipótese...

— Mas não! Passeie tranqüilamente. Vejamos os velhos que sem necessidade de cair e bater

a cabeça podem naturalmente ficar apalermados. Pois bem. Que quer dizer? O senhor quer

provar com isto que ao se quebrar o corpo se enfraquece a alma, para demonstrar assim que a

extinção de um importa na extinção do outro? Mas desculpe! Imagine o caso contrário:

corpos excessivamente extenuados onde todavia brilha potentíssima a luz da alma, como

Giacomo Leopardi e tantos velhos, como Sua Santidade Leão XIII! E então? Mas imagine

um piano e um pianista: o piano enquanto é tocado desafina; uma tecla não se abaixa mais;

duas ou três cordas se quebram. Com um instrumento assim o pianista, embora habilíssimo,

terá que tocar mal. E se depois o piano silenciar, não existirá mais o pianista?

- O cérebro seria o piano; o pianista, a alma?

- Velha comparação, Senhor Meis! Ora, se o cérebro se estraga, é claro que a alma se mostra

idiota ou palerma ou maluca. Se o pianista tiver quebrado o instrumento por inadvertência ou

de propósito, pagará: quem quebra, paga. Paga-se tudo, tudo. Mas isto já é outro problema.

Perdão, para o senhor não significará coisa alguma que toda a humanidade, desde que se tem

notícia dela, sempre aspirou outra vida depois da morte? Isto é um fato, uma prova real.

— Dizem: o instinto de conservação...

— Nada disso, pois eu não ligo para a minha carcaça, sabe? Pesa demais e só a suporto

porque sei que a devo suportar. Mas se me provassem que suportá-la por outros cinco, ou

seis, ou dez anos não me faria pagar o meu tributo e que tudo estaria terminado ali, juro que

a destruiria neste momento, hoje mesmo. Então, onde está o instinto de conservação?

Conservo-me unicamente porque sinto que a vida não pode acabar com a morte! Dizem que

uma coisa é o homem em particular, outra coisa é a humanidade. O indivíduo acaba e a

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espécie continua sua evolução. Bela maneira de raciocinar, esta! Veja bem! Como se a

humanidade não fosse eu, não fosse o senhor e, um por um, todos. E não temos todos nós o

sentimento comum de que seria a coisa mais absurda e atroz se tudo consistisse nesse

miserável sopro que é a nossa vida terrena? Cinqüenta, sessenta anos de tédio, misérias,

fadigas, para quê? Para nada! Para a humanidade? Mas se a própria humanidade deverá

terminar um dia? Pense bem: toda esta vida, todo este progresso, toda esta evolução, para

que seriam? Para nada! E o nada, o puro nada, dizem, entretanto, que não existe... Cura do

planeta, como disse o senhor no outro dia? --Está bem: cura. Mas é preciso ver em que

sentido. Olhe, Senhor Meis, o mal da ciência está todo aqui: em querer ocupar-se com a vida

somente.

— Eh! — suspirei, sorrindo — uma vez que devemos viver...

— Mas devemos também morrer — rebateu Paleari. — Entendo, mas por que pensar tanto

nisso?

— Por quê? Porque não podemos compreender a vida se não explicamos a morte! O critério

diretivo das nossas ações, o fio para sair deste labirinto, em resumo, a luz, senhor Meis,

deverá vir de lá, da morte.

— Com o escuro que faz lá?

— Escuro? Escuro para o senhor! Experimente acender uma lâmpada de fé, com o óleo puro

da alma. Se falta essa lâmpada, nós vagueamos aqui na vida, como tantos cegos, apesar de

toda a luz elétrica que inventamos! Está bem, muitíssimo bem para a vida a lâmpada elétrica.

Mas nós, meu caro, temos também necessidade daquela outra para que nos dê um pouco de

luz para a morte. Em certas noites eu experimento também acender uma lanterninha de vidro

vermelho. É preciso que diligenciemos de todos os modos, tentando ver seja como for. No

momento, meu genro Terêncio está em Nápoles. Voltará dentro de alguns meses e então

convidarei o senhor para assistir a algumas das nossas modestas sessõezinhas. E quem sabe

se aquela pequena lanterna... Basta, não quero dizer mais nada.

Como se vê, não era muito agradável a companhia de Anselmo Paleari. Mas podia eu sem

me ver obrigado a mentir aspirar a alguma outra companhia não distante da vida?

Recordava-me ainda do Cavaleiro Tito Lenzi. O senhor Paleari, ao contrário, não se

preocupava em saber coisíssima alguma sobre a minha vida, compensado pela atenção que

eu dava às suas conversas. Quase todas as manhãs, após a sua habitual ablução de todo o

corpo, ele me acompanhava nos meus passeios; íamos até ao Janículo, ao Aventino, ou ao

Monte Mário, às vezes até a Ponte Nomentana, falando sempre da morte.

"Aí está o que eu ganhei", pensava, "por não ter morrido de verdade!"

Algumas vezes tentava mudar a conversa para outro assunto. Mas o Senhor Paleari não tinha

olhos para o espetáculo da vida ali em torno. Caminhava quase sempre com o chapéu na

mão, e a um determinado momento o erguia, como para cumprimentar alguma sombra e

exclamava:

— Tolices!

Uma única vez dirigiu-me, inesperadamente, uma pergunta de caráter pessoal:

— Por que está em Roma, senhor Meis?

Encolhi os ombros, respondendo:

— Porque me agrada viver aqui...

— E, no entanto, é uma cidade triste — observou, balançando a cabeça. — Muita gente se

espanta porque em Roma nenhum empreendimento é levado avante e nenhuma idéia viva

consegue vingar. Mas os que se espantam não querem reconhecer que Roma está morta.

— Roma também, morta? — exclamei consternado.

— Há longo tempo. E é inútil, creia, qualquer esforço para fazê-la reviver. Encerrada no

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sonho do seu majestoso passado, não quer mais saber desta vida mesquinha que se obstina

em pulular em torno dela. Uma cidade que já teve a vida de Roma, com caracteres tão

acentuados e particulares, não pode vir a ser uma cidade moderna, uma cidade igual a

qualquer outra. Roma jaz ali, com o seu grande coração despedaçado, nos flancos do

Capitólio. Acaso pertencem a Roma estas novas casas? Olhe, senhor Meis, minha filha

Adriana me falou sobre a pia de água benta que estava no seu quarto, lembra-se? Adriana a

retirou, mas depois lhe caiu das mãos e se quebrou restando apenas o pequeno recipiente que

se encontra no meu quarto, em cima da minha escrivaninha, consagrado ao uso que o senhor,

por distração, já havia feito. Pois bem, o destino de Roma é idêntico. Os papas

transformaram-na numa pia de água benta. Nós, os italianos, fizemos dela um cinzeiro. Nós

chegamos de todos os lugares para lhe atirar as cinzas dos nossos charutos — que, aliás, são

o símbolo da frivolidade desta miserabilíssima vida e do amargo e venenoso prazer que ela

nos oferece.

XI

DE NOITE, OLHANDO O RIO

À medida que a familiaridade crescia, graças à consideração e à benevolência testemunhadas

pelo dono da casa, aumentava também a minha dificuldade em conversar e o secreto

embaraço que tantas vezes já havia experimentado. Freqüentemente passou a ser agudo

remorso por eu me ver intruso ali naquela família, com um nome falso e a fisionomia

alterada, com uma existência fictícia quase inconsistente. E me propunha conservar a maior

distância possível, lembrando sempre a mim mesmo que eu não devia manter muita

aproximação com a vida dos outros, fugindo de toda intimidade e me contentando em viver

assim, à parte.

— Livre! — dizia ainda.

Mas já começava a penetrar no sentido da minha liberdade, medindo-lhe os confins.

Era isto: a minha liberdade significava permanecer ali, de noite, debruçado numa janela, a

olhar o rio correndo negro e silente sob as pontes, cujos lampiões refletiam na água suas

luzes trêmulas quais serpentes de fogo. Significava seguir com a fantasia o curso das águas,

desde a remota fonte dos Apeninos, através de tantos campos, depois pela cidade e, em

seguida, pelos campos de novo, até a foz; aí eu imaginava o mar tenebroso e palpitante, e

após toda aquela carreira as águas se perdiam. Minha liberdade significava ainda abrir de

quando em vez a boca num bocejo.

— Liberdade... Liberdade... Mas não seria o mesmo noutro lugar?

Em certas noites, no terraço ali ao lado, eu via a mamãezinha da casa ocupada em aguar os

vasos de flores. ―Eis a vida!" pensava. E acompanhava com o olhar a suave menina em sua

gentil tarefa, esperando a cada instante que ela erguesse os olhos até a minha janela. Mas

debalde. Sabia que eu estava ali e fingia ignorar-me. Por quê? Efeito da timidez? Ou acaso

ainda estava zangada comigo porque eu cruelmente me obstinava em não a levar a sério?

Ao largar o regador, apoiava-se no parapeito do terraço, pondo-se também a olhar o rio,

talvez para dar-me a entender que não se preocupava comigo absolutamente, pois tinha

pensamentos graves que a absorviam e necessitava de solidão.

Sorria comigo mesmo a tal idéia. Mas depois vendo-a sair do terraço, concluía que o meu

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julgamento talvez estivesse errado por ser resultado do despeito instintivo ao ver-se

desprezado. E me perguntava:

— Aliás, por que se preocuparia ela comigo? Por que me dirigiria a palavra sem

necessidade? Eu aqui represento a desgraça da sua vida, a loucura do seu pai. Talvez repre-

sente uma humilhação para ela. Talvez ela ainda lamente o tempo em que o pai trabalhava e

não tinha necessidade de alugar quartos trazendo estranhos para casa. E além do mais, um

estranho como eu! Talvez eu lhe faça medo, pobre menina, com este olho e estes óculos...

O rumor de algum carro na ponte de madeira ali perto me arrancava dessas reflexões.

Respirava fundo e saía da janela, olhava a cama, olhava os livros, ficava um momento

indeciso no meio do quarto, encolhia os ombros e agarrava o chapéu saindo com a esperança

de lá fora me livrar daquele sufocante tédio.

Procurava, segundo a inspiração do momento, as ruas mais movimentadas ou os lugares

mais solitários. Recordo uma noite na Praça de São Pedro a impressão de sonho que tive com

aquele mundo secular, encerrado ali no semicírculo do pórtico majestoso, no silêncio

intensificado pelo contínuo rumor das duas fontes. Aproximei-me de uma delas e somente

aquela água me pareceu viva, enquanto tudo o mais emergia como espectros no silêncio

melancólico e na imóvel solenidade.

Retornei pelo Borgo Nuovo e em um determinado momento dei com um bêbado. Ao passar

por mim e vendo-me tão meditativo, inclinou-se e estendeu um pouco a cabeça. Olhou-me

no rosto de baixo para cima e me disse, sacudindo-me levemente o braço:

— Alegria!

Parei de repente, surpreendido, medindo-o da cabeça aos pés.

— Alegria! — repetiu acompanhando a exortação com um gesto da mão que significava:

"Que é que você está fazendo? Em que pensa? Não se preocupe com coisa alguma!"

E se afastou titubeante equilibrando-se com uma das mãos na parede.

Àquela hora pela rua deserta, perto do grande templo e ainda dominado pelos pensamentos

que este me sugerira, fiquei aturdido diante da aparição do bêbado e o seu estranho conselho

filosoficamente piedoso. Quedei-me ali, não sei por quanto tempo, a seguir com o olhar

aquele homem. Depois senti o meu assombro quase se desfazer numa louca risada.

— Alegria! Sim, meu caro. Mas eu não posso ir a uma taberna como você e procurar a

alegria que me aconselha no fundo de um copo. Não a saberia encontrar ali, infelizmente!

Nem tampouco a encontro noutro lugar! Vou ao café, meu caro, vejo pessoas de bem que

fumam e falam de política. Todos felizes, pois poderíamos estar de comum acordo sob a

condição de sermos governados por um bom rei absoluto. Você ignora essas coisas, pobre

bêbado filósofo; nem lhe passam pela mente. Mas a causa verdadeira de todos os nossos

males, desta nossa tristeza, sabe qual é? A democracia, meu caro, a democracia, isto é, o

governo da maioria. Porque se o poder está nas mãos de um só, este sabe que é um e deve

contentar a muitos; mas quando são muitos a governar, preocupam-se apenas em contentar a

si mesmos, resultando então a tirania mais cretina e odiosa: a tirania mascarada de liberdade.

Evidentemente! Por que você acha que eu sofro? Sofro justamente por causa desta tirania

mascarada de liberdade... Retornemos a casa!

Mas aquela era a noite dos encontros.

Passando logo depois por Tordinona, quase na escuridão, ouvi um forte grito num dos becos

que vão dar nessa rua. Inesperadamente, vi precipitar-se na minha frente um agitado grupo

de pessoas brigando. Eram quatro vagabundos armados de paus, perseguindo uma mulher da

rua.

Refiro-me a essa aventura não com intuito de enaltecer meu ato de coragem, mas para

mostrar o medo que tive das conseqüências. Os patifes eram quatro, e eu possuía uma boa

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bengala guarnecida de ferro. É verdade que dois deles investiram contra mim, com facas.

Defendi-me da melhor maneira possível, esquivando-me dos golpes com a bengala, aos

saltos daqui e dali, evitando que me apanhassem no meio. Consegui por fim aplicar na

cabeça do mais encarniçado um golpe bem desferido com o castão de ferro. Eu o vi vacilar e

depois sair correndo. Os outros três, temendo que os gritos da mulher atraíssem alguém,

correram também atrás do primeiro. Não sei como acabei ferido na testa. A mulher não

parava de pedir socorro e eu gritei que se calasse. Mas ela vendo-me com o rosto

ensangüentado não se conteve e, em prantos e toda desgrenhada, queria socorrer-me e me

enfaixar com o lenço de seda que trazia no seio, rasgado na briga.

— Não, não, obrigado — disse, protegendo-me com repugnância. — Basta... Não é nada!

Vá-se embora logo... Não deixe que a vejam.

E me encaminhei em direção da pequena fonte sob a rampa da ponte, ali perto, a fim de lavar

a testa. Enquanto isso chegam dois guardas ansiosos querendo saber o que se passara.

Imediatamente a mulher, que era de Nápoles, começou a narrar o perigo pelo qual passara e

prodigalizando-me as frases mais afetuosas e cheias de admiração do seu repertório dialetal.

Custei a me livrar dos dois zelosos policiais que insistiam para eu denunciar o fato. Ora

essa!Não faltava mais nada! Lidar com a polícia! Aparecer no dia seguinte no noticiário dos

jornais como um herói, eu que devia permanecer calado na sombra, ignorado por todos...

É que herói de verdade eu não podia mais ser. Só se fosse sob a condição de morrer... Mas se

eu já estava morto!

-- Perdão, senhor Meis, é viúvo?

A pergunta me foi dirigida à queima-roupa pela professora Sílvia Caporale, no terraço onde

ela se encontrava com Adriana. Ambas me haviam convidado para lhes fazer companhia.

Constrangido, respondi:

— Não. Por quê?

— Porque o senhor roça sempre o dedo polegar no anular como quem quer fazer rodar um

anel. Assim. . . Não é, Adriana?

Vejam só onde vão meter os olhos das mulheres, isto é, de certas mulheres, pois Adriana

declarou jamais ter percebido.

— Com certeza você não prestou atenção! — exclamou a Caporale.

Tive que reconhecer que embora nunca houvesse dado pela coisa, era provável que tivesse

aquele tique:

— Com efeito por longo tempo usei aqui um anelzinho, mas depois o mandei serrar por um

ourives porque me apertava o dedo e me doía.

— Pobre anelzinho! — gemeu a quarentona enroscando-se toda, disposta naquela noite a

denguices infantis. — Estava assim tão apertado? Não queria mais sair de seu dedo? Será

que era lembrança de um...

— Sílvia! - interrompeu-a a pequena Adriana em tom de censura.

— Que é que tem? — continuou. — Queria dizer de um primeiro amor... Vamos, conte-nos

alguma coisa, Senhor Meis. Será possível que não fale nunca?

— É — disse eu — pensava na conclusão que viria a propósito do meu hábito de roçar o

dedo. Conclusão arbitrária, D. Sílvia. Os viúvos, segundo me consta, não costumam tirar a

aliança. A mulher pode ser que pese, mas não a aliança, quando a mulher não vive mais.

Assim como os veteranos se orgulham de ostentar suas medalhas, também os viúvos, creio,

gostam de usar a aliança.

— Pois sim! — exclamou a Caporale. — O senhor está habilmente desviando a conversa.

— Mas como! Se quero até aprofundar o assunto!

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— Que aprofundar que nada! Eu nunca aprofundo coisa alguma. Tive esta impressão e

pronto.

— De que eu fosse viúvo?

— Sim, senhor. Você também não acha, Adriana, que o Senhor Meis tem jeito de viúvo?

Adriana tentou levantar os olhos para mim porém os abaixou logo, não sabendo tímida como

era, sustentar o olhar dos outros. Sorriu levemente com o seu habitual sorriso, doce e triste,

dizendo:

— O que é que você quer que eu saiba do jeito dos viúvos? Você tem cada uma!

Um pensamento, uma imagem, provavelmente lhe passou naquele momento pelo espírito.

Perturbou-se e se virou para olhar o rio, lá embaixo. Sem dúvida a outra compreendeu,

porque suspirou e também fez o mesmo.

Um quarto personagem invisível se intrometera, ali. Compreendi por fim olhando a roupa de

meio-luto de Adriana. Conjecturei que Terêncio Papiano, o cunhado que se encontrava ainda

em Nápoles, não apresentava jeito de viúvo compungido e que, segundo a Caporale quem

tinha este jeito era eu.

Confesso que me agradou o fato da conversa ter acabado assim tão mal. A dor provocada em

Adriana pela lembrança da falecida irmã e de Papiano viúvo era para a Caporale, o castigo

por sua indiscrição.

Aliás, sejamos justos, aquilo que me parecera indiscrição era no fundo natural e perdoável

curiosidade que por força nascia do estranho silêncio em torno da minha pessoa. Já que a

solidão se tornara insuportável para mim e eu não resistia mais à tentação de me aproximar

dos outros, cumpria-me satisfazer às perguntas dos que estavam no direito de saber com

quem lidavam. Em outras palavras, precisava mentir, inventar. Não restava outra alternativa!

A culpa era minha e não dos demais. É verdade que com a mentira agravaria a culpa. A

mentira me provocava remorsos e sofrimentos, mas se eu não a aceitasse teria que partir,

recomeçando as minhas andanças, fechado e solitário.

Notava que a própria Adriana, apesar de nunca me dirigir perguntas indiscretas,

concentrava-se toda ao ouvir o que eu respondia às indiscrições da Caporale, que

ultrapassavam os limites da curiosidade natural e perdoável.

Uma noite, no terraço onde nos acostumáramos a nos reunir depois do jantar, Sílvia Caporale

deu eloqüente mostra de indiscrição. Adriana lhe gritava, excitadíssima:

— Não, Sílvia, não permito!

Mas ela rindo e se defendendo da moça, me perguntou:

— Desculpe, Senhor Meis, Adriana quer saber por que o senhor não deixa crescer ao menos

o bigode...

— Não é verdade! - gritou Adriana. — Não acredite, Senhor Meis! Foi ela, isso sim... Eu...

Derramou-se em lágrimas a cara mamãezinha. Imediatamente a Caporale procurou

confortá-la, dizendo-lhe:

— Mas o que é isso? Que há de mal? Que é que tem? Adriana afastou-a com o cotovelo:

— Tem muita coisa, sim; você mentiu e me fez ficar com raiva! Falávamos dos atores de

teatro que são todos... assim, e então você disse: "Como o Senhor Meis! Quem sabe por que

não deixa ao menos crescer o bigode. . . — E eu repeti: -É mesmo, quem sabe por quê?...—

— Pois então — continuou a Caporale — quem diz "Quem sabe por quê..." quer dizer que

quer saber!

— Mas foi você quem disse primeiro! — protestou Adriana, no auge da cólera.

— Posso responder? — indaguei tentando restabelecer a calma.

— Não, desculpe Senhor Meis, boa noite! — disse Adriana; e se levantou para se retirar.

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Mas a Caporale a deteve por um braço:

— Puxa! Como você é bobinha! É brincadeira ... O Senhor Adriano é tão bom que nem se

importa e nos desculpa. Não é verdade, Senhor Adriano? Diga o senhor mesmo a ela... por

que não deixa crescer ao menos o bigode.

Desta vez Adriana se riu, com os olhos ainda cheios de lágrimas.

— Porque há debaixo disto um mistério — respondi alterando burlescamente a voz. — Sou

conspirador!

— Não acreditamos! — exclamou a Caporale, no mesmo tom. E em seguida acrescentou:

— Mas ouça: não resta dúvida de que o senhor é um sonso. O que foi fazer hoje depois do

almoço, no Correio?

— Eu? No Correio?

— Sim, senhor. Nega? Eu o vi com os meus próprios olhos. Mais ou menos às quatro horas...

Eu passava pela Praça São Silvestre...

— Deve estar enganada, D. Sílvia, não era eu.

— Hum! — fez ela incrédula. — Correspondência secreta... Porque o Senhor Adriano nunca

recebe correspondência em casa. Foi a criada quem disse, atenção!

Adriana se agitou, aborrecida, na cadeira.

— Não ligue para o que ela diz — acudiu, lançando-me um rápido olhar aflito e quase

carinhoso.

— Nem em casa nem posta restante! — esclareci. — Infelizmente é verdade! Ninguém me

escreve pela simples razão de não haver ninguém que me possa escrever.

— Nem ao menos um amigo? Será possível? Ninguém?

— Ninguém. Somos eu e a minha sombra na face da terra. Carrego comigo esta sombra

daqui para ali sem cessar, e nunca me demorei tanto num lugar que pudesse formar uma

amizade duradoura.

— Feliz do senhor! — suspirou a Caporale — que viajou a vida inteira! Fale-nos ao menos

de suas viagens, já que não quer falar de outra coisa.

Aos poucos, superados os obstáculos das primeiras perguntas embaraçosas e afastando

alguns com os remos da mentira, que me serviam de alavanca e ponto de apoio, agar-

rando-me com ambas as mãos às perguntas que mais me constrangiam, desviando-as

devagar e prudentemente, a barca da minha ficção pôde por fim navegar ao largo e içar as

velas da fantasia.

E eis que após mais de um ano de silêncio forçado sentia um grande prazer em falar, falar

todas as noites ali no terraço, sobre o que vira, as observações feitas, os incidentes ocorridos,

etc. Espantava-me a quantidade de impressões colhidas em viagem que estavam sepultadas

em mim e que ressuscitavam, jorrando-me vivas dos lábios. Essa íntima surpresa coloria

extraordinariamente a minha narração. Pelo prazer que as duas mulheres demonstravam ao

me ouvir nascia-me pouco a pouco a saudade de um bem que não gozara realmente — essa

saudade também emprestava um novo sabor à minha narração.

Depois de algumas noites a atitude e os ares da professora Caporale estavam radicalmente

mudados a meu respeito. Os seus olhos dolentes se entorpeceram de um langor tão intenso,

que acentuaram extraordinariamente a imagem do contrapeso de chumbo interno e, mais que

nunca, sobressaiu o contraste burlesco entre estes e o rosto de máscara carnavalesca. Não

restavam dúvidas, ela estava apaixonada por mim!

O ridículo espanto que experimentei levou-me a descobrir que em todas aquelas noites não

havia absolutamente me dirigido a ela. Falava somente à outra, sempre taciturna e atenta, e

que evidentemente percebera ser o meu alvo, pois se estabeleceu entre nós um mudo

entendimento de nos divertirmos às custas do cômico e imprevisto efeito das minhas

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palavras sobre as sensibilíssimas cordas sentimentais da quarentona professora de piano.

Mas tal descoberta não me despertou pensamentos menos puros em relação a Adriana. A sua

cândida bondade impregnada de tristeza não podia inspirar coisas impuras. Provava uma

grande alegria por aquela primeira confiança, tão medrosa quanto permitia a sua delicada

timidez. Era um fugitivo olhar, um lampejo de graça dulcíssima; era um sorriso de

comiseração pela ridícula ilusão daquela pobre mulher; era algum benévolo sinal que ela

fazia com os olhos e um leve movimento de cabeça, se eu me excedia um pouco, no nosso

secreto divertimento. As ilusões da solteirona eram como um papagaio de papel; quando eu

lhe soltava a linha um pouquinho mais, ele voava nos céus da beatitude, mas se retraía, com

uma puxada repentina e violenta.

— O senhor não deve ter muito coração — disse-me certa vez a Caporale — se é verdade que

passou até agora incólume pela vida, eu certamente duvido.

— Incólume?

— Sim, quero dizer, livre de paixões...

— Ah, nunca, nunca!

— Entretanto, se recusou a esclarecer de onde surgiu o anelzinho que mandou cerrar por um

ourives, porque lhe apertava muito o dedo ...

— E me doía! Não lhe disse, D. Sílvia? Sim! Era uma lembrança do meu avô.

— Mentira!

— Como achar melhor. Mas olhe, acrescento-lhe até que meu avô me presenteou o

anelzinho em Florença, ao sairmos da Galleria degli Uffizi, porque eu, que tinha na ocasião

doze anos, trocara um Perugino por um Rafael. Exatamente isso. O prêmio do erro foi o

anelzinho, comprado numa das lojas de Ponte Vecchio. Meu avô garantia, não sei por quais

razões, que aquele quadro de Perugino deveria ao contrário ser atribuído a Rafael. Eis a

explicação do mistério! Há de convir que entre a mão de um garoto de doze anos e este

pedaço de mão há uma grande diferença. Está vendo? Agora sou todo assim, igual a esta mão

grosseira que não comporta mais anéis. Coração talvez tenha. Mas sou também justo, D.

Sílvia. Olho-me no espelho, com estes belos óculos, que não deixam de ter sua função

caridosa, e pergunto a mim mesmo desanimado: "Como é que você pode pretender, meu caro

Adriano, que alguma mulher se apaixone por você?"

— Oh, que idéias! — protestou a Caporale. — Mas o senhor acha que está sendo justo,

dizendo estas coisas? Pelo contrário, é injustíssimo para conosco, as mulheres. Porque a

mulher, caro Senhor Meis, é mais generosa do que o homem e não faz tanta questão da

beleza exterior.

— Digamos então que a mulher é também mais corajosa que o homem, D. Sílvia. Pois

reconheço que além da generosidade, seria necessário uma boa dose de coragem para amar

realmente um homem igual a mim.

— Mas deixe disso! O senhor gosta de se fazer mais feio do que é.

— É verdade. E sabe por quê? Para não inspirar compaixão a ninguém. Se procurasse

melhorar a minha aparência, faria com que dissessem: "Olhe só aquele coitado. Ilude-se com

a idéia de parecer menos feio com aquele bigode!" Mas assim, não. Sou feio? Ora muito

bem, feio mesmo, sem misericórdia. Que diz?

A Caporale soltou um profundo suspiro.

— Digo que não tem razão. Se procurasse, ao contrário, deixar crescer um pouco a barba, por

exemplo, perceberia logo que não é o monstro que se considera.

— E este olho aqui? -- perguntei.

— Oh, Deus do céu! fez ela — Uma vez que falo sem rodeios, vou dizer-lhe o que já gostaria

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de ter dito há vários dias: por que não se submete a uma operação, hoje em dia facílima?

Poderia livrar-se em pouco tempo deste leve defeito.

--Está vendo? — concluí. — Sem duvida a mulher é mais generosa do que o homem. Mas

quem foi que pouco a pouco me aconselhou a arranjar outro rosto?

Por que eu insistira tanto nesse assunto? Quereria por ventura que a professora Caporale

desembuchasse ali em presença de Adriana que me amava, com a cara toda raspada e o olho

torto? Não. Se falara tanto e dirigira todas aquelas perguntas detalhadas à Caporale é que

percebera o prazer que sentia Adriana diante das respostas vitoriosas que a outra me dava.

Compreendi então que não obstante o meu aspecto estrambótico ela poderia amar-me. Não o

confessei nem a mim mesmo. A partir daquela noite achei mais macio o leito que ocupava

naquela casa, mais simpáticos todos os objetos que me circundavam, mais leve o ar que

respirava, mais azul o céu, mais esplêndido o sol. Acreditei que a mudança provinha ainda da

morte de Matias Pascal no moinho da Stía e também do fato de que eu, Adriano Meis, após

ter perambulado tanto tempo perdido naquela nova liberdade ilimitada, tivesse adquirido

finalmente o equilíbrio e alcançando o ideal a que me propusera, transformando-me num

outro homem para viver uma vida que sentia plenamente em mim.

E o meu espírito voltou a ser alegre como na primeira juventude. Perdeu o veneno da

experiência. Cheguei até a achar menos enjoado o senhor Anselmo. A sombra, a névoa, o

fumo da sua filosofia se desfizeram ao sol daquela minha nova alegria. Pobre senhor

Anselmo! Das duas coisas em que se deveria pensar na terra, segundo a sua opinião, ele não

desconfiava que eu pensasse apenas em uma. Mas talvez, ora! tivesse eu também pensado

em viver minha juventude! Era mais digna de compaixão a professora Caporale, à qual nem

mesmo o vinho conseguia dar a alegria do inesquecível bêbedo de Borgo Nuovo. Queria

viver, pobrezinha, e considerava não generosos os homens que se preocupavam somente

com a beleza exterior. Portanto, intimamente em sua alma, acaso se sentiria bela? Oh! Quem

sabe de quais e de quantos sacrifícios seria capaz se realmente encontrasse um homem gene-

roso! Talvez não bebesse mais nem um dedo sequer de vinho!

"Se nós reconhecemos", pensava eu, "que errar é humano, não é uma crueldade suprema a

justiça?"

E me propus não ser mais cruel com a Caporale. Mas infelizmente fui cruel sem querer. A

minha afabilidade constituiu novo estímulo ao seu fácil fogo. Passou a acontecer isto: com as

minhas palavras a pobre mulher empalidecia, enquanto Adriana corava. Não sabia bem o que

dizia, mas sentia que a expressão e o som de cada palavra perturbavam aquela a quem eu

realmente me dirigia, sem quebrarem a secreta harmonia que já se estabelecera entre nós.

Enquanto as almas têm um modo particular de se entenderem e se tratarem com intimidade,

os corpos continuam presos ao comércio das palavras comuns e à escravidão das exigências

sociais. As almas têm necessidades próprias e próprias aspirações, as quais o corpo mostra

não ter compreendido quando vê a impossibilidade de satisfazê-las e traduzí-las em ações.

Duas pessoas que se comunicam apenas com as almas, ao se encontrarem sozinhas em algum

lugar sentem um embaraço angustioso e quase uma repulsão violenta por qualquer contacto

material, um sofrimento que as afasta mas que cessa imediatamente pela intervenção de um

terceiro. Passada a angústia, as duas almas aliviadas se procuram e voltam a trocar sorrisos

de longe.

Quantas vezes fiz essa experiência com Adriana! O seu embaraço era efeito da natural

reserva e timidez da índole, enquanto o meu certamente derivava do remorso que o

fingimento me causava, contínuo e forçado fingimento diante da candura e ingenuidade

daquela meiga e doce criatura.

Eu a via então com outros olhos. Mas não se transformara ela realmente naqueles dias? Não

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já fazia um mês que os seus olhares fugitivos se acendiam com uma luz interior mais viva? E

os seus sorrisos não acusavam ser menos penoso o esforço daquela atitude de circunspecta

mamãezinha e que me parecera no começo uma ostentação?

Talvez instintivamente ela também obedecesse à minha própria necessidade de criar a ilusão

de uma nova vida, sem pretender saber nem qual, nem como. Um vago desejo, uma brisa da

alma, abria-nos docemente uma janela no futuro de onde chegava até nós um raio de

inebriante tepidez; não sabíamos, entretanto, nos aproximar daquela janela nem para a fechar

novamente nem para ver o que havia do outro lado.

E a pobre professora Caporale se ressentia dos efeitos dessa nossa pura e suavíssima

embriaguez.

— Sabe, D. Sílvia, — disse-lhe uma noite — estou quase decidido a seguir o seu conselho.

— Qual?

— Sobre uma operação na vista.

A Caporale bateu as mãos, toda contente.

— Ah! Ótimo! O Doutor Ambrosini! Procure o Doutor Ambrosini. É o mais competente.

Operou a catarata da minha pobre mãe. --Está vendo? --Está vendo, Adriana? O espelho

falou. Que lhe dizia eu?

Adriana sorriu e eu sorri também.

— Não foi exatamente o espelho — adverti. — A necessidade se impôs. Há algum tempo

este olho me incomoda. Nunca me serviu bem, é verdade, mas não gostaria de perdê-lo.

Mentira. A Caporale tinha razão. O espelho me falara, dizendo que, se uma operação

relativamente leve poderia eliminar de meu rosto o vergonhoso sinal tão peculiar de Matias

Pascal, Adriano Meis estaria em condições de dispensar os óculos azuis e se permitir um

bigode, harmonizando-se fisicamente melhor com as próprias mudanças espirituais.

Poucos dias depois, uma cena noturna a que assisti, escondido atrás da persiana de uma das

minhas janelas, me transtornou repentinamente.

A cena se desenrolou no terraço onde eu me demorara até às dez horas, na companhia das

duas mulheres. Ao me retirar para o quarto, pusera-me a ler, distraído, um dos livros

prediletos do senhor Anselmo, sobre a Reencarnação. Em certo momento tive a impressão de

ouvir vozes no terraço. Prestei atenção a fim de verificar se era Adriana. Não. Duas pessoas

falavam em voz baixa e alterada. Percebi uma voz masculina que não era a de Paleari. Não

havia outros homens na casa, a não ser o velho e eu. Cheio de curiosidade, aproximei-me da

janela, procurando olhar através das persianas. Na escuridão, um vulto se assemelhava a

Sílvia Caporale. Mas quem era o homem? Terencio Papiano teria acaso chegado de

Nápoles?

Por uma palavra proferida mais alto pela Caporale compreendi que falavam de mim.

Aproximei-me ainda mais, prestando maior atenção. O homem se mostrava irritado,

certamente com o que a professora de piano lhe dissera a meu respeito e, no momento, esta

tentava atenuar a impressão que as noticias haviam produzido no ânimo do outro.

— Rico? — indagou ele.

— Não sei... Creio que sim! O certo é que vive às próprias custas, sem fazer nada...

— Sempre em casa?

— Claro que não! Amanhã você o verá...

Notei que ela o tratara por você. Então Papiano (não havia mais dúvidas) era seu amante...

Mas por que afinal durante todos aqueles dias ela se mostrara tão condescendente comigo?

A curiosidade aumentou-me. E quase como se os dois fizessem de propósito, puseram-se a

falar baixíssimo. Não conseguindo perceber mais coisa alguma com os ouvidos, apelei para

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os olhos. E vi que a Caporale pousava uma das mãos no ombro de Papiano. Logo em seguida

este a repeliu brutalmente.

— Mas como é que eu podia impedir? — disse ela, alterando um pouco a voz, com intensa

exasperação. — Quem sou? Que represento nesta casa?

— Vá chamar Adriana! — ordenou-lhe imperiosamente.

Ouvindo proferir o nome de Adriana naquele tom, apertei os punhos, sentindo ferver o

sangue nas veias.

— Está dormindo — disse a Caporale.

Ele, zangado e ameaçador:

— Vá acordá-la! Imediatamente!

Não sei como me contive e não escancarei arrebatadamente a janela.

Esforçando-me por me controlar pude, entretanto, cairi em mim. As mesmas palavras ditas

em meio a tanta exasperação por aquela pobre mulher me vieram aos lábios: "Quem sou?

Que represento nesta casa?‖

Retirei-me da janela. Imediatamente, porém, me veio ao espírito a desculpa de que falavam

de mim e aquele homem queria ainda conversar com Adriana a meu respeito. Precisava

conhecer os sentimentos dele em relação a mim.

A facilidade com a qual desculpei a minha indelicadeza em espionar os outros me fez

compreender que eu colocava em primeiro lugar o meu próprio interesse, a fim de não tomar

consciência do interesse muito mais vivo que outra pessoa me despertava no momento.

Voltei a olhar através das persianas.

A Caporale não se encontrava mais no terraço. O homem, sozinho, pusera-se a olhar o rio,

apoiando os dois cotovelos no parapeito e a cabeça entre as mãos.

Tomado por frenética ansiedade, aguardei, apertando fortemente os joelhos com as mãos,

que Adriana aparecesse no terraço. A longa espera, em vez de me cansar, me aliviou aos

poucos, proporcionando-me viva e crescente satisfação. Imaginei que Adriana não quisesse

ceder à prepotência daquele insolente. Talvez a Caporale lhe implorasse de mãos postas.

Enquanto isso, ele se roía de despeito. A um determinado momento, esperei que a professora

viesse anunciar que Adriana se recusara a se levantar. Mas não, ei-la!

Papiano correu ao seu encontro e intimou a outra.

— A senhora vá deitar-se! Quero falar com a minha cunhada.

A Caporale obedeceu e Papiano se dispôs a fechar a porta entre a sala de jantar e o terraço.

— Nada disso! — objetou Adriana, impedindo com o braço.

— Mas eu tenho que falar com você! — vociferou o cunhado sinistramente e se esforçando

por falar baixo.

— Fale assim mesmo! Que é que você quer dizer? Não poderia esperar até amanhã?

— Não, agora! rebateu, segurando-a por um braço e puxando-a a si.

— Mas afinal de contas, o que é isto? — gritou Adriana, desvencilhando-se dele,

violentamente.

Não me contive mais e abri a persiana.

— Oh! Senhor Meis! — exclamou ela, imediatamente. — Quer vir aqui um momento, se não

lhe for incômodo?

— Vou já, D. Adriana!

O coração me saltou no peito, de alegria e reconhecimento. Num pulo estava no corredor.

Mas perto da porta do meu quarto, encontrei enroscado em cima de um baú um jovem

esmirrado e louríssimo, de rosto muito comprido e diáfano, que mal abria dois olhos azuis,

lânguidos e atônitos. Parei um momento, surpreso, olhando-o. Devia ser o irmão de Papiano.

Corri ao terraço.

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— Senhor Meis, apresento-lhe o meu cunhado, Terêncio Papiano, que acaba de chegar de

Nápoles.

Ele se desmanchou em salamaleques, descobrindo-se e apertando-me calorosamente a mão:

— Muitíssimo prazer! Estou felicíssimo em conhecê-lo! Lamento a minha ausência de

Roma, durante todo este tempo. Mas tenho certeza de que a minha cunhadinha soube tomar

todas as providências, não é verdade? Se lhe faltar algo, diga! Se precisar de uma

escrivaninha mais ampla... ou de qualquer outro objeto, diga sem cerimônia ... Aqui nós

gostamos de agradar os hóspedes que nos honram.

— Muito obrigado — disse. — Não me falta absolutamente nada. Obrigado.

— Pois esteja à vontade e conte comigo em todas as ocasiões, embora eu não sirva para

muita coisa... Adriana, minha filha, você estava dormindo, se quiser, pode voltar ao seu

quarto...

— Eh, agora — fez Adriana sorrindo tristemente — agora que me levantei...

E se aproximando do parapeito, ela se pós a olhar o rio. Percebi que ela se recusava a me

deixar só com Papiano. O que temia? Ficou ali absorta, enquanto o cunhado, com o

chapéu ainda na mão, me falava de Nápoles onde se demorara mais do que pretendia, a fim

de copiar grande quantidade de documentos do arquivo particular da excelentíssima Senhora

Duquesa Dona Teresa Ravaschieri Fieschi — Mamãe Duquesa, como todos a chamavam,

Mamãe Caridade, conforme ele gostaria de chamá-la. Documentos de extraordinário valor,

que lançariam nova luz sobre o fim do Reino das Duas Sicílias e particularmente sobre a

figura de Caetano Filangieri, Príncipe de Sartriano, que O Marquês Giglio, Dom Inácio

Giglio d'Auletta, do qual ele, Papiano, era secretário, pretendia ilustrar numa biografia

detalhada e sincera. Sincera ao menos na proporção que a devoção e a fidelidade aos

Bourbons permitiriam ao senhor Marquês.

Ele não acabava mais. Certamente se deliciava com a própria eloqüência e emprestavam à

voz inflexões de experimentado ator dramático, lançando mão de uma risadinha aqui, de um

gesto expressivo ali. Enquanto eu, estupefato, ora aprovava abestalhadamente com a cabeça

o que ele dizia, ora voltava os olhos na direção de Adriana, que continuava a olhar o rio.

— Eh! Infelizmente! — trovejou Papiano gravemente, à guisa de conclusão. — Borbônico e

clerical, o Marquês Giglio d'Auletta! E eu, eu que todas as manhãs, antes de sair, faço com a

mão uma saudação à estátua de Garibaldi, no Panículo, eu que gritaria toda hora: "Viva o 20

de setembro!", devo servir-lhe de secretário! Digníssimo homem, não esqueçamos — mas

borbônico e clerical. Sim senhor... Pão! Juro que muitas vezes tenho vontade de cuspir,

perdoe-me! Fica aqui atravessado na garganta e me afoga... Mas, que fazer? Pão! Pão!

Encolheu os ombros duas vezes, levantou os braços e bateu as mãos fortemente nas pernas.

— Vamos, vamos, Adrianinha — disse em seguida, indo ao encontro da cunhada e

segurando-a levemente pela cintura com ambas as mãos.

— Para a cama! É tarde. O senhor Meis com certeza está com sono.

Diante da porta do meu quarto, Adriana me apertou fortemente a mão, como até aquele

momento jamais fizera. Ao me ver só conservei longamente o punho cerrado, guardando a

pressão da sua mão. Debati-me a noite inteira entre contínuas obsessões. A cerimoniosa

hipocrisia, o servilismo insinuante e loquaz e as más intenções daquele homem certamente

me teriam tornado intolerável a permanência naquela casa, onde sem dúvida ele queria

dominar, aproveitando-se da bonomia do sogro. Quem sabe quais meios ele usaria! Já me

havia fornecido uma amostra, transformando-se repentinamente diante da minha aparição.

Mas por que veria com tão maus olhos a minha presença ali? Por que não seria eu para ele

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um hóspede igual a outro? Que lhe dissera a meu respeito a Caporale? Teria realmente

ciúmes dela? Ou os ciúmes seriam de outra? A sua atitude arrogante e suspeita, o seu jeito de

expulsar a Caporale para ficar só com Adriana, à qual começara a falar com tanta violência.

A rebelião e a obstinação de Adriana em não permitir que ele fechasse a porta, a inquietação

que a perturbava quando se fazia alguma alusão ao cunhado ausente, tudo aumentava em

mim a suspeita odiosa de que ele tivesse alguma intenção em relação à moça.

E por que eu me irritava tanto? Afinal de contas poderia deixar aquela casa se o tal sujeito me

aborrecesse, mesmo se fosse do modo mais insignificante. E o que me prendia? Nada. Mas

com uma ternura complacente recordava que ela do terraço me chamara, quase me pedindo

proteção e me havia apertado fortemente a mão ...

Deixara aberta a persiana, abertos os postigos. Por um momento a lua, declinando,

mostrou-se no vão de minha janela, para me espiar e me surpreender ainda acordado na

cama, e me dizer:

— Compreendi, meu caro, compreendi! E você? Não? De verdade?

XII

O OLHO E PAPIANO

A tragédia de Orestes num teatrinho de marionetes! — veio anunciar-me o Senhor Anselmo

Paleari. — Marionetes automáticas, última invenção. Hoje à noite, às oito e meia, na Rua dos

Prefeitos, número cinqüenta e quatro. Vale à pena ir, Senhor Meis.

— A tragédia de Orestes?

— Isso mesmo! Segundo Sófocles, diz o cartaz. Será Electra. Agora, escute só que idéia

bizarra me veio à mente! No momento culminante exatamente quando a marionete que

representa Orestes estivesse prestes a matar Egisto e a mãe para vingar a morte do pai, se por

acaso o céu de papel do teatrinho se rasgasse, o que aconteceria? Diga-me.

— Não sei — respondi, encolhendo os ombros.

— Mas é facílimo, Senhor Meis! Orestes ficaria terrivelmente desconcertado, por causa

daquele buraco no céu. — E por quê?

— Deixe-me dizer. Orestes sentiria ainda os impulsos da vingança, querendo-os satisfazer

com sedenta ira; mas os olhos, naquele instante, iriam parar ali, no rasgão, através do qual

toda espécie de maus influxos penetrariam na cena e então ele sentiria os braços lhe caírem.

Em resumo, Orestes se transformaria em Hamlet. Toda a diferença, Senhor Meis, entre a

tragédia antiga e a moderna consiste nisto, creia: num buraco no céu de papel.

E se retirou, arrastando os chinelos.

Dos píncaros nublados das suas abstrações o senhor Anselmo muitas vezes deixava rolar,

assim em avalanches, os seus pensamentos. A razão, o nexo, a oportunidade destes ficavam

lá em cima entre as nuvens, de modo que para alguém que o escutava se tornava difícil

entender qualquer coisa.

A imagem da marionete de Orestes, desconcertada pelo buraco no céu continuou algum

tempo no meu espírito. Então suspirei: "Felizes as marionetes, que por sobre suas cabeças de

madeira o fingido céu se conserva sem rasgões! Nem indecisões angustiosas, nem

escrúpulos, nem entraves, nem sombra, nem piedade, nada! E podem entregar-se

71

valentemente e tomar gosto pela própria comédia e amar e sentir consideração e estima por

si, sem sofrer jamais vertigens ou tonteiras, pois para as suas dimensões e ações aquele céu é

um telhado proporcional.

"E o protótipo dessas marionetes, caro Senhor Anselmo, está na sua casa na pessoa de seu

indigno genro Papiano. Quem vive mais satisfeito do que ele, tendo sobre a cabeça o baixo

céu de papelão, cômoda e tranqüila morada daquele Deus proverbial de mangas largas,

pronto a fechar os olhos e erguer as mãos em remissão? Aquele Deus que repete, sonolento,

a cada patifaria: faça a sua parte e eu o ajudarei... Não resta dúvida de que Papiano faz a sua

parte. A vida para ele, é quase um jogo de habilidade. E como gosta de se meter em

maquinações! Ativo, furão, falador!'

Papiano tinha aproximadamente quarenta anos. Alto, robusto, um tanto calvo, grosso bigode

ainda não grisalho debaixo de um narigão de narinas frementes, olhos acinzentados, agudos

e irrequietos como as mãos. Via tudo e pegava em tudo. Enquanto falava comigo, percebia

que Adriana atrás dele lutava com alguma dificuldade para limpar ou recolocar algum objeto

no quarto e, imediatamente, precipitando-se:

— Com licença!

Corria até ela e tomava-lhe o objeto das mãos:

— Não, minha filha, olhe, é assim que se faz!

E ele mesmo o limpava e ele mesmo o recolocava no lugar e voltava a conversar comigo. Ou

então percebia que o irmão, o qual sofria de convulsões epiléticas, "se encantava" e corria a

lhe dar tapinhas nas faces ou piparotes no nariz:

— Cipião! Cipião!

Ou lhe soprava no rosto, até o fazer voltar a si.

Quem sabe o quanto me teria divertido com ele se eu não estivesse naquela situação!

Por certo percebeu algo desde os primeiros dias, ou pelo menos desconfiou. Iniciou um

assédio cerrado de obséquios e atenções que eram ganchos para me levarem a falar. Eu julga-

va que as suas palavras, as perguntas, mesmo as mais banais escondiam uma insídia. Não

gostaria de demonstrar desconfiança, pois assim aumentaria as suas suspeitas. Mas a

irritação provocada por aquele seu jeito de perseguidor algoz e obsequioso me impedia de

dissimular bem.

A irritação me provinha também de duas causas internas e secretas. A primeira era que eu,

sem haver cometido más ações nem prejudicado ninguém, via-me forçado a me defender

daquela forma, de todos os lados, como se tivesse perdido o direito de viver em paz. A

outra, não quisera confessar nem a mim mesmo, me irritava ainda mais, sorrateiramente.

Inutilmente eu me advertia:

— Idiota! Vá-se embora logo! Livre-se deste importuno! Não ia, não podia ir embora.

A luta que travara comigo para não tomar consciência do que sentia por Adriana me impedia

de medir as conseqüências da minha anormalíssima condição de existência em relação

àquele sentimento. E continuava ali, indeciso, ansioso, insatisfeito comigo mesmo, numa

superexcitação permanente e, apesar de tudo, sorridente para os outros.

Ainda não conseguira esclarecer o que vira naquela noite escondido atrás das persianas.

Conforme tudo levava a crer, a má impressão que Papiano tivera de mim através das notícias

da Caporale se desfizera imediatamente à minha apresentação. Ele me atormentava, mas era

como se não pudesse deixar de fazê-lo e, certamente, sem o desígnio secreto de me obrigar a

ir embora. Até pelo contrário! Que maquinava?

Adriana, após seu regresso, retomara seus ares tristes e esquivos dos primeiros dias. A

professora Caporale tratava Papiano por senhor, ao menos em presença dos demais, mas o

fanfarrão a tratava por você, chamando-a até de Rea Silvia. Eu não sabia interpretar suas

72

maneiras familiares e burlescas. Evidentemente a desgraçada não merecia grande respeito

devido ao desregramento da sua vida, mas não merecia tampouco aquele tratamento por

parte de um homem que não tinha com ela qualquer parentesco.

Numa clara noite de lua eu a vi da minha janela, só e triste, lá no terraço onde passáramos a

nos reunir raramente e não mais com o prazer de antes, porque Papiano interferia e falava por

todos. Impelido pela curiosidade, resolvi surpreendê-la naquele momento de abandono.

Encontrei no corredor, à saída do meu quarto, o irmão de Papiano na costumeira posição

enroscado em cima do baú. Teria fixado domicílio ali ou bancava o sentinela por ordem do

irmão?

A professora, no terraço, chorava. No começo não me quis dizer coisa alguma. Lamentou-se

apenas de fortíssima dor de cabeça. Depois, como se tomasse uma resolução repentina

virou-se, olhou-me no rosto, estendeu uma das mãos e me perguntou:

— O Senhor é meu amigo?

— Se me conceder esta honra... — respondi, inclinando-me.

— Obrigada. Vamos deixar de lado estas cerimônias, por favor! Se soubesse o quanto

necessito de um amigo, de um verdadeiro amigo, neste momento! O Senhor por certo

compreende, o Senhor que é só no mundo, igual a mim... Mas o Senhor é um homem! Se

soubesse... Se soubesse. . .

Mordeu o lencinho que trazia na mão, procurando conter as lágrimas. Sem o conseguir,

rasgou violentamente o lenço.

— Mulher, feia, velha: três desgraças contra a qual não há remédio! Por que vivo?

Consternado tentei confortá-la, mas não acertei a dizer muita coisa:

— Acalme-se, vamos, D. Sílvia, por que fala assim?

— Porque... — prorrompeu, mas se deteve repentinamente.

— Diga — incitei-a. -- Se necessita de um amigo...

Levou aos olhos o lencinho rasgado e...

— Aquilo de que mais necessito seria morrer! — gemeu com amargura tão profunda e

intensa, que logo senti um nó de angústia na garganta.

Jamais esquecerei a dolorosa prega daquela boca murcha e desgraciosa, ao proferir tais

palavras, nem o frêmito do queixo sobre o qual se torciam alguns pelinhos pretos.

— Mas nem a morte me quer — prosseguiu. — Nada... desculpe, Senhor Meis! Que ajuda

me daria o Senhor? Nenhuma! Quando muito, palavras... Sim, um pouco de compaixão. Não

tenho ninguém e devo ficar aqui, tratada como... Bem, talvez o Senhor tenha percebido. E

não tem o direito, sabe? Porque não me fazem nenhuma esmola...

E aqui se referiu às seis mil liras que Papiano lhe extorquiu, às quais já fiz alusão.

Embora me interessasse por aquela infeliz, não era bem da sua dor que eu queria saber.

Aproveitando-me da excitação em que se achava, talvez também por ter bebido uns copinhos

a mais, arrisquei a perguntar:

— Desculpe, D. Sílvia, mas por que lhe deu esse dinheiro?

— Por quê? — E cerrou os punhos. — Duas perfídias, cada qual mais negra do que a outra!

Dei-lhe o dinheiro para lhe mostrar que havia percebido muito bem o que pretendia de mim.

Entendeu? Com a mulher ainda viva, este...

— Entendi...

— Imagine — prosseguiu com ímpeto. — A pobre Rita...

— A esposa?

— Sim, a irmã de Adriana... Dois anos doente, entre a vida e a morte... Imagine se eu... Bem,

aqui todos sabem como eu me portei. Adriana sabe e por isto me quer bem. Ela sim,

pobrezinha. Mas a que me reduzi agora? Por ele me desfiz até do piano, que era para mim...

73

tudo, compreende? Não pela minha profissão apenas. Eu falava com o meu piano! Quando

jovem, na Academia, compunha. Compus mesmo depois, já diplomada. Mas abandonei

tudo. Quando tinha o piano compunha ainda para mim somente, improvisando

inesperadamente. Desabafava... inebriava-me até cair no chão, creia, desmaiada, em certos

momentos. Nem eu mesma sei o que me saía da alma. Tornava-me uma coisa só, com o meu

instrumento e os dedos não vibravam mais em cima do teclado, porque eu fazia chorar e

gritar a minha alma. Digo-lhe somente que uma noite (minha mãe e eu morávamos num

sótão) juntou-se gente lá embaixo na rua para me aplaudir longamente, no fim. E eu cheguei

quase a ter medo daquilo.

— Mas, desculpe, D. Sílvia — sugeriu, procurando de algum modo confortá-la — não se

poderia alugar um piano? Gostaria tanto de ouvi-la tocar... E se...

— Não — interrompeu — para que tocar mais? --Está tudo acabado. Arranho cançõezinhas

insípidas. Basta. Acabou-se...

— Mas o Senhor Terêncio — arrisquei a perguntar novamente — prometeu-lhe a restituição

daquele dinheiro?

— Ele? — fez imediatamente, com um frêmito de ira. — E quem lhe pediu isso algum dia?

Sim, claro, agora me promete tudo se eu ajudá-lo... Veja! Quer ser ajudado por mim,

justamente por mim. Teve o atrevimento de me fazer tal proposta, assim, tranquilamente...

— Ajudá-lo? Em quê?

— Numa nova perfídia! Compreende? Vejo que compreendeu!

— Adri ... D. Adriana? — balbuciei.

— Justamente. Eu deveria persuadi-Ia! Eu, entende?

— A se casar com ele?

— Naturalmente. Sabe por quê? Ela tem, ou melhor, deveria ter quatorze ou quinze mil liras

de dote, aquela pobre infeliz. O dote da irmã, que ele tinha que restituir imediatamente ao

Senhor Anselmo, pois Rita morreu sem deixar filhos. Não sei que embrulhadas ele arranjou.

Pediu um ano de prazo para a restituição. Agora espera que... psiu... Adriana vem aí!

Calada e mais esquiva do que de costume, Adriana se aproximou de nós. Passou um braço

pela cintura da companheira e me fez um leve cumprimento com a cabeça. Depois daquelas

confidências, senti violenta raiva ao vê-la tão submissa e quase escrava da odiosa tirania

daquele charlatão. Logo em seguida surgiu, como uma sombra, o irmão de Papiano.

— Lá vem ele — falou Sílvia em voz baixa a Adriana. Esta semicerrou os olhos e sorriu

amargamente, balançou a cabeça e se retirou do terraço, dizendo-me:

— Com licença, Senhor Meis, boa-noite.

— O espião — sussurrou-me a Caporale, piscando-me o olho.

— Mas o que é que D. Adriana teme? — deixei escapar na crescente irritação. — Não

entende que agindo assim dá mais força ao tirano? Ouça, confesso que invejo e admiro todos

os que sabem sentir estima e interesse pela vida. Entre o que se resigna a servir de escravo e

o que assume o papel de tirano, a minha simpatia é pelo último.

A Caporale notou a animação com que eu falara e, com ar de provocação, me disse:

— Por que então não tenta o senhor se rebelar em primeiro lugar?

— Eu?

— Sim — afirmou, fítando-me num desafio.

— Mas que tenho a ver com isso? Poderia rebelar-me de uma só maneira: indo-me embora.

— Pois bem — concluiu ela maliciosamente — talvez seja exatamente o que Adriana não

queira.

— Que eu me vá embora?

Ela rodou no ar o lenço estraçalhado e depois o enrolou num dedo suspirando:

74

— Quem sabe?

Encolhi os ombros.

— Vamos jantar! - exclamei.

E a larguei no terraço.

Naquela noite mesmo, passando pelo corredor, parei diante do baú sobre o qual Cipião

Papiano voltara a se acaçapar e:

— Desculpe, não poderia arranjar outro lugar onde se sentasse mais comodamente? Aqui o

senhor me incomoda.

Olhou-me apatetadamente, os olhos apagados, sem se perturbar.

— Compreendeu? — insisti, balançando-o por um braço. O mesmo que falar a uma parede!

Abriu-se a porta no fundo do corredor e apareceu Adriana.

— Por favor, D. Adriana, veja se consegue fazer com que este infeliz entenda que deveria

arranjar outro lugar onde se sentar.

— É doente — procurou desculpá-lo Adriana.

— Sobretudo porque é doente — rebati. — Aqui não está bem, falta-lhe ar... e sentado em

cima de um baú ... Quer que eu fale ao irmão dele?

— Não, não — acudiu Adriana. — Falo eu, fique tranqüilo.

— Há de convir — acrescentei — ainda não sou rei para ter uma sentinela à porta.

Daquela noite em diante perdi o domínio sobre mim e comecei a forçar abertamente a

timidez de Adriana. Fechei os olhos e me abandonei, sem mais refletir, ao meu sentimento.

Pobre mamãezinha querida! No inicio se mostrou dividida entre o medo e a esperança. Não

ousava confiar nesta, adivinhando que eu era levado pelo despeito. Mas por outro lado eu

sentia que o medo nela era provocado pela esperança, até aquele momento secreta e quase

inconsciente, de não me perder. Eu dava alimento a sua esperança com os meus novos modos

resolutos, e ela não sabia nem sequer ceder de todo ao medo.

Sua delicada hesitação e a honesta reserva me impediram, entretanto, de olhar para dentro de

mim mesmo e me comprometiam cada vez mais naquele desafio quase subentendido a

Papiano.

Esperava que este me fizesse frente, desistindo dos exagerados obséquios habituais. Mas

pelo contrário. Retirou o irmão do posto de observação no baú, conforme eu pretendia,

chegando mesmo a gracejar do ar confuso e encabulado de Adriana na minha presença.

— Tenha paciência com ela, Senhor Meis. É envergonhada igual a uma freirinha esta minha

cunhada.

A sua inesperada indulgência e tanta desenvoltura me deram o que pensar. Onde queria

chegar?

Uma noite, voltou acompanhado por um sujeito, que entrou batendo fortemente a bengala no

chão. Usava silenciosos sapatos de pano e parecia que, batendo a bengala, ele quisesse

escutar que caminhava.

Pôs-se a gritar, com forte acento turinense, perguntando onde estava o seu car parent. Não

tirava da cabeça o chapeuzinho de abas levantadas, enfiado até os olhos semicerrados e

embaçados pelo vinho; nem tirava da boca um pequeno cachimbo, com o qual parecia

cozinhar o nariz, mais vermelho que o da Caporale. Perguntava insistentemente pelo seu

caro parente.

— Aqui está — disse Papiano, indicando-me. E depois, voltando-se para mim: — Senhor

Adriano, uma grata surpresa! O Senhor Francisco Meis, de Turim, seu parente.

— Meu parente? — indaguei pasmado.

O outro fechou os olhos e ergueu, como um urso, a pata e conservou-a suspensa aguardando

que eu a apertasse. Deixei-o naquela postura e o contemplei. E depois: — Que farsa é esta?

75

— Perdão, por quê? — fez Terêncio Papiano. — O Senhor Francisco Meis assegurou-me

que o senhor é seu. . .

— Primo — apoiou o recém-chegado, sem abrir os olhos. — Tut i Meis i sôma parent.

— Todos os Meis são parentes? Mas eu não tenho honra de conhecê-lo! — protestei.

— Ora esta é boa! — exclamou. — É justamente por isto que eu vim procurar você.

— Meis? De Turim? — perguntei, fingindo lembrar. — Mas eu não sou de Turim!

— Como! Desculpe — interrompeu Papiano. — Não me disse que até os dez anos morou em

Turim?

— Claro — continuou o outro, aborrecido por se duvidar de uma coisa para ele certíssima.

— Cusin, primo! Este senhor aqui... como se chama?

— Terêncio Papiano às suas ordens.

— Terêncio, ele me disse que o seu pai esteve na América. Quer dizer que você é filho do tio

Antoni que esteve na América. E nui sôma cusin.

— Mas se o meu pai se chamava Paulo...

— Antoni!

— Paulo, Paulo, Paulo. Quer saber mais do que eu?

Ele encolheu os ombros e repuxou a boca para cima, passando a mão no queixo eriçado por

uma barba quase grisalha, de pelo menos quatro dias. E aquiesceu:

— Vá lá que seja Paôlo. Não quero contrariar você. Afinal não me lembro bem, pois nem

sequer o conheci.

Pobre homem! Julgava-se em condições de saber melhor do que eu o nome daquele seu tio

que esteve na América. E acabou cedendo, porque a todo custo quis ser meu parente.

Explicou-me que o seu pai, chamado Francisco, como ele, era irmão de Antoni... isto é,

Paôlo, saíra de Turim quando ele era ainda pequeno, com sete anos. Era um pobre

empregado e vivera sempre longe da família, um pouco aqui, um pouco ali. Ele mesmo não

sabia grande coisa dos parentes, quer paternos, quer maternos. Todavia, estava certo,

certíssimo de ser meu culin.

Mas o avô, pelo menos o avô, teria conhecido? Respondeu que sim, mas não se recordava

com precisão se fora em Pavia ou Placência.

— Ah, sim? Conheceu mesmo? Como era?

Era... não se lembrava mais ... Já fazia trinta anos...

Não aparentava absolutamente má-fé. Dava mais a impressão de um infeliz que tivesse

afogado uma parte de si no vinho tentando aliviar o tédio e a miséria. Inclinava a cabeça, os

olhos fechados, aprovando as coisas que eu dizia, só com o intuito de me divertir às suas

custas. Se eu lhe tivesse dito que havíamos crescido juntos e, em crianças, eu várias vezes lhe

arrancara os cabelos, ele teria aprovado da mesmíssima forma. Eu não devia pôr em dúvida

somente uma coisa, isto é, a nossa condição de primos. Quanto a esse ponto ele não transigia;

estava estabelecido e pronto.

Olhando Papiano e o vendo exultante, me passou a vontade de gracejar. Tratei de mandar

embora aquele desgraçado meio bêbedo, chamando-o de caro parente! e indaguei a Papiano,

fitando-o nos olhos, a fim de lhe dar a entender que não me deixaria envolver por ele:

— Agora me diga onde foi desencovar esse espécime.

— Desculpe, Senhor Adriano — declarou o trapaceiro, cuja grande genialidade sou forçado

a reconhecer. — Percebo que não fui feliz...

— Mas o senhor está sempre felicíssimo! — exclamei.

— Não, quero dizer, no intento de lhe proporcionar uma alegria. Mas acredite, foi puro

acaso: hoje de manhã, tive que ir à Agência de Impostos, encarregado pelo senhor Marquês,

meu patrão. Enquanto estava lá, ouvi alguém chamar alto: -Senhor Meis! Senhor Meis!

76

Voltei-me logo, imaginando que o senhor estivesse lá para algum negócio e, talvez, quem

sabe, tivesse necessidade de mim, sempre disposto a servi-lo. Mas qual! Chamavam era esse

espécime, conforme o senhor mesmo disse, e com razão. Então, por curiosidade, me

aproximei dele perguntando se se chamava Meis e de que cidade era, porque eu tinha a honra

e o prazer de hospedar na minha casa um Senhor Meis... Está aí como se deu a coisa! Ele me

assegurou que o senhor devia ser seu parente e fez questão de vir conhecê-lo...

— Na Agência de Impostos?

— Sim senhor, é empregado lá; é agente auxiliar.

Devia acreditar? Quis certificar-me. Era verdade, sim. Mas também era verdade que Papiano

andava desconfiado. Enquanto eu queria surpreendê-lo de frente para contrariar suas secretas

maquinações, ele fugia de mim tentando averiguar o meu passado e assaltar-me assim pelas

costas. Conhecendo-o bem, eu tinha infelizmente razões para temer que aquele seu faro o

levasse em pouco tempo a agarrar a presa. E ai de mim se ele conseguisse farejar o mínimo

vestígio. Seguiria as pegadas, por certo até o moinho da Stía.

Imaginem o meu medo quando passados alguns dias ouvi do meu quarto, onde estava lendo,

uma voz no corredor, uma voz ainda viva na minha memória e que parecia vir do outro

mundo.

O Espanhol? Aquele meu espanholzinho barbudo e atarracado de Monte Carlo? O tal que

quisera jogar comigo e com quem eu brigara em Nice?... Ah, meu Deus, eis as pegadas!

Papiano conseguira descobrir!

Dei um salto, segurando-me à mesinha para não cair, naquela minha perturbação repentina e

angustiante. Estupefato, quase aterrorizado prestei atenção às vozes com idéia de fugir,

assim que Papiano e o Espanhol (era ele, não havia dúvida: vira-o na sua voz) tivessem

atravessado o corredor. Fugir? E se Papiano ao entrar tivesse perguntado à criada se eu

estava em casa? Que pensaria da minha fuga? Mas por outro lado talvez ele já soubesse que

eu não era Adriano Meis... Devagar! Que notícias dera de mim o Espanhol? Vira-me em

Monte Carlo. Dissera-lhe eu que me chamava Matias Pascal? Talvez! Não me lembrava...

Fui parar diante do espelho, como se alguém me tivesse levado pela mão. Olhei-me. Ah,

aquele olho maldito! Talvez por causa dele o Espanhol me reconhecesse. Mas de que

maneira Papiano conseguira chegar até a minha aventura em Monte Carlo? Isso me

pasmava. Que fazer então? Nada, esperar ali que acontecesse o que deveria acontecer.

Nada aconteceu. E no entanto o medo não passou, nem mesmo na noite em que Papiano

explicando-me o mistério indissolúvel e terrível daquela visita, demonstrou que ele

absolutamente não estava nas pegadas do meu passado e que somente o acaso me quisera

colocar junto do Espanhol, que talvez nem se recordasse mais de mim.

Segundo as noticias de Papiano a seu respeito, se eu fosse a Monte Carlo na certa o

encontraria porque ele era jogador profissional. Estranho era encontrá-lo em Roma e que eu

estivesse morando numa casa onde ele também podia entrar. Sem os motivos dos meus

temores essa casualidade não me teria parecido tão estranha. Quantas vezes acontece

inesperadamente de toparmos com alguém que conhecemos noutro lugar? Aliás ele tinha

suas razões para ir a Roma e à casa de Papiano. Quem não tinha razão era eu, ou o acaso, que

me fizera raspar a cara e mudar de nome.

Cerca de vinte anos atrás, a única filha do Marquês Giglio d'Auletta, do qual Papiano era

secretário, se casara com Dom Antônio Pantogada, adido da Embaixada da Espanha, junto

do Vaticano. Logo depois do matrimônio, Pantogada, tendo sido descoberto numa casa de

jogo em companhia de outras personalidades da aristocracia romana e fora chamado a

Madri. Lá talvez tenha feito algo pior, pelo que se vira obrigado a deixar a diplomacia.

Daquele momento em diante, o Marquês d'Auletta não tivera mais sossego, forçado

77

continuamente a mandar dinheiro para pagar as dívidas de jogo do genro incorrigível. Quatro

anos atrás a mulher de Pantogada morrera, deixando uma filha de dezesseis anos. O Marquês

decidiu levá-la para a sua companhia, sabendo em que mãos ela ficaria, caso contrário.

Pantogada não teria consentido sua ida, mas forçado por premente necessidade de dinheiro

acabou cedendo. Na ocasião ele atormentava sem descanso o sogro, ameaçando levar de

novo a filha; naquele dia justamente fora a Roma com a intenção de extorquir mais dinheiro

do pobre Marquês, sabendo bem que este jamais lhe entregaria a sua querida Pepita.

Papiano difamava o indigno resgate de Pantogada através de palavras de fogo. E era

realmente sincera a sua cólera generosa. Enquanto falava eu não podia deixar de admirar o

privilegiado mecanismo da sua consciência que, embora capaz de se indignar daquela forma

com as iniqüidades alheias, lhe permitia praticar algo semelhante em detrimento do bom

Paleari, seu sogro.

Entretanto, daquela vez o Marquês se dispunha a resistir. Daí se concluía que Pantogada

permaneceria em Roma por muito tempo e por certo viria procurar Terêncio Papiano em

casa, com o qual evidentemente se entendia às mil maravilhas. Portanto, um encontro entre

mim e o Espanhol seria inevitável, mais dia, menos dia. Que fazer?

Sem contar com pessoa alguma, novamente busquei conselho no espelho. Naquela

superfície de vidro a imagem do finado Matias Pascal veio à tona do fundo das águas do

moinho com aquele olho, o único vestígio que me restava dele. E me falou assim:

— Em que bruta embrulhada você se meteu, Adriano Meis! Você tem medo de Papiano,

confesse! E está querendo pôr a culpa em cima de mim só porque em Nice briguei com o

Espanhol. E, no entanto, você sabe que eu tinha razão. Você acha mesmo que será suficiente

apagar do rosto o último sinal meu? Pois muito bem, siga o conselho da professora Caporale

e procure o doutor Ambrosini que lhe porá o olho no lugar. Depois... você verá!

...

XIII

A PEQUENA LANTERNA

Quarenta dias na escuridão.

Bem sucedida, muitíssimo bem sucedida operação. Só que o olho talvez me ficasse um

pouquinho maior do que o outro. Paciência! Na escuridão, quarenta dias, encerrado no

quarto.

Tive a prova de que o homem quando sofre faz uma idéia particular do bem e do mal. Do

bem que os outros lhe deveriam proporcionar e ao qual pretende, como se os próprios

sofrimentos lhe dessem direitos a uma compensação; do mal que ele pode fazer aos outros,

como se estivesse habilitado pelos próprios sofrimentos. E se os outros não lhe

78

proporcionam o bem quase por obrigação ele os acusa, desculpando-se facilmente pelo mal

que faz por direito.

Após alguns dias daquela cega prisão, o desejo e a necessidade de ser confortado de algum

modo cresceu até a exasperação. Sabia muito bem que me encontrava entre estranhos e por

isso deveria agradecer aos donos da casa pelos delicadíssimos cuidados que me

prodigalizavam. Mas não me bastavam mais aqueles cuidados. Pelo contrário, me irritavam

como se me fossem dispensados por despeito. Claro! Porque eu adivinhava de quem vinham.

Adriana me demonstrava, através desses cuidados, que com o pensamento passava quase

todo o dia ali comigo no meu quarto. Eu agradecia o consolo! De que me servia se também

eu, com o pensamento, a acompanhava pela casa o dia inteiro, ansiosamente? Só ela poderia

confortar-me. E o devia fazer. Ela, que mais do que os outros, estava em condições de

entender como e quanto me pesava o tédio e me roía o desejo de vê-la e a sentir perto.

A impaciência e o tédio aumentaram pela raiva da repentina partida de Pantogada. Acaso me

teria encafuado ali por quarenta dias no escuro se imaginasse que ele partiria tão depressa?

Para me consolar, o Senhor Anselmo pretendeu demonstrar-me através de longo raciocínio

que o escuro era imaginário.

— Imaginário? Isto? — gritei-lhe.

— Tenha paciência, já vai entender.

E me explicou (talvez também com a finalidade de me preparar para as experiências de

espiritismo, que desta vez seriam realizadas no meu quarto, proporcionando-me assim um

divertimento) sua concepção filosófica, especiosíssima, que poderia ser chamada

lanternosofia.

De quando em vez o bom sujeito se interrompia e me perguntava:

— Está dormindo, Senhor Meis?

E eu me sentia tentado a responder:

— Sim, obrigado, estou dormindo Senhor Anselmo.

Mas desde que a intenção no fundo era boa — a de me fazer companhia — respondia que

aquilo me divertia muitíssimo e até pedia que continuasse.

E o Senhor Anselmo demonstrava que, para nossa desgraça, nós não somos como a árvore

que vive e não se sente viver e para a qual a terra, o sol, o ar, a chuva, o vento, não parecem

coisas amigas ou nocivas. A nós homens, ao contrário, desde o nascimento temos o triste

privilégio de nos sentirmos viver, com a bela ilusão resultante: tomar como realidade fora de

nós este sentimento da vida, mutável e diferente segundo os tempos, os acontecimentos e o

acaso.

E este sentimento da vida, para o Senhor Anselmo, era justamente como uma pequena

lanterna acesa que cada um de nós carrega. É essa lanterna que nos faz sentir perdidos na

terra e nos mostra o bem e o mal. Projeta ao nosso redor um círculo de luz mais amplo ou

menos amplo, além do qual está a sombra negra, a sombra pavorosa que não existiria se a

lanterna não estivesse acesa em nós; infelizmente acreditaremos nessas trevas, enquanto a

chama se mantiver viva em nós. Apagada com um sopro no fim, acolher-nos-á a noite

perpétua, após o dia famoso da nossa ilusão? Ou ficaremos em vez disso à mercê do Ser, que

terá apenas desfeito as formas vãs da nossa razão?

— Está dormindo, Senhor Meis?

— Continue, Senhor Anselmo, eu não estou dormindo. Mas tenho quase a impressão de ver

essa sua lanterna.

— Ah, bem... Mas o senhor está com a vista lesada e não convém aprofundar muito a

filosofia. Em vez disso nos divertiremos em acompanhar os vaga-lumes perdidos, que

seriam as nossas pequenas lanternas na escuridão da sorte humana. Antes de tudo eu diria

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que são de muitas cores, segundo o vidro que nos fornece a ilusão, grande mercadora de

vidros coloridos. Parece-nos, Senhor Meis, que em certas épocas da história, como em certos

períodos da vida individual, poder-se-ia determinar o predomínio de uma dada cor.

Conforme a época, se estabelece entre os homens uma harmonia de sentimentos que

empresta luz e cores às grandes lanternas, que são os termos abstratos: Verdade, Virtude,

Beleza, Honra, etc. Não acha que era vermelha, por exemplo, a lanterna da Virtude pagã?

Roxa, cor deprimente, seria a Virtude cristã. A luz de uma idéia comum é alimentada pelo

sentimento coletivo. Se tal sentimento se desagrega, permanece de pé a lanterna do termo

abstrato, mas a chama da idéia crepita lá dentro, vibra, soluça, como costuma suceder nos

períodos ditos de transição. E não são raras na história certas indomáveis ventanias que

extinguem num sopro todas as grandes lanternas. No repentino escuro é indescritível a

confusão das pequenas lanternas isoladas, rodopiando em todas as direções, sem

encontrarem o rumo certo. Chocam-se e se agregam um instante em grupos de dez, vinte,

mas, sem conseguirem estabelecer uma harmonia, e voltam a se dispersar em grande

desordem e fúria angustiosa como as formigas que não encontram mais a entrada do for-

migueiro, tapado pela brincadeira perversa de um menino. Creio, Senhor Meis, que nós

estamos agora num desses momentos. Grande escuridão e confusão! Todas as grandes

lanternas estão apagadas. A quem nos dirigiremos? Voltaremos atrás? Recorreremos às

lâmpadas sobreviventes, que os grandes mortos deixaram acesas nos seus túmulos?

Lembro-me de um belo poema de Nicolau Tommaseo:

A minha pequena lâmpada

Não tem do sol o esplendor

Nem como o fogo se inflama;

Sem alarde a sua chama

Brilha sempre e, com amor,

Eleva-se ao céu que a produz.

Viva estará no meu túmulo;

Nem chuva, nem vendaval,

Nem o tempo a extinguirão;

E quando, na escuridão,

Passar alguém sem fanal

Verá o caminho a esta luz.

Mas como, Senhor Meis, se a nossa lâmpada falta o óleo sagrado que alimentava a do Poeta?

Muitos ainda vão às igrejas a fim de abastecerem as suas pequenas lanternas. São na maioria

pobres velhos, pobres mulheres, enganados pela vida e que vão adiante, no escuro da

existência, com aquele sentimento aceso como uma pequena lâmpada votiva; protegem com

assustado cuidado as suas chamas contra o gélido sopro dos últimos desenganos para que

dure acesa ao menos até o limite fatal, ao qual se dirigem apressadamente, os olhos fixos na

chama e pensando sem cessar: ―Deus me vê!"; assim abafam os clamores da vida em redor

que soam aos seus ouvidos quais blasfêmias. Deus me vê!... porque são eles que vêem, não

somente em si, mas em tudo, até nas misérias e sofrimentos, que terão um prêmio no final. A

débil mas plácida luz dessas pequenas lanternas desperta angustiosa inveja em muitos de

nós. Mas inspira desdenhosa comiseração aos que se crêem armados com o raio domado pela

ciência e, em lugar das pequenas lanternas, carregam em triunfo as lâmpadas elétricas. Mas

pergunto eu agora, Senhor Meis: e se toda esta escuridão, este enorme mistério sobre o qual

80

em vão os filósofos especularam e que a ciência não exclui, embora renunciando à pesquisa,

se tudo isso não passasse no fundo de um engano igual a tantos, um engano da nossa mente,

uma fantasia que não se realiza? Se finalmente nós nos persuadíssemos de que todo este

mistério não existe fora de nós, mas somente em nós e necessàriamente pelo famoso

privilégio do sentimento que temos da vida, isto é, a pequena lanterna de que falei até agora?

Se a morte que nos faz tanto medo não existisse e fosse apenas, não a extinção da vida, mas o

sopro que apaga em nós esta pequena lanterna? Se a morte fosse o desgraçado sentimento

que temos dela, medroso porque limitado, definido por esse círculo de sombra fictícia além

do breve âmbito da escassa luz? Esse círculo de sombra que nós, pobres vaga-lumes

perdidos, projetamos ao nosso redor e onde nossa vida permanece aprisionada, excluída por

algum tempo da vida universal, eterna, a que esperamos retornar um dia; e já estamos nela e

sempre aí permaneceremos, porém sem esse sentimento de exílio que nos angustia. Se fosse

realmente assim? O limite é ilusório, é relativo à pouca luz da nossa individualidade. Na

realidade da natureza ele não existe. Nós sempre vivemos e viveremos com o universo;

mesmo agora nesta nossa forma participamos de todas as manifestações do universo sem o

saber nem sentir, pois esta maldita claridadezinha choramingas infelizmente só nos mostra o

pouco até onde chega. E se ao menos nos mostrasse esse pouco na sua realidade! Mas não.

Apresenta tudo a seu modo, mostrando-nos coisas verdadeiramente lamentáveis e que numa

outra forma de existência talvez nos parecessem engraçadas. Talvez nos ríssemos de todas as

vãs e estúpidas aflições que essa insignificante claridade nos proporcionou, com todas as

sombras, todos os fantasmas ambiciosos e estranhos que fez surgir diante de nós e com todo

o medo que nos inspirou!

— Ora, por que então o Senhor Anselmo Paleari, embora falando tão mal dessas nossas

lanternas, queria acender outra de vidro vermelho lá no meu quarto para as suas experiências

de espiritismo? Não já era bastante uma? — Fiz-lhe essa pergunta.

— Corretivo! respondeu-me. — Uma lanterna contra a outra! Aliás, a um certo momento

esta se apaga.

— E lhe parece este o melhor método para ver alguma coisa? — arrisquei-me a observar.

— Mas a suposta luz — rebateu logo o Senhor Anselmo — pode servir para nos ajudar a ver

ilusoriamente do lado de cá, na suposta vida. Para nos fazer ver além desta não serve de

maneira alguma, acredite. Ao invés, é nociva. São estúpidas pretensões de certos cientistas

de coração mesquinho e ainda mais mesquinha inteligência que desejam acreditar para a sua

comodidade que com tais experiências se ultraja a ciência ou a natureza. Mas não! Queremos

descobrir outras leis, outras forças, outra vida na natureza, sempre na natureza, com os

diabos, além da escassíssima experiência normal. Queremos forçar a estreita compreensão

que os nossos limitados sentidos disso nos dão habitualmente. Os cientistas não são os

primeiros a exigir condições e ambientes adequados para o bom êxito de suas experiências?

Pode-se dispensar a câmara escura na fotografia? E então? E depois há tantos meios de

controle!

O Senhor Anselmo, segundo constatei depois, não adotava nenhum controle. Mas eram

experiências em família! Ele poderia suspeitar que a Caporale e Papiano sentissem prazer em

enganá-lo? E por quê? Ele era mais do que convicto e não precisava absolutamente daquelas

experiências para reforçar a sua fé. Como homem de bem que era, nem sequer imaginava que

o enganassem visando outra finalidade. Quanto à mesquinhez aflitiva e pueril dos resultados,

a teosofia se incumbia de lhe fornecer uma explicação plausibilíssima. Os seres superiores

do Plane, Mental, ou de mais alto, não podiam descer a se comunicar conosco por meio de

um médium; era preciso se contentar com as manifestações grosseiras das almas de defuntos

inferiores, do Plano Astral, isto é, o mais próximo ao nosso. Pronto.

81

E quem lhe podia dizer que não?

Eu sabia que Adriana se recusara sempre a assistir a tais experiências. Desde que eu me tinha

encafuado no quarto, na escuridão, ela não vinha senão raramente e nunca só para perguntar

como eu passava. Todas as vezes aquela pergunta parecia dirigida por pura conveniência.

Sabia, sabia muito bem como eu estava! Parecia-me até sentir certo sabor de ironia marota na

sua voz, porquanto ela naturalmente ignorava por qual razão eu resolvera submeter-me à

operação e conseqüentemente julgava que eu sofria por vaidade, querendo mostrar-me mais

bonito ou menos feio com o olho no lugar, segundo o conselho da Caporale.

— Estou muito bem, D. Adriana! — respondia-lhe. — Não vejo nada...

— É, mas verá melhor depois — dizia Papiano. Aproveitando-me do escuro, erguia um

punho, como para arremessá-lo na sua cara. Mas com certeza ele o fazia de propósito, para

que eu perdesse aquele pouco de paciência que ainda me restava. Não era possível que ele

não percebesse o aborrecimento que me provocava; eu o demonstrava de todos os modos,

bocejando, suspirando. E apesar de tudo continuava a vir ao meu quarto quase todas as noites

(ah, ele sim) e se demorava horas inteiras tagarelando sem fim. No escuro a sua voz quase

me tirava a respiração, fazendo-me retorcer na cadeira e crispar os dedos como se estivesse

aguilhoado. Em certos momentos tinha vontade de estrangulá-lo. Acaso o sentia ou

adivinhava? Exatamente naqueles momentos a sua voz se tornava mais mole e quase

acariciante.

Necessitamos sempre de culpar alguém pelos nossos males e desgraças. Na verdade Papiano

fazia tudo para eu ir-me embora daquela casa; se a voz da razão tivesse conseguido falar em

mim naqueles dias, deveria ter-lhe agradecido de todo o coração. Mas como eu iria escutar

essa bendita voz da razão se esta me falava justamente pela boca de Papiano que, segundo eu

achava, estava completamente errado? De fato ele não queria que eu fosse embora para

enganar Paleari e arruinar Adriana? Somente isso eu podia entender na ocasião a propósito

de suas conversas. Então como a voz da razão poderia escolher logo a boca de Papiano para

se fazer ouvir por mim? Mas talvez fosse eu que pretendesse encontrar uma desculpa

colocando-a na boca de Papiano a fim de me parecer injusta, eu que me sentia já preso aos

laços da vida e me inquietava, não propriamente por causa do escuro nem pelo

aborrecimento que aquelas conversas me causavam.

De que me falava? De Pepita Pantogada, noite após noite.

Embora vivendo modestíssimamente ele metera na cabeça que eu era muito rico. Para

desviar o meu pensamento de Adriana, talvez acariciasse a idéia de fazer-me enamorar da

neta do Marquês Giglio d'Auletta. E me descrevia uma jovem sensata e altiva, cheia de

talento e vivacidade, resoluta, franca e generosa. E bela ainda por cima. Uh, belíssima!

Morena, de corpo delicado e bem-feito, ardente, olhos fulminantes e uma boca de arrebatar

beijos. Não se referia ao dote — magnífico! — toda a fortuna do Marquês, sem mais nem

menos. O Marquês por certo sentir-se-ia felicíssimo se a casasse logo, não apenas porque se

livraria de Pantogada que o atormentava, mas também porque o avô e a neta não

combinavam muito bem. O velho era de caráter fraco e todo fechado no seu mundo morto,

enquanto a moça vibrava de força e vida.

Papiano não compreendia que quanto mais ele elogiava essa Pepita mais crescia em mim a

antipatia por ela, antes mesmo de conhecê-la. Eu a conheceria, dizia, numa daquelas noites,

pois ele a convenceria a assistir a uma das próximas sessões espíritas. Até o Marquês Giglio

d'Auletta eu conheceria, o qual por sua vez desejava muito me conhecer após tudo que

Papiano lhe dissera a meu respeito. Mas o Marquês não saía mais de casa e jamais

participaria de uma sessão espírita por causa de suas idéias religiosas.

— O quê? — perguntei. — Se ele não vem, como permite que a neta venha?

82

— Mas porque sabe em que mãos a confia! — exclamou Papiano altivamente.

Eu não quis saber de mais nada. Por que Adriana se recusava a assistir às experiências? Por

seus escrúpulos religiosos. Ora, se a neta do Marquês Giglio poderia participar das sessões

com a permissão do avô clerical, por que Adriana não podia vir? Baseado nesse argumento

tentei convencê-la na véspera da primeira sessão.

Entrara no meu quarto acompanhada do pai, que suspirou a ouvir a minha proposta:

— Estamos sempre no mesmo ponto, Senhor Meis! A religião procura escutar alguma coisa

e levantando as orelhas de burro se omite. Já disse e expliquei as nossas experiências muitas

vezes à minha filha, e disse que são para a religião uma prova da verdade que esta sustenta.

— E se eu tivesse medo? — objetou Adriana.

— De quê? — rebateu o pai. — Da experiência?

— Ou do escuro? — acrescentei. — Estaremos todos ao seu lado. Só a senhora quer faltar?

— Mas eu. . . — respondeu Adriana, embaraçaria — eu não creio, não posso crer e... sei lá!

Não conseguiu acrescentar mais nada. Pelo tom da voz e o embaraço, compreendi não ser só

a religião que impedia Adriana de assistir àquelas experiências. O medo, colocado em

primeiro lugar como pretexto, podia ter outras causas que o Senhor Anselmo não suspeitava.

Ou talvez não suportasse assistir ao miserável espetáculo do pai puerilmente enganado por

Papiano e pela Caporale.

Não tive mais coragem de insistir.

Mas ela, como se me tivesse lido no coração o descontentamento que a recusa me causava,

deixou escapar no escuro um ‗porém‘ que eu colhi imediatamente no ar.

— Ah, ótimo! Então a teremos conosco?

— Amanhã de noite somente — aquiesceu sorrindo.

No dia seguinte de tardinha Papiano veio preparar o quarto. Trouxe uma mesinha retangular

de pinho, sem gavetas, sem verniz, comum. Desocupou um canto do quarto. Pendurou numa

Gordinha um lençol. Depois trouxe uma guitarra, uma coleira de cachorro com uma porção

de guizos e outros objetos. Esses preparativos foram executados à luz da

famosa lanterninha de vidro vermelho. Enquanto preparava tudo, Papiano não cessou um

único instante de falar.

— O lençol serve, sabe, serve... quer dizer... como acumulador para essa força misteriosa. O

senhor o verá agitar-se, Senhor Meis, inchar-se como uma vela, iluminar-se às vezes com

uma luz estranha, quase diria sideral. Sim, senhor! Ainda não conseguimos obter

"materializações", mas luzes sim. Se D. Sílvia hoje se encontrar em boa disposição o senhor

verá. Comunica-se com um dos seus antigos colegas da Academia morto, Deus nos livre,

tuberculoso aos dezoito anos. Era de... de Basiléia, creio. Mas fazia tempo que se

estabelecera em Roma, com a família. Um gênio para a música. A morte o colheu cruelmente

antes de dar os seus frutos. Pelo menos é o que D. Sílvia conta. Mesmo antes dela saber que

possuía qualidade mediúnica se comunicava com o espírito de Max. Sim, senhor.

Chamava-se assim, Max... Max Oliz, se não me engano. Sim, senhor! Possuída por esse

espírito improvisava ao piano, até cair no chão desmaiada. Uma noite se juntou gente na rua

para aplaudir...

— E D. Sílvia chegou quase a ter medo daquilo — acrescentei placidamente.

— Ah, o senhor sabe? — fez Papiano admirado.

— Ela mesma me contou. Quer dizer que aplaudiram a música de Max tocada pelas mãos de

D. Sílvia?

— Isso! Pena que não tenhamos em casa um piano. Devemos contentar-nos com um ou outro

motivozinho, algum estribilho, executado na guitarra. Max se encoleriza, e às vezes quebra

as cordas... Mas ouvirá esta noite. Creio que já está tudo em ordem.

83

— Agora me diga, Senhor Terêncio: por curiosidade, o senhor acredita nisso, acredita

mesmo?

— Bem — respondeu-me imediatamente, como se houvesse previsto a pergunta. — Para ser

franco, não consigo ver claro.

— Pudera!

— Ah, mas não porque as experiências se façam no escuro, é bom notar! Os fenômenos, as

manifestações são reais, não restam dúvidas. Não podemos desconfiar de nós próprios...

— E por que não? Ao contrário...

— Como? Não entendo!

— Nós nos enganamos tão facilmente! Principalmente quando queremos acreditar em

alguma coisa...

— Mas eu não, eu não quero! — protestou Papiano. — Meu sogro que é muito enfronhado

nesses estudos acredita em tudo isso. Eu não tenho nem sequer tempo de pensar em tais

problemas, mesmo se quisesse... Tenho tanto que fazer com aqueles malditos Bourbons do

Marquês que nem me sobra tempo para respirar! Perco aqui algumas noites. De minha parte

sou da opinião que nós enquanto estivermos vivos, pela graça de Deus, não saberemos coisa

alguma sobre a morte. Logo não lhe parece inútil pensar? Empenhemo-nos em viver da

melhor maneira possível, isto sim! É a minha opinião, Senhor Meis. Até logo. Agora darei

uma fugida até a Rua dos Pontífices para apanhar a neta do Marquês.

Voltou meia hora depois, muito contrariado. Acompanhando a moça e a governanta viera um

certo pintor espanhol, que me foi apresentado a contragosto como amigo da família do

Marquês. Chamava-se Manuel Bernaldez e falava corretamente o italiano. Porém não houve

meio de fazê-lo pronunciar o s do meu sobrenome. Parecia ter medo de ferir a língua.

— Adriano Mei — dizia, como se de repente nos tivéssemos tornado grandes amigos.

— Adriano Tui — tinha vontade de lhe responder.

Entraram as mulheres: Pepita, a governanta, Sílvia, Adriana.

— Você também? Que novidade é esta? — disse Papiano com maus modos.

Não contava com aquela. Pela acolhida a Bernaldez eu compreendera que o Marquês Giglio

não estava a par do seu comparecimento à sessão e aquilo devia ser algum namorico da

Pepita.

Mas o grande Terêncio não renunciou a seu intento. Dispondo em volta da mesa a corrente

mediúnica, fez Adriana sentar-se perto dele e colocou Pepita ao meu lado.

Se eu não estava contente, Pepita muito menos. Falando tal e qual o pai, rebelou-se

imediatamente:

— Muitas gracias, así no pode ser! Io quiero estar entre o señor Paleari e mi gobernante,

caro señor Terêncio!

A semi-obscuridade avermelhada permitia apenas discernir-lhe os contornos. Assim, não foi

possível verificar até onde correspondia à verdade o retrato que Papiano me havia esboçado

da neta do Marquês. Entretanto as maneiras, a voz e a rebelião repentina concordavam

perfeitamente com a idéia que eu fizera dela.

Certamente recusando com tanto desdém o lugar que Papiano lhe designara ao meu lado a

moça me ofendia. No entanto, além de não ter me contrariado, até me regozijei.

— Justíssimo! — exclamou Papiano. — Então façamos assim: ao lado do senhor Meis

senta-se D. Cândida; a senhora, em seguida; meu sogro fica onde está; e nós três, também

onde estamos. Que tal?

Não. Ninguém achou bom. Nem eu, nem Sílvia, nem Adriana, nem Pepita, a qual se

encontrou muito melhor numa nova corrente disposta justamente pelo genialíssimo espírito

de Max.

84

Vi-me ao lado de um fantasma de mulher, com uma espécie de colinazinha em cima da

cabeça (era chapéu? era peruca? que diabo era?). Debaixo daquela enorme carga saíam de

vez em quando certos suspiros, terminados por breve gemido. Ninguém pensara em me

apresentar àquela senhora. Bem, para fazer a corrente deveríamos segurar a mão um do

outro. E ela suspirava. Aquilo não lhe parecia bem feito. Deus, que mão fria!

Com a outra mão eu segurava a esquerda da Caporale, sentada à cabeceira da mesa com os

ombros junto do lençol pendurado no canto. Papiano sentava-se à sua direita. Perto de

Adriana estava o pintor. O Senhor Anselmo sentava-se à outra cabeceira, em frente da

Caporale.

Papiano disse:

— Seria necessário explicar ao Senhor Meis e a D. Pepita a linguagem... como se chama? —

Tiptológica — acudiu o senhor Anselmo.

— Por favor, também a mim — corrigiu D. Cândida, remexendo-se na cadeira.

— Justíssimo! Também a D. Cândida, claro!

— Atenção — começou a explicar o Senhor Anselmo. — Duas pancadas querem dizer sim...

— Pancadas?-- interrompeu Pepita. — Que pancadas?

— Pancadas --respondeu Papiano — ou batidas na mesa, nas cadeiras ou em outro lugar; ou

então apalpadelas.

— Ah! No! No! No! No! — exclamou Pepita, precipitadamente, pondo-se de pé, num salto.

No me gustan apalpadelas. De quién?

— Do espírito de Max — esclareceu Papiano. — Já lhe havia falado sobre isto quando

vínhamos. Não incomodam, pode ficar tranqüila.

— Tiptológicas — apoiou a governanta com ar de comiseração e de mulher superior.

— Pois bem — continuou o Senhor Anselmo — duas pancadas, sim; três pancadas, não;

quatro, escuro; cinco falem; seis, luz. Bastará isso. E agora, concentremo-nos, senhores.

Fez-se silêncio.

Concentramo-nos.

XIV

AS PROEZAS DE MAX

Apreensão? Não. Nem por sombra. Mas uma viva curiosidade me dominava e até certo

receio de que Papiano estivesse para fazer algum triste papel. Deveria alegrar-me, mas não.

Quem não sente compaixão, ou melhor vergonha, ao assistir a uma comédia mal

representada por atores inexperientes?

"Das duas uma" pensava, "ou ele é muito hábil ou a obstinação em se manter perto de

Adriana não lhe permite ver bem a situação em que se meteu, deixando Bernaldez, Pepita,

Adriana e eu desiludidos e portanto em condições de percebermos, sem qualquer

recompensa, a sua fraude. Melhor do que os outros, Adriana perceberá pois está mais perto

85

dele; mas ela já desconfia do embuste e está preparada. Não podendo ficar junto de mim

talvez ela pergunte o que faz ali assistindo a uma farsa que lhe parece não só insípida, mas

indigna e sacrílega. Idêntica pergunta se fazem nos seus cantos Bernaldez e Pepita. Como é

que Papiano não vê tudo isso agora que falhou o seu golpe de colocar Pepita junto de mim?

Confiará tanto assim na própria habilidade? É o que vamos ver."

Enquanto eu me entregava a tais reflexões ignorava inteiramente a presença da professora

Caporale. De repente esta se pôs a falar numa espécie de estado de meio sono:

— A corrente... A corrente tem que ser alternada...

— Já temos Max? — indagou com solicitude o bom Senhor Anselmo.

A resposta demorou algum tempo.

— Sim, -- disse por fim a Caporale, com dificuldade e quase com ânsia. — Somos muitos,

esta noite...

— É verdade — explodiu Papiano. — Mas eu acho que estamos ótimamente assim.

— Psiu! — admoestou Paleari. — Escutemos o que diz Max.

— A corrente não lhe parece bem equilibrada. Aqui, deste lado (e levantou a minha mão), há

duas mulheres juntas. O Senhor Anselmo deveria trocar de lugar com D. Pepita.

-- Imediatamente! — exclamou o Senhor Anselmo, levantando-se e cedendo a sua cadeira à

moça.

E dessa vez Pepita não protestou. Encontrava-se ao lado do pintor.

— Agora, D. Cândida... — acrescentou Caporale.

— No lugar de Adriana -- interrompeu Papiano — fica ótimo! Já havia pensado nisso.

Apertei a mão de Adriana com tanta força que a magoei, mal ela ocupou o lugar perto de

mim. Simultaneamente Sílvia me apertava a outra mão como perguntando: -―Está contente?"

―Mais do que contente" respondia-lhe com outro aperto, que significava também: ―Agora

pode fazer o que bem entender!"

— Silêncio! — intimou nesse ponto o Senhor Anselmo. E quem tinha falado? Quem? A

mesa! Quatro pancadas: Escuro!

Juro que não escutei coisa alguma.

Assim que se apagou a luz, aconteceu algo inteiramente imprevisto dentro das minhas

suposições. Sílvia deu um berro agudíssimo que sobressaltou todos os presentes.

— Luz! Luz!

Que sucedera?

Um murro! Um formidável murro na boca! Sangravam as gengivas da Caporale.

Pepita e D. Cândida ergueram-se num salto, apavoradas. Até Papiano se levantou para

acender a luz. Imediatamente Adriana retirou a sua mão da minha. Com a cara vermelha

Bernaldez sorria e segurava entre os dedos um fósforo, meio surpreso e meio incrédulo,

enquanto o senhor Anselmo consternadíssimo repetia:

— Um murro! Como se explica?

Eu também me perguntava a mesma coisa, perturbado. Um murro? Então aquela mudança

não estava combinada entre os dois. Um murro?! Portanto, Sílvia se rebelara contra Papiano.

E então?

Afastando a cadeira e apertando um lenço contra a boca, a Caporale protestava que não

queria saber de mais nada. E Pepita Pantogada berrava:

— Gradas señores, gradas! Aqui se dan cachetes!

— Não! — exclamou Paleari. — Meus senhores, isto é um fato novo, estranhíssimo! É

preciso pedir uma explicação.

— A Max? — indaguei.

— A Max, naturalmente! Será que não houve, cara Sílvia, uma interpretação errada de sua

86

parte sobre o que Max sugeriu na disposição da corrente?

— É provável, muito provável! — exclamou Bernaldez, rindo.

— Qual a sua opinião, Senhor Meis? — perguntou Paleari, que não topava muito o pintor.

— Claro! Deve ser isso mesmo — confirmei.

Mas a Caporale negou decididamente com a cabeça.

— Mas então — continuou o Senhor Anselmo — como se explica isso? Max violento? Por

que seria? Isso nunca aconteceu! Que acha você, Terêncio?

Terêncio continuava calado, protegido pela semi-obscuridade, Apenas ergueu os ombros.

— Vamos, D. Sílvia — acudi — vamos contentar o Senhor Anselmo! Vamos pedir a Max

uma explicação! E se ele se mostrar de novo espírito... de pouco espírito, desistiremos. Estou

certo, senhor Papiano?

— Certíssimo! — respondeu. -- Isso mesmo! Vamos perguntar a Max! Estou de acordo!

— Mas eu não estou — rebateu a Caporale, voltando-se diretamente para ele.

— É a mim que a senhora fala? — fez Papiano. — Se não quiser continuar...

— Sim, talvez fosse melhor — arriscou timidamente Adriana.

Mas logo o Senhor Anselmo censurou:

— Ora, a medrosa! São puerilidades, que diabo! Desculpe, Sílvia, se falo isso para você

também. O espírito lhe é familiar e nós sabemos bem que esta foi a primeira vez que... Seria

uma pena, porque embora o incidente tenha sido desagradável os fenômenos pareciam

manifestar-se hoje com insólita energia.

— Excessiva! — reforçou Bernaldez, rindo zombeteiramente e contagiando os outros com o

seu riso.

— E eu — acrescentei — não gostaria de levar um murro neste olho aqui!

— Ni tampoco ió! — acrescentou Pepita.

— Todos sentados! — ordenou Papiano resolutamente. — Sigamos o conselho do Senhor

Meis. Vamos tentar pedir uma explicação. E se os fenômenos se revelarem de novo com

muita violência desistiremos. Todos sentados!

E soprou a lanterna.

Procurei no escuro a mão de Adriana, que estava fria e trêmula. Não a apertei muito no início

para respeitar o seu temor. Mas fui apertando lentamente, como para lhe infundir calor e com

o calor a confiança de que tudo correria tranqüilamente. Não restava dúvida de que Papiano

talvez arrependido pela violência que o dominara tivesse mudado de opinião. De qualquer

forma teríamos evidentemente um momento de trégua. Adriana e eu, naquele escuro talvez

nos tornássemos o alvo de Max. "Pois bem" disse comigo, "se o jogo ficar muito pesado

fá-lo-emos durar pouco. Não permitirei que Adriana seja atormentada.‖

O Senhor Anselmo se pusera a falar com Max exatamente como se falasse a uma pessoa

verdadeira e real, ali presente.

— Você está aí?

Duas pancadas leves na mesa. Ele estava lá!

— O que foi que houve, Max? — perguntou Paleari, em tom de afetuosa censura. — Você,

tão bom e amável, tratou D. Sílvia tão brutalmente ... Quer explicar por quê?

A mesa se agitou e três pancadas secas a duras soaram no centro. Três pancadas: não. Não

nos queria explicar.

— Não vamos insistir — conciliou o Senhor Anselmo. — Talvez você esteja um pouco

alterado, não é, Max? Eu o entendo, eu o conheço bem... Será que nos diria ao menos se está

de acordo com a corrente assim disposta?

Paleari ainda não terminara de fazer a pergunta e eu já sentia dois leves toques na testa,

dir-se-ia com a ponta de um dedo.

87

— Sim! — exclamei imediatamente, denunciando o fenômeno. E apertei a mão de Adriana.

Devo confessar que aquela "apalpadela" inesperada me causou no momento estranha

impressão. Tinha certeza de que se eu houvesse erguido a mão a tempo teria agarrado a de

Papiano e, todavia... A delicada leveza do toque e a precisão foram de qualquer forma

surpreendentes. E além do mais não esperava aquilo. Mas por que Papiano teria escolhido

logo a mim para manifestar a modificação dos seus sentimentos? Pretendera com aquele

sinal tranqüilizar-me ou seria um desafio que significava: ―Agora você vai ver se estou

contente?"

— Bravos, Max! — aplaudiu o Senhor Anselmo.

E eu comigo: ―(Bravos, sim! Que saraivada de cachações eu lhe aplicaria!)‖

— Agora se você estiver de acordo — prossegiu o dono da casa — não nos poderia dar um

sinal de sua boa-vontade para conosco?

Cinco pancadas na mesa intimidaram: Falem!

— Que significa? — indagou D. Cândida amedrontada.

— Que é preciso falar — explicou Papiano tranqüilamente.

E Pepita:

— Com quem?

— Mas com quem quiser, D. Pepita! Fale com seu vizinho, por exemplo.

— Alto?

— Sim — respondeu o Senhor Anselmo. — Isto quer dizer, Senhor Meis, que Max nos

prepara alguma bela manifestação. Talvez uma luz... Quem sabe? Vamos falar, vamos

falar...

E que dizer? Eu já falava havia bastante tempo com a mão de Adriana e não pensava, coitado

de mim, em mais coisa alguma! Entabulava com aquela mãozinha uma longa conversa,

intensa, veemente e ao mesmo tempo carinhosa que esta ouvia trêmula e abandonada. Já

conseguira convencê-la a me ceder os dedos enlaçando-os nos meus. Uma ardente

embriaguez me tomara e reprimia deliciosamente o seu ímpeto exprimindo-se com doce

ternura, conforme exigia a candura daquela tímida e suave alma.

Enquanto as nossas mãos se entretinham nessa conversa absorvente, comecei a perceber que

algo roçava na travessa entre os dois pés posteriores da cadeira. E me perturbei. A perna de

Papiano não podia chegar até lá e, mesmo que chegasse, a travessa da parte anterior o

impediria. Ter-se-ia erguido do seu lugar, vindo para trás da minha cadeira? Mas em tal caso

D. Cândida, se não era mesmo completamente idiota, certamente teria percebido. Antes de

comunicar aos outros o fenômeno gostaria de entendê-lo. Mas depois conclui que, tendo

obtido o que tanto queria, encontrava-me na obrigação de favorecer a fraude sem demora,

para não irritar ainda mais Papiano. E tratei de dizer o que sentia.

— É mesmo? — perguntou Papiano, do seu lugar, com um espanto que me pareceu sincero.

Nem menor espanto demonstrou a sua parceira.

Senti arrepiarem-se os cabelos na minha cabeça. Então o fenômeno era verdadeiro?

O Senhor Anselmo pediu ansiosamente que eu explicasse melhor o que se passava:

— Algo está roçando aqui — confirmei quase encolerizado. — E continua. É como se fosse

um cachorrinho... Eis o que parece!

Uma alta gargalhada acolheu a minha explicação.

— Mas é Minerva! É Minerva! — gritou Pepita.

— Quem é Minerva? — indaguei mortificado.

— É a minha cadelinha! — continuou rindo ainda e esclarecendo que era costume do animal

roçar assim nas cadeiras.

Bernaldez acendeu um outro fósforo e Pepita se levantou, a fim de apanhar e aconchegar no

88

colo a cadelinha, que se chamava Minerva:

— Con permiso! Con permiso!

— Agora entendo — disse contrariado o Senhor Anselmo — agora entendo a irritação de

Max. Há pouca seriedade esta noite, é isso!

Para o Senhor Anselmo, talvez sim. Mas falando a verdade não houve muito mais seriedade

ao espiritismo nas noites sucessivas, é claro.

Quem ainda conseguia prestar atenção às proezas de Max no escuro? A mesa rangia,

movia-se, falava com pancadas fortes ou leves; outras pancadas se ouviam, ora aqui, ora ali,

embaixo das nossas cadeiras, por cima dos móveis do quarto; eram raspadelas, arranhões e

outros rumores. Estranhas luzes fosfóricas, quais fogos fátuos se acendiam no ar por um mo-

mento, vagueando; o lençol se iluminava também e se inchava igual a uma vela. Uma

mesinha porta-cigarros deu vários passeiozinhos pelo quarto e uma vez chegou mesmo a

pular em cima da mesa em torno da qual nos sentávamos. E a guitarra, como se de repente

tivesse criado asas, voou da cômoda onde se achava, indo arranhar as suas cordas em cima de

nós... Pareceu-me que Max manifestasse melhor as suas eminentes faculdades musicais com

os guizos da coleira de cachorro que foi parar no pescoço de sua ex-colega; segundo o de-

poimento do Senhor Anselmo constituiu afetuosa e amabilíssima brincadeira de Max. No

entanto, Sílvia não a apreciou devidamente.

Era óbvio que entrara em cena, protegido pela escuridão, Cipião Papiano com instruções

particularíssimas. Este era realmente epilético, mas não tão idiota quanto o irmão e ele

próprio insinuavam. Por certo teria habituado a vista a enxergar no escuro. Na verdade eu

não saberia dizer até que ponto ele se mostrou hábil naquelas fraudes combinadas antes com

o irmão e com Sílvia. Para nós, isto é, para mim e Adriana, Pepita e Bernaldez, podia fazer o

que bem entendesse e tudo estaria bem de qualquer maneira. Bastava contentar o Senhor

Anselmo e D. Cândida. E tudo indicava que Cipião o conseguia às mil maravilhas. O fato é

que ambos se contentavam com pouco. Oh, o Senhor Anselmo exultava de alegria. Em

certos momentos era um autêntico meninozinho no teatro de marionetes. Diante de certas

exclamações suas tão pueris, eu sofria não só pela vergonha de ver aquele homem de

maneira alguma um tolo passar por tal, mas ainda porque Adriana me dava a entender que

sentia remorsos da sua felicidade, cujo preço era a dignidade do pai e a sua ridícula

credulidade.

Somente isso perturbava de quando em vez a nossa alegria. Conhecendo Papiano deveria ter

desconfiado de que ele possuía outro plano, porquanto se conformara em deixar Adriana ao

meu lado e nem sequer nos atrapalhava com o espírito de Max como eu receara, chegando

mesmo a nos favorecer e proteger. Mas, naqueles momentos era tal a alegria proporcionada

pela liberdade do escuro que essa suspeita não me aflorou o espírito.

— Não! — berrou de repente Pepita.

E imediatamente o Senhor Anselmo:

— O que houve, D. Pepita? Que sentiu?

Até Bernaldez insistiu para ela dizer:

— Aqui, en un lado, una carecia...

— Com a mão? — indagou Paleari. — Delicada, não é? Fria, furtiva e delicada ... Oh, Max,

quando quer, sabe ser gentil com as mulheres! Vejamos, Max, será que você não podia

repetir a carícia?

— Outra vez! — pôs-se a gritar Pepita, rindo.

— Que quer dizer? -- indagou o Senhor Anselmo. — Face de novo... una carecia...

— E um beijo, Max? — propôs Paleari.

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— No — berrou Pepita novamente.

Mas um beijo sonoro lhe estalou no rosto.

Quase involuntàriamente levei a mão de Adriana à boca. Depois me inclinei à procura da sua

boca e assim o primeiro beijo, beijo longo e mudo, foi trocado entre nós.

Que se seguiu depois? Foi necessário algum tempo até que eu, confuso e envergonhado,

conseguisse sair daquela repentina desordem. Teriam desconfiado do nosso beijo? Gritavam.

Um, dois fósforos acesos. Depois também a vela, a mesma que estava dentro da lanterna de

vidro vermelho. E todos de pé. Por quê? Por quê? Uma enorme pancada, uma pancada

formidável, como vibrada por um punho invisível de gigante troou em cima da mesa em

plena luz. Empalidecemos todos e, mais do que os outros, Papiano e Sílvia.

— Cipião! Cipião! — chamou Terêncio.

O epilético caíra no chão, em estranhos estertores.

— Todos sentados — gritou o Senhor Anselmo. — Caiu em transe ele também! Olhem,

olhem, a mesa se move, se ergue... Levitação! Bravo, Max! Viva!

De fato a mesa, sem que ninguém a tocasse, ergueu-se a um palmo do chão e em seguida caiu

outra vez, pesadamente.

A Caporale lívida, trêmula, aterrorizada, veio esconder o rosto no meu peito. Pepita e a

governanta fugiram do quarto, enquanto Paleari bradava irritadíssimo:

— Não! Pelo amor de Deus! Não quebrem a corrente! Agora vem o melhor! Max! Max!

— Mas que Max! — exclamou Papiano, sacudindo-se por fim do terror que o deixara

pregado no chão; e correu ao irmão balançando-o para fazê-lo voltar a si.

A lembrança do beijo foi naquele instante sufocada em mim pelo assombro pela

manifestação realmente estranha e inexplicável a que assistira. Segundo afirmava Paleari, se

a força misteriosa que agira em plena luz diante dos meus olhos provinha de algum espírito

invisível, evidentemente esse espírito não era o de Max. Bastava olhar Papiano e Sílvia para

percebê-lo. Max fora inventado por eles. Quem agira então? Quem desferira na mesa aquele

formidável murro?

As coisas lidas nos livros de Paleari me assaltaram a mente em tumulto. E com um arrepio

pensei no desconhecido que se afogara nas águas do moinho da Stía a quem eu roubara o

pranto dos seus.

— E se fosse ele! — disse comigo. — Se viesse aqui para me encontrar e se vingar,

revelando tudo...

Paleari, o único a não sentir nem espanto nem medo, não compreendia por que um fenômeno

tão simples e comum como a levitação da mesa nos tivesse impressionado tanto após as

maravilhas a que havíamos assistido. Para ele pouco importava que o fenômeno se tivesse

manifestado no claro. Achava mais estranho que Cipião se encontrasse ali no meu quarto em

vez de estar dormindo.

— O que me admira — dizia — é que este infeliz habitualmente não se preocupa com coisa

alguma. Mas se vê que estas nossas sessões misteriosas lhe despertaram certa curiosidade.

Com certeza veio espiar e entrou furtivamente. Aí pronto, caiu em transe? Porque é inegável,

Senhor Meis, que os fenômenos extraordinários da mediunidade se originam em grande

parte das neuroses epilética, catalética e histérica. Max apreende de todos e retira-nos boa

parte de energia nervosa com que se vale na produção dos fenômenos. É exato. O senhor não

se sente como se alguém lhe tivesse tirado algo?

— Falando francamente, ainda não!

Virei-me na cama quase até ao amanhecer numa espécie de delírio, imaginando aquele

infeliz sepultado no cemitério de Miragno com o meu nome. Quem era? De onde vinha? Por

90

que se teria matado? Talvez desejasse que o seu triste fim fosse conhecido; talvez se tratasse

de uma reparação, uma expiação... E eu me aproveitara daquilo! Mais de uma vez, no escuro,

senti-me gelado de pavor. Aquele murro na mesa não foi ouvido somente por mim. Teria

sido desferido por ele? E não estaria ele ainda ali no silêncio, invisível, junto de mim? Eu era

todo ouvidos, procurando colher algum ruído no quarto. Depois adormeci e tive sonhos

medonhos.

No dia seguinte, abri a janela à luz.

XV

EU E A MINHA SOMBRA

Aconteceu-me várias vezes acordar no meio da noite e sentir na escuridão e no silêncio um

espanto, um estranho transtorno, recordando algo feito inadvertidamente durante o dia e na

claridade. Será que as cores, a vista das coisas circundantes e os diversos rumores da vida

não concorrem para determinar nossas ações? Por certo! E quem sabe quantas outras coisas!

Não vivemos nós, segundo o Senhor Anselmo, em relação com o universo? Quantas tolices

este maldito universo nos faz cometer, cuja responsabilidade depois atribuímos a nossa

mísera consciência, arrastada por forças externas e deslumbrada por uma luz que está fora

dela. E quantas deliberações tomadas, quantos desígnios arquitetados, quantos planos

maquinados durante a noite se apresentam vãos e se desvanecem à luz do dia? Assim como o

dia é uma coisa e a noite é outra, talvez sejamos uma coisa durante o dia e outra de noite.

Miserabilíssima coisa, infelizmente, quer de noite, quer de dia.

Sei que ao abrir as janelas do meu quarto após quarenta dias, não experimentei alegria de

espécie alguma revendo a luz. A lembrança do que fizera naqueles dias de trevas me ofuscou

terrivelmente. Todas as razões e desculpas e persuasões que havia tido no escuro, o seu peso

e valor, se anularam ou assumiram outras dimensões diversas ao serem escancaradas as

janelas. Debalde o meu pobre eu que por tanto tempo permanecera de janelas fechadas e tudo

fizera na esperança de aliviar o tédio obsedante da prisão, tentava tímido como um cão

espancado ir atrás do meu outro eu que abrira as janelas e despertava à luz do dia,

carrancudo, severo e impetuoso. Debalde tentava desviá-lo dos sombrios pensamentos,

induzindo-o a se regozijar diante do espelho pelo bom êxito da operação, considerando a

barba novamente crescida e notando a palidez que me enobrecia o aspecto.

— Imbecil! O que foi que você fez?

O que fizera? Nada, sejamos justos! Havia namorado. No escuro. Era culpa minha? Não vira

mais obstáculos e perdera a reserva que me impusera. Papiano queria tirar-me Adriana.

Sílvia me dera a moça fazendo-a sentar-se perto de mim e levara um murro na boca, coitada.

Eu sofria e naturalmente por aqueles sofrimentos acreditava, como qualquer desgraçado, ter

direito a uma compensação que estando ao meu alcance não pude deixar de agarrar. Ali se

faziam experiências sobre a morte e Adriana, junto de mim, era a vida, a vida que espera um

beijo para desabrochar à alegria. Manuel Bernaldez beijara no escuro a sua Pepita e então, eu

também...

— Ah!

Joguei-me na poltrona com as mãos no rosto. Sentia os lábios frementes à recordação

91

daquele beijo. Adriana! Adriana! Que esperanças lhe acendera no coração com aquele beijo?

Minha esposa, não é? Abertas as janelas, festa para todos!

Fiquei por não sei quanto tempo ali na poltrona a pensar. Ora com o olhar perdido, ora me

encolhendo todo raivosamente e me protegendo contra um profundo sentimento interior. Via

finalmente, via em toda a sua crueza o embuste da minha ilusão, o que representava no fundo

aquilo que eu considerava a maior das fortunas na primeira embriaguez da minha libertação.

Já sabia o quanto a minha liberdade tinha seus limites na escassez do dinheiro. Depois

compreendera que essa liberdade poderia ser chamada de solidão e tédio e me condenava a

uma terrível angústia: a da companhia de mim mesmo. E acabei aproximando-me dos outros.

De que valeram os meus propósitos de não reatar os fios cortados? Aqueles fios se reataram

por si. E por mais que eu me precavesse e tentasse impedir a vida me arrastara com o seu

ímpeto irresistível. A vida que não me pertencia mais. Ah, finalmente percebia que na

realidade não podia mais negar meu sentimento por Adriana com vãos pretextos,

fingimentos quase pueris e com piedosas e mesquinhas desculpas, nem atenuar o valor das

minhas intenções, das minhas palavras e dos meus atos. Muitas coisas eu lhe dissera

apertando-lhe a mão e induzindo-a a entrelaçar os seus dedos nos meus. E um beijo, um beijo

por fim confirmara o nosso amor, E então como responder com os fatos à promessa? Eu

podia tornar Adriana minha? Não foram Romilda nem a viúva Pescatore que se haviam

atirado nas águas do moinho da Stía; elas atiraram a mim e o morto era eu! E livre ficara

minha mulher que prestara a me passar por morto, e me iludira em pensar que me tornaria

outro e viveria outra vida. Outro homem podia ser, mas sob a condição de nada fazer. E que

homem, afinal? Unia sombra de homem. E que vida? Enquanto me contentara em

permanecer fechado em mim vendo os outros viverem conseguira salvar a ilusão de viver

outra vida. Mas depois de haver me aproximado tanto a ponto de colher um beijo de lábios

amados, não me restava senão recuar horrorizado como se tivesse beijado Adriana com os

lábios de um morto, um morto impossibilitado de viver novamente para ela. Lábios

mercenários, sim, poderiam beijar. Mas que sabor de vida naqueles lábios? Oh, e se Adriana

tomando conhecimento do meu estranho caso... Ela? Não... Não... Que nada! Nem pensar

nisso! Ela, tão pura, tão tímida... Mas se acaso nela o amor fosse mais forte que tudo, mais

forte que qualquer conveniência social... Ah, pobre Adriana! Como a poderia encerrar no

vazio da minha sorte tornando-a companheira de um homem sem condições de provar que

está vivo? Que fazer? Que fazer?

Duas pancadas na porta me fizeram pular da poltrona. Era ela, Adriana.

Por mais que violentamente tentasse conter em mim o tumulto dos meus sentimentos não me

foi possível parecer calmo. Ela também estava perturbada mas pelo pudor que não lhe

permitia, segundo seria seu desejo, demonstrar alegria vendo-me finalmente curado e

contente, na claridade. Não? Por que não? ... Mal levantou os olhos para me fitar. Corou.

Entregou-me um envelope:

— Vim trazer-lhe isto...

— Uma carta?

— Não creio. Deve ser a conta do Doutor Ambrosini. O criado quer saber se tem resposta.

A voz lhe tremia. Sorriu.

— Imediatamente — disse eu.

Uma repentina ternura me assaltou, compreendendo que ela viera sob o pretexto daquela

nota com o fim de receber de mim alguma palavra que confirmasse as suas esperanças. Uma

angustiosa e profunda piedade me dominou, piedade de mim e dela, piedade cruel que me

arrastava irresistivelmente a acariciá-la, a acariciar nela a minha dor que somente nela

poderia achar conforto, ela que era também a causa do que eu sofria. Embora sabendo que

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me comprometeria ainda mais, não resisti e lhe estendi ambas as mãos. Ela, confiante mas

com o rosto em chamas, ergueu lentamente as mãos pousando-as nas minhas. Puxei a sua

cabecinha loura para o meu peito e lhe passei a mão pelos cabelos.

— Pobre Adriana!

— Por quê? — indagou sob a carícia. — Não estamos contentes?

— Sim...

Tive naquele momento um ímpeto de rebelião e fui tentado a lhe revelar tudo, respondendo:

"Por quê? Ouça, eu amo você e não posso, não devo amar! Mas se você quiser..." Ora! Que

poderia querer aquela suave criatura? Apertei fortemente contra o peito a sua cabecinha e

senti que seria muito mais cruel se na alegria suprema que ela experimentava naquele

momento, sem saber de coisa alguma, eu a tivesse precipitado no abismo do desespero que

estava em mim.

— Porque — disse eu, deixando-a — porque sei muitas coisas com as quais a senhora não

pode estar contente...

Mostrou-se dolorosamente confusa ao ver-se de repente afastada dos meus braços. Talvez

após aquelas carícias esperasse que eu a tratasse por você. Olhou-me e notando a minha

agitação, perguntou hesitante:

— Coisas... que o senhor sabe... a seu respeito... ou sobre a minha casa?

Respondi-lhe com um gesto que era sobre a sua casa, para vencer a tentação que me

dominava cada vez mais de lhe falar e me abrir com ela.

Antes o tivesse feito! Provocando-lhe aquela única e forte dor, ter-lhe-ia poupado outras e

não me teria metido em novos e mais penosos embaraços. Mas muito recente era a minha

triste descoberta e eu precisava me aprofundar bem nela; o amor e a piedade me tolhiam a

coragem de destruir as esperanças de Adriana e da minha própria vida, aquela sombra de

ilusão que, enquanto eu calasse, ainda poderia me restar. Sentia ainda o quanto teria sido

odioso se lhe revelasse que era casado. Isso mesmo! Dizendo-lhe que não era Adriano Meis,

voltaria a ser Matias Pascal, MORTO E AINDA CASADO! Como é possível declarar

semelhantes coisas? Era o máximo de perseguição que uma esposa podia fazer ao próprio

marido: ela tornar-se livre reconhecendo-o morto no cadáver de um pobre afogado e

continuar a pesar em cima dele depois da morte. Na ocasião teria podido rebelar-me

declarando-me vivo... Mas quem no meu lugar não teria procedido como eu? Todos, todos,

em idêntica situação, considerariam uma sorte livrar-se de modo tão inesperado e

inesperável da mulher, da sogra, das dívidas, enfim, de uma aflitiva e mísera existência como

aquela minha. Como iria pensar que nem morto me livraria da mulher? Ela que se livrara de

mim. Nunca poderia imaginar que a vida que se apresentara diante de mim, livre, tão livre,

fosse apenas uma ilusão que não se transformariam realidade a não ser superficialmente;

uma vida mais que nunca escrava das ficções e das mentiras que com tanto desgosto me vira

obrigado a adotar, escrava do temor de ser descoberto, embora sem eu ter cometido qualquer

delito...

Adriana reconheceu que em casa nada havia que lhe desse algum contentamento. Mas

naquele momento... E com os olhos e um triste sorriso me perguntou se constituiria obs-

táculo para mim o que para ela representava motivo de dor. "Não, não é verdade?"

indagavam aquele olhar e o triste sorriso.

— Oh, vamos pagar o Doutor Ambrosini! — disse, fingindo recordar-me repentinamente da

conta e do criado que esperava.

Rasguei o envelope e, esforçando-me por assumir um tom de brincadeira, gracejei:

— Seiscentas liras! Veja só! A natureza comete uma das suas habituais extravagâncias

condenando-me por tantos anos a carregar um olho desobediente. Sofro dores e prisão a fim

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de corrigir o erro e ainda sou obrigado a pagar. Parece-lhe justo?

Adriana sorriu com esforço:

--Talvez o Doutor Ambrosini não gostasse se o senhor lhe respondesse que ele deveria

entender-se com a Natureza a propósito do pagamento. Creio que espera também um

agradecimento, pois o olho...

— Acha que está bem?

Fitou-me encabulada e disse baixo, desviando os olhos:

— Sim... Parece outro...

— Eu ou o olho?

— O senhor.

— Talvez, oh, esta barba toda.

— Não... Por quê? Ficou bem. . .

Teria arrancado com o dedo aquele olho! Que me importava mais que estivesse no lugar?

— E, no entanto — acrescentei — talvez ele estivesse mais contente de primeiro, olhando

por conta própria. Agora me incomoda um pouco... Basta. Passará.

Dirigi-me ao pequeno armário da parede, onde guardava o dinheiro. Adriana fez um gesto

para sair e a retive. Podia prever? Em todas as minhas embrulhadas sempre fui socorrido pela

sorte. Eis a maneira pela qual também desta vez ela veio em meu socorro.

Tentando abrir o armário notei que a chave não girava na fechadura. Bastou empurrar e logo

a portinha cedeu. Estava aberto!

— Como! Será possível que eu tivesse deixado a porta aberta?

Percebendo a minha repentina inquietação, Adriana se tornara palidíssima. Olhei-a e:

-- Mas aqui... Olhe, D. Adríana, alguém deve ter metido as mãos!

Havia grande desordem dentro. As minhas notas tinham sido retiradas do envelope de couro,

onde as guardava e se achavam espalhadas. Adriana escondeu o rosto entre as mãos,

horrorizada. Juntei febrilmente as notas e me pus a contá-las.

— Será possível! — exclamei depois de haver contado, passando as mãos trêmulas pela testa

gelada de suor.

Adriana quase desmaiou porém se segurou numa mesinha ali perto e perguntou com uma

voz que não parecia sua:

— Roubaram?

— Espere... Espere... Como é possível? — repeti.

E me pus novamente a contar, esforçando-me raivosamente por ver se conseguia destacar

daquelas notas as outras que faltavam.

— Quanto? — perguntou, com o rosto transfigurado pelo horror logo que terminei de contar.

— Doze... doze mil liras. . . — balbuciei. — Eram sessenta e cinco. . . Agora são cinqüenta e

três! Conte a senhora

Se eu não tivesse acudido em tempo a pobre Adriana teria caído no chão, como em

conseqüência de uma pancada. Todavia ela conseguiu se dominar com um supremo esforço

e, soluçando convulsamente, procurou desvencilhar-se de mim, recusando-se a se recostar

na poltrona como eu queria e tentando precipitar-se em direção da porta.

— Vou chamar papai! Vou chamar papai!

— Não! — gritei-lhe, segurando-a e obrigando-a a se sentar.

— Acalme-se, por favor! Assim me perturba mais... Não quero, não quero! Isso nada tem a

ver com a senhora. Por favor acalme-se. Deixe-me primeiro verificar, porque... sim, o

armário estava aberto, mas eu não posso, não quero crer ainda num furto assim tão grande.

Compreenda, por favor.

E de novo, por um último escrúpulo, tornei a contar as notas. Embora sabendo muito bem

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que todo o meu dinheiro se encontrava ali no pequeno armário, pus-me a revistar por toda

parte, até onde não havia possibilidade alguma de haver deixado tal soma, a não ser que

tivesse sofrido um ataque de loucura. E com o intuito de me obrigar àquela procura que me

parecia cada vez mais tola e inútil, tentava crer na inverossímil audácia do ladrão. Mas

Adriana quase delirando, as mãos no rosto e a voz embargada pelos soluços:

— É inútil! É inútil! — gemia. --- Ladrão... Ladrão... Até ladrão! ... Tudo combinado com

antecedência... Escutei no escuro. Veio-me a desconfiança... Mas não quis acreditar que ele

chegasse a tal ponto...

Papiano, sim. O ladrão só podia ser ele. Ele, por meio do irmão, durante as sessões espíritas...

---Mas como — gemeu ela, angustiada — como é que o senhor guardava tanto dinheiro em

casa?

Voltei-me olhando-a aparvalhadamente. Que responder? Podia dizer-lhe que na minha

situação era obrigado a guardar o dinheiro comigo? Podia dizer-lhe que me era proibido

investi-lo em qualquer coisa ou o confiar a alguém? Que nem sequer poderia deixá-lo

depositado num banco porque me surgiria provavelmente alguma dificuldade para retirá-lo e

não seria possível reconhecer meus direitos sobre ele?

E, sem querer passar por tolo, fui cruel:

— Poderia acaso supor?

Adriana de novo cobriu o rosto com as mãos, gemendo angustiada:

— Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus!

O medo que teria invadido o ladrão ao cometer o furto me dominou diante do pensamento do

que aconteceria. Papiano por certo sabia que eu não iria suspeirar do pintor espanhol, nem do

Senhor Anselmo, nem de Sílvia, nem da criada, nem do espírito de Max. Com certeza

imaginava que eu atribuiria o roubo a ele, e ele e ao irmão. Entretanto não recuara, quase me

desafiando.

E eu? Que fazer? Denunciá-lo? E de que maneira? Nada, nada e nada! Nada podia fazer!

Mais uma vez, nada! Senti-me arrasado, aniquilado. Tratava-se da segunda descoberta

naquele dia! Conhecia o ladrão e não o podia denunciar. Que direito tinha à proteção da lei?

Eu estava fora de toda lei. Quem era eu? Ninguém! Não existia perante à lei. E qualquer um,

dali por diante, poderia roubar-me. E eu, calado!

Mas Papiano não deveria tomar conhecimento de tudo aquilo. E então?

— Como teve a coragem de fazê-lo? — dizia comigo mesmo. — Onde foi buscar tanta

audácia?

Adriana ergueu o rosto, olhando-me perplexa, como se dissesse: ―Você não sabe?"

— Ah, sim! — fiz, compreendendo de repente.

— Mas o senhor o denunciará! — exclamou ela, pondo-se de pé. — Por favor eu lhe peço,

deixe-me chamar papai... Ele o denunciará imediatamente!

Retive-a mais uma vez. Era só o que me faltava, Adriana me obrigar a denunciar o furto! Não

bastava que tivessem roubado doze mil liras? Ainda tinha que suportar o receio de que o fato

fosse divulgado. Pedi, implorei a Adriana que não gritasse tão alto, nem relatasse o caso a

ninguém, pelo amor de Deus. De nada valeu. Adriana não podia absolutamente permitir que

eu silenciasse e a obrigasse também a se calar. De maneira alguma aceitaria aquilo que lhe

parecia uma generosidade de minha parte, por muitas razões: o seu amor, a honra da sua

casa, a consideração por mim e o ódio contra o cunhado.

Mas naquela contingência não compreendi a sua justa rebelião e, exasperado, bradei-lhe:

— Fique calada, eu o ordeno! Não dirá coisa alguma a ninguém, entendeu? Quer um

escândalo?

— Não! Não! — protestou apressadamente e em prantos a pobre Adriana. — Quero libertar

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a minha casa da ignomínia daquele homem!

— Mas ele negará! — insisti. — E então a senhora, todos de casa, diante do juiz... Não

entende?

— Entendo, entendo muito bem! — retorquiu Adriana com ardor e vibrando de desdém. —

Mesmo que ele negue, nós temos o que dizer contra ele. Peço-lhe que denuncie, não tenha

escrúpulos, não tema por nossa causa... Acredite que nos fará um bem, um grande bem!

Vingará minha pobre irmã... Deveria entender, Senhor Meis, que me ofenderia se não o

denunciasse. Eu quero, quero que o denuncie. E se o senhor não o fizer, eu o farei! Quer que

meu pai e eu fiquemos sob o peso desta vergonha? Não, não e não! E depois...

Apertei-a entre os braços. Não pensei mais no dinheiro roubado vendo-a sofrer assim em

ânsia e desespero. Prometi-lhe que faria o que ela quisesse, contanto que se acalmasse. Não,

por que vergonha? Não havia vergonha para ela nem para o pai. Eu sabia sobre quem recaía

a culpa do furto. Papiano julgara que o meu amor por ela valia muito bem doze mil liras; era

justo demonstrar lhe o contrário? Denunciá-lo? Pois eu o faria, não por mim, mas para livrar

a casa dela do miserável. Mas sob uma condição: que ela antes de tudo se acalmasse e não

chorasse mais. Vamos! E também que me jurasse pelo que tinha de mais caro no mundo que

não falaria a quem quer que fosse sobre o ocorrido antes que eu consultasse um advogado, a

propósito das conseqüências que numa superexcitação como aquela, nem eu nem ela

estávamos em condições de prever.

— Jura? Pelo que tem de mais caro?

Jurou-me com o olhar, entre as lágrimas, dando-me a entender que jurara pelo que havia de

mais caro para ela no mundo. Pobre Adriana!

Fiquei ali sozinho no meio do quarto, atordoado, vazio, aniquilado, como se tudo no mundo

se houvesse desfeito. Quanto tempo passou, até que eu voltasse a mim? E como recobrei

alento? Idiota! Idiota! Tal e qual um idiota, fui observar a porta do armário em busca de

algum vestígio de violência. Nada. Fora aberta com uma gazua adequadamente, enquanto

com tanto cuidado eu guardava a chave no bolso.

— O senhor não se sente como se alguém lhe tivesse tirado algo? — perguntara-me Paleari,

no fim da última sessão.

Doze mil liras!

De novo, o pensamento da minha absoluta impotência, da minha nulidade me assaltou e me

arrasou. Podiam roubar-me e eu não reagiria, e ainda tinha que sofrer o pavor de que o furto

se descobrisse como se eu fosse um ladrão. Só então comecei a ver aquelas coisas que antes

não me tinham passado pelo espírito.

Doze mil liras? Ora isso não é nada! Roubarão tudo se quiserem, até a camisa do corpo! Que

direito tenho de reclamar? Eis a primeira coisa que me perguntariam: "Quem é o senhor?

Onde arranjou aquele dinheiro?" Bem, mas sem denunciar... vamos ver! De noite eu o agarro

pelo pescoço e grito: "Passe para cá imediatamente o dinheiro que você tirou do armário, seu

ladrão!" Ele grita, nega, talvez até me diga: "Sim senhor, aqui está, eu o apanhei por

engano..." E então? Mas se em caso contrário ele apresentar contra mim queixa por

difamação? Logo o melhor é ficar calado mesmo. Pareceu-me grande sorte ter passado por

morto? Pior que morto. Foi o Senhor Anselmo que me chamou a atenção: os mortos não têm

que morrer mais eu sim. Ainda estou vivo para a morte e morto para a vida. Que vida pode

ser a minha? O tédio de antes, a solidão, a companhia de mim mesmo... Escondi o rosto entre

as mãos e me atirei na poltrona.

Ah, se ao menos eu fosse algum patife! Talvez pudesse adaptar-me a permanecer assim na

incerteza da sorte, abandonado ao acaso, exposto a um risco contínuo sem base nem

consistência. Mas eu? Eu não. E o que fazer? Ir-me embora? E para onde? E Adriana? Mas o

96

que poderia fazer por ela? Nada... nada... E como ir-me embora assim sem qualquer

explicação depois de tudo que se passara? Ela procuraria a razão do furto e eu diria: "Por que

ele decidiu salvar o réu e me punir, eu que sou inocente?" Ah, não, não, pobre Adriana! Mas

sem condições de agir, como pretender tornar menos triste meu papel em relação a ela? Era

obrigado a me mostrar inconseqüente e cruel. Eu era o primeiro a sofrer com a

inconseqüência e a crueldade que pertenciam ao meu próprio destino. Até Papiano, o ladrão,

ao cometer o roubo fora mais conseqüente e menos cruel do que eu, obrigado a agir daquela

forma.

Ele queria Adriana a fim de não restituir ao sogro o dote da primeira mulher. E eu não

quisera tomar Adriana dele? Logo cabia a mim restituir o dote a Paleari.

Para um ladrão nada mais conseqüente!

Ladrão? Mas nem sequer ladrão, o roubo teria sido mais aparente que real. Conhecendo a

honestidade de Adriana ele não pensaria que eu a desejava para amante. Logo eu recuperaria

o meu dinheiro sob forma de dote e ainda arranjaria uma mulherzinha sensata e boa. Podia

desejar algo melhor?

Se eu esperasse que Adriana guardasse o segredo, veríamos Papiano manter a promessa

restituindo, mesmo antes do ano de tolerância, o dote da falecida esposa.

É verdade que o dinheiro não viria mais a mim porque Adriana não podia ser minha. Mas iria

parar em suas mãos se ela silenciasse seguindo meu conselho, e também se eu me demorasse

lá por mais tempo. Mas só à custa de muita habilidade minha. Em último caso ao menos a

restituição do dote Adriana obteria.

Pensando assim tranqüilizei-me um pouco em relação a ela. Mas não no que me concernia.

Ficara-me o travo da descoberta da fraude da minha ilusão; diante disso nada significava o

furto das doze mil liras que, aliás, redundaria num bem se fosse resolvido em favor de

Adriana.

Eu me vi para sempre excluído da vida, sem possibilidade de voltar a ela novamente. Com o

coração enlutado por tal experiência, partiria daquela casa onde encontrara um pouco de paz

e quase fizera o meu ninho. Via-me de novo pelas ruas, sem meta, sem objetivo, no vazio. O

medo de recair nos laços da vida me manteria mais do que nunca distante dos homens,

solitário, desconfiado e melancólico. E o suplício de Tântalo recomeçaria para mim.

Saí de casa como louco. Fui parar na Rua Flaminia perto da Ponte Molle. O que fôra fazer

ali? Olhei em volta. E os olhos fixaram a sombra do meu corpo. Permaneci um instante

contemplando-a. Raivosamente tentei pisar a minha sombra, debalde.

Qual de nós dois era mais sombra? Eu ou ela? Duas sombras!

Lá no chão qualquer um podia passar por cima esmagando-me a cabeça, esmagando-me o

coração. E eu, calado; a sombra, calada.

A sombra de um morto, eis a minha vida...

Passou um carro. Fiquei ali parado de propósito: primeiro o cavalo, com as quatro patas,

depois as rodas do carro.

— Ali, assim! Com força! Em cima do pescoço! Oh, oh, até você, cachorrinho? Vamos,

direitinho, assim, levante a pata, isso!

Explodi num riso maldoso. O cachorrinho fugiu amedrontado. O cocheiro se virou para me

olhar. Então eu me mexi. E a sombra comigo, na minha frente. Apressei o passo com

intenção de metê-la embaixo de outros carros, embaixo dos pés dos transeuntes,

voluptuosamente. Um desejo cruel se apoderou de mim, cravando-me as garras no ventre.

Não suportava mais ver na minha frente àquela sombra. Queria sacudi-la dos pés. Me virei.

De que adiantou? Vinha atrás de mim.

"Se eu começar a correr", pensei, "me seguirá!"

97

Passei fortemente a mão pela testa com medo de enlouquecer com aquela obsessão. Sim!

Assim era! O símbolo, o espectro da minha vida era aquela sombra, era eu ali no chão

exposto aos pés dos outros. Eis o que restava de Matias Pascal, morto na Stía: a sua sombra

pelas ruas de Roma.

Mas aquela sombra possuía um coração e não podia amar. Aquela sombra tinha dinheiro e

qualquer um podia roubar-lhe. Tinha cabeça para pensar e compreender que era a cabeça de

uma sombra e não a sombra de uma cabeça. Exatamente assim!

Então a senti como coisa viva, senti dor por ela, tal e qual tivessem realmente a despedaçado

os cavalos, as rodas do carro e os pés dos transeuntes. E não quis mais deixá-la ali exposta no

chão. Passou um bonde e o tomei.

Voltando a casa...

XVI

O RETRATO DE MINERVA

Já antes de abrir a porta adivinhei que algo de grave acontecia em casa. Ouvi a voz de

Papiano e Paleari aos gritos. Veio ao meu encontro agitadíssima a Caporale:

— Então, é verdade? Doze mil liras?

Parei ofegante e confuso. Cipião Papiano, o epilético, atravessou naquele momento o

vestíbulo descalço, os sapatos na mão, palidíssimo e sem paletó, enquanto o irmão gritava do

outro lado:

— Pois denuncie! Pode denunciar!

De repente, uma terrível cólera contra Adriana me assaltou; apesar da minha proibição,

apesar do seu juramento, ela falara.

— Quem lhe disse? — berrei à Caporale. — Não é verdade, achei o dinheiro!

Ela me olhou, estupefata.

— O dinheiro? Achou mesmo? Ah, louvado seja Deus! — exclamou erguendo os braços.

Seguida por mim correu até a sala de jantar, onde Papiano e Paleari gritavam e Adriana

chorava. Exultante anunciou:

— Achou! Achou! Aqui está o Senhor Meis! Achou o dinheiro!

— Como!

— Achou?

— Será possível?

Ficaram todos os três perplexos. Adriana e o pai, com o rosto em fogo. Papiano, ao contrário,

lívido e contrafeito.

Fixei-o por um instante. Com certeza eu estava mais pálido do que ele e fremia todo. Ele

abaixou os olhos como aterrorizado, deixando cair das mãos o paletó do irmão. Fui até ele,

quase frente a frente, e lhe estendi a mão:

— Desculpe-me. O senhor e todos, me desculpem.

— Não! — gritou Adriana indignada. Mas logo comprimiu o lenço na boca.

Papiano a olhou e não teve coragem de responder ao meu gesto. Repeti:

— Desculpe-me... E estendi ainda mais a mão até sentir o quanto tremia a sua. Parecia a mão

de um morto; e os olhos também, turvos e apagados, pareciam os de um morto.

98

— Estou realmente desolado — acrescentei — pelo distúrbio e pelo grave aborrecimento

que sem querer provoquei.

— Não... Isto é, sim. . . Na verdade — balbuciou Paleari — Bem, era uma coisa que... Sim,

não podia ser, com os diabos! Estou muito contente porque encontrou o dinheiro, pois...

Papiano suspirou, passou ambas as mãos pela fronte suada e pela cabeça e, dando-nos as

costas, pôs-se a olhar na direção do terraço.

— Fiz como o homem da anedota - prossegui tentando sorrir. — Procurava o asno e estava

em cima dele. Trazia comigo as doze mil liras, aqui na carteira.

A essa altura Adriana não mais se conteve:

— Mas se o senhor procurou, na minha frente, por toda parte, até na carteira. Se lá no

armário...

— Sim, D. Adriana — interrompi, com fria e severa firmeza — evidentemente procurei mal,

uma vez que encontrei o dinheiro. . . Peço desculpas, especialmente à senhora que pela

minha precipitação certamente sofreu mais do que os outros. Mas espero que...

— Não! Não! — berrou Adriana, explodindo em soluços e saindo arrebatadamente da sala,

acompanhada pela Caporale.

— Não entendo — fez Paleari atordoado.

Papiano voltou-se raivosamente:

— Hoje mesmo vou-me embora... Parece que agora não há mais necessidade de... de...

Interrompeu-se, como se lhe faltasse o fôlego. Quis virar-se para mim, mas não teve coragem

de me olhar de frente:

— Eu... eu nem pude, acredite, nem pude dizer que não ... quando eles me surpreenderam

aqui... Atirei-me em cima do meu irmão que... na sua inconsciência ... doente como é. . .

irresponsável, isto é, creio... quem sabe! Afinal era fácil imaginar que... Arrastei-o até aqui...

Uma cena selvagem! Vi-me forçado a despi-lo... a revistá-lo por toda parte... nas roupas, nos

sapatos ... E ele... ah!

O pranto, naquele momento, lhe subiu à garganta. Seus olhos se encheram de lágrimas. E

sufocado pela angústia acrescentou:

— Assim viram que... Pois é, mas já que o senhor... Depois disto eu vou-me embora!

— Mas não! Nada disso! — acudi. — Por minha causa? O senhor ficará! Quem deve ir sou

eu!

— Que diz, Senhor Meis? — exclamou desolado Paleari. Até Papiano, sufocado pelo pranto

que queria conter negou com a mão, dizendo:

— Eu já estava mesmo para ir-me embora. Aliás, tudo isso aconteceu, porque eu... assim,

inocentemente... anunciei que iria embora, por causa do meu irmão, que não pode mais ficar

em casa ... O Marquês até me deu... está aqui... uma carta ao diretor de uma casa de saúde em

Nápoles, para onde tenho que ir também por causa de outros documentos necessários... E

então a minha cunhada que tem pelo senhor... muito justamente, aliás, muita consideração...

começou a dizer que ninguém arredaria pé de casa... porque o senhor... não sei... havia

descoberto... A mim, isto! Ao próprio cunhado! Logo a mim veio dizer isto... talvez porque

eu, pobre mas honesto, devo restituir ainda, aqui ao meu sogro ...

— Mas em que você está pensando agora! — interrompeu Paleari.

— Não! — sustentou altivamente Papiano. — Tenho isto em mente, não me esqueço, esteja

certo! E se vou embora... Pobre, pobre Cipião!

E não conseguindo mais conter-se, explodiu em copioso pranto.

— Ora — fez Paleari, atordoado e comovido — para que falar nisso agora?

— Pobre irmão! — continuou Papiano, com tal rompante de sinceridade, que as minhas

próprias entranhas quase doeram de misericórdia.

99

Percebi naquele acesso de choro o remorso que ele certamente sentia por causa do irmão, em

quem faria recair a responsabilidade do furto caso eu o denunciasse; servira-se do rapaz,

fazendo-o pouco antes sofrer a afronta daquela investigação.

Ninguém melhor do que ele sabia que eu não podia ter achado o dinheiro roubado.

Arrasara-o completamente a minha declaração que o salvava no momento justo em que,

vendo-se perdido, lançara a suspeita de que só o irmão podia ser o autor do furto conforme

certamente teria planejado antes. Chorava então por uma irrefreável necessidade de aliviar a

alma, tão tremendamente atingida e talvez também porque sentisse que diante de mim só lhe

restava adotar aquela atitude de sentimento. Dir-se-ia que com aquele pranto se prostrasse, se

ajoelhasse aos seus pés, mas sob a condição de que eu mantivesse a minha afirmação de

haver encontrado o dinheiro; em caso contrário, eu me prevalecesse do seu abatimento para

recuar, ele se voltaria contra mim furibundo. Ele não sabia, e isto estava bem claro, e nada

devia saber do roubo: eu com minha afirmação salvara apenas o seu irmão, e se eu o

denunciasse talvez nada sofresse devido à enfermidade. Ele se empenhava, segundo já

deixara entrever, em restituir o dote a Peleari.

Pareceu-me compreender tudo isso em seu pranto. Graças às exortações do Senhor Anselmo

e também às minhas acabou acalmando-se. Disse que em breve voltaria de Nápoles, assim

que internasse o irmão na casa de saúde e liquidasse os seus compromissos recebendo a sua

parte num negócio que fizera em sociedade com um amigo, e também logo que terminasse as

pesquisas dos documentos de que necessitava o Marquês.

— Aliás, a propósito — concluiu, dirigindo-se a mim — nem me lembrava mais, o Senhor

Marquês me disse que se o senhor não se opõe, hoje... na companhia de meu sogro e de

Adriana...

— Ah, ótimo! — exclamou o Senhor Anselmo sem o deixar terminar. — Iremos todos...

Ótimo! Creio que há razões para estarmos alegres, com os diabos! Que acha, Senhor

Adriano?

— Quanto a mim... — fiz, abrindo os braços.

— Pois então, lá pelas quatro horas... — Está bem? — propôs Papiano, enxugando

definitivamente os olhos.

Retirei-me para o meu quarto. O pensamento correu imediatamente a Adriana, que fugira

soluçando após o meu desmentido. E se viesse pedir-me uma explicação? Certamente nem

ela acreditava que eu tivesse encontrado o dinheiro. Que estaria imaginando? Que eu

negando daquela forma o furto quisesse puni-la por ter faltado ao juramento? Mas por quê?

Evidentemente porque através do advogado que eu teria consultado segundo prometera antes

de denunciar o furto, soubera que ela e todos de casa seriam tidos como responsáveis. Mas

ela não me dissera que de bom grado enfrentaria o escândalo? Mas eu, era claro, não aceitara,

tendo preferido sacrificar as doze mil liras... E então ela devia acreditar que fosse

generosidade minha ou sacrifício por amor a ela? Eis a que a nova mentira me obrigava a

minha condição: uma repugnante mentira que me tornara capaz de requintada e

delicadíssima prova de amor, atribuindo-me uma generosidade ainda maior porque não fora

pedida nem desejada por ela.

Mas não! Não! Não! Que andava imaginando? A outras conclusões bem diferentes deveria

chegar, seguindo a lógica daquela minha mentira necessária e inevitável. Que generosidade!

Que sacrifício! Que prova de amor! Poderia acaso iludir ainda mais aquela pobre menina?

Tinha que sufocar a minha paixão. Não dirigiria a Adriana nem um olhar, nem uma palavra

de amor. E então? Como iria ela conciliar aquela minha aparente generosidade com a reserva

que daquele momento em diante seria a minha atitude em relação a ela? Via-me obrigado a

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recorrer à revelação do furto que ela fizera contra a minha vontade e que eu desmentira para

cortar toda ligação com ela. Mas que lógica era esta? Se eu havia sido vítima de um roubo

por qual razão, e conhecendo o ladrão, não o denunciava? Por que negar o meu amor

tratando-a como se ela também fosse culpada? Se eu realmente encontrara o dinheiro por que

não continuar a amá-la?

Senti-me sufocar pela náusea, pela ira, pelo ódio contra mim mesmo. Se ao menos lhe

pudesse dizer que não era generosidade minha. Que não podia denunciar o furto... Seria

necessário dar-lhe uma razão... Era porventura meu o dinheiro roubado? Estaria ela no

direito de supor até isso... Ou lhe diria que eu era um fugitivo comprometido e perseguido,

que devia viver na obscuridade e não podia ligar a sua sorte à de uma mulher? Outras

mentiras à pobre menina... Mas eu podia dizer-lhe a verdade, que naquele momento parecia a

mim mesmo incrível, uma história absurda, um sonho insensato? Para não mentir mais seria

obrigado a confessar que havia mentido sempre? Eis que levaria a revelação da minha

situação. E para quê? Não seria nem uma desculpa para mim nem um remédio para ela.

Revoltado e exasperado como eu me achava talvez tivesse confessado tudo a Adriana, se ela

em vez de mandar a Caporale tivesse vindo pessoalmente ao meu quarto explicar-me porque

faltara ao juramento.

A razão já me era conhecida. O próprio Papiano me dissera. A Caporale acrescentou que

Adriana estava inconsolável.

--- E por quê? — perguntei com forçada indiferença.

— Porque não crê que o senhor tenha realmente achado o dinheiro.

Veio-me repentinamente a idéia de fazer com que Adriana perdesse toda estima por mim a

fim de não mais me amar; demonstrar-me-ia falso, duro, volúvel, interessado... E assim me

puniria pelo mal que lhe causara. O novo mal que a faria sofrer seria para o seu bem, a fim de

a curar.

— Não acredita? Por que não? — disse num sorriso à Caporale. — Doze mil liras são acaso

alguma ninharia? Crê que estaria tão tranqüilo se de fato me houvessem roubado?

— Mas Adriana me disse. . . — tentou continuar.

— Tolices! Tolices! atalhei. — É a pura verdade. Olhe... suspeitei por um instante... Mas

também afirmei à D. Adriana que não acreditava possível o furto... Que razões eu teria para

dizer que achei o dinheiro se não fosse verdade?

A Caporale encolheu os ombros:

— Talvez Adriana suponha que o senhor tenha outra razão para...

— Não! Claro que não! — interrompi apressadamente. — Trata-se, repito, de doze mil liras,

D. Sílvia. Se fossem trinta, quarenta liras, vá lá! Não acredite que eu tenha tais rasgos de

generosidade ... Com os diabos! Seria preciso que eu fosse um herói!

Quando Sílvia Caporale se retirou do meu quarto para contar a Adriana o que eu dissera,

torci as mãos e as mordi. Deveria comportar-me assim? Aproveitar-me do furto como se com

aquele dinheiro pretendesse pagar e compensar Adriana pelas esperanças desfeitas? Ah, era

vil o meu modo de agir! Cheia de cólera, por certo me desprezaria... sem compreender que a

sua dor era minha também. Pois bem, assim teria que ser! Devia odiar-me, desprezar-me, da

mesma forma que eu me odiava e me desprezava. E para aumentar sua raiva e desprezo,

mostrar-me-ia afetuoso para com Papiano, o seu inimigo, para o compensar fazendo-o

esquecer a ultrajante suspeita de furto. E assim eu deixaria o meu ladrão atordoado até levar

todos a me tomarem por louco. E ainda mais: iria fazer corte a Pepita.

— Assim você me desprezará mais, Adriana! -- gemi, revirando-me na cama. --Haverá outra

coisa que eu possa fazer por você?

Logo depois das quatro horas o Senhor Anselmo veio bater à porta do quarto.

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— Já estou pronto — disse eu jogando nas costas o sobretudo.

— Vai assim? — perguntou Paleari, olhando-me admirado.

— Por quê?

Percebi que ainda tinha na cabeça o boné de viagem que costumava usar em casa. Enfiei-o

no bolso e peguei o chapéu, enquanto o Senhor Anselmo ria, ria como se ele...

— Onde vai, senhor Anselmo?

— Mas veja só, estava para sair de chinelos — respondeu, rindo sempre e apontando os pés.

— Vá andando, Adriana está esperando...

— Ela também vai?

— Não queria ir — explicou, encaminhando-se ao seu quarto. — Mas eu a convenci. Vá

logo, ela está na sala de jantar, já pronta...

Com que olhar duro me acolheu na sala a Caporale! Tantas vezes nos seus desenganos ela se

sentira confortada pela suave menina que ainda ignorava o amor. Naquele momento Adriana

sabia e estava ferida; Sílvia desejava consolá-la, agradecida e solícita, rebelando-se contra

mim, pois não lhe parecia justo fazer sofrer uma criatura tão bela e tão boa. Enquanto ela,

sem ser bela nem boa, tinha alguma desculpa para a maldade dos homens. Mas por que fazer

sofrer tanto Adriana?

Foi o que me disse o seu olhar, convidando-me a contemplar aquela que eu fazia sofrer.

Como estava pálida! Se via em seus olhos que chorara. Quem sabe o esforço e a angústia que

lhe custara ter se preparado para sair comigo...

Não obstante o meu estado de espírito, a casa e o Marquês despertaram-me certa curiosidade.

O Marquês se encontrava em Roma porque, para a restauração do Reino das Duas Sicílias,

ele não via outra solução a não ser na luta pelo triunfo do poder temporal do Papa: restituída

Roma ao Pontífice, a unidade da Itália seria desfeita e então... quem sabe! Ele não queria

arriscar profecias. No momento o seu papel estava bem definido: luta sem tréguas lá no

campo clerical. Sua casa era freqüentada por mais intransigentes prelados da Curia e por

mais fervorosos paladinos do Partido Negro.

Naquele dia, no amplo salão esplendidamente ornamentado, não encontramos ninguém.

Havia no meio um cavalete e uma tela meio esboçada que devia ser o retrato de Minerva, a

cadelinha de Pepita, toda negra deitada numa poltrona branca, a cabeça estendida em cima

das duas patinhas.

— Obra do pintor Bernaldez — anunciou-nos gravemente Papiano, como se fizesse uma

apresentação que exigisse de nós respeitosa reverência.

Primeiramente entraram Pepita Pantogada e governanta, D. Cândida.

Eu vira ambas na semi-escuridão do meu quarto. Na claridade a moça me pareceu diferente.

Não em tudo, mas no nariz... Julgava impossível que ela tivesse tal nariz. Imaginara-a com

um narizinho arrebitado e ousado, e eis que deparo um nariz aquilino e considerável. Mas

Pepita era bela assim mesmo: morena, olhos faiscantes, cabelos brilhantes, pretíssimos e

ondulados, lábios finos e acesos. A roupa escura com pequenos desenhos brancos caía-lhe

como uma luva no belo corpo esbelto. A suave beleza loura de Adriana ao lado dela

empalidecia.

E finalmente consegui descobrir o que D. Cândida trazia no alto da cabeça! Uma magnífica

peruca ruiva riçada e em cima da peruca, um enorme lenço de seda azul, ou melhor, um chale

amarrado artisticamente embaixo do queixo. O esplendor da moldura realçava ainda mais a

lividez da carinha magra e flácida apesar de ter sido alisada, empoada e arrebicada.

Minerva, entretanto, a velha cadelina, com seus rouquenhos latidos não nos deixava executar

102

nosso cerimonial. O pobre animalzinho não latia contra nós, e sim contra o cavalete e a

poltrona branca que deviam ser para ela instrumentos de tortura. Eram protestos e desabafos

de uma alma exasperada. Ela bem que gostaria de expulsar do salão aquele maldito aparelho

de três longas patas; mas já que ele permanecia ali imóvel e ameaçador, se retirava latindo

para voltar pulando e arreganhando os dentes e depois, furiosa, bater novamente em retirada.

Pequena, atarracada e gorda em cima das quatro patinhas, Minerva não possuía atributos de

beleza. A velhice lhe turvara os olhos e os pêlos da cabeça haviam embranquecido. O dorso

na altura da cauda era todo pelado por causa do hábito de se coçar violentamente debaixo dos

móveis, por toda parte e de qualquer maneira. Eu já tinha alguma experiência do fato.

De repente Pepita a agarrou pelo pescoço e a jogou nos braços D. Cândida, berrando que se

calasse.

Aquela altura entrou Dom Inácio Giglio d'Auletta, curvo e quase partido em dois. Correu a

toda velocidade na direção de sua poltrona junto da janela. Sentou-se colocando a bengala

entre as pernas, soltou um profundo suspiro e sorriu diante de seu do cansaço mortal. O

rosto, todo sulcado de rugas verticais, apresentava uma palidez cadavérica, mas os olhos

eram vivíssimos e ardentes, quase juvenis. Escorriam-lhe estranhamente pelo rosto e pelas

têmporas certas mechas de cabelos semelhantes a línguas de cinza molhada.

Acolheu-nos com muita cordialidade, falando com acentuado sotaque napolitano. Pediu ao

seu secretário que continuasse a me mostrar as lembranças que enchiam o salão e

testemunhavam a sua fidelidade à dinastia dos Bourbons. Ao pararmos diante de um

pequeno quadro coberto com um pano verde, onde havia bordada em ouro esta legenda:

―Não escondo, protejo.Ergue-me e lê‖, o Marquês pediu a Papiano que tirasse o quadro da

parede e o levasse até ele. Havia debaixo, protegida pelo vidro e emoldurada, uma carta de

Pedro Ulloa que em setembro de 1860, nos momentos finais do Reino, convidava o Marquês

Giglio d'Auletta para participar do Ministério que não pôde ser constituído. Ao lado estavam

a minuta da carta de aceitação do Marquês, altiva carta que estigmatizava todos os que

recusavam a assumir a responsabilidade do poder naquele momento de supremo perigo e

angustioso caos defronte do inimigo, o aventureiro Garibaldi, já quase às portas de Nápoles.

Lendo em voz alta esse documento, o velho se inflamou e se comoveu a tal ponto que,

embora fosse o que ele lia inteiramente contrário ao meu sentimento, não deixou de me

despertar admiração. Inegavelmente fora um herói. Tive outra prova disso quando ele

próprio me narrou a história de um lírio de madeira dourada que também estava ali no salão.

Na manhã do dia 5 de setembro de 1860, o Rei saía do Palácio de Nápoles num carro

descoberto acompanhado da Rainha e de dois gentis-homens da Corte. Chegando à Rua de

Chiaia tiveram que parar devido a uma confusão de veículos na frente de uma farmácia, cuja

tabuleta trazia os lírios de ouro. Uma escada apoiada na tabuleta impedia o trânsito. Alguns

operários trepados na escada arrancavam da tabuleta os lírios. O Rei percebeu e com a mão

apontou à Rainha aquele ato de vil prudência do farmacêutico que em outros tempos

solicitara a honra de ornar a sua loja com o símbolo real. Ele, o Marquês d'Auletta, na

ocasião passava por ali. Indignado e enfurecido precipitara-se pela farmácia adentro,

agarrara aquele vil pela gola do paletó e mostrara-lhe o Rei lá fora, cuspira-lhe na cara e

brandindo um dos lírios arrancados pusera-se a gritar no meio da multidão: ―Viva o Rei!‖

Aquele lírio de madeira lhe recordava aquela triste manhã de setembro e um dos últimos

passeios do seu Soberano pelas ruas de Nápoles. Ele se vangloriava também da chave de

ouro de gentil-homem do quarto e da insígnia de Cavaleiro de São Januário e de tantos outros

títulos honoríficos que se exibiam no salão sob os dois grandes retratos à óleo de Fernando e

Francisco II.

A fim de executar o meu odioso plano, deixei o Marquês com Paleari e Papiano e me

103

aproximei de Pepita.

Imediatamente notei que ela estava muito nervosa e impaciente. Assim que cheguei perto,

perguntou-me as horas.

— Quatro e media? Muy bien!

Certamente não gostou que fossem quatro e meia, segundo conclui a propósito daquele muy

bien! proferido entre os dentes, e também pela sua conversa instável e quase agressiva, na

qual logo se lançou contra a Itália, especialmente contra Roma, tão enfatuada e cheia de si

por causa do seu passado. Disse-me que eles lá na Espanha tinham tambien o seu Coliseu,

como o italiano, e da mesma época. Mas lá ninguém dava importância àquilo:

— Piedra muerta!

Lá para eles valia incomparavelmente mais uma Plaza de toros. Particularmente para ela

valia muito mais que todas as obras-primas da arte antiga aquele retrato de Minerva do pintor

Manuel Bernaldez que tardava a chegar. A impaciência de Pepita não provinha de outra

coisa e atingira o auge. Fremia ao falar e de vez em quando passava rapidamente um dedo em

cima do nariz, mordia os lábios, abria e fechava as mãos e os olhos se voltavam sempre para

a porta de ingresso.

Finalmente Bernaldez foi anunciado pelo mordomo e se apresentou todo suado e ofegante,

como se tivesse corrido. Imediatamente Pepita lhe deu as costas esforçando-se por assumir

uma atitude fria e indiferente. Mas quando, após ter cumprimentado o Marquês,

aproximou-se de nós e dela, começando a falar na sua língua para se desculpar do atraso, ela

não se conteve mais e lhe respondeu com vertiginosa rapidez:

— Antes de todo, fale italiano, porque aqui estamos en Roma donde estan estos señores que

no comprenden o español e no me parece buena educación que fale comigo español. E digo

que no me importa su retardo e que podia dispensar la escusa.

Bernaldez sorriu nervosamente e se inclinou mortificado. Depois perguntou se podia

continuar o retrato pois ainda havia um pouco de luz.

— Mas à vontade! — respondeu a moça com o mesmo ar e o mesmo tom. — Puede pintar

sem mi o tambien borrar o pintado, como lhe parece.

Manuel Bernaldez inclinou-se novamente e se dirigiu a D. Cândida, que segurava ainda no

colo a cadelinha.

Recomeçou então para Minerva o suplício. Mas a um suplício muito mais cruel foi

submetido o seu carrasco. Pepita, em punição pelo atraso, passou a usar tantos requebros

para o meu lado que julguei a coisa exagerada tendo em vista os fins a que me propunha. Vez

ou outra olhava Adriana disfarçadamente e via seu sofrimento. O suplício, portanto, não era

somente para Bernaldez e Minerva; era também para ela e para mim. Sentia o rosto em fogo

como se me embriagasse pela raiva que tinha consciência de causar ao nobre rapaz, que,

entretanto, não me inspirava piedade. Piedade ali dentro me inspirava somente Adriana. E já

que eu devia fazê-la sofrer não me importava por ele sofrer a mesma angústia; ao contrário,

quanto mais ele sofria, menos me parecia que Adriana sofresse. Aos poucos a violência que

cada um de nós fazia contra si mesmo cresceu e a tensão era tal, que evidentemente

explodiria de algum modo.

Foi Minerva quem deu o pretexto. Naquele dia não estava sob o olhar de controle da sua

dona. Mal o pintor desviava os olhos do modelo e voltava-se em direção à tela,

sorrateiramente a cadelinha saía da posição exigida e enfiava as patinhas e o focinho na

concavidade entre o assento da poltrona, dando a entender que desejava ficar metida e

escondida ali; apresentava então ao pintor o traseiro completamente descoberto, como um O,

balançando a cauda erguida quase numa atitude de zombaria. Por várias vezes D. Cândida a

recolocara no lugar. Enquanto esperava, Bernaldez suspirava fundo, pegava no ar uma ou

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outra palavra minha dirigida a Pepita e comentava resmungando consigo mesmo. Tendo

percebido, mais de uma vez estive a ponto de o intimidar: ―Fale alto!‖. Por fim ele não

agüentou mais e bradou a Pepita:

— Por favor, veja se ao menos obriga este bicho a ficar quieto!

— Vicho, vicho... — Explodiu Pepia agitando as mãos no ar, excitadissima. — É um vicho,

mas no se deve decir a ela!

— Quem sabe o que entende, coitadinha... — observei, tentando uma desculpa, dirigindo-me

a Bernaldez.

A frase foi de dupla interpretação, e só dei por isso depois de tê-la proferido. Queria dizer:

―Quem sabe o que ela imagina que se lhe está fazendo''. Mas Bernaldez levou as minhas

palavras num outro sentido e com extrema violência, fixando-me nos olhos, rebateu:

— O que o senhor demonstra não entender!

Sob o seu olhar firme e provocante e na excitação em que eu também me encontrava, não

pude evitar esta resposta:

— Eu entendo que o senhor talvez seja um grande pintor...

— O que há? indagou o Marquês, notando nossas maneiras agressivas.

Bernaldez, perdendo todo controle sobre si, levantou-se, vindo plantar-se na minha frente:

--- Um grande pintor... Termine!

— Um grande pintor, sim, mas de maneiras não muito polidas, creio. E causa medo às

cadelinhas --- disse-lhe então, resoluto e desdenhoso.

— Muito bem --- fez ele. Veremos se é somente às cadelinhas...

E se retirou.

Pepita, repentinamente, explodiu num estranho pranto convulso, caindo desmaiada nos

braços de D. Cândida e de Papiano.

Na confusão que se seguiu, enquanto eu e os outros olhávamos Pepita estendida no canapé,

senti-me agarrar por um braço e dei de cara com Bernaldez que voltara atrás. Tive tempo de

lhe segurar a mão levantada contra mim e o empurrei com força, mas ele investiu novamente,

tocando-me o rosto com a mão. Avancei furioso. Papiano e Paleari acudiram para me deter e

Bernaldez se retirou, gritando-me:

—É como se o tivesse esbofeteado, fique sabendo! Estou às suas ordens! Aqui se conhece

meu endereço.

O Marquês, quase se levantando da poltrona, todo fremente, gritava contra o agressor. Eu me

debatia entre Paleari e Papiano que me impediam de correr e alcançar Bernaldez. O Marquês

também tentou acalmar-me, dizendo-me que na qualidade de cavalheiro eu deveria enviar

dois amigos a fim de dar uma boa lição àquele vilão que ousara desrespeitar sua casa.

Agitadíssimo e ofegante pedi desculpas pelo desagradável incidente e me retirei,

acompanhado por Peleari e Papiano.

Adriana ficou ao lado de Pepita, que continuava sem sentidos e foi levada para fora do salão.

Não me restava outra coisa a fazer senão pedir ao ladrão que me servisse de testemunha, bem

como o Senhor Anselmo. A quem mais poderia pedir ajuda?

— Eu? — exclamou estupefato o Senhor Anselmo. — Ora, Senhor Meis, está falando sério?

Não entendo desses negócios e depois, tenha paciência, isso é tolice, coisa de rapazes...

— O senhor fará o que lhe pedi, sim! — gritei-lhe energicamente, sem poder naquele

momento entrar em discussão com ele. — O senhor irá com o seu genro procurar aquele...

— Mas eu não irei! Que diz? — insistiu. — Peça-me qualquer outro favor e estarei pronto a

servi-lo. Isso, não. Primeiro porque não sou dessas coisas, segundo porque isso não passa de

tolice e não merece atenção... De que adiantaria?

— Isso não! Isso não! — interveio Papiano vendo-me estrebuchar. — Adianta muitíssimo!

105

O Senhor Meis tem todo o direito de exigir uma satisfação. Diria até que está obrigado,

certamente! Deve, deve...

— Então o senhor irá com um amigo seu — disse, não contando com uma recusa também

dele.

Mas Papiano abriu os braços pesarosíssímo.

— Imagine com que desejo eu faria!

— E não vai fazer? — berrei no meio da rua.

— Calma, Senhor Meis — acudiu, humildemente. — Olhe, ouça, considere... considere a

minha infelicíssima condição de subalterno... de mísero secretário do Marquês ... um servo...

— Mas que importância tem isso? O próprio Marquês... O senhor não escutou?

— Sim, senhor! Mas, e amanhã? Aquele clerical... em face do partido... com o secretário que

se mete nessas questões... Ah, santo Deus o senhor não sabe que misérias! E depois aquela

gata namoradeira está toda ambeiçada pelo pintor, não viu? Aquele tratante... Amanhã fazem

as pazes e eu então vou ficar de que jeito? Olhe só a embrulhada que vou arranjar! Tenha

paciência, Senhor Meis, ponha-se no meu lugar... É exatamente o que lhe disse.

— Então me deixam sozinho neste apuro? — explodi ainda uma vez exasperado. — Eu não

conheço ninguém em Roma!

— Mas há um remédio! — apressou-se a me aconselhar Papiano. — Estava para lhe dizer

desde o começo. Nem eu nem meu sogro servimos para isto, acredite. O senhor tem razão,

estou vendo o quanto se agita. Afinal sangue não é água. Dirija-se imediatamente a dois

oficiais da Armada Real. Não se negarão a representar um cavalheiro como o senhor numa

questão de honra. O senhor se apresenta, expõe o caso... Não é a primeira vez que lhes

acontece prestar tal serviço a um forasteiro.

Havíamos chegado à porta de casa. Disse a Papiano:

— Está bem!

E o larguei ali com o sogro e fui andando sozinho, desesperado, sem direção.

Mais uma vez voltara o pensamento esmagador da minha absoluta impotência. Podia

empenhar-me num duelo naquela situação? Eu me recusava a compreender que não podia

fazer nada. Dois oficiais? Mas eles iriam primeiro querer saber quem eu era e com razão. Ah,

até no meu rosto podiam cuspir-me, esbofetear, espancar; devia pedir que batessem com

força o quanto quisessem, mas sem muito barulho... Dois oficiais! Se eu lhes revelasse

minha verdadeira condição não acreditariam e quem sabe do que suspeitariam. E também

seria inútil, como com Adriana. Mesmo se acreditassem em mim aconselhar-me-iam a

reaparecer vivo, uma vez que um morto não se acha nas devidas condições diante do Código

de Honra.

E, portanto, deveria sofrer tranqüilamente a afronta da mesma forma que o furto? Insultado,

quase esbofeteado, desafiado, retirar-me como um covarde, desaparecer assim, na incerteza

da intolerável sorte que me aguardava, desprezível e odioso a mim mesmo?

Não e não! Como suportaria viver por mais tempo? Era demais!

Parei. Vi tudo vacilar ao meu redor e não senti mais as pernas diante de um súbito sentimento

obscuro que me comunicou um arrepio da cabeça aos pés.

— Mas ao menos antes, antes. . . — disse comigo, delirando — ao menos antes, tentar... por

que não? Se conseguisse... ao menos tentar... para não parecer a mim mesmo tão covarde...

Se conseguisse, teria menos nojo de mim. Afinal nada mais tenho a perder... Por que não

tentar?

Encontrava-me a dois passos do Café Aragno. Impelido pelo cego frenesi, entrei.

Na primeira sala, em volta de uma mesa havia cinco ou seis oficiais de Artilharia. Um deles,

vendo-me parar ali perto agitado e hesitante, se virou para me olhar. Esbocei um

106

cumprimento e, com a voz embargada pela angústia:

— Por favor... Desculpe. Poderia dizer-lhe uma palavra?

Era um jovem sem bigode, que teria saído da Academia naquele mesmo ano. Ergueu-se

imediatamente, se aproximando com muita cortesia.

— Diga o que deseja...

— Apresento-me primeiro, Adriano Meis. Não sou daqui e não conheço ninguém. Acabo de

ter um litígio e precisaria de dois padrinhos. Eu não sabia a quem me dirigir. Se o senhor

quisesse, com um companheiro...

Surpreendido e perplexo me mediu de alto a baixo e se voltou para os companheiros

chamando:

— Grigliotti!

Era um oficial já velho, com bigode revirado para cima, o monóculo encaixado à força no

olho e o cabelo penteado com brilhantina. Levantou-se continuando a falar com os

companheiros e se aproximou, fazendo um leve e comedido cumprimento. Ao vê-lo

levantar-se estive a ponto de dizer ao oficialzinho: ―Aquele não, pelo amor de Deus! Aquele

não!‖ Mas certamente nenhum do grupo seria designado com mais acerto do que ele para a

emergência: conhecia na ponta da língua todos os artigos do Código de Cavalaria.

Ser-me-ia impossível reportar aqui os pormenores que esmiuçou em relação ao meu caso,

tudo o que pretendia de mim... Devia telegrafar não sei como, não sei a quem, expor,

determinar, ir ao Coronel... ça va sans dire... como fizera ele quando ainda não era militar e

lhe acontecera em Pavia caso idêntico ao meu. Porque em matéria de honra... e lá vinham

artigos e precedentes e controvérsias e júris de honra e não sei mais o quê.

Minha impaciência começou desde que o vira. Imaginem diante de todo aquele palavrório!

A certa altura não agüentei o sangue que me subira à cabeça e explodi:

— Está muito bem! Eu sei! O senhor está com a razão. Mas como quer que eu telegrafe

agora? Eu sou só! E quero bater-me, pronto! Bater-me imediatamente amanhã mesmo, se

possível! Sem tantas histórias! Que quer que eu saiba sobre isso tudo? Dirigi-me aos

senhores, na esperança de que não houvesse necessidade de tantas formalidades e tantas

tolices...

Após esta explosão a conversa se transformou quase em altercação e terminou

repentinamente numa gargalhada geral entre os oficiais. Fugi, fora de mim, o rosto ardendo

como se houvessem me chicoteado. Levei as mãos à cabeça, quase para prender a razão que

me escapava e, perseguido por aquelas risadas afastei-me correndo, no desejo de me

esconder de qualquer maneira. Onde? Em casa? Senti horror! E caminhei, caminhei

loucamente. Aos poucos fui diminuindo o passo e por fim parei, exausto, como se não

pudesse mais arrastar a alma açoitada por aquele escárnio fremente e cheia de tétrica e

pesada angústia. Quedei-me por um momento atônito e em seguida me pus novamente a

caminhar, sem mais pensar, aliviado repentinamente de modo estranho de todas as aflições,

quase abestalhado. Recomecei a vagar não sei por quanto tempo, detendo-me aqui e ali e

olhando as vitrines das lojas que aos poucos iam se fechando. Parecia que se fechavam para

sempre e as ruas se despovoavam para eu ficar sozinho na noite, errando entre as casas

mudas e escuras, com todas as portas e janelas fechadas para sempre para mim. Toda a vida

se extinguia, emudecia com aquela noite. E eu a via já quase de longe, como se ela não

tivesse mais sentido nem finalidade para mim. E eis que, guiado pelo sentimento obscuro

que me invadira completamente e lentamente amadurecera, fui parar na Ponte Margarida

apoiado no parapeito a olhar perdidamente o rio negro da noite.

— Lá?

Percorreu-me um arrepio de medo, despertando com ímpeto raivoso todas as minhas

107

energias vitais, armadas de um sentimento de ódio contra aquelas que, de longe, me

obrigavam a terminar assim lá no moinho da Stía. Foram elas, Romilda e a mãe, que me

atiraram naquela aflição. Ah, eu jamais teria pensado em simular um suicídio para me livrar

delas. E eis que depois de ter rodado por dois anos como uma sombra naquela ilusão de vida

além da morte, via-me obrigado, forçado e arrastado pelos cabelos a executar a sua

condenação. Elas realmente me haviam matado! Elas, somente elas se haviam livrado de

mim...

Um frêmito de revolta me sacudiu. Acaso não podia eu vingar-me delas em vez de me

matar? Mas quem eu estava para matar? Um morto... Ninguém...

Fiquei como ofuscado por estranha e repentina luz. Vingar-me! Voltar a Miragno? Sair

daquela mentira que me sufocava e já se tornara insustentável. Voltar vivo para castigá-las

com o meu verdadeiro nome, mas minhas verdadeiras condições, com as minhas verdadeiras

e próprias infelicidades? E o presente? Poderia sacudi-lo assim, qual um fardo odioso que a

gente atira fora? Não, não, não! Sentia que não o faria. E me torturava, ali na ponte, na

incerteza da minha sorte.

No bolso do sobretudo eu apalpava e apertava com os dedos irrequietos algo que não

conseguia entender o que fosse. Num acesso de raiva arranquei do bolso o meu boné que, ao

sair de casa para a visita ao Marquês Giglio, eu levara comigo, sem prestar atenção. Ia

jogá-lo no rio, mas de repente me surgiu uma idéia. Uma reflexão feita durante a viagem de

Alenga a Turim voltou-me clara à memória.

— Aqui — disse, quase inconscientemente — neste parapeito... o chapéu... a bengala... Sim!

Como elas fizeram nas águas do moinho com Matias Pascal, agora eu farei com Adriano

Meis... Cada um tem a sua vez! Retorno vivo. Vingar-me-ei.

Um sobressalto de alegria, um ímpeto de loucura apoderou-se de mim, penetrou-me. Sim,

sim! Não deveria matar-me, eu, um morto; deveria matar aquela louca, absurda ficção que

me torturara e dilacerara por dois anos, aquele Adriano Meis, condenado a ser um covarde,

um mentiroso, um miserável; aquele Adriano Meis era quem eu deveria matar; sendo como

era um nome falso, certamente teria o cérebro de estopa, o coração de papelão, as veias de

borracha, nas quais correria água com tinta, em vez de sangue. Abaixo o odioso e triste

fantoche! Afogado, como Matias Pascal! Cada um tem a sua vez! Aquela sombra de vida

saída de macabra mentira se concluiria dignamente em macabra mentira! E reparava tudo!

Que melhor satisfação poderia dar a Adriana pelo mal que lhe fizera? E a afronta daquele

tratante deveria esquecer? Atacara-me traiçoeiramente o covarde! Oh, eu estava bem certo

de não ter medo dele. Não fôra eu e sim Adriano Meis que recebera o insulto. E então,

pronto, Adriano Meis se mataria.

Era a única possibilidade de saída que havia para mim!

Um tremor, entretanto, me dominava, como se eu estivesse para matar realmente alguém.

Mas o cérebro subitamente se desanuviara, o coração se aliviara e eu gozava de uma quase

hilariante lucidez de espírito.

Olhei em volta. Suspeitei que mais além ao longo do Tibre, talvez houvesse alguém, algum

guarda que, observando-me ali na ponte tivesse resolvido ficar de sentinela. Quis verificar.

Fui, olhei primeiro na Praça da Liberdade, depois no cais dos Mellini. Ninguém! Voltei

atrás. Mas antes de me encaminhar para a ponte detive-me entre as árvores, embaixo de um

lampião. Arranquei uma folha da caderneta de notas e escrevi com um lápis: Adriano Meis.

Que mais? Nada. O endereço e a data. Bastava assim. Adriano Meis estava todo ali, naquele

chapéu e naquela bengala. Deixaria tudo em casa, roupas, livros... Após o furto trazia o

dinheiro comigo.

Voltei à ponte em silêncio, abaixado. As pernas me tremiam e o coração se agitava

108

tempestuosamente no peito. Escolhi o lugar menos iluminado pelos lampiões e

imediatamente tirei o chapéu, meti na fita o bilhete dobrado e o deixei no parapeito com a

bengala ao lado. Coloquei na cabeça o providencial boné de viagem que me salvara e me

esquivei procurando a sombra, como um ladrão, sem me voltar atrás.

XVII

REENCARNAÇÃO

Cheguei à estação em tempo de pegar o trem das doze e dez para Pisa.

Comprei a passagem e me acomodei no canto de um vagão de segunda classe, com a aba do

boné puxada quase até o nariz, não tanto para me esconder, mas sim para não ver. Mas via da

mesma forma, com o pensamento. Vinha-me o pesadelo do chapéu e da bengala, deixados no

parapeito da ponte. Talvez alguém naquele momento os tivesse descoberto. Talvez algum

guarda noturno tivesse corrido ao Posto Policial para dar o aviso. E eu ainda em Roma! Que

estava esperando? Não respirava mais...

Finalmente o trem se mexeu. Por sorte ficara só no compartimento. Ergui-me num salto,

estendi os braços e soltei um interminável suspiro de alívio, como se me tivessem tirado uma

pedra do peito. Ah, tornara-me vivo, começava a ser eu, eu, Matias Pascal. Teria gritado a

todos: ―Eu, eu, Matias Pascal! Sou eu! Não morri! Eis-me aqui!‖. Não precisaria mais mentir

nem temer ser descoberto! Isso é, ainda não, enquanto não chegasse a Miragno. Lá primeiro

deveria declarar-me vivo e fazer-me reconhecer, reenxertar-me nas minhas raízes sepultas.

Louco! Iludir-me pensando que fosse possível um tronco viver sem raízes! Recordava-me de

outra viagem de Alenga a Turim: considerara-me da mesma forma feliz. Louco! A

libertação! — dizia. Parecera-me a libertação! Com o manto de chumbo da mentira nas

costas! Um manto de chumbo nas costas de uma sombra... É verdade que teria de novo nas

costas a mulher e aquela sogra... Mas acaso estive livre delas enquanto morto? Naqueles

momentos ao menos eu me sentia vivo e aguerrido. Ah, veríamos!

Reconsiderando tudo, parecia-me completamente inverossímil a leviandade com que há dois

anos eu me desfizera de todas as leis entregando-me à aventura. E revia os primeiros dias na

inconsciência em Turim e depois em outras cidades em peregrinação, mudo e fechado em

mim, no sentimento do que me parecia então a minha felicidade: hei-me na Alemanha, ao

longo do Reno, num navio. Era um sonho? Não, fora verdade! Ah, se aquela situação tivesse

durado, viajar como um forasteiro da vida... Mas em Milão, depois... Aquele pobre cãozinho

que desejei comprar do velho vendedor de fósforos... Começava a perceber. E depois, ah,

depois...

Fui parar novamente com o pensamento em Roma. Como sombra, entrei na casa que

abandonei. Dormiam todos? Adriana talvez não... Talvez me esperasse ainda. Por certo lhe

disseram que eu tinha ido procurar dois padrinhos para me bater com Bernaldez. Não me

vendo de volta a casa, ela tem medo e chora...

Comprimi fortemente as mãos no rosto, sentindo o coração se apertar de angústia.

— Mas para você eu não podia estar vivo, Adriana — gemi — é preferível que você agora

me tenha por morto! Mortos os lábios que colheram um beijo de sua boca, pobre Adriana...

109

Esqueça, esqueça!

O que aconteceria naquela casa na manhã seguinte quando alguém da Polícia se apresentasse

a anunciar? Passado o primeiro espanto, atribuiriam a qual razão o meu suicídio? Ao duelo

iminente? Claro que não. Seria ao menos muito estranho um homem que nunca dera provas

de covardia matar-se por medo de um duelo. E então? Porque não encontrava padrinhos?

Fútil pretexto! Ou talvez... quem sabe! existisse debaixo daquela minha estranha existência

algum mistério...

Oh, certamente pensariam nisto! Matava-me assim, sem nenhuma razão aparente, sem antes

haver demonstrado de algum modo tal intenção. Minha conduta era estranha nos últimos

dias: a embrulhada do furto, primeiro suspeitado e depois desmentindo... Não me pertenceria

então aquele dinheiro? Deveria acaso restituí-lo a alguém? Teria me apoderado de uma parte

e tentara me passar por vítima de um roubo; depois arrependido matara-me... Quem sabe!

Sem dúvida sempre fora um homem misteriosíssimo: nenhum amigo, nenhuma carta nunca,

de nenhum lugar...

Teria sido mil vezes melhor se houvesse escrito no bilhetezinho algo mais além do nome,

data e endereço: uma razão qualquer para o suicídio. Mas naquele momento... E depois, qual

razão?

"Quem sabe o estardalhaço", pensei, agitado, "que farão agora os jornais a respeito de

Adriano Meis misterioso... Com certeza surgirá aquele meu famoso primo, o turinense

Francisco Meis, fornecendo as suas informações à Polícia. Investigarão tais informações e

quem sabe o que resultará? Sim, mas o dinheiro? A herança? Adriana viu as minhas notas ...

Imaginem Papiano! Assaltará ao armário, mas o encontrará vazio ... E então, perdido? No

fundo do rio? Que pena! Que raiva não ter roubado tudo de vez! A Polícia levará as minhas

roupas, os meus livros... Irão parar nas mãos de quem? Oh, ao menos uma lembrança para a

pobre Adriana! Com que olhos contemplará o meu quarto deserto?‖

Perguntas, suposições, pensamentos, sentimentos se tumultuavam em mim, enquanto o trem

estrepitava na noite. E não me deixavam em paz.

Julguei prudente demorar-me alguns dias em Pisa, a fim de não estabelecer uma relação

entre o reaparecimento de Matias Pascal em Miragno e o desaparecimento de Adriano Meis

em Roma, relação talvez muito óbvia sobretudo se os jornais de Roma tivessem insistido na

notícia do suicídio. Esperaria em Pisa os jornais de Roma. Se o meu caso não tivesse

despertado muita atenção na imprensa romana, antes de Miragno iria a Oneglia procurar meu

irmão Roberto e experimentar a impressão que lhe causaria a minha ressurreição. Em

hipótese alguma deveria fazer qualquer referência à minha estada em Roma nem às

aventuras daqueles dois anos. Do período de ausência eu daria fantásticas noticias de viagens

longínquas... Ah, tornando-me vivo conceder-me-ia o luxo de proferir mentiras, muitas, da

mesma envergadura daquelas do Cavaleiro Tito Lenzi ou até mais espalhafatosas!

Restavam-me mais de cinqüenta e duas mil liras. Os credores, considerando-me morto havia

dois anos, teriam se contentado com a propriedade da Stía e o moinho. Teriam vendido os

dois e talvez tivessem arranjado as coisas da melhor maneira. Não me importunariam mais.

Aliás, não permitiria que me importunassem. Com cinqüenta e duas mil liras, em Miragno

poderia viver, já não digo na abastança, porém modestamente.

Assim que deixei o trem, em Pisa, fui comprar um chapéu, exatamente da forma e dimensão

dos que Matias Pascal costumava usar. Logo depois mandei cortar a cabeleira do imbecil do

Adriano Meis.

— Quero bem curtos, hein? — ordenei ao barbeiro.

A barba já me havia crescido um pouco e, de cabelos curtos, comecei a recuperar o meu

antigo aspecto, porém muito melhorado, mais fino e até enobrecido. O olho não mais torto

110

deixou de ser aquela característica de Matias Pascal.

Alguma coisa de Adriano Meis, entretanto, me ficaria no rosto. E me tornara tão parecido

com Roberto como jamais teria suposto.

O desastre foi quando, depois de me ter livrado daquela juba recoloquei na cabeça o chapéu

comprado pouco antes: enterrou-se até a nuca! Precisei remediar, com o auxílio do barbeiro,

introduzindo uma tira de papel embaixo do forro.

Para não entrar assim de mãos abanando num hotel, comprei uma valise. Colocaria dentro a

roupa que vestia e o sobretudo. Teria que adquirir toda espécie de roupas, pois não esperava

que minha mulher, lá em Miragno, tivesse conservado algo depois de tanto tempo. Vestindo

uma roupa nova e levando a valise desci no Hotel Netuno.

Já estivera em Pisa quando era Adriano Meis e me hospedara no Hotel de Londres. Já

admirara todas as maravilhas de arte da cidade. Mas naquele momento, extenuado pelas

emoções violentas, em jejum desde a manhã do dia anterior, caía de fome e sono. Tomei

algum alimento e dormi quase até ao anoitecer.

Quando despertei vi-me tomado por uma angústia crescente. Aquele dia que me passou

quase despercebido entre as primeiras providências, e no sono de chumbo no qual caíra

quem sabe como teria transcorrido na casa de Paleari! Confusão, espanto, curiosidade

mórbida dos estranhos, investigações apressadas, suspeitas, hipóteses extravagantes,

insinuações, inúteis procuras. As minhas roupas e os meus livros, lá, olhados com a

consternação que inspiram os objetos pertencentes a alguém tragicamente morto.

E eu tinha dormido! E depois, naquela impaciência angustiosa deveria esperar até a manhã

do dia seguinte, a fim de saber algumas notícias nos jornais de Roma.

Não podia correr a Miragno, ou ao menos a Oneglía enquanto isso. Ficaria numa situação

estranha, numa espécie de parêntese de dois, três dias, talvez mais. Em Miragno, morto na

pessoa de Matias Pascal; em Roma, também morto, como Adriano Meis.

Não sabendo o que fazer e desejando esquecer um pouco tantas consternações, levei os dois

mortos a passear por Pisa.

Oh, foi um agradabilíssimo passeio! Adriano Meis, que já conhecia a cidade, queria servir de

guia e cicerone a Matias Pascal. Mas este, abafado por tantas coisas que lhe revolviam o

espírito, agitava-se tristemente e sacudia um braço como para afastar aquela sombra odiosa,

cabeluda, de sobrecasaca, chapelão de abas largas e óculos.

— Vá-se embora, ande! Volte ao rio, afogado!

Mas também lembrava que Adriano Meis, passeando dois anos antes pelas ruas de Pisa, se

sentira importunado e irritado pela sombra igualmente odiosa de Matias Pascal; quisera, com

o mesmo gesto, desembaraçar-se dela, jogando-a nas águas do moinho na Stía. O melhor era

não dar confiança a nenhum dos dois. Oh, branca torre, você podia pender de um lado; eu,

entre aqueles dois, nem de um lado nem do outro.

Com a ajuda de Deus consegui finalmente superar aquela nova e interminável noite de

angústia e me vi com os jornais de Roma nas mãos.

Não direi que a leitura me tranqüilizou, seria impossível. O abatimento que me dominava foi

logo dissipado ao ver que a notícia do meu suicídio os jornais deram proporções de uma

simples notícia habitual. Referiam a mesma coisa sobre o chapéu, a bengala e o lacônico

bilhete encontrados na ponte; diziam também que eu, homem um tanto singular, era

turinense e se ignoravam as razões que me haviam levado à triste decisão. Um avançava a

suposição de que houvesse alguma "razão íntima", baseando-se na "altercação com um

jovem pintor espanhol, na casa de conhecidíssima personalidade do mundo clerical".

Outro aventava que fôra "provavelmente por desarranjos financeiros". Em resumo, notícias

vagas e breves. Somente um jornal da manhã habituado a se estender longamente sobre os

111

fatos do dia aludia à "surpresa e à dor da família do Senhor Anselmo Paleari, chefe de seção

do Ministério da Instrução Pública, atualmente aposentado, na residência do qual Meis

habitava, muito estimado por sua reserva e cortesia" — Obrigado! O mesmo jornal

referindo-se à disputa com o pintor espanhol M. B. dava a entender que a razão do suicídio

talvez estivesse ligada a alguma secreta paixão.

No final matara-me por causa de Pepita Pantogada. Não era melhor assim? O nome de

Adriana não aparecera nem se fizera referência alguma ao meu dinheiro. A Policia

investigaria secretamente. Mas com quais indícios?

Podia partir para Oneglia.

Encontrei Roberto no campo para a colheita da uva. O que senti ao rever a minha bela

Riviera onde não acreditava mais que me fosse possível pôr os pés é fácil entender. Mas a

alegria era perturbada pela impaciência de chegar, pela apreensão de ser reconhecido no

caminho por alguém fora da família, pela emoção crescente que me causava o pensamento

do que experimentariam ao me reverem de repente vivo. Minha vista se obscurecia a tal

pensamento, o céu e o mar se entristeciam, o sangue me picava as veias, o coração me batia

em tumulto. E eu não chegava nunca!

Quando finalmente o criado me abriu o portão da graciosa propriedade, dote da mulher de

Berto, me pareceu que, ao atravessar o caminho de ingresso, eu realmente voltasse do outro

mundo.

— Tenha a bondade — disse o criado, deixando-me passar adiante, na entrada da casa. — A

quem devo anunciar?

Sem poder responder, disfarcei meu esforço para falar num sorriso e balbuciei:

— Diga que... sim ... diga que.. é um amigo seu... íntimo, que... vem de longe ...

Ao menos gago o criado teria pensado que eu era. Colocou a minha valise ao lado do cabide

e me convidou a entrar na sala de visitas.

Fremia na espera, ria, suspirava, olhava em torno naquela pequena sala clara e bem

arranjada, ornada de móveis de laca verde-pálido. De repente vi pela porta por onde entrara

um belo menino de uns quatro anos carregando um pequeno regador numa das mãos e um

ancinho na outra. Fixava-me de olhos arregalados.

Senti uma ternura indizível. Devia ser um sobrinho meu, o filhinho maior de Berto.

Inclinei-me, fazendo-lhe com a mão sinal para que se aproximasse. Mas eu o amedrontei,

pois fugiu.

Ouvi abrir-se a outra porta da sala. Levantei-me, os olhos embaciados pela emoção,

enquanto uma espécie de riso convulso me tremia na garganta.

Roberto ficara diante de mim, perturbado e atordoado.

— Com quem...? — fez.

— Berto! — gritei, abrindo-lhe os braços. — Não me reconhece?

Tornou-se palidíssimo ao som da minha voz, passou rapidamente a mão na testa, nos olhos,

balbuciando:

- Como... Como... Como...

Eu o amparei prontamente embora ele se afastasse, quase por medo.

— Sou eu! Matias! Não tenha medo! Não estou morto... — Está vendo? Pode tocar-me! Sou

eu, Roberto. Nunca estive mais vivo do que agora! Vamos!

— Matias! Matias! Matias! — pôs-se a dizer o pobre Berto, não acreditando ainda nos seus

olhos. — Mas como é isso? Você? Oh, Deus... Meu irmão! Meu querido Matias!

E me abraçou muito, muito fortemente. Comecei a chorar como uma criança.

— Como foi isso? — perguntava Berto, que chorava também.

112

— Aqui estou... Vê? Estou de volta... Não do outro mundo, não... Sempre estive neste

mundo horrível... Vamos...

Segurando-me fortemente nos braços, o rosto cheio de lágrimas, Roberto me olhava ainda,

pasmado:

— Como foi... Se lá...?

— Não era eu... Vou explicar. Enganaram-se... Eu me encontrava longe de Miragno e soube,

talvez da mesma forma que você através de um jornal, do meu suicídio na Stía.

— Então não era você? — exclamou Berto. — E o que fez?

— Fiz que estava morto. Fique calado! Contarei tudo. Mas agora não posso. Digo somente

que rodei daqui para ali, acreditando-me feliz no começo, sabe? Depois, tantos

acontecimentos... E descobri que errara; fazer-se morto não é uma bela profissão. E aqui

estou. Faço-me vivo outra vez.

— Seu maluco! Sempre disse que você era um maluco! — Que alegria você me deu! Quem

podia esperar uma coisa destas? Matias vivo... aqui! Sabe que ainda não consigo acreditar?

Deixe-me olhar... Você parece outro!

— Já viu que dei um jeito no olho?

— É mesmo... Por isto parecia... Não sei... Olhava... Olhava... Ótimo! Vamos falar com

minha mulher... Oh! Espere... você...

Parou repentinamente e me olhou perturbado:

— Você quer voltar a Miragno?

— Certamente, hoje à noite.

— Então você não sabe de nada?

Cobriu o rosto com as mãos e gemeu:

— Infeliz! O que você fez... O que você fez... Não sabe que sua mulher...?

— Morta? — exclamei pasmando.

— Não! Pior! Casou-se de novo!

Caí das nuvens.

— Casou-se?

— Sim, com Pomino! Recebi a participação. Deve fazer mais de um ano.

—Pomino? Pomino, marido de... — balbuciei. Mas um riso amargo, como um

transbordamento de bílis, subiu-me à garganta e eu me ri estrondosamente.

Roberto me olhava espantado, talvez com medo de que eu não estivesse bom da cabeça.

— Você está rindo?

— Claro! Claro! — gritei, sacudindo-o pelos braços. — Tanto melhor! É o máximo da sorte!

— Que diz? — pulou Roberto quase raivosamente. — Sorte? Mas se você agora for lá...

— Ora se vou! Irei imediatamente!

— Mas você não sabe que é obrigado a ficar com ela outra vez?

— Eu? Como?

— Isso mesmo! — reafirmou Roberto, enquanto era eu quem, por minha vez, o olhava

espantado. — O segundo matrimônio se anula e você é obrigado a ficar com ela.

Senti-me completamente transtornado.

— Como! Que lei é esta? — bradei. Minha mulher se casa novamente e eu... Mas então...

Não... Você não sabe de nada... Não é possível!

— Mas fique sabendo que é exatamente o que digo! — sustentou Berto. — Espere, o meu

cunhado está ai. É advogado e lhe explicará melhor do que eu. Venha... Ou melhor, espere

um pouco aqui, minha mulher está grávida e eu não queria que, embora conhecendo você

pouco, viesse a sofrer uma impressão muito forte... Irei prevení-la... Espere, hein?

E me segurou pela mão até a porta, como se temesse que, deixando-me por um momento, eu

113

desaparecesse de novo.

Ao me ver sozinho pus-me a rodar na sala, igual a um leão na jaula. — Casada! Com

Pomino! Claro!... Até a mesma mulher. Ele, ele a amara primeiro. Não lhe terá parecido

verdade aquilo! E ela também... Imaginem! Rica esposa de Pomino... E enquanto ela se

casara novamente, eu, lá em Roma... E agora devo ficar com ela! Mas será possível?

Logo depois Roberto veio chamar-me exultante. Eu estava tão desnorteado com aquela

noticia inesperada que não pude corresponder à festa que me fizeram minha cunhada, sua

mãe e o irmão. Berto percebeu e logo indagou ao cunhado sobre o que eu tinha tanta urgência

em saber.

— Mas que lei é esta? — explodi ainda uma vez. — Desculpe! Esta lei é absurda!

O jovem advogado sorriu, endireitando as lentes no nariz, com ar de superioridade.

— E, entretanto é assim — respondeu. — Roberto tem razão. Não lembro com precisão o

artigo, mas o caso é previsto pelo Código. O segundo matrimônio torna-se nulo ao

reaparecimento do primeiro cônjuge.

— E eu devo levar para a minha companhia — exclamei raivosamente — uma mulher que,

segundo é do conhecimento geral, viveu um ano inteiro como esposa de outro homem, o

qual...

— Mas por culpa sua, desculpe caro senhor Pascal! — interrompeu-me o advogadozinho

sempre sorridente.

— Por culpa minha? Como? Antes de tudo minha mulher se engana, reconhecendo-me no

cadáver de um desgraçado que se afoga. Depois se apressa em se casar outra vez. E a culpa é

minha? Sou obrigado a ficar com ela?

— Certamente — replicou — desde que o senhor não quis corrigir a tempo o engano de sua

esposa, antes do prazo prescrito pela lei para contrair um segundo matrimônio, engano que

podia ser de má-fé; o senhor aceitou o falso reconhecimento e se valeu dele... Mas, veja, eu o

louvo pelo que fez, acho que agiu muito bem. O que me espanta é que o senhor queira voltar

a se embarafustar no emaranhado das nossas estúpidas leis sociais. Eu, no seu lugar, não

apareceria vivo nunca mais.

A calma, a insolente petulância daquele rapazinho recém-diplomado me irritaram.

— É porque o senhor não sabe o que significa isso! — afirmei encolhendo os ombros.

— Como! Haverá maior sorte e maior felicidade do que esta?

— Sim! Experimente! Experimente e verá! — rebati, voltando-me para Roberto, sem querer

mais ouvir os seus argumentos presunçosos.

— Oh, a propósito — interrogou meu irmão — como é que você se arranjou todo esse tempo

em relação a...?

E roçou o polegar no indicador, significando dinheiro.

— Como fiz? Longa história! Agora não estou em condições de contar. Mas tive dinheiro,

sabe? E ainda tenho. Não vá pensar que volto a Miragno porque esteja desprevenido!

— Ah, você se obstina em voltar — insistiu Berto — mesmo depois destas notícias?

— É evidente que volto! Você acha que depois do que experimentei e sofri queira ainda

passar por morto? Não, meu caro. Ah, quero os meus documentos em ordem, quero

sentir-me vivo, bem vivo, mesmo se levar minha mulher para a minha companhia

novamente. Diga-me, vive ainda a mãe dela, a viúva Pescatore?

— Oh, não sei — respondeu Berto. — Você compreende, após o segundo casamento... Mas

creio que ainda está viva...

— Assim eu me sinto melhor! — exclamei. — Não importa, vou vingar-me! Não sou mais

aquele de antes, sabe? Só lamento que isto seja uma sorte para o imbecil do Pomino!

Todos riram. O criado veio anunciar que o almoço estava servido. Fiquei, mas a impaciência

114

era tão grande que nem percebia se comia; no fim senti que havia devorado. A fera em mim

se restaurava e se preparava para o assalto iminente.

Berto me propôs passar ao menos aquela noite lá na companhia deles; na manhã seguinte

iríamos juntos a Miragno.

Ele queria gozar a cena do meu retorno imprevisto à vida, vendo-me cair em cima do ninho

de Pomino qual ave de rapina. Mas eu morria de impaciência e não quis saber de mais nada;

pedi-lhe que me deixasse ir sozinho naquele dia mesmo, sem mais demora.

Parti com o trem das oito. Dentro de meia hora, em Miragno.

XVIII

O FINADO MATIAS PASCAL

Entre a ânsia e a raiva (não sabia o que me agitava mais), não me preocupei mais em ser

reconhecido em Miragno.

Metera-me num vagão de primeira classe como única precaução. Era noite e a experiência

feita com Berto me tranqüilizava: estabelecida em todos a certeza da minha triste morte, com

uma distância de já dois anos, ninguém pensaria mais que eu fosse Matias Pascal.

Estiquei a cabeça para fora da janela na esperança de que a vista dos conhecidos lugares me

despertasse alguma outra emoção menos violenta. Mas só serviu para me fazer crescer a

ânsia e a raiva. Sob a lua, entrevi de longe o declive da Stía.

— Assassinas! — sibilei entre os dentes. — Lá... Mas agora...

Aturdido pela inesperada notícia quantas coisas esquecera-me de perguntar a Roberto! A

propriedade e o moinho teriam sido realmente vendidos? Ou estavam ainda sob uma

administração provisória? E Malagna tinha morrido? E tia Escolástica?

Não me parecia que se tivessem passado apenas dois anos e meses. Parecia uma eternidade.

Como me aconteceram casos extraordinários achava que em Miragno também teria havido

coisas imprevistas. No entanto talvez nada tivesse acontecido além do casamento de

Romilda e Pomino, normalíssimo em si e que só com o meu aparecimento se poderia tornar

extraordinário.

Para onde me dirigiria assim que descesse em Miragno? Ao lugar onde o novo casal

construíra o ninho?

Pomino era rico e filho único, e a casa em que eu habitara era muito humilde para ele. E

Pomino, mole de coração, por certo se sentiria pouco à vontade ali por causa da inevitável

lembrança. Talvez morasse com o pai no Palácio. Imaginem os ares de matrona da viúva

Pescatore agora! E o pobre Cavaleiro Pomino, Jerônimo I, delicado, gentil, manso, entre as

garras da megera! Que cenas! Certamente nem o pai nem o filho haviam tido a coragem de se

livrar dela. E eis que naquele momento, ah que raiva, eu os livraria.

Eu devia dirigir-me à casa de Pomino. Mesmo se não os encontrasse me informaria onde os

iria desencovar.

Na minha aldeiazinha adormecida, que rebuliço no dia seguinte, à notícia da minha

ressurreição!

Havia lua naquela noite e os lampiões estavam apagados segundo o costume, e as ruas

estavam desertas, sendo a hora do jantar para a maioria.

115

Havia quase perdido, pela extrema excitação nervosa, a sensibilidade das pernas. Caminhava

como se não tocasse o chão com os pés. Não saberia reproduzir o estado de espírito em que

me encontrava. Guardo somente a impressão de uma espécie de enorme, homérica risada que

na superexcitação violenta me revolvia as entranhas sem poder explodir. Se eu me risse teria

feito com que pulassem no ar as pedras da rua como dentes e as casas vacilariam.

Cheguei num instante à casa de Pomino. Naquela espécie de gaiola da entrada principal não

encontrei a velha zeladora. Aguardei por alguns minutos, impacientíssimo, e num dos lados

da porta divisei uma pequena faixa de luto pregada, descorada e empoeirada. Obviamente

fazia vários meses. Quem morrera? A viúva Pescatore? O Cavaleiro Pomino? Por certo um

dos dois. Talvez o velho. Nesse caso encontraria sem falta os dois pombinhos instalados no

Palácio. Sem poder esperar mais tempo precipitei-me aos pulos pela escada acima. No

segundo lanço, eis a zeladora.

— O Cavaleiro Pomino, por favor.

Pelo espanto com que a velha tartaruga me olhou, compreendi ser exatamente o coitado que

devia ter morrido.

— O filho! O filho! — corrigi imediatamente, continuando a subir.

Não sei o que resmungava a velha pela escada. No fim do último lanço tive que parar, pois

estava sem fôlego! Olhei a porta e pensei:

"Talvez ainda estejam jantando, todos três à mesa... sem a menor desconfiança. Dentro de

poucos instantes, assim que tiver batido à porta, a vida deles se transformará... Ainda está em

minhas mãos a sorte que pende sobre as suas cabeças."

Subi os últimos degraus. Com a cordinha da sineta na mão, enquanto o coração me subia à

garganta, fiquei atento. Nenhum rumor. E naquele silêncio escutei o tin-tin lento da sineta,

puxada levemente.

Todo o sangue me afluiu à cabeça e os ouvidos começaram a zunir, como se aquele leve

tinido que se extinguira no silêncio me tivesse ressoado dentro furiosamente, aturdindo-me.

Logo depois reconheci num sobressalto, do outro lado da porta, a voz da viúva Pescatore:

— Quem é?

Não pude responder logo. Apertei os punhos contra o peito, como a impedir o coração de me

saltar pela boca. Em seguida, numa voz cavernosa disse, destacando bem as sílabas:

— Matias Pascal.

— Quem?! — urrou a voz de dentro.

— Matias Pascal — repeti ainda mais cavernosamente.

Ouvi a velha bruxa fugir, por certo apavorada, e imaginei o que acontecia do outro lado.

Viria o homem então: Pomino, o corajoso!

Mas primeiro foi preciso tocar a sineta, dessa vez também levemente.

Assim que, ao escancarar a porta, Pomino me viu petulante à sua frente, recuou aterrorizado.

Avancei gritando:

— Matias Pascal! Do outro mundo!

Pomino num surdo baque caiu de nádegas no chão e olhos arregalados:

— Matias! Você!

A viúva Pescatore, acudindo com um lampião nas mãos, soltou um berro agudíssimo de

parturiente. Fechei a porta com um pontapé e num pulo tomei-lhe o lampião que já lhe caía

das mãos.

— Calada! — bradei-lhe diante do focinho. — Está pensando que eu sou um fantasma de

verdade?

— Vivo? — fez ela empalidecendo com as mãos entre os cabelos.

— Vivo! Vivíssimo! — prossegui numa alegria feroz. —Vocês me reconheceram naquele

116

morto, não é? Afogado lá?

— E de onde vem? — indagou com terror.

— Do moinho, sua bruxa! — urrei. -- Olhe-me bem na claridade, está vendo? Sou eu?

Reconhece-me? Ou ainda pareço aquele desgraçado que morreu na Stía?

— Não era você?

— Vá para o diabo, megera! Eu estou aqui, vivo! E você, seu sujeitinho, levante-se logo!

Onde está Romilda?

— Pelo amor de Deus! — gemeu Pomino levantando-se apressadamente. — A pequena...

Tenho medo... O leite...

Agarrei-o por um braço e dessa vez quem se espantou fui eu:

— Que pequena?

— Minha... Minha filha... --- balbuciou Pomino. —Ah, que assassinato! — vociferou a

Pescatore. Não pude responder, ainda sob a impressão da nova notícia.

— Sua filha?... — murmurei. — Uma filha, ainda por cima? E agora, ela...

— Mamãe, vá para perto de Romilda, por favor... — suplicou Pomino.

Mas era tarde demais. Romilda, com a roupa entreaberta e a criança ao seio, dava a

impressão de ter saído da cama apressadamente por causa dos gritos; aproximou-se e me

entreviu:

— Matias! — exclamou, caindo entre os braços de Pomino e da mãe, que a arrastaram

deixando na confusão a pequena em meus braços.

Fiquei na escuridão, na sala de entrada, carregando a frágil criaturinha nos braços que

chorava com a vozinha azeda de leite. Consternado, transtornado, ainda guardava no ouvido

o grito da mulher que fora minha e era a mãe daquela criança que não era minha, enquanto a

minha ela não amara, não amara a minha pequenina! Portanto eu não deveria de maneira

alguma ter piedade, nem da menina nem deles. Ela não se casara? Mas a pequenina conti-

nuava a chorar. E então o que fazer? Para acalmá-la acomodei-a no colo e comecei a bater

bem de leve nas suas costinhas, embalando-a e caminhando pela sala. O ódio arrefeceu, o

ímpeto cedeu. E aos poucos a pequena se calou.

Pomino chamou-me no escuro, amedrontado:

— Matias! ... A pequena!

— Fique calado! Estou com ela aqui.

— Fazendo o quê?

— Estou comendo a menina! Ora essa fazendo o quê. Vocês jogaram a coitada nos meus

braços... Agora deixem-na ficar aqui comigo! Acalmou-se. Onde está Romilda?

Aproximando-se todo trêmulo e indeciso, igual a uma cadela que vê nas mãos do dono o

filhote:

— Romilda? Por quê?

— Porque eu quero falar com ela! — respondi-lhe rudemente.

— Desmaiou, sabe?

— Desmaiou? Faremos com que volte a si.

Pomino plantou-se na minha frente suplicante:

— Pelo amor de Deus... Ouça... Tenho medo... Como é possível, você... Vivo! Onde esteve?

Ah, Deus!... Escute, você não podia falar comigo?

— Não! — bradei. — É com ela que devo falar. Você aqui não representa mais nada.

— Como assim?

— O seu casamento se anula.

— O quê?! Que está dizendo? E a pequena?

— A pequena... A pequena. ... — mastiguei. — Desavergonhados! Em dois anos, marido e

117

mulher e uma filha! Quietinha, nenén, quietinha! Você já vai ver a mamãe... Vamos, leve-me

até lá! Por onde se passa?

Assim que entrei no quarto de dormir levando a criança nos braços, a viúva Pescatore fez um

gesto para pular em cima de mim como uma hiena.

Repeli-a violentamente numa cotovelada.

— Saia da frente. Aí está o seu genro. Se a senhora tem alguma reclamação a fazer vá dar os

seus berros com ele. Eu não a conheço!

Inclinei-me para Romilda que chorava desesperadamente e lhe entreguei a criança:

— Tome! Está chorando? Por quê? Porque estou vivo? Você queria que eu estivesse morto?

Olhe para mim... Vamos, olhe no meu rosto! Vivo ou morto?

Ela tentou, entre as lágrimas, levantar os olhos e numa voz entrecortada pelos soluços

balbuciou:

— Mas... Como é possível... Você? Que... fez?

— O que fiz? — respondi sorrindo zombeteiramente.

A mim você pergunta isso? Você se casa com este pateta aí... põe uma filha no mundo e tem

a coragem de me perguntar o que fiz?

— E agora? — gemeu Pomino, cobrindo o rosto com as mãos.

-- Mas onde é que você esteve? Fingiu-se de morto e fugiu... — começou a berrar a Pescatore

avançando de braços levantados.

Agarrei-lhe um, torcendo-o e rugi:

— Fique calada, repito! Fique calada, porque se a ouço respirar perco a piedade que me

inspira este imbecil do seu genro e aquela criaturinha ali e faço valer a lei! Sabe o que diz a

lei? Que eu agora devo ficar com Romilda!

— Minha filha? Você? Está maluco! — investiu destemidamente a velha.

Mas Pomino diante da minha ameaça aproximou-se dela imediatamente, suplicando-lhe que

se calasse e que se acalmasse pelo amor de Deus.

Então a megera me deixou, começando a proferir injúrias contra ele: parvo, idiota, que não

prestava para nada e que só sabia chorar e se desesperar igual a uma mulherzinha.

Caí na gargalhada e ri tanto que os meus rins acabaram doendo.

— Páre com isto! — gritei logo que pude conter-me. — Deixo-a para você! Deixo a bruxa

para você de muito bom grado. A senhora me considera mesmo tão louco a ponto de me

tornar outra vez seu genro? Ah, pobre Pomino! Pobre amigo meu! Desculpe-me, eu o chamei

de imbecil; mas você ouviu? Sua sogra também chamou você de imbecil e posso jurar que

antes Romilda também chamava, nossa mulher... Sim, ela própria disse que achava você

imbecil, idiota, insípido... E não sei mais o quê. Não é verdade, Romilda? Diga a verdade.

Vamos, páre de chorar, minha cara, acalme-se. Assim você acaba fazendo mal à sua filhinha.

Agora eu estou vivo, vê? E quero ficar alegre... Alegria! como dizia um certo bêbedo amigo

meu... Alegria, Pomino! Você acha que eu quero deixar uma criaturinha destas sem a sua

mamãe? Que idéia! Eu já tenho um filho sem pai... Está vendo, Romilda? Estamos quites: eu

tenho um filho que é filho de Malagna e você agora tem uma filha que é filha de Pomino. Se

Deus quiser um dia haveremos de os casar! Aquele meu filho lá não lhe deve mais causar

despeito. Vamos falar de coisas alegres. Diga-me como foi que você e sua mãe fizeram para

me reconhecerem morto, lá, na Stía...

— Mas, eu também!... — exclamou Pomino, exasperado. Todos, todos! Não foram elas

somente!

— Muito bem! Todos muito perspicazes! Então se assemelhava tanto a mim?

— Tinha a mesma estatura que você... A barba... Vestido como você, de preto... E

desaparecido fazia tantos dias...

118

— Com os diabos! Tinha fugido, ouviu? Até parece que não foram elas que me obrigaram a

fugir... Estas aí... Mas estava para voltar, sabe? Claro! Carregado de dinheiro! Quando, sem

mais nem menos... Morto, afogado, putrefato... E reconhecido ainda por cima! Graças a

Deus tive muito dinheiro para gastar nestes dois anos. Enquanto isso vocês aqui, noivado,

casamento, lua-de-mel, festas, alegria, filhinha... Quem morreu, morreu, está acabado, não

é? Os vivos que se arranjem...

— E agora? O que se vai fazer agora? — gemeu novamente Pomino ansioso.

Romilda ergueu-se para deitar a criança no berço.

— Vamos sair daqui — propus. --- A pequena adormeceu. Discutiremos noutro lugar.

Dirigimo-nos à sala de jantar, onde em cima da mesa ainda posta estavam os restos do jantar.

Todo trêmulo, contrafeito e numa palidez cadavérica, batendo continuamente as pálpebras

nos olhinhos que se tornaram quase sem cor, varados no meio por dois pontos pretos

aguçados pela febre, Pomino coçava a testa e dizia quase em delírio:

— Vivo... Vivo... O que se vai fazer agora?

— Não me amole! — gritei-lhe. — Agora veremos.

Romilda, tendo vestido um peignoir, veio para perto de nós. Fiquei olhando-a na claridade,

admirado: tornara-se outra vez o que era antes, ou melhor, ainda mais bela.

— Deixe-me ver você. — disse-lhe. — Dá licença, Pomino? Não há nada de mal, eu também

sou marido, aliás, antes de você e mais do que você. Não fique aí envergonhada, o que é isto

Romilda? Olhe, olhe só como ele se torce todo... Mas o que é que você quer que eu faça se

não morri de verdade?

— Assim não é possível! — bufou Pomino lívido.

— Ele se aborrece! Fiz, piscando para Romilda. — Vamos, acalme-se Mino... Já lhe disse

que deixo Romilda para você e mantenho a palavra. No entanto, um momento... Com

licença!

Aproximei-me de Romilda e lhe estalei um beijo na face.

— Matias! — explodiu Pomino possesso de raiva. Caí na gargalhada outra vez.

— Está com ciúmes? De mim? Alto lá! Tenho o direito da precedência. Está bem Romilda,

apague, vamos, apague o beijo... Olhe, enquanto eu vinha para cá imaginava, caro Mino, que

lhe iria fazer um grande favor libertando-o; e confesso-lhe que tal pensamento me afligia

muitíssimo, pois queria vingar-me levando Romilda comigo, sobretudo agora, vendo que

você a quer bem e ela... Parece um sonho, parece aquela de tantos anos atrás. Você se

lembra, Romilda? Não chore! Começa a chorar outra vez? Ah, belos tempos... Não voltam

mais. Bem, vocês agora têm uma filhinha, portanto não se fala mais no assunto! Deixo-os em

paz, que diabo!

— Mas o casamento está anulado?!-- gritou Pomino.

— Que tem isso? Deixe-o anulado! Disse-lhe. — Será, quando muito, uma anulação formal;

não farei valer os meus direitos e nem sequer me farei reconhecer vivo oficialmente, a não

ser que seja obrigado. Basta-me que todos me revejam e saibam que estou vivo de fato;

quero sair desta morte, que é morte verdadeira, acreditem! Você viu: Romilda pôde tornar-se

sua mulher. O resto não me importa! Você se casou publicamente e é do conhecimento de

todos que ela é há um ano é sua mulher e como tal continuará. Você acha que alguém vai

cuidar mais do valor legal do primeiro casamento? Águas passadas. Romilda foi minha

mulher. Agora, há um ano, é sua e mãe de uma criança sua. Daqui a um mês ninguém falará

mais nisso. Estou com a razão, dupla sogra?

A Pescatore calada e de cara amarrada aprovou com a cabeça. Mas Pomino numa excitação

crescente perguntou:

— E você, ficará aqui em Miragno?

119

— Sim! E de vez em quando passarei por aqui à noite para tomar uma xícara de café ou um

copo de vinho à saúde de vocês.

— Isto não! — protestou a Pescatore dando um pulo.

— Ele está brincando!... — observou Romilda com os olhos baixos.

Eu me pusera a rir como antes.

— Vê, Romilda? — disse-lhe. — Tem medo de que recomeçemos o nosso romance. Haveria

de ser interessante! Não vamos atormentar Pomino. Quer dizer que se ele não me quiser mais

na casa dele serei obrigado a permanecer lá embaixo na rua rondando as janelas, Romilda? E

lhe farei belas serenatas.

Pomino pálido, vibrante, passeava pela sala resmungando:

— Não é possível... Não é possível...

Então parou e disse:

— A verdade é que ela... Com você aqui vivo não será mais minha mulher...

— Pois então faça de conta que estou morto! — repliquei tranqüilamente.

Ele recomeçou a passear:

— Não posso mais fazer de conta uma coisa destas!

— Pois então não faça. Afinal você acha mesmo — acrescentei — que vou importunar você

se Romilda não quer? É ela quem deve dizer. Vá, Romilda, diga quem é mais bonito? Eu ou

ele?

— Mas eu digo em face da lei! Em face da lei! — gritou ele parando de novo.

Romilda olhou-o angustiada e ansiosa.

— Neste caso — observei — quem deveria se ressentir era eu vendo a minha bela cara

metade de outrora viver maritalmente com você, de agora em diante.

— Mas também ela — rebateu Pomino -- não sendo mais minha mulher...

— Oh, mas que coisa — suspirei — eu queria vingar-me e não me vingo; deixo-lhe a mulher,

deixo você em paz e não se dá por satisfeito? Então, Romilda, levante-se, vamos embora nós

dois! Proponho-lhe uma bela viagenzinha de núpcias. Nós nos divertiremos! Deixe aí este

pedante enjoado. Ele pretende que eu vá me jogar de verdade nas águas do moinho na Stía.

— Não pretendo nada disto! — prorrompeu Pomino no auge da exasperação. — Mas ao

menos vá-se embora! Vá-se embora daqui! Já que você quis passar por morto vá para bem

longe imediatamente, sem que ninguém veja você! Porque eu... Com você aqui... Vivo...

Ergui-me. Bati-lhe uma das mãos no ombro para acalmá-lo e respondi que já estivera em

Oneglia na casa de meu irmão; portanto todos lá já sabiam que eu estava vivo e que no dia

seguinte inevitavelmente a notícia chegaria a Miragno. E acrescentei:

— Morto novamente? Longe de Miragno? Você está brincando, meu caro! Você pode

desempenhar o seu papel de marido em paz, inteiramente à vontade. De qualquer maneira o

seu casamento foi celebrado. Todo mundo lhe dará razão, sobretudo considerando que há

uma criancinha. Prometo-lhe que não virei mais importunar você, nem mesmo por uma

mísera xícara de café nem para gozar do doce e hilariante espetáculo do amor de vocês, desta

concórdia, desta felicidade edificada sobre a minha morte. Ingratos! Aposto que nenhum de

vocês foi levar uma coroa ou deixar uma flor no meu túmulo lá no campo santo... Diga se não

é verdade! Responda!

— Você gosta de brincar! — fez Pomino remexendo-se todo.

— Brincar? Nada disto! Lá existe realmente o cadáver de um homem e não se brinca com

isso! Você esteve lá?

— Não... Não... Não tive coragem... —murmurou Pomino.

— Mas de me tomar a mulher sim, seu tratante!

— E você? — disse ele prontamente. — Não foi você quem a tirou de mim antes quando

120

vivo?

— Eu? — exclamei. — E esta agora! Mas se foi ela que não quis você! Quer que eu repita

que ela achava você um idiota? Diga a ele, Romilda, por favor; veja, ele me acusa de

traição... Agora, de que adianta! É seu marido e não se fala mais nisso. Mas eu não tenho

culpa. Bem, amanhã irei visitar a sepultura daquele pobre morto abandonado lá sem uma

flor, sem uma lágrima... Diga, há ao menos uma lápide na sepultura?

— Sim! — apressou-se a responder Pomino. — Às custas da Administração Municipal...

Meu pobre papai...

— Leu-me o necrológio, já sei! Se o pobre morto escutasse... O que está escrito lá na lápide?

— Não sei... Foi o Cotovia quem compôs os dizeres da inscrição...

— Imagino! — suspirei. — Basta. Vamos deixar de lado este assunto. Conte-me então como

é que vocês se casaram assim tão depressa. Ah, como você me chorou pouco, minha

viúvinha... Talvez nada, hein? Fale, será possível que eu não ouça a sua voz? Olhe, já é noite

alta. Assim que o dia despontar partirei e será como se nunca nós tivéssemos nos conhecido.

Vamos aproveitar estas poucas horas. Diga-me...

Romilda encolheu os ombros, olhou Pomino e sorriu nervosamente e baixando os olhos

novamente e olhando as mãos:

— Que posso dizer? Claro que chorei...

— E você não merecia! — resmungou a Pescatore.

— Obrigado! Mas enfim foi pouco, não é verdade? — continuei. — Estes belos olhos que

se enganaram tão facilmente não sofreram grandes danos, por certo.

— Ficamos em situação muito ruim — desculpou-se Romilda. — Se não fosse ele...

— Muito bem, Pomino! — aplaudi.—E o canalha do Malagna, nada?

— Nada — respondeu, dura e seca, a Pescatore. — Quem fez tudo foi ele...

E apontou Pomino.

— Isto é... Quer dizer. . . — corrigiu este — o pobre papai... Você sabe, ele era da

Administração Municipal. Obteve primeiramente que fosse concedida uma pensão devido à

desgraça... E depois...

— Permitiu o casamento?

— Felicíssimo! E quis que ficássemos todos aqui, com ele... Oh! Há dois meses...

E se pôs a narrar a doença e a morte do pai, sua afeição por Romilda e pela netinha, o pesar

provocado por sua morte em toda a população. Perguntei então notícias da tia Escolástica,

tão amiga do Cavaleiro Pomino. A viúva Pescatore, lembrando-se ainda do monte de massa

que lhe fora emplastrado no rosto pela terrível velha, agitou-se na cadeira. Pomino

respondeu-me que não a via fazia dois anos mas que ainda estava viva. Depois quis saber por

onde eu andara, o que fizera, etc. Disse o tanto que podia sem citar nomes de lugares nem

pessoas a fim de demonstrar que não me divertira naqueles dois anos. E assim, conversando

juntos, esperamos o amanhecer do dia em que se afirmaria publicamente minha ressurreição.

Estávamos cansados da vigília e das fortes emoções; sentíamos também frio. Para nos

aquecer um pouco, Romilda quis preparar ela mesma o café. Ao me estender a xícara

olhou-me com um leve e triste sorriso, quase distante:

— Como de costume sem açúcar, não é?

Que teria ela naquele instante lido nos meus olhos? Imediatamente abaixou os seus.

Na lívida luz daquela aurora senti apertar-me a garganta por um nó de pranto inesperado e

olhei Pomino, cheio de ódio. Mas o café me fumegava sob o nariz, inebriando-me com o seu

aroma e comecei a sorvê-lo lentamente. Pedi a Pomino licença para deixar na sua casa a

valise até que eu me alojasse em algum lugar. Mandaria então alguém buscá-la.

— Claro que sim! — respondeu solicitamente. — Nem precisa preocupar-se, providenciarei

121

alguém para mandar deixá-la...

— Oh! — disse — ela está vazia, sabe? A propósito, Romilda, você não teria ainda aí por

acaso alguma roupa minha? . .

— Não, nada... — respondeu pesarosa abrindo as mãos. — Você compreende, depois da

desgraça...

— Quem poderia imaginar? — exclamou Pomino.

Seria capaz de jurar que ele, o avaro Pomino, trazia no pescoço um antigo lenço meu de seda.

— Bem. Adeus, hein! Boa sorte! — disse eu, despedindo-me com os olhos fixos em

Romilda, que não me olhou. Mas a mão lhe tremeu quando a apertei antes de sair. — Adeus!

Adeus!

Na rua vi-me ainda uma vez perdido, embora aqui na minha aldeiazinha natal: só, sem casa,

sem rumo.

— E agora? — indaguei a mim mesmo. — Onde vou?

Caminhei olhando as pessoas que passavam. Mas qual! Ninguém me reconhecia! E no

entanto eu era o mesmo de antes. Vendo-me todos poderiam ao menos pensar: "Olhe só

aquele sujeito como se parece com o pobre Matias Pascal! Se tivesse o olho um pouco torto,

se poderia dizer que era ele". Mas nada disso! Ninguém me reconhecia exatamente porque

ninguém mais pensava em mim. Não despertara nem sequer curiosidade, a mínima

surpresa... E eu que havia imaginado um reboliço logo que me vissem pelas ruas! No

profundo desengano, experimentei um acabrunhamento, uma raiva, uma amargura que não

saberia explicar agora. O acabrunhamento e a raiva me impediam de chamar a atenção dos

que eu reconhecia bem, pudera! Depois de dois anos... Ah, o que significa morrer! Ninguém,

ninguém se recordava mais de mim, como se eu nunca tivesse existido...

Duas vezes percorri de uma ponta à outra a aldeia, sem que ninguém me fizesse parar. No

auge da irritação pensei em voltar a casa de Pomino e declarar-lhe que o pacto não me

convinha: vingaria nele a afronta que me parecia sofrer por parte de toda a aldeia que não me

reconhecia mais. Romilda, mesmo com bons modos, não me teria seguido e eu não saberia

para onde a conduzir. Deveria ao menos procurar uma casa. Pensei em me dirigir à

Administração Municipal onde no departamento competente mandaria imediatamente retirar

o meu nome do registro dos mortos. Mas no caminho mudei de idéia e segui em direção desta

Biblioteca de Santa Maria Liberale onde encontrei no meu lugar o meu reverendo amigo

Dom Eligio Pellegrinotto, o qual não me reconheceu. Dom Elígio afirma que me reconheceu

logo, tendo apenas esperado que eu pronunciasse o meu nome para me abraçar,

parecendo-lhe impossível que fosse eu e não podendo abraçar assim alguém semelhante a

Matias Pascal. Bem, foram dele as primeiras festas que recebi, aliás calorosíssimas. Depois

quis por força acompanhar-me até onde se encontravam os meus concidadãos, a fim de me

apagar da alma aquela má impressão de esquecimento por parte de todos.

Mas eu agora, só por vingança, não quero descrever aqui o que se seguiu na farmácia de

Brisigo e depois no Café da União, quando Dom Eligio todo exultante me apresentou

ressuscitado. A notícia propagou-se como um raio e todos acorreram para me ver e me

saraivar de perguntas. Queriam saber quem era o tal que se afogara na Stía, como se não me

tivessem reconhecido eles todos, um por um. Então era eu mesmo. De onde voltava? Do

outro mundo! O que havia feito? Bancara o morto! Tomei o partido de não me afastar dessas

duas respostas deixando todos na ânsia da curiosidade que durou vários dias. Nem mais feliz

do que os outros foi o amigo Cotovia que veio me entrevistar para o Folheto. Em vão,

esperando comover-me e levar-me a falar trouxe-me uma cópia do seu jornal de dois anos

atrás com o meu necrológio. Disse-lhe que o sabia de cor pois no inferno o Folheto era muito

difundido.

122

— Ah, sim! Muito obrigado pela lápide, hein! Irei vê-la, sabe?

Desisto de transcrever a sua nova notícia sensacional do domingo seguinte que trazia em

grandes letras o título: MATIAS PASCAL ESTÁ VIVO!

Entre os poucos que se recusaram a aparecer, além dos meus credores, destaca-se Batta

Malagna, que segundo me disseram demonstrara dois anos antes grande compaixão pelo

meu bárbaro suicídio. Acredito. Tanta compaixão ao saber que eu desaparecera para sempre

quanto desprazer pelo meu retorno à vida. Compreendo o porquê dos dois sentimentos.

E Olívia? Encontrei-a na rua num domingo desses à saída da missa com o seu menino de

cinco anos pela mão, robusto e belo como ela: o meu filho! Ela me olhou com olhos

afetuosos e risonhos, que me disseram num só instante tantas coisas...

Basta. Atualmente vivo em paz, na companhia da minha velha tia Escolástica que me

ofereceu acolhida em sua casa. A minha extravagante aventura elevou-me a estima. Durmo

na mesma cama em que morreu minha pobre mãe e passo grande parte do dia aqui na

biblioteca em companhia de Dom Eligio, que está muito longe de dar ordem e arrumação aos

velhos livros empoeirados.

Levei cerca de seis meses escrevendo esta minha estranha história, ajudado por ele. De tudo

que está escrito aqui ele guardará segredo como se o tivesse sabido sob o sigilo da confissão.

Temos discutido longamente sobre as minhas aventuras e, várias vezes eu lhe declarei não

estar em condições de ver o proveito que se possa tirar disso tudo.

Segundo Dom Eligio o proveito é este: fora da lei e fora das particularidades graças às quais

nós somos nós próprios não é possível viver.

Mas eu lhe mostro que absolutamente não entrei de novo na lei nem nas minhas

particularidades. Minha mulher é mulher de Pomino e, quanto a mim, falando francamente

não sei dizer quem sou.

No cemitério de Miragno, no túmulo daquele pobre desconhecido que se matou na Stía,

existe ainda a lápide, com palavras da autoria do Cotovia:

FERIDO POR DESTINO ADVERSO

MATIAS PASCAL

BIBLIOTECÁRIO

CORAÇÃO GENEROSO, ALMA SINCERA

POR SUA PRÒPRIA VONTADE

AQUI REPOUSA

A PIEDADE DOS SEUS CONCIDADÃOS

ERIGIU-LHE ESTA LÁPIDE

Levei a coroa de flores prometida e de vez em quando vou até lá para me ver morto e

sepultado. Algum curioso me segue de longe. Ao voltar aproxima-se de mim, sorri e

considerando a minha situação pergunta:

— Mas afinal, se pode saber quem é o senhor?

Encolho os ombros e lhe respondo, com os olhos semicerrados:

— Eh! Meu caro... Eu sou o finado Matias Pascal.

FIM

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PS.: Algumas frases tiveram sua estrutura levemente alterada por quem digitalizou este livro, por causa do abuso de vírgulas e reticências.

O conteúdo não foi em absoluto alterado.