Inverno de Praga (Madeleine Albright).Compressed

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Transcript of Inverno de Praga (Madeleine Albright).Compressed

  • Copyright 2012 by Madeleine AlbrightPublicado mediante acordo com Harper Collins Publishers

    Todos os direitos desta edio reservados EDITORA OBJETIVA LTDA.Rua Cosme Velho, 103Rio de Janeiro RJ Cep: 22241-090Tel.: (21) 2199-7824 Fax: (21) 2199-7825www.objetiva.com.br

    Ttulo originalPrague Winter: A Personal Story of Remembrance and War, 1937-1948

    CapaAdaptao de Mateus Valadares sobre design original de Anthony Morais

    Imagens de capaCameo Bill Brooks / Alaney

    RevisoRita GodoyFatima Fadel

    Coordenao de e-bookMarcelo Xavier

    Converso para e-bookFreitas Bastos

    CIP-BRASIL. CATALOGAO NA PUBLICAOSINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    A295i

    Albright, MadeleineInverno de Praga [recurso eletrnico] uma histria pessoal de recordao e guerra, 1937-1948 / Madeleine Albright, Bill Woodward ; traduo Ivo Kory towski. - 1. ed. - Rio deJaneiro : Objetiva, 2014.

  • recurso digital

    Traduo de: Prague Winter: a personal story of remembrance and war, 1937 - 1948Formato: ePubRequisitos do sistema: Adobe Digital EditionsModo de acesso: World Wide Web439p. ISBN 978-85-390-0587-1 (recurso eletrnico)

    1. Albright, Madeleine Jana Korbel, 1937-. 2. Diplomatas - Estados Unidos - Biografia. 3.Diplomacia. 4. Guerra Mundial, 1939-1945. 5. Europa - Histria. 6. Livros eletrnicos. I.Woodward, Bill. II. Ttulo.

    14-11016 CDD: 923.2 CDU: 929:32

  • QUELES QUE NO

    SOBREVIVERAM, MAS NOS

    ENSINARAM COMO VIVER

    E POR QU

  • MEMRIAS DE PRAGA

    Quanto tempo faz desde que vi pela ltima vezO sol afundar por trs do Monte Petn?Com olhos rasos dgua contemplei-te, Praga,Envolta em tuas sombras noturnas.Quanto tempo faz desde que ouvi o agradvel fluxo da guaSobre a barragem no rio Moldava?H muito esqueci a vida fervilhante da praa Venceslau.Aquelas esquinas desconhecidas na Cidade Velha,Aqueles cantos sombrosos e canais sonolentos,Como estaro? No podem estar chorando por mimComo choro por eles...Praga, conto de fadas em pedra, quo bem recordo!

    PETR GINZ (I928-I944)Terezn

  • Sumrio

    Capa

    Folha de Rosto

    Crditos

    Dedicatria

    Epgrafe

    Prefcio

    PARTE I: ANTES DE 15 DE MARO DE 19391. Um hspede indesejvel2. Lendas da Bomia3. A competio4. A tlia5. Uma impresso favorvel6. Saindo de trs das montanhas7. Precisamos continuar sendo covardes8. Uma tarefa desesperadora

    PARTE II: ABRIL DE 1939ABRIL DE 19429. Recomeando10. Ocupao e resistncia11. As lmpadas se apagam12. A fora irresistvel13. Fogo no cu14. A aliana se forma15. A coroa de Venceslau

    PARTE III: MAIO DE 1942ABRIL DE 194516. Dia dos Assassinos17. Augrios de genocdio18. Terezn19. A ponte longe demais20. Olhos desesperados

  • 21. Doodlebugs e gooney birds22. O fim de Hitler

    PARTE IV: MAIO DE 1945NOVEMBRO DE 194823. Nenhum anjo24. Sem remendos25. Um mundo grande o suficiente para nos manter afastados26. Um equilbrio precrio27. A luta pela alma de uma nao28. Falha de comunicao29. A queda30. Areia pela ampulheta

    O prximo captulo

    Guia das personalidades

    Linhas do tempo

    Notas

    Agradecimentos

    Crditos

  • EPrefcio

    u tinha 59 anos quando comecei a servir como secretria de Estado norte-americana. Achavaento que sabia tudo que poderia ser conhecido sobre o meu passado, quem foi meu povo e ahistria de minha terra natal. Eu estava convicta de que no tinha necessidade de fazer perguntas.Outros poderiam estar inseguros sobre suas identidades. Eu no estava e nunca estivera. Eu sabia.

    Mas na verdade no sabia. Eu no tinha a menor ideia de que minha famlia tinha origemjudaica ou de que mais de vinte de meus parentes morreram no Holocausto. Eu havia sidoeducada para acreditar numa histria de minha terra natal, a Tchecoslovquia, que era menosintricada e mais direta do que a realidade. Eu ainda tinha muito que aprender sobre as escolhasmorais complexas que meus pais e outros em sua gerao tiveram que fazer escolhas queainda estavam moldando a minha vida, bem como a do mundo.

    Eu havia sido criada como catlica e, ao me casar, converti-me Igreja Episcopal. Eutinha com certeza uma alma eslava. Meus avs haviam morrido antes que eu tivesse idadepara lembrar seus rostos ou cham-los pelos nomes. Eu tinha uma prima em Praga.Recentemente havamos feito contato e quando crianas ramos ntimas, mas eu no a conheciamais to bem. A Cortina de Ferro havia nos afastado.

    Dos meus pais eu recebera uma herana inestimvel: um conjunto de convicesprofundas sobre a liberdade, direitos individuais e o primado da lei. Herdei, tambm, um amorpor dois pases. Os Estados Unidos haviam acolhido a minha famlia e me permitido crescer emliberdade. Eu sentia orgulho em me chamar de americana. A Repblica da Tchecoslovquiahavia sido um exemplo de governo humanitrio at ser destruda por Adolf Hitler e depois aps um breve perodo de renascimento ps-guerra extinta de novo pelos discpulos de JosefStalin. Em 1989, a Revoluo de Veludo liderada por Vclav Havel, meu heri e mais tardeamigo querido, engendrou uma nova esperana. Por toda a minha vida, eu acreditara nasvirtudes do governo democrtico, na necessidade de enfrentar o mal e no milenar lema do povotcheco: Pravda vtz ou A verdade prevalecer.

    DE I993 A I997, tive a honra de representar os Estados Unidos como embaixadora nas NaesUnidas. Como eu aparecia na mdia e graas libertao da Europa Central aps a queda doMuro de Berlim, comecei a receber correspondncias sobre a minha famlia. Algumas daquelascartas erravam nos fatos, outras mal eram legveis, umas poucas pediam dinheiro e ainda outrasnunca me alcanaram porque os meus assessores ignorando a lngua no conseguiamdistinguir entre a correspondncia pessoal e aquela sobre questes pblicas. No final do primeiromandato do presidente Bill Clinton, eu lera diversas cartas de pessoas que haviam conhecido

  • meus pais, que citaram os nomes e as datas mais ou menos corretamente e indicaram que meusancestrais haviam sido de origem judaica. Uma carta, de uma mulher de 74 anos, chegou noincio de dezembro de 1996. Ela escreveu que sua famlia fizera negcios com meus avsmaternos, que foram vtimas da discriminao antijudaica durante a guerra. Compareilembranas com minha irm Kathy e meu irmo John, e tambm troquei informaes comminhas filhas Anne, Alice e Katie. Como estava sendo avaliada para assumir como secretria deEstado, contei aquilo ao presidente Clinton e seu alto escalo. Em janeiro de 1997, antes quetivssemos tempo de explorar mais o assunto, um esforado reprter do Washington Post ,Michael Dobbs, revelou notcias que nos aturdiram: de acordo com sua pesquisa, trs de meusavs e numerosos outros membros da minha famlia haviam morrido no Holocausto.

    Em fevereiro de 1997, Kathy, John e a esposa de John, Pamela, visitaram a RepblicaTcheca. Confirmaram grande parte do que constara da matria do Post e identificaram unspoucos erros. Naquele vero, tive a oportunidade de fazer duas viagens semelhantes, emboramais breves. Para mim, o momento de maior emoo ocorreu dentro da Sinagoga Pinkas emPraga, onde os nomes dos membros de minha famlia estavam entre os 80 mil gravados nasparedes como um memorial. Eu j estivera naquela sinagoga antes, mas, por falta de motivo,jamais me ocorrera procurar seus nomes.

    Esse episdio contado em minhas memrias Madam Secretary [Senhora secretria] eno entrarei em detalhes aqui. A revelao bsica, porm, importante porque deu o mpetopara este livro. Fiquei chocada e, para ser honesta, constrangida ao descobrir que eu noconhecera melhor a histria de minha famlia. Minha irm e meu irmo compartilharam essaemoo. As muitas pessoas que me contaram ou escreveram sobre experincias semelhantes desegredos mantidos por seus prprios pais tampouco me tranquilizaram totalmente. Eu podiaaceitar, embora insatisfeita, que nada havia de inexplicvel ou singular na lacuna existente emmeu conhecimento. Mesmo assim, lamentava no ter feito as perguntas certas. Tambm mesenti motivada a descobrir mais sobre os avs que, por ser jovem demais, no conheci atporque, quela altura, eu tambm me tornara av.

    Tendo decidido mergulhar mais fundo na histria de minha famlia, logo percebi que noconseguiria faz-lo sem situar meus pais dentro do contexto da poca em que haviam vivido eespecialmente 1937-1948, o perodo abrangendo a Segunda Guerra Mundial e tambm osprimeiros 12 anos de minha vida.

    NO FINAL DA DCADA de 1930, as atenes globais estavam voltadas para aTchecoslovquia, um lugar distante que poucas pessoas em capitais como Londres e Washingtonhaviam visitado ou que sequer sabiam soletrar. O pas era familiar, at certo ponto, sob o nomeBomia terra de magia, marionetes, Franz Kafka e do bom rei Venceslau. Mas, para quemconhecia a Europa Central, a nao era respeitada por sua histria de mil anos e valorizada porsua localizao como uma encruzilhada entre Ocidente e Oriente. Foi tambm o cenrio de umalonga e s vezes feroz rivalidade entre tchecos e alemes. No captulo culminante daquela luta,Adolf Hitler exigiu que o governo renunciasse soberania, abrindo suas fronteiras s tropasalems e criando assim para toda a Europa um momento de dura reflexo. Para as grandespotncias ocidentais, a Tchecoslovquia no valia uma luta, sendo portanto sacrificada na busca

  • da paz. Mas mesmo assim a guerra ocorreu e com ela a quase total destruio da vida judaicaeuropeia e, no final, um realinhamento da ordem poltica internacional.

    Minha famlia passou a Segunda Guerra Mundial na Inglaterra; chegou quando apopulao daquela nao-ilha estava despertando de duas dcadas de complacncia. Estvamosl quando Winston Churchill convocou seus compatriotas a se unirem contra as trevas nazistas, asuportarem os bombardeios, a acolherem as crianas refugiadas do continente e a abrigarem ogoverno tcheco no exlio, a cuja causa meu pai serviu. Minhas primeiras lembranas so deLondres e do interior britnico, de abrigos antiareos e das cortinas do blecaute, e de ser levadapor meus pais praia, apesar das enormes barreiras de ao erguidas para deter tentativas deinvaso pelo inimigo.

    Desde o dia em que os Estados Unidos entraram na guerra, meus pais e seus amigostiveram confiana de que os Aliados sairiam vitoriosos. Como democratas da Europa Central,rezavam para que, aps a guerra, quem tivesse a influncia decisiva em nossa regio fossem osEstados Unidos e no a Unio Sovitica. Aquilo no ocorreria. Com os nazistas derrotados, aTchecoslovquia voltaria a se tornar um campo de batalha central onde as foras do totalitarismoprevaleceriam, o que levou minha famlia de novo ao exlio, dessa vez achando um refgiopermanente nos Estados Unidos.

    Nada poderia ser mais adulto do que as decises que as pessoas foram compelidas atomar durante essa era turbulenta, mas as questes envolvidas seriam familiares a qualquercriana: Como posso estar seguro? Em quem posso confiar? Em que posso acreditar? E (naspalavras do hino nacional tcheco) Onde est meu lar?

    Uma criana de minha gerao nascida em Praga quase certamente estaria familiarizadacom o romance A av. Escrito em 1852, o livro foi uma das primeiras obras literrias sriaspublicadas na lngua tcheca. A histria tem um lugar especial no meu corao devido ao nomeda herona: Madaline. Um dos personagens coadjuvantes uma jovem e impressionantemulher que seduzida e arruinada para o casamento por um soldado itinerante se retirapara uma caverna na floresta, andando descala mesmo no inverno, sobrevivendo de frutinhassilvestres, razes e ocasionais esmolas. Quando uma criana indaga como aquela jovem mulherconseguia suportar condies to duras, a av responde que porque a pobre criatura nuncaadentra um aposento aquecido pelo fogo, de modo que no to sensvel ao frio como ns.1

    Enquanto eu crescia, a milhes de pessoas negou-se a chance, metaforicamente, deentrarem num aposento aquecido pelo fogo. Em vez disso, elas foram foradas a se adaptarems adversidades da guerra: ocupao por tropas inimigas, separao do lar e dos entes queridos,escassez de alimentos e calefao, alm da presena constante de desconfiana, medo, perigo emorte. Sem a chance de evolurem gradualmente, em meio a pessoas e lugares familiares,foram lanadas de volta aos seus instintos primitivos e foradas a fazerem julgamentos prticos emorais com base em um menu limitado de ms opes.

    Em muitos casos, as escolhas foram corajosas, em outros, puramente pragmticas, e emainda outros, acompanhadas pela vergonha da traio ou covardia. Muitas vezes o rumoselecionado foi tortuoso, medida que a cautela e depois a coragem apontaram o caminho. svezes uma ao escolhida em reao s circunstncias imediatas teve impactos de longo prazoque no puderam ser previstos. Nesse ambiente, decises apressadas tomadas por lderes

  • nacionais, combatentes inimigos, burocratas estressados, vizinhos prximos ou mesmo pelos pais podiam ter consequncias fatais ou salvar vidas.

    No final, ningum que viveu de 1937 a 1948 deixou de sentir uma tristeza profunda.Milhes de inocentes no sobreviveram, e suas mortes jamais devem ser esquecidas. Atualmenteno temos o poder de resgatar vidas perdidas, mas temos o dever de aprender tudo que pudermossobre o que aconteceu e o porqu no para nos julgarmos beneficiados pela visoretrospectiva, mas para impedirmos que o pior dessa histria volte a ocorrer.

    AS PESQUISAS DESTE LIVRO comearam, como muitas exploraes centradas na famlia,com uma pilha de caixas guardadas na minha garagem. Meu pai havia publicado meia dzia deobras de no fico e, ao tomar notas, usava um Ditafone para gravar seus pensamentos. Tenhoum monte de gravaes que eu nunca havia ouvido, temendo que sua voz provocasse umasensao dolorosa demais de privao. Eu sentia uma ansiedade semelhante em relao quelascaixas. Quando servi no governo, estive ocupada demais para examin-las. Nos anos seguintes,uma srie de outros projetos permitiu que eu me persuadisse de que o momento ainda no eraadequado. Mas eu j aguardara o suficiente.

    Ganhando coragem, apanhei algumas caixas e comecei minha jornada. Dentro delas,descobri uma abundncia de papis separados por clipes enferrujados e unidos por elsticos tofrgeis que se romperam quando deveriam ter esticado. Grande parte do material era rotineiro,mas fiz algumas descobertas interessantes. Ali estavam os originais de palestras que meu paiproferira sobre as figuras que mais admirava: T. G. Masaryk, o fundador da Tchecoslovquiamoderna, e seu filho Jan, que havia sido o chefe do meu pai. Deparei-me com livros escritos porpessoas que conheci quando criana, incluindo um conjunto em vrios volumes de Prokop Drtina,com quem dividimos um apartamento em Londres durante a guerra. Dentro de um de seuslivros, uma pgina tinha sido dobrada no canto, marcando o lugar. Logo constatei que nossovizinho de tanto tempo atrs pensara em incluir uma descrio de uma menininha chamadaMadlenka, a primeira vez em que algum escreveu sobre mim. S pode ter sido minha mequem marcou a pgina.

    Nos ltimos anos, tenho ministrado um curso na Georgetown University intitulado Acaixa de ferramentas da Segurana Nacional. Encontrei um artigo escrito quatro dcadas antespor meu pai um texto cuja existncia eu ignorava chamado As ferramentas da polticaexterna. Em outra pasta havia uma pilha de umas 120 pginas, impecavelmente datilografadase divididas em captulos. A certa altura no passado, meu pai confidenciara que vinha tentandoescrever um romance. Perguntei: Sobre o qu? Ele respondeu: Um jovem retornando Tchecoslovquia ao final da Segunda Guerra Mundial. Deve ter sido aquilo. Avidamente,mergulhei no texto. Em pouco tempo, meus olhos estavam rasos dgua. Nas pginas a seguir, aspalavras de meu pai tero um lugar proeminente.

    As de minha me tambm. Em 1977, pouco depois da morte de meu pai, ela escreverauma carta de 11 pginas que fornece as nicas informaes em primeira mo de que disponhosobre momentos dramticos nas vidas de meus pais, inclusive nossa fuga de Praga aps a invasoalem. Durante vrias semanas, procurei o texto sem encontr-lo. Nervosa, perguntei a minhairm e a meu irmo se sabiam onde poderia estar. Em vo. Revirei meu escritrio de cima a

  • baixo, depois procurei pela dcima vez na minha escrivaninha. Na gaveta dos papis queconsidero mais importantes achei o texto de minha me, amassado e empurrado para o lado.Desamassando as bordas das pginas amareladas pautadas, pus-me a ler:

    Numa montanha alta perto de Denver existe um pequeno cemitrio, e ali, naparede de um mausolu, existe uma plaqueta com o nome: Josef Korbel 1909-1977. Talvez um dia algum se pergunte quem foi aquele homem com um nometo incomum e por que foi enterrado nas montanhas no Colorado.

    Bem, gostaria de escrever algo sobre ele, porque sua vida foi ainda maisincomum do que seu nome. Est enterrado na montanha porque amava a natureza,porque adorava pescar, porque foi no Colorado que passou muitos anos felizes apsuma vida ativa em muitas ocupaes e pases diferentes. Ele costumava dizer:Exerci vrios empregos gloriosos, mas ser um professor universitrio num paslivre o que mais adoro.

    Joe nasceu na Tchecoslovquia numa aldeia onde seu pai tinha, naquelapoca, uma loj inha de materiais de construo. No havia sequer uma escola deensino mdio naquele lugar, de modo que, aos 12 anos, teve de morar numacidade vizinha. Foi naquela escola que nos conhecemos e nos apaixonamos...2

    Ali estava, resumidamente, o incio e o final da histria. Mas certamente havia mais pordescobrir sobre tudo que transcorreu entre a escola e a montanha.

    ALGUMAS PESSOAS BUSCAM O esclarecimento sentadas tranquilamente e sondando suaconscincia ntima. Eu compro passagens areas. Numa manh de sbado em setembro de 2010,toquei a campainha de um apartamento modesto em Londres. Foi ali que eu passara os diasiniciais da Segunda Guerra Mundial. Quem atendeu foi Isobel Alicia Czarska, uma mulherencantadora que, mesmo em meio aos preparativos para uma viagem, conduziu-merapidamente pelo imvel. Pela primeira vez em quase setenta anos, desci as escadas at o poroonde outrora eu me abrigara das bombas da Luftwaffe. Isobel explicou que o subsolo nunca forareformado fato que confirmei assim que vi o teto, pintado com o mesmo verde inspido de queme lembrava. Enquanto estvamos naquele espao apertado, expliquei minha busca. Isobelgentilmente se ofereceu para pesquisar a histria do prdio durante a guerra e me enviar o quedescobrisse um compromisso que ela cumpriria fielmente.

  • Josef e Mandula Korbel

    Antes de deixar Londres, compareci a um simpsio intitulado Laos que unemcomemorando o 70o aniversrio do governo tcheco no exlio. Promovida por Michael antovsk,o embaixador tcheco no Reino Unido, a conferncia serviu de frum para rever controvrsias dopassado luz de informaes recm-disponveis. Impressionei-me de novo com a importnciadaquele perodo da histria e com a variedade de opinies que os estudiosos podem ter sobre omesmo conjunto de acontecimentos. Ao final do dia, alguns de ns foram levados a aplaudir,outros a chorar, e alguns praticamente a partir para a briga.

    Fui tambm a Praga, onde vrios amigos, antigos e novos, ajudaram na pesquisa. TomKraus, o diretor executivo da Federao de Comunidades Judaicas na Repblica Tcheca,respondeu s minhas perguntas sobre a histria das comunidades judaicas de Praga, queremontam ao sculo VII. Daniel Herman, do Instituto para o Estudo de Regimes Totalitrios,forneceu-me um arquivo sobre minha famlia mantido pelo governo comunista ps-guerra. Nemtodos os papis eram legveis, mas eram claros os sinais de que meu pai tivera inimigospoderosos no regime marxista. O Ministrio do Exterior tcheco forneceu-me documentos ligados carreira do meu pai, entre eles um relatrio da polcia sobre o meu av paterno, queaparentemente no era o mais cauteloso dos motoristas em 1937 teve de pagar umaindenizao por atropelar uma galinha. Visitei tambm a fortaleza e priso de Terezn. Nossaltima parada foi um cemitrio onde repousam as vtimas de uma longa histria de conflitos.Tchecos, alemes, hngaros, judeus, poloneses, russos, srvios, eslovacos e outros so lembradosconjuntamente, ainda que, em vida, vivessem mutuamente em conflito.

    No decorrer de minhas viagens a Praga, passei muito tempo com minha prima Da, que

  • sempre me recebeu com um prato de bolinhos de ameixa. Por mais de dois anos, mantivemosuma comunicao constante, trocando lembranas, compartilhando fotos, colaborando natraduo de cartas e outros textos. Das pessoas ainda vivas, ningum me conhecera mais cedo doque ela. Geralmente foram seus braos que me embalaram no abrigo antiareo. Mas seus paisno conseguiram deixar a Tchecoslovquia junto com os meus, e mais tarde, quando oscomunistas assumiram o poder, ela optou por permanecer e casar com seu namorado, em vez departir para o Ocidente. Vivramos vidas bem diferentes, mas parecamos movidas pela mesmareserva inesgotvel de energia. Suas contribuies minha pesquisa foram imensurveis.Quando a vi pela ltima vez, em abril de 2011, sua agenda estava cheia de atividades, incluindoaulas de lembrana do Holocausto para crianas. No incio de julho, retornando de uma viagem Inglaterra, ela se queixou de dores no pescoo e espinha dorsal. Menos de duas semanas depois,veio a falecer. Sempre serei grata pelo fato de este projeto contribuir para que nos reunssemosnovamente.

    Uma segunda pessoa ligada a este livro, o presidente Havel, tambm teve sua vidaceifada, em 18 de dezembro de 2011, ao sucumbir a uma doena respiratria. Eu o vira maisrecentemente na celebrao de seu 75o aniversrio dois meses antes de sua morte. Meu presentepara ele foi uma bssola que havia sido usada por um soldado americano na Primeira GuerraMundial, o conflito que pela primeira vez trouxera a liberdade Tchecoslovquia. Em minhacarta, citei a ironia de dar uma bssola a um homem que serviu de Estrela Polar moral a todauma gerao. O sculo XX produziu apenas um punhado de heris democrticos autnticos, e elefoi um deles.

    Em outubro de 2010, havamos estado juntos no Caf Savoy, um reduto esfumaadofavorito de Havel da poca da Revoluo de Veludo. Quando expliquei ao meu amigo o quevinha planejando, ele imediatamente prometeu sua ajuda. Perguntei sobre suas experinciasquando menino e convidei-o a refletir sobre as opes feitas pelos lderes durante a guerra. Emqualquer discusso com Havel, questes de poltica pblica vinham tona e ento,inevitavelmente, tambm de moralidade. Vrias vezes havia me falado de sua ideia de que Deuspoderia ser comparado ao sol um grande olho no cu que consegue ver o que estamos fazendoquando ningum mais est por perto. Eu sempre me assustara com aquela imagem, masconcordo que a conscincia a qualidade que nenhum cientista conseguiu entender totalmente. Apanaceia Seja guiado por sua conscincia foi martelada na gerao baby boomer americanapor Walt Disney. A vida mais complicada do que isso, mas sentada com Havel, eu temia ques vezes deixssemos de ver o que simples. Duas dcadas antes, eu o ouvira proferir umdiscurso que deixara perplexo o Congresso americano. A Tchecoslovquia acabara de recuperara liberdade, e os legisladores estavam prevendo um brado de triunfo da Guerra Fria. Em vezdisso, ouvimos um apelo pela Famlia Humana e uma declarao de que a batalha real pelaresponsabilidade moral para com a Terra e nossos vizinhos nela mal havia comeado.

    O que me fascina e serve de tema central deste livro por que fazemosdeterminadas escolhas. O que nos separa do mundo que temos e do tipo de universo ticoconcebido por algum como Havel? O que leva uma pessoa a agir ousadamente em ummomento de crise e uma segunda a procurar abrigo na multido? Por que algumas pessoas setornam mais fortes em face da adversidade enquanto outras rapidamente desanimam? O que

  • distingue o agressor do protetor? Ser a educao, a crena espiritual, nossos pais, nossos amigos,as circunstncias de nosso nascimento, acontecimentos traumticos ou, mais provavelmente,certa combinao que resulta na diferena? Mais sucintamente, as nossas esperanas para ofuturo dependem de um desenrolar desejvel de eventos externos ou de algum misteriosoprocesso interno?

    Minha busca de uma resposta a essas perguntas comea com um olhar retrospectivo para a poca e local de meus primeiros anos.

  • PARTE I

  • Antes de 15 de maro de 1939

    A Sibila no profetizou que grande misria acometeria aBomia, que haveria guerras, fome e pestes, mas que opior perodo viria quando [...] a palavra empenhada ou apromessa feita no seria considerada sagrada; que entoa terra bomia seria espalhada pela terra sobre oscascos de cavalos?

    BOENA NMCOV,

    A av: Uma histria da vida rural na Bomia, 1852

  • SI

    Um hspede indesejvel

    obre um morro em Praga existe um castelo que se ergue h mil anos. De suas janelas possvel ver uma floresta de cpulas douradas e torres barrocas, telhados de ardsia e pinculossagrados. Tambm so visveis as pontes de pedra sobre o largo e serpeante rio Moldava, comsuas guas fluindo para o norte num ritmo tranquilo. Atravs dos sculos, a beleza de Praga temsido enriquecida pelo trabalho de artfices de uma srie de nacionalidades e crenas. Trata-se deuma cidade tcheca com uma variedade de sotaques, cuja melhor poca a primavera, quandoflorescem as tlias perfumadas, a forstia fica dourada e os cus parecem de um azul impossvel.A populao, conhecida por sua diligncia, resistncia e pragmatismo, aguarda ansiosa a cadainverno a poca em que os dias ficam mais longos, os ventos se amainam, as rvores recuperamsuas folhas e as margens dos rios convocam as pessoas a se divertirem.

    Na manh de 15 de maro de 1939, aquela promessa de primavera nunca parecera todistante. A neve jazia espessa nos terrenos do castelo. O vento soprava feroz do nordeste. O cuexibia uma tonalidade cinza plmbeo. Na Legao dos Estados Unidos, dois homensdesgrenhados cercaram um diplomata a caminho de seu escritrio e imploraramdesesperadamente por asilo. Haviam sido espies tchecos na Alemanha e eram conhecidos pelaGestapo. O diplomata, um jovem funcionrio do servio diplomtico chamado George Kennan,mandou-os embora. No havia nada que pudesse fazer.

  • Tropas alems ocupam Praga

    Os tchecos acordaram naquela manh ouvindo um anncio surpreendente: Hoje s seishoras tropas alems cruzaram nossas fronteiras e esto avanando para Praga por todos oscaminhos. Mantenham a calma. A luz da alvorada ainda procurava brechas nas nuvens quandoo primeiro comboio de j ipes e caminhes passou ruidosamente, rumo ao castelo. Os veculos,com placas de gelo, eram dirigidos por soldados de rostos vermelhos, usando capacetes de ao ecasacos de l. Pouco depois, a populao de Praga havia tomado seu caf e estava na hora de irtrabalhar. As caladas se encheram de homens e mulheres que paravam para olhar,boquiabertos, o cortejo estrangeiro, mostrando os punhos desafiadoramente, chorando ou fitandonum ptreo silncio.

    Na praa Venceslau, vozes espontaneamente entoaram canes patriticas. Os batalhesmecanizados no paravam de chegar, penetrando em cada bairro da antiga cidade. Na estaoferroviria, peas de artilharia e tanques foram descarregados. No meio da manh, alemescom andar pesado ocupavam decididamente os ministrios do governo, a prefeitura, as prises,

  • as delegacias de polcia e os quartis. Apossaram-se dos aeroportos, instalaram canhes decampanha nas encostas cobertas de neve do monte Petn, hastearam bandeiras e estandartes nasfachadas de prdios, e prenderam alto-falantes nos postes e rvores. A lei marcial foi declarada,e um toque de recolher s nove horas da noite foi anunciado.

    Na escurido do incio da noite, um comboio surgiu do norte. Seus passageiros foramconduzidos pelas ruas desertas, para o outro lado do rio e subindo as ruelas sinuosas do monte docastelo. Assim, naquela noite, a lendria residncia dos reis bomios serviu de quartel-generalpara o governante do Terceiro Reich alemo. Adolf Hitler e seus auxiliares principais, HermannGring e Joachim von Ribbentrop, estavam exultantes. Os tchecos podem guinchar, o Fhrerdissera aos seus comandantes militares, mas nossas mos estaro em suas gargantas antes quepossam gritar. De qualquer modo, quem que vir ajud-los?1 Tendo sempre em mente umaafirmao atribuda a Bismarck de que quem controla a Bomia controla a Europa, Hitlerplanejara longamente aquele dia. Considerava os tchecos, devido sua esperteza, os maisperigosos dos eslavos. Cobiava suas bases areas e fbricas de munies. Sabia que sconseguiria satisfazer suas ambies no resto da Europa quando a terra natal tcheca tivesse sidoesmagada. Agora sua marcha triunfal comeara. A lngua alem era dominante dentro dasmuralhas do castelo, sobre o qual a bandeira alem havia sido iada. Normalmente abstmio evegetariano, Hitler se permitiu uma comunho do vitorioso: uma garrafa de Pilsener e uma fatiade presunto de Praga.

    No dia seguinte, Ribbentrop ordenou que as principais estaes de rdio proclamassemque a Tchecoslovquia deixara de existir. A Bomia e Morvia seriam incorporadas GrandeAlemanha, e seu governo, agora um protetorado, receberia ordens de Berlim. Os cidadosdeveriam aguardar instrues. Hitler, nesse nterim, estava recebendo visitantes. Primeiro EmilHcha, o presidente tcheco, prometeu sua cooperao, depois o ministro da Defesa, depois oprefeito. Ningum queria um banho de sangue. Em torno do meio-dia, uma multido de civis esoldados falantes de alemo se reuniu para saudar o Fhrer quando ele apareceu numa janela doterceiro andar. A imagem resultante agradou tanto aos nazistas que a puseram num selo postal.

    Nos dias subsequentes, a neve cessou, mas o ar permaneceu penetrante e frio. Soldadosalemes ocuparam os quartis do exrcito locais. Administradores nazistas se instalaram nasmelhores residncias e hotis. A cada manh antes do alvorecer, homens com longos sobretudosse deslocavam ligeiramente pela cidade, carregando cassetetes e listas de nomes. Meus pais memandaram para a casa de minha av e tentaram da melhor maneira fazer o que seu amado pasfizera: desaparecer.

  • N2

    Lendas da Bomia

    o sei exatamente quantos anos tinha embora certamente era bem jovem quando ouvipela primeira vez a histria de ech, o fundador, e sua neta, a inteligente e corajosa Libue.Minha me costumava me contar histrias e adorava as velhas lendas da Bomia. Como emmuitas culturas, combinavam mito e realidade numa mescla de aventuras empolgantes, procuraspicas, espadas mgicas e explicaes inventivas para a origem das coisas. Com o tempo, herise viles reais pareciam conquistar seu lugar entre os imaginrios, e juntos criaram a saga de umanao. O papel do historiador peneirar essas narrativas e separar verdade de fico. Comfrequncia, porm, fatos so revisados para se ajustarem a um padro que corresponda sensibilidade do autor no momento em que escreve. Por isso o passado parece constantementemudar. Um estudioso, escreveu meu pai, inevitavelmente l os arquivos histricos comoolharia num espelho o que est mais claro para ele a imagem de seus prprios valores (e)sensao de [...] identidade.1

    Nunca fiz um curso acadmico de histria tcheca. Em vez disso, absorvi informaesparciais de trechos fortuitos de conversas, pesquisas durante a faculdade e os livros que minhame lia e meu pai escrevia. Com o tempo, condicionei-me a pensar em minha terra natal comoexcepcional, um pas repleto de pessoas benvolas e democrticas que lutaram constantementepara sobreviver, apesar da opresso estrangeira. Os melhores momentos da nao haviam sidomarcados por uma disposio em se defender contra inimigos mais poderosos. Os mais tristes,pela incapacidade de revidar quando trada por supostos aliados e amigos. Sua expresso maispura podia ser achada no perodo entre as duas guerras mundiais, quando a Repblica daTchecoslovquia serviu como um modelo de democracia do sculo XX dentro de uma Europanormalmente desanimadora.

    Eu tinha tanta confiana nessa histria que, ao defender minha tese de doutorado, fiqueisurpresa ao ser desafiada por professores, com laos familiares em outras partes da EuropaCentral, que no entenderam por que eu achava a experincia tcheca to singular. Naqueleestgio de minha vida, eu no intencionava abandonar a narrativa histrica com que me sentiamais vontade, uma verso que tinha a vantagem da simplicidade e distines claras entre certoe errado. Os professores sentiam inveja, eu achava, das instituies e dos valores democrticosde minha terra natal. Para entender o pas, precisavam conhecer melhor seus heris e mitos, sualuta para estabelecer uma identidade e as caractersticas singulares de seu povo.

  • OS PRIMEIROS OCUPANTES DAS terras situadas no corao da Europa, entre os Crpatos e oDanbio, foram os boios, uma tribo celta que fugiu das enchentes ao norte. Aqueles pioneirosforam gradualmente expulsos por guerreiros germnicos, depois suprimidos pelas legies deRoma imperial. Os romanos chamaram a terra de Bomia devido aos boios, o que significaque o territrio foi batizado pelos italianos em homenagem aos irlandeses, demonstrando nomnimo que a globalizao no novidade.

    Quando Roma caiu, os germnicos retornaram, seguidos no sculo VIII pelos eslavos, quemigraram das estepes da sia Central. De acordo com a lenda, o patriarca ech conduziu seupovo na rdua jornada para oeste atravs de trs grandes rios, at chegarem numa montanhacom uma forma bem peculiar: redonda no alto, com encostas anormalmente ngremes. Do alto,ech anunciou aos seus companheiros fatigados que haviam enfim alcanado a TerraPrometida [de] vastas florestas e rios cintilantes, pradarias verdes e lagos azuis, uma terra repletade caa e aves e mida com leite e mel doces.2

    Uma filha do sucessor de ech, a profetisa Libue, descrita maneira estranha dosantigos cronistas como o orgulho e glria do sexo feminino, realizando proezas sbias e varonis.Foi ela quem prefigurou a criao de uma cidade Praga cuja glria atingir as estrelas.A histria pode ser fantstica, mas no havia nada de fictcio na cidade e sua fama. No fim dosculo X, o controle das terras tchecas havia sido consolidado pelos Pemy slids, um cl nativocuja dinastia deu origem nao. Durante seu reinado, grandes catedrais, mosteiros e sinagogasforam erguidos, o distrito do castelo foi fortificado e o comrcio floresceu dos dois lados do rio.

    Entre os primeiros governantes da nao esteve Vclav [em portugus, Venceslau], umcristo devoto que despertou o ressentimento entre a nobreza pag por causa de sua bondade comos pobres. Em busca de aliados, Venceslau declarou a paz com a Saxnia alem e, em troca deproteo, pagou um tributo anual de prata e bois. O rei era adorado por seu povo, mas invejadopelo traioeiro irmo Boleslav, cujos asseclas assassinaram o jovem monarca a caminho damissa. Toda nao necessita de seus mrtires, e Venceslau tornou-se o primeiro da Bomia.

  • Rei Venceslau

    As terras tchecas prosperaram sob os reis pemyslids, Praga se tornando um modelo dediversidade: tchecos, alemes, judeus, poloneses, ciganos e italianos viviam nos prdiosapinhados da cidade e pechinchavam diariamente peles, cachecis, selas, escudos e outrosprodutos venda nos quiosques ao longo de suas ruas movimentadas.

    No final do sculo XIII, o reino estendeu seu domnio ao sul at o mar Adritico osuficiente para que Shakespeare situasse uma cena de Conto de inverno na quase inimaginvelcosta da Bomia.

    Um dos poucos lderes medievais a deixarem um legado duradouro foi Carlos IV (1316-1378), o primeiro rei da Bomia a governar tambm na Alemanha e como soberano do Sacro

  • Imprio Romano-Germnico. Um pensador avanado, o monarca teve vrias esposas, umafrancesa, as outras trs alems. A quarta, Elisabeth da Pomernia, entretinha os convivas nosjantares destruindo correntes e curvando ferraduras com suas mos nuas. No houve quintaesposa.

    Entre os muitos destaques do reinado de Carlos esteve a fundao de uma universidadeem Praga que atraiu estudantes de lugares to distantes como a Inglaterra, a Escandinvia e osBlcs. Aquilo foi em 1348, antes dos livros impressos e numa poca em que a investigaocientfica ainda estava limitada ao que a Igreja permitia. O rei tambm ordenou a construo deuma ponte de pedra com 16 arcos sobre o Moldava. Seus arquitetos recomendaram que umingrediente especial ovos fosse misturado argamassa para assegurar sua fora.1 Suprir osconstrutores estava alm da capacidade das galinhas de Praga, de modo que um decreto ordenouque o pas fornecesse carroas cheias do ingrediente. Os pedreiros reais ficaram pasmos quandoas carroas de uma cidade do norte chegaram carregando uma quantidade impressionante deovos cozidos.

    Carlos, conquanto cosmopolita em seus gostos pessoais, promoveu ardorosamente osmitos nacionais da Bomia. Confirmou a autonomia da regio e designou o tcheco (junto com oalemo e o latim) como lngua oficial dentro do imprio. Em homenagem a So Venceslau,encomendou uma coroa de puro ouro incrustada de pedras preciosas e encimada por uma cruz eum camafeu de safira supostamente contendo um espinho da coroa de Cristo. Atualmente, odiadema real e outras joias da coroao esto protegidos dentro de um cofre de ferro atrs deuma porta com sete trancas numa cmara especial da imponente catedral de So Vito. Deacordo com a sabedoria popular, se um falso governante ostentar a coroa, ser morto em umano.

    O MRTIR VENCESLAU FOI o cone poltico da nao bomia. Um segundo mrtir, Jan Hus,tornou-se o cone espiritual. Nascido em 1372, Hus comeou sua carreira modestamente comoum expert em ortografia. Baixo e rechonchudo, tornou-se um pregador popular e, em 1409, foinomeado reitor da Universidade Carlos. O lema tcheco a verdade prevalecer deriva darecusa de Hus em aceitar a plena autoridade da Igreja. Em vez de latim, insistia em pregar noidioma local, tornando assim mais acessveis as palavras e mensagem do Evangelho. Defendeuuma srie de doutrinas que prenunciaram a Reforma Protestante, incluindo a ideia de que Jesus,e no o papa, era o verdadeiro lder da Igreja, de que a hstia e o vinho da comunho erammeramente simblicos e de que encorajar os pecadores a comprarem a salvao no contavacom a sano das Escrituras. As questes litrgicas foram ampliadas por questes econmicas: aIgreja possua metade das terras cultivveis da Bomia. De acordo com Hus, tal riqueza era odote de Sat. Seus ensinamentos o colocaram em conflito com o arcebispo de Praga, que oacusou de heresia.

  • A coroa de So Venceslau

    Em 1415, quando lderes catlicos se reuniram na cidade alem de Constana, o destinode Jan Hus estava em sua agenda. Embora lhe prometessem um trnsito seguro, o reitorincmodo foi acorrentado numa priso junto a um fosso. Quando confrontado por seusacusadores, recusou-se a abjurar, sendo condenado pelos emissrios da Igreja. O prisioneiro foiprivado de seu vesturio, teve seus cabelos raspados, foi coroado com um chapu de papel comtrs imagens do diabo e queimado vivo. Para no deixar relquias, os carrascos cuidaram deincinerar cada parte de seu corpo e todos os itens do vesturio. Esse mtodo para apagar alembrana, porm, teve exatamente o efeito oposto.

  • O martrio de Jan Hus

    Poucas semanas aps a morte do mrtir, um movimento hussita subvertia a ordemreligiosa e econmica em Praga. Sacerdotes proeminentes foram expulsos de seus plpitos esubstitudos por defensores das ideias novas. Camponeses hussitas queriam arrendamentosmenores, enquanto os nobres, de olho nas propriedades de seus vizinhos catlicos, desejavam seapoderar do dote de Sat. Enquanto isso, a Igreja obstinada e seus partidrios lutaram paraconservar seus privilgios. Por meia dcada, a rivalidade entre os dois lados cozinhou em fogobrando. Atingiu a fervura quando, em julho de 1420, guerreiros hussitas derrotaram as forascatlicas reunidas pelo Imperador do Sacro Imprio Romano-Germnico.

    O comandante dos rebeldes, Jan ika, era um combatente encarniado e inventivo queperdera o olho direito no incio da carreira, mas permanecia, aos 60 anos, um estrategista militarbrilhante. Em sua campanha, transformara um grupo improvvel de fazendeiros e camponesesem uma fora intimidante que transformou implementos agrcolas em armas, carroas emfortalezas mveis, e triunfou sobre uma cavalaria fortemente armada. As vitrias militares,especialmente em condies desfavorveis, fornecem uma firme base mitologia nacional, eika, embora acabasse morrendo de spsis, fez uma longa carreira como um heri tcheco. Elefoi o lder que enfrentou e venceu inimigos estrangeiros, preferindo a espada aquiescncia oumartrio.2

    A revolta de ika ajudou a definir as linhas de batalha que atormentariam a Europa pelosprximos duzentos anos. Sua bravura permitiu aristocracia tcheca apossar-se de vastaspropriedades rurais dos catlicos, ao mesmo tempo que promoveu o desenvolvimento de umalngua nacional e uma cultura populista marcada por sua devoo alfabetizao universal.

  • Esse povo inquo, admitiu o papa Pio II no sculo XV, possui uma boa qualidade o gostopelo aprendizado. Mesmo suas mulheres tm melhores conhecimentos das Escrituras do que osbispos italianos.3

    Jan ika

    Nos anos seguintes, a rivalidade religiosa arrefeceu, e a nobreza hussita (ou protestante)de bom grado aceitou, o domnio dos Habsburgos, sediado em Viena e liderado por catlicosfalantes do alemo. Esse esquema baseou-se na compreenso de que seus direitos religiosos e depropriedade seriam respeitados. Por algum tempo no houve problemas. Mas em 1618 os lderesprotestantes submeteram uma lista de queixas coroa dos Habsburgos, exigindo um grau maiorde autogoverno. A resposta foi negativa. Revoltados, os protestantes marcharam at o castelo,onde em 23 de maio confrontaram os representantes do rei. A entrevista foi mal e, para darvazo insatisfao, os invasores lanaram dois dos conselheiros reais e um escriba pela janela de vrios andares de altura. Os burocratas sobreviveram experincia, um milagre atribudo

  • pelos catlicos interveno divina e pelos protestantes ao fato de as vtimas carem sobre ummonte de estrume.

    Durante quase dois sculos, aristocratas bomios de diferentes religies haviam vivido eprosperado juntos. Agora permitiram que as irritaes degenerassem em raiva e violncia. ABatalha da Montanha Branca, travada na manh brumosa de 8 de novembro de 1620, lembradapelos tchecos como um dia de infmia nacional. Porm, os dois lados que combateram naqueladata estavam divididos no pela etnia, mas pela religio. Ferdinando, o novo imperadorHabsburgo, havia recrutado uma coalizo de catlicos da Espanha, Itlia, Baviera e Polnia. Aaliana oposta incluiu simpatizantes protestantes de toda a Europa e foi liderada pelo jovemprncipe Friedrich da Alemanha. Como os ricos das duas religies no quiseram que oscamponeses portassem armas, as paixes populares no foram envolvidas, e a maioria dossoldados foram mercenrios contratados.

    No dia da batalha, os protestantes, embora em menor nmero, controlavam o acesso montanha na periferia de Praga. Em noventa minutos de luta feroz, mais de 2 mil homens forammortos. Os catlicos pareciam estar em vantagem, mas os protestantes permaneceram naposio para defender a cidade. Naquele momento de crise, quando mais precisavam daliderana de Friedrich, seu prncipe escolhido, os catlicos descobriram que ele havia fugido.Desertados e trados, prontamente se renderam, permitindo que o Exrcito Imperial marchassecidade adentro.

    Para a Bomia protestante, a Montanha Branca parecia o fim da histria. Nobresderrotados foram executados ou banidos, sua religio, proibida, e suas propriedades, divididasentre os aliados espanhis e austracos do imperador. O povo tcheco sobreviveu, mas como umanao de camponeses, sem uma classe alta ou mdia. Por um tempo, Praga experimentou umsurto de construes, com os nobres catlicos encomendando projetos grandiosos que muitocontriburam para a glria arquitetnica da capital, mas que aprofundaram a alienao damaioria dos tchecos. Sua lngua, substituda pelo alemo, deixou de ser falada nos escritriosadministrativos e nas cortes principescas. Em meio ao esplendor da Era da Realeza, o povobomio foi desprezado como retrgrado e pouco importante.

    EM SEUS ESTUDOS DA histria tcheca, meu pai e seus colegas discerniram duas dimensesopostas: os combatentes, como ika, e os estudiosos. Entre estes ltimos o mais notvel foi Janmos Komensk, melhor lembrado por seus textos durante o exlio. Komensk foi um daquelesforados a fugir aps a Batalha da Montanha Branca, sendo bispo da Unidade dos IrmosTchecos, inspirada por Hus. Sobreviveu comendo nozes e escapou aos perseguidoresescondendo-se no tronco de uma tlia.

    Sem outra alternativa seno comear uma vida nova, Komensk logo se mostrou umeducador de um humanismo e viso espantosos. Coerente com seus ideais bomios, enfatizou aalfabetizao universal e o acesso a escolas grtis para moas e moos. Pioneiro na ideia deeducao pelo teatro, em contraste com o aprendizado maquinal, inventou o livro ilustrado paracrianas e escreveu um ensaio sobre a linguagem adotado por estudantes indgenas americanosem Harvard. Tendo visto seu dicionrio da lngua tcheca laboriosamente compilado serqueimado por camponeses estrangeiros, defendeu a criao de uma lngua universal que

  • ajudasse a unir a humanidade. Achava que povos civilizados no deveriam se deixar dividir pelalngua. Em Amsterd nos ltimos anos de vida, lamentou sua incapacidade de retornar sua terranatal: Minha vida inteira meramente a visita de um hspede.4 Embora lderes religiosos egenerais combatentes ocupem lugares no meu panteo pessoal, Komensk o pensador antigoque mais admiro.

    A LESTE DAS TERRAS tchecas fica a Eslovquia, o lar dos companheiros eslavos cuja histriase mescla com a dos bomios. Os dois povos estiveram unidos durante o Grande ImprioMorvio, que havia, no sculo IX, exercido certo grau de soberania sobre grande parte da EuropaCentral. A queda do imprio aps oitenta anos derivou de uma invaso da aliana magiar, umadinastia que fundou o reino da Hungria e governou os eslovacos por grande parte do milnioseguinte. Apesar da separao poltica, tchecos e eslovacos continuaram se deslocando entre asduas reas para fins de evangelizao, comrcio e estudos.

    A cidade principal da Eslovquia, Bratislava, banhada pelo rio Danbio e fica a 400quilmetros de Praga. A terra montanhosa ostenta picos deslumbrantes e densas florestas, lagosformados durante a Era do Gelo e um solo rico em minerais. O cenrio pitoresco serviu de panode fundo para milhares de canes folclricas, danas nativas, lendas e uma histria fiel realidade centrada num aventureiro do sculo XVIII, Juro Jnok, que desertou o ExrcitoImperial e formou um bando de ladres. Os salteadores de Jnok construram suas casas nafloresta, fizeram amizade com um sacerdote local, roubavam apenas dos ricos e dividiam seubutim com os pobres. Essa paixo do Robin Hood eslovaco pela justia econmica foi um indciode acontecimentos vindouros, pois a Europa Central havia atingido o limiar de uma mudanasocial abrangente.

    O IMPERADOR JOS II, que reinou de 1780 a 1790, considerava-se um homem moderno ebom. Fez doaes de alimentos e remdios aos indigentes, fundou hospitais, asilos e orfanatos, eabriu parques e jardins pblicos. A ordem nenhum homem ser compelido a professar nofuturo a religio do Estado foi sua. Essa patente de tolerncia permitiu que, aps 150 anos, ostchecos fossem novamente livres para praticar as religies protestante e crist ortodoxa. Jostambm procurou integrar a comunidade judaica da Bomia na poca a maior do mundo revogando as restries ao emprego, eliminando impostos especiais e exigindo o uso do alemona educao. Aquelas mudanas, que aceleraram a exposio dos judeus lngua e culturaalem, foram objeto de resistncia de alguns, mas bem-vindas por outros como meio deexpandir sua participao na sociedade.

    Naquela era pr-industrial, a maioria dos tchecos ainda vivia uma vida rural, cultivando osolo, criando gado, costurando roupas e trabalhando como moleiros, guardas florestais, ferreiros,marceneiros e pastores. A maioria dormia noite em cabanas decoradas com cones religiosos.As necessidades medicinais eram satisfeitas coletando ervas ou comprando os blsamosespeciais de vendedores ambulantes que prometiam o alvio de msculos cansados e dores dedente. Os homens costumavam ter bigodes, vestiam calas folgadas, carregavam caixas de rape fumavam cachimbos. As mulheres em seus aventais assavam, lavavam e coletavam

  • alimentos. As crianas eram mantidas na linha com lendas sobre uma velha encarquilhada quemetia as crianas malcomportadas em sua bolsa a tiracolo e as levava embora. Antes das festasnatalinas, aldeias inteiras se reuniam para devorar doces, depenar festivamente as aves e trocarhistrias sobre espritos da gua e fantasmas. As pessoas acreditavam naquilo que haviam sidoeducadas para acreditar: uma mistura de doutrinas das Escrituras, mitos pagos e boas maneiras.A melhor forma de despertar uma criana era com um tapinha na testa, para que a almaacordasse primeiro. Por motivos tanto fsicos como espirituais, o po a ddiva de Deus eratratado com reverncia. Pisar numa nica migalha faria as almas no purgatrio derramaremlgrimas. Amigos e estrangeiros eram saudados com uma fatia de um po marrom ou pretountado com banha e salpicado de sal.

    Num tal ambiente, todos conheciam uns ao outros e cada um conhecia seu lugar. Adiviso da populao em classes sociais era um fato aceito. Jos II aumentou a liberdade de seussditos, mas seu objetivo era preservar um imprio, no construir uma democracia. Sempreconsciente das necessidades de defesa, queria criar um exrcito que amasse seu imperador efalasse uma nica lngua. Para se proteger das incurses de inimigos do norte, construiu umafortaleza militar com oito lados, cujo nome foi uma homenagem a sua me, a imperatriz MariaTeresa. A praa-forte chamou-se Theresienstadt ou, em tcheco, Terezn.

    1 Sempre houve quem duvidasse dessa histria, mas uma anlise cientfica da Ponte Carlos,realizada em 2008, confirmou a presena de protena de ovo na argamassa.2 A causa hussita foi vista como uma ameaa pelos catlicos por toda a Europa. Entre eles estavaa moa de 18 anos Joana DArc, que, em 1430, escreveu uma carta endereada aos hereges daBomia. Se eu no estivesse ocupada com as guerras inglesas, ela alertou, h muito tempoteria ido v-los. Mas se eu no descobrir que vocs se corrigiram, poderei deixar os ingleses paratrs e combater vocs.

  • A3

    A competio

    primeira histria de Sherlock Holmes escrita por Sir Arthur Conan Doy le Um escndalo naBomia comea com uma batida na porta de 221B Baker Street. A identidade do estrangeiromisterioso rapidamente deduzida pelo grande detetive, que reconhece o rei hereditrio daBomia por seu sotaque alemo. Uma histria feita para deixar os nacionalistas tchecos furiosos.

    Mas em 1891, poca do texto de Doy le, o equilbrio cultural j estava mudando. Qualquerpressuposto de que um cavalheiro da Bomia devesse falar alemo era cada vez mais precrio.O Iluminismo, as revolues francesa e americana, alm da industrializao, haviam provocadoum despertar poltico atravs da Europa. Trabalhadores e camponeses passaram a acreditar quesuas vidas poderiam ser mais livres e variadas do que as de seus ancestrais, causando adissoluo do sistema feudal que havia enriquecido a nobreza austraca e magiar. Ativistas sociaisdistribuam panfletos defendendo a autonomia e o tratamento igual para os tchecos dentro doImprio Austraco. Os eslovacos transmitiram pedidos semelhantes aos lderes da Hungria. Essesreformadores no eram to ousados a ponto de buscarem a independncia nacional, masrequereram prerrogativas dentro do imprio, como o direito de formar partidos polticos, elegerrepresentantes ao Parlamento, exercer mais controle sobre o governo local e operar suasprprias escolas.

    Aps muitos falsos incios e certo derramamento de sangue, a agitao exerceu umimpacto, conquanto irregular. Em 1867, a corte em Viena reconheceu seu primo em Budapestecomo um parceiro igual, dando assim origem ao Imprio Austro-Hngaro. Entretanto, umamonarquia dupla implicava a existncia de dois sistemas de governo. Na Hungria, todos quevivessem dentro das fronteiras eram considerados hngaros. No havia minorias e, portanto,nenhuma proteo aos eslovacos minoritrios. Na ustria, a nova Constituio reconheceu odireito de cada grupo nacional preservar sua lngua e cultura.

    O renascimento da identificao nacional nas terras tchecas foi incentivado por teoriasintelectuais sobre o papel da nao na histria e a centralidade da lngua em forjar um povo. Setais ideias tivessem surgido em uma poca anterior, no teriam se disseminado muito longe. Maso sculo XIX era uma poca de ampliao de horizontes, enquanto jornais e revistas polticas semultiplicavam e livros alm da Bblia penetravam nos lares. Especialmente para as pessoas quemigravam do campo cidade, a ideia de nao servia de guia para navegar num mundo onde osparadigmas antigos da religio e classe social vinham perdendo autoridade.

  • ustria-Hungria, incluindo terras tchecas, 1867

    Mesmo que muitos dos primeiros nacionalistas tchecos escrevessem em alemo, elesdefenderam o desenvolvimento da literatura bomia e saudaram a criao da pera tcheca, maisnotadamente Libue e A noiva vendida de Bedich Smetana. Tambm defenderam o teatronacional, a orquestra filarmnica, a organizao de ginstica Sokol, uma academia de artes ecincias e, em 1882, a diviso da Universidade Carlos em departamentos alemo e tchecoseparados. Comearam tambm a refletir sobre o que significava ser tcheco.

    De acordo com o principal jornalista da poca, Karel Havlek, um tcheco no dependedos outros, [mas] pe-se a realizar seu trabalho e superar tudo.1 Havlek sustentou que adestruio da nobreza bomia dotara o povo tcheco de um carter singularmente democrtico:despretensioso, prtico e impregnado de valores humanitrios. Enquanto os outros se dividiamentre uma minoria rica e uma maioria pobre, os tchecos eram igualitrios, rejeitando ttulosextravagantes e tratando seus compatriotas como irmos e irms. Em sua viso, o compromissodo povo com a decncia e jogo limpo constitua um exemplo para toda a Europa e umafastamento bem-vindo das acusaes to tpicas das nacionalidades vizinhas. Claro que osbomios tambm reconheciam uma tendncia a derrubar quem quer que tivesse subido altodemais. Quando um tcheco possui uma cabra, dizia o ditado, seu vizinho no anseia por umacabra prpria, mas torce para a cabra do vizinho morrer.2 Havia avaliaes ainda maisdeplorveis do carter local. O historiador alemo, vencedor do Prmio Nobel, Theodor

  • Mommsen comentou sombriamente: O crnio tcheco impenetrvel razo, mas suscetvel agolpes.3

    Atravs do sculo XIX, nacionalistas tchecos e alemes competiram entre si,aparentemente sem perceber que, ao tentarem provar quo diferentes eram seus povos,expressavam aspiraes e reivindicavam virtudes semelhantes. Em unssono e com igualveemncia, exigiam que os pais criassem seus filhos como patriotas. Boena Nmcov poderiater falado por ambos os lados quando, em s mulheres bomias, ela preconizou que:

    Com a primeira palavra suave e lisonjeiraCom o primeiro doce beijo

    Despejemos o som tcheco em suas almasCom amor ardente pelo pas.

    Mulheres tchecas, mes tchecas!Temos uma s Alegria:

    Educar nossos filhosPara o glorioso e querido pas.

    Tais exortaes no eram para todos. Muitos habitantes da regio pouco se importavamcom as distines nacionais, que eram, em todo caso, difceis de discernir. As tribos eslavas eteutnicas originais haviam passado para a histria fazia tempo, e seus descendentes haviamcompartilhado a mesma terra por sculos, durante os quais o casamento misto havia sidocomum. Nomes tchecos e alemes se misturavam, assim como os traos fsicos, e muitaspessoas eram bilngues. Isso significava que a pureza do sangue era com frequncia ilusria,conquanto sedutora.

    Paradoxalmente, a rivalidade crescente entre tchecos e alemes foi reforada pelocompromisso do Imprio Austraco com os direitos das minorias. Para honrar aquela promessa,as autoridades precisavam saber quem pertencia a qual nacionalidade. Isso imps a umarealidade social fluida e imprecisa uma das invenes humanas mais rgidas: a burocracia.Agentes do imprio chegavam a cada cidade e aldeia com formulrios a serem preenchidos. Oscidados deviam escolher um rtulo ou outro. Quanto maior o grupo, mais escolas podia abrir, amais votos tinha direito no Parlamento e mais autoridades locais seus membros podiam eleger.Desse modo, uma declarao de nacionalidade, antes uma opo pessoal e voluntria, tornou-seuma obrigao legal e um ato poltico.

    Para muitas famlias, a escolha se baseava na afinidade tnica e lingustica consagrada,mas para outras a designao era mais uma questo de convenincia. Se no havia tchecossuficientes numa cidade para justificar sua prpria escola, convinha famlia ser alem. Se umacidade era majoritariamente tcheca, era prudente para um loj ista alemo fazer negcios naquelalngua. Pais pobres eram tentados por ofertas de almoos grtis e materiais escolares em troca deenviarem seus filhos para a escola ou clube atltico certo. A natureza mista do processorefletia o fato de que muitas famlias tinham parentes em ambos os lados da divisria. Meu avpaterno, Arnot Krbel, fixou-se no interior de lngua tcheca do pas. Alguns de seus irmos se

  • estabeleceram em reas alems. Geraes anteriores, provavelmente, no haviam vivido nemna Alemanha, nem na Bomia, mas no que agora faz parte da Polnia.

    Tais complexidades somente faziam com que os ativistas se tornassem mais insistentes.Em seu modo de pensar, a identidade nacional no era um artigo de vesturio a ser compradopara ser depois vestido e tirado. Era a chave de quem voc era. As pessoas tinham a obrigaode escolher e, tendo escolhido, de serem fiis escolha. Um alemo deveria votar em polticosalemes, comprar em lojas alems, comer comida alem, vestir trajes alemes, ingressar emclubes alemes e oferecer o corao a um parceiro alemo. O mesmo catecismo se aplicavaaos tchecos. Isso elevou a identidade nacional a um nvel absurdo. Alguns sectrios atribuamqualidades ao seu povo que eram totalmente exageradas, enquanto outros se concentravam emampliar os defeitos de seus vizinhos. Ainda outros se ressentiam das famlias que chamavamironicamente de hermafroditas que deixavam de escolher um lado ou, ainda pior,escolhiam o lado errado. De acordo com um editorial de um jornal tcheco de 1910, se cadapessoa tcheca pudesse dobrar seu dio e desprezo pelos renegados [...] pessoas suficientespensariam duas vezes antes de germanizarem a si mesmas e seus filhos.4

    Enquanto o nacionalismo tcheco se fortalecia, a frustrao de estar confinado ao ImprioAustro-Hngaro aumentava. Os tchecos gozavam de direitos de minoria, mas estes no setraduziam em igualdade poltica e social. Seja na corte imperial em Viena ou numa tpica cidadebomia, os falantes de alemo continuavam com a maioria dos cargos de liderana. Os tchecosem 1910 se acreditavam menos livres do que seus ancestrais haviam sido em 1610,ressentimento esse que fez com que alguns procurassem aliados no exterior. Uma srie deescritores imaginaram um futuro de unidade para todos os povos eslavos, dos russos no leste aosbomios no oeste. O problema era que os intelectuais tchecos que viajaram para outras terraseslavas no gostaram do que viram. Nem a nobreza polonesa nem as cortes czaristas agradaramaos pensadores populistas, enquanto a ideia de uma fraternidade pan-eslava parecia distante apsouvirem os poloneses descreverem os russos como mongis e os russos desprezarem ospoloneses como uma raa de camponeses atrasados. O consenso entre os nacionalistas tchecos,ento, era que a melhor opo seria afirmar sua identidade dentro, e no fora do Imprio. Talvezcom o tempo e o surgimento do lder certo, as circunstncias mudariam, e os estandartes pretos eamarelos dos Habsburgos poderiam ser substitudos pelas cores tchecas vermelha e branca,possivelmente com um toque azul eslovaco.

    TODAS ESSAS DISCUSSES NO eram obstculo prosperidade. Em 1900, 80% da produoindustrial do Imprio se localizava nas terras tchecas histricas da Bomia, Morvia e Silsia. Ataxa de alfabetizao era de 96%, o dobro da hngara e maior at que a alem. A economia seexpandia mais rapidamente do que a da Inglaterra ou Frana. Os tchecos eram lderes emservios ferrovirios, minerao de carvo, produo de ferro e ao, produtos qumicos, papel,txteis, vidro, armamentos e maquinrio industrial. Guiados pelo lema no trabalho econhecimento est nossa salvao, desenvolveram tcnicas novas de processar presunto efermentar cerveja, produziam uma bebida alcolica popular de beterraba, inventaram um meioconveniente de vender acar (em cubos), introduziram a produo em linha de montagem desapatos e estiveram entre os primeiros a instalarem sistemas ferrovirios e bondes eltricos.

  • Entre os palestrantes atrados pela Universidade Carlos estavam o pioneiro em ondas sonorasaustraco Christian Doppler, o especialista em ondas de choque Ernst Mach e um jovemprofessor alemo pesquisando uma teoria fsica, Albert Einstein. O mrito de introduzir oscapacetes de segurana nos locais de trabalho pertence a um funcionrio bilngue de umaseguradora em Praga, escritor nas horas vagas. Seu nome era Franz Kafka.

    A posio legal melhorada dos judeus nem sempre se harmonizava com a intensificaodos sentimentos nacionais. Pessoas de origem judaica obtiveram um sucesso extraordinrio nosnegcios, nas profisses liberais e nas artes, mas sua posio na sociedade no era to simplesassim. Os judeus eslovacos eram mais rurais e tendiam a ser mais conservadores. O lado opostodo espectro podia ser visto entre a intelectualidade emergente em Praga e periferia. Para algunsjudeus, a sensao crescente de nacionalismo se traduzia em sionismo ou num estudo maisprofundo das tradies ticas e culturais. Para outros, significava uma associao crescente como movimento pelos direitos tchecos. Mas esse desejo de participar do movimento nacionalbomio nem sempre era bem recebido.

    Siegfried Kapper, um judeu tcheco, comps versos patriticos enquanto vigorosamenteafirmava sua dupla herana. Entre suas obras estava um poema de 1864 intitulado No digamque no sou um tcheco. Karel Havlek, o jornalista, respondeu questionando exatamente isso.Impossvel, ele insistiu, ser ao mesmo tempo semita e tcheco. Essa teoria, amplamente aceita,representava um obstculo aos judeus que procuravam se associar aos sentimentos patriticos dolugar onde suas famlias haviam vivido por centenas de anos. Seria o sangue (na medida em quepudesse ser avaliado) que definia a nacionalidade, ou seria uma mescla de geografia, lngua,costumes e preferncias pessoais? Uma discusso sem fim. Infelizmente, mesmo onde era raro oantissemitismo virulento, a variedade mais casual estava disseminada. O brilhante Jan Neruda,com frequncia comparado a Anton Tchekhov, foi um exemplo tpico. Seus personagens judeusfictcios consistiam quase inteiramente em usurrios gananciosos cuja raa era criticada comocruel e sedenta de poder. Jan Neruda no se deu ao trabalho de citar indcios. Ele simplesmentesups que seus leitores concordariam. Naquela atmosfera, muitos judeus ficavam incertos quanto direo a tomar. O dr. Theodor Herzl, pai do sionismo, captou esse dilema:

    Pobres judeus, onde devem se situar? Alguns tentaram ser tchecos e foramatacados pelos alemes. Outros queriam ser alemes, e tanto os tchecos como osalemes os atacaram. Que situao!5

    ESTRANHAMENTE, O INDIVDUO QUE mais contribuiria para a independncia tcheca eque muito colaborou para combater o antissemitismo foi o filho de um cocheiro eslovacocatlico. Tom Masaryk nasceu em 7 de maro de 1850; cresceu falando os dialetos locais, massua me, uma morvia, ensinou-o a fazer contas e rezar em alemo. Quando jovem, recebeubreve treinamento como serralheiro, depois ferreiro. Anos depois, recordou as habilidadesexigidas de um menino do sculo XIX: assobiar, correr, nadar, plantar bananeira, cavalgar, subirnuma rvore, caar besouros, fazer uma fogueira, descer tobog, andar em pernas de pau,lanar bolas de neve, pular sobre pedras, esculpir com a faca, fazer ns em crina de cavalo, usar

  • um canivete e lutar de todas as maneiras, acrescentando: No sei dizer que tipo de vida asmeninas levavam, pois no tnhamos nada a ver com elas.6

    Quando o jovem Masaryk no estava ocupado com outra coisa, estudava. Um sacerdotelocal lhe ensinou latim e recomendou que o menino fosse enviado a uma escola. Enquantoganhava a vida como professor particular, ascendeu na escala acadmica. Em 1872, graduou-sepela Universidade de Viena. Quatro anos depois, obteve um doutorado em Filosofia e mudou-separa Leipzig, onde assistiu a cursos de teologia. Tendo enfrentado um desafio atravs do estudometiculoso, passou para o seguinte, pegando na biblioteca uma pilha de livros sobre a psicologiafeminina. Assim preparado, conheceu Charlotte Garrigue, uma jovem americana dotada delindos cabelos castanho-avermelhados, talento musical e uma mente independente. De incio, elareagiu evasivamente sua corte e partiu em frias. Masaryk foi atrs num vago de trem dequarta classe, levou-a a longas caminhadas e logo a cativou. Eles se casaram em maro de 1878em Brookly n, cidade natal de Charlotte, criando no s um vnculo matrimonial, mas umaligao internacional entre o povo das terras tchecas e os Estados Unidos. Num sinal de respeitoraro ento e sempre, Masaryk adotou o sobrenome de Charlotte como seu primeiro sobrenome.Tiveram quatro filhos, o mais novo um menino chamado Jan.

    T. G. Masaryk comeou a lecionar na Universidade de Praga e logo desenvolveu a famade livre-pensador. Ningum jamais pde alegar que lhe faltavam convices ou coragem paradefend-las. Como um acadmico, surpreendia os professores veteranos com palestras francassobre temas como educao sexual e prostituio. Depois de tornar-se membro do Parlamento,denunciou a ocupao austro-hngara da Bsnia-Herzegovina. No percurso, atraiu a inimizadedos catlicos ao elogiar Jan Hus e aderir a um fervoroso mas anticlerical protestantismo. Depois,como jornalista, bateu de frente com o nacionalismo tcheco.

    Em 1817, dois manuscritos tchecos supostamente antigos foram descobertos em ZelenHora, uma cidade no distrito de Plze, na Bomia ocidental. Os documentos pretendiam mostrarque a literatura da nao precedia a dos alemes e que os antigos bomios haviam alcanado umpadro maior de educao e cultura. Por dcadas, propagandistas tchecos usaram os textos comoponto de partida na discusso da histria de seu povo. J os artistas os empregaram como fontepara obras patriticas. Em fevereiro de 1886, um artigo endossado por Masaryk forneceu provasconvincentes de que os manuscritos eram fraudulentos. Esse furo no balo do nacionalismo nofoi bem recebido. Masaryk recorda que, poucos dias aps a publicao do artigo, um negociantelocal puxou uma conversa acalorada com ele:

    Ele no sabia quem eu era, e comeou a me atacar, dizendo que fui subornadopelos alemes para arrastar o passado tcheco na lama e assim por diante. [...] Emoutra ocasio, juntei-me a certas pessoas no bonde xingando o traidor Masaryk.Achei divertido. O que me revoltou foi ver pessoas defendendo os manuscritossem acreditarem neles, mas com medo de admiti-lo.7

    Quando criana, a me de Masaryk contara que os judeus usavam sangue cristo em seusrituais. O Masary k adulto no acreditava em tais superties, mas nem todos os seus compatriotas

  • sentiam o mesmo. Em 1899, uma costureira de 19 anos foi achada numa floresta com a gargantacortada e as roupas rasgadas. Um boato se espalhou de que um assassinato ritual teria ocorrido. Apolcia, na falta de suspeitos e pressionada pelo sentimento local , deteve Leopold Hilsner,um judeu itinerante que havia sido visto na floresta. Num julgamento que traumatizou apopulao judaica do pas e chamou a ateno de toda a Europa, Hilsner foi condenado combase em provas circunstanciais. Masary k conseguiu apelar do veredicto, possibilitando umsegundo julgamento, e escreveu panfletos denunciando o fanatismo e questionando os fatos.3 Oepisdio dotou os inimigos de Masaryk de nova munio. Ele foi acusado de aceitar pagamentosde judeus e forado por sua universidade a suspender suas aulas at que os protestos seamainassem.

    Masaryk era um produto da Era Vitoriana, mas seu intelecto e sensibilidade estavamtotalmente atualizados. Ele examinou quase tudo e escreveu de forma visionria (embora nemsempre com preciso) sobre o suicdio, a Unio Sovitica, filosofia grega, hipnotismo, evoluo,as virtudes do exerccio fsico e o cabo de guerra entre cincia e f religiosa. Tinha ideias quemesmo agora seriam consideradas avanadas sobre a igualdade das mulheres e a associaoentre um corpo limpo e uma vida longa. No tinha pacincia com os dogmas e sentia umdesprezo especial pelo tipo de educao parcial que fazia as pessoas acreditarem que soubessemmais do que realmente sabiam.

    A viso de Masaryk do nacionalismo era especialmente pertinente quando o sculo XXcomeou. O professor valorizava o patriotismo por fornecer um incentivo ao trabalho produtivo,mas enfatizou que o amor nao no implica o dio a outra.8 Insistiu que a pureza racial nomundo moderno no era desejvel nem possvel e que nenhum grupo devia se considerarperfeito. Citou explicitamente a poca em que, quando criana, havia lutado contra os meninosda cidade vizinha. Todos os domingos, ele disse, brigvamos com a turma de Podvorov sobrequem tocaria os sinos da igreja. A voc tem o nacionalismo em miniatura.9

  • Tom Masaryk

    Masary k viu um mundo no qual as verdades consagradas da convico religiosa, ordempoltica e posio econmica estavam sob ataque. A modernizao, embora essencial, tambmera perigosa porque podia deixar as pessoas sem uma ncora intelectual ou emocional. Asoluo, aos seus olhos, era abraar a religio sem a camisa de fora da Igreja, a revoluosocial sem os excessos do bolchevismo e o orgulho nacional sem o fanatismo. Acreditava nademocracia e na capacidade de o povo aprender e crescer. Seu sonho era construir umasociedade tcheca capaz de ocupar seu lugar junto aos pases ocidentais que admirava.

    3 Hilsner foi tambm condenado no segundo julgamento, mas sua sentena foi comutada demorte para priso perptua. Em 1918, perdoado pelo imperador da ustria, foi solto.

  • M4

    A tlia

    eu pai tinha 5 anos e minha me 4 quando, em junho de 1914, tiros disparados em Sarajevoferiram mortalmente o arquiduque Fernando, o herdeiro legtimo ao trono dos Habsburgos. Oassassinato desencadeou a Primeira Guerra Mundial, ou a Grande Guerra, em que o ImprioAustro-Hngaro, Alemanha e Turquia se alinharam contra os principais pases ocidentais,incluindo a Rssia czarista e mais tarde os Estados Unidos. O conflito descomunal derrubou trsimprios antes poderosos: o dos Habsburgos, o Otomano e o dos Romanovs. Em seu lugar surgiriauma combinao europeia nova e explosiva contendo o primeiro Estado comunista, umaAlemanha enfraquecida, uma Inglaterra e Frana cansadas, e vrios Estados independentesrecm-criados, incluindo a Repblica da Tchecoslovquia.

    Esses resultados no tinham sido previstos. Os nacionalistas tchecos menos aventureirosesperavam adular a Coroa Austraca apoiando a guerra e, com isso, aumentar as perspectivas deautonomia. Tom Masaryk liderou um contingente mais ousado cujos membros viram aconflagrao como uma oportunidade de se libertarem totalmente. Em abril de 1915, elepreparou um memorando extenso que caracterizou a ustria-Hungria como um Estadoartificial1 e comprometia-se com a criao de uma Bomia constitucional e democrtica.Em julho, no 500o aniversrio do martrio de Jan Hus, ele se identificou publicamente comooponente do imprio. Durante os trs anos seguintes, viajou para capitais favorveis na Europa eEstados Unidos em busca de apoio independncia de sua nao.

    Como sditos do Imprio Austro-Hngaro, tchecos e eslovacos eram obrigados a servirem suas foras armadas. Entretanto, muitos relutavam em arriscar suas vidas por uma coalizogermanfona contra o Exrcito Russo formado por colegas eslavos. Esse choque entre dever edesejo foi espirituosamente captado nas histrias de Jaroslav Haek sobre o bom soldados vejk,um bomio comum que, quando convocado pela junta de recrutamento, apareceu numa cadeirade rodas. Morte ao inimigo!, ele bradou, enquanto agitava duas muletas sobre a cabea.2Recrutado mesmo assim, o tenente de vejk pergunta como se sente servindo no ExrcitoImperial. Humildemente informo, senhor, que estou felicssimo, foi a resposta. Serrealmente maravilhoso quando ns dois cairmos mortos.

    Haek esteve entre os milhares de soldados tchecos e eslovacos que mudaram de ladodurante a guerra, seja desertando como no seu caso ou sendo recrutado de um campo deprisioneiros de guerra russo. Em 1917, os homens estavam organizados em uma Legio Tcheca eEslovaca, um bando esfarrapado mas intrpido que lutou bravamente contra os alemes. As

  • coisas ficaram mais complicadas quando a Revoluo Bolchevique virou a Rssia de ponta-cabea, fazendo o pas se retirar da guerra e deixando os legionrios perdidos a milhares dequilmetros de casa. As nicas opes eram se render ou tentar fugir para leste, driblando chefesguerreiros, bandidos e os bolcheviques hostis, at o Pacfico. Masary k tentou ajudar ao mximoobtendo do lder comunista, Vladimir Lenin, a concesso de um salvo-conduto. Porm o acordologo se rompeu numa briga em torno de armas, e os homens tiveram de avanar lutando deestao em estao ao longo dos 8 mil quilmetros da ferrovia Transiberiana.

    Ao alcanarem a costa, os homens se chocaram ao saber que os Aliados Ocidentais noos deixariam voltar para casa. Em vez disso, os combatentes exaustos receberam ordens deretornar e liderar uma tentativa planejada s pressas e mal coordenada de derrubar osbolchevistas. quela altura, o tempo ficara gelado, e a guerra na Europa havia sido ganha. Porum ano adicional, a legio se envolveu num conflito de vrios lados sobre o destino da Rssia noqual no tinha nenhum interesse imediato. Os Aliados chegavam e partiam, enquanto um ladorusso e depois outro adquiria a superioridade. Finalmente, com ajuda de soldados americanos, oslegionrios conseguiram partir, mas s depois que muitos caminharam as ltimas centenas dequilmetros at Vladivostok.

    Graas presena oportuna de correspondentes de jornais, as faanhas da legio haviamsido amplamente divulgadas nos Estados Unidos, tornando-se um trunfo diplomtico importantepara Masary k. Ao chegar para um evento em Nova York, ele foi saudado por um mapa giganteexposto diante da biblioteca pblica principal, permitindo aos observadores monitorarem oavano da legio ao abrir caminho lutando para o Pacfico.

    Nos Estados Unidos, a campanha pela independncia da Tchecoslovquia havia sidolanada por um jornal dirigido por um imigrante em Omaha, Nebraska. Cabe a ns vivendofora da ustria dar o primeiro passo, escreveu o editor do Osvta em 12 de agosto de 1914.

    Vivam os Estados Unidos da Bomia, Morvia, Silsia e Eslovquia!3 Essa convocaorepercutiu em Cleveland, Cedar Rapids, Chicago, Filadlfia e outras cidades, culminando emPittsburgh, onde Masary k aderiu a organizaes locais numa aliana exigindo a liberdadeimediata. Tais manifestaes obtiveram publicidade, mas no tiveram nenhum efeito legal. Oobjetivo de Masary k era mudar a poltica dos Estados Unidos. Nisso, foi simultaneamenteencorajado pelo apoio do presidente Woodrow Wilson ao princpio da autodeterminao nacionale atrapalhado pelo desejo de Washington de romper a unio entre ustria-Hungria e Alemanha afim de abreviar a guerra. Durante 1917 e os primeiros meses de 1918, o Departamento de Estadoops-se ao desmembramento do imprio na esperana de que Viena concordasse com uma pazem separado. Essa poltica pragmtica foi difcil de sustentar porque contrastava com as palavrasidealistas de Wilson. Enquanto as negociaes com a ustria se arrastavam, o governo expressousimpatia pela causa tcheca, mas negou um reconhecimento formal.

    Em junho, Masaryk encontrou-se com Wilson na Casa Branca. Quando criana, meensinaram a acreditar que os dois presidentes foram amigveis um com o outro imediatamente,mas existe sempre o risco de atrito quando dois professores recebem a chance de secompararem intelectualmente. Wilson admitiu a Masary k que, como descendente depresbiterianos escoceses, tendia a ser teimoso. Masary k achou o presidente norte-americano umtanto melindroso.4 Ambos queriam falar mais do que ouvir. Masary k defendeu a

  • independncia; Wilson discutiu a batalha em andamento da Legio Tcheca contra os bolchevistasrussos. Gostando ou no da companhia um do outro, os resultados, da perspectiva de Masaryk,foram satisfatrios. Em poucos dias, o Departamento de Estado declarou que todos os ramos daraa eslava deveriam ser completamente libertados do domnio austraco,5 e em setembro osEstados Unidos reconheceram formalmente o Conselho Nacional de Masaryk como umbeligerante na guerra. Essas medidas, combinadas com a imagem de Wilson como instigador deuma ordem global nova e mais justa, tornaria o presidente americano um heri naTchecoslovquia e daria um brilho indito reputao internacional de seu pas.

    Para se assegurar de que no haveria recuo nos dias finais da guerra, Masaryk optou, em18 de outubro, por emitir uma declarao de independncia. O documento foi divulgado emWashington, datado de Paris, sede do governo rebelde. A ao decisiva, porm, ocorreu nocampo de batalha, onde as foras aliadas derrotaram o que restava dos exrcitos inimigos, e emPraga, onde polticos tchecos convidaram seus supervisores austracos a se retirarem eanunciaram a existncia do novo Estado.

    Aquele dia, 28 de outubro de 1918 o equivalente tcheco ao 4 de julho ou ao Dia daQueda da Bastilha , ficaria na memria de quem o presenciou. Em minha garagem, entre ospapis do meu pai, me deparei com um relato escrito exatamente meio sculo depois:

    Eu tinha apenas 9 anos. Na noite anterior, fui acordado por canes patriticasvindas dos lbios de um grupo feliz a caminho da estao ferroviria de nossaaldeia, Kyperk, para destruir os emblemas do Imprio Austro-Hngaro.Observei-os da janela com uma sensao de importncia, sentindo que estavaparticipando de algo extraordinrio.

    Na manh seguinte, mame me vestiu com meu terno dominical, ofereceuuma poro dupla de manteiga no desjejum, uma raridade durante a guerra, eenviou-me escola. A aldeia inteira, com umas 2 mil pessoas, estava empolvorosa. As pessoas abraavam umas s outras, cantavam e gritavam,hasteavam bandeiras tchecas e varriam a frente de suas casas. Na escola, osprofessores estavam eufricos, e o diretor fez um discurso sobre a grandeza dahistria tcheca, a dissoluo da odiada monarquia dos Habsburgos, a luta vitoriosapela liberdade e o futuro promissor frente. tarde, marchamos at um parquepara plantarmos uma tlia uma tlia da liberdade.6

    Pouco antes do Natal, Masaryk retornou de sua misso diplomtica triunfal para enfrentarresponsabilidades novas em Praga. Indo da estao ferroviria ao castelo em um carroconversvel, foi recebido por uma serenata da recm-organizada banda do Exrcito da Repblicae ovacionado. O presidente idoso, barba branca como neve e culos antiquados, respondeu comum aceno jovial. Aps sculos de subjugao, seu pas conquistara a liberdade. At possua umhino nacional, ou melhor, dois (Onde est meu lar? para os tchecos e Relmpagos sobre osTatras para os eslovacos). O sonho da independncia se realizara. A questo incmoda era: oque vem a seguir?

  • AS FRONTEIRAS DA TCHECOSLOVQUIA foram traadas na Conferncia de Paz de Parisem 1919, mas somente aps prolongadas discusses. Masaryk e Eduard Bene, seu ministro doExterior de 35 anos, entraram nas negociaes com a bvia vantagem de que Alemanha eustria-Hungria haviam perdido a guerra. Esse fato combinado com a saga da Legio Tcheca ea estatura pessoal de Masary k asseguraram para eles uma audincia justa. De acordo com ahistoriadora britnica Margaret MacMillan:

    Bene e Masaryk foram sistematicamente cooperativos, moderados e persuasivosao enfatizarem as tradies democrticas arraigadas dos tchecos e sua aversopelo militarismo, oligarquia, altas finanas, alis por tudo que a velha Alemanha eustria-Hungria haviam representado.7

    Em 5 de fevereiro de 1919, Bene ergueu-se para expor o seu argumento sobre afronteira norte do pas. Fora precedido pelo loquaz delegado da Polnia, que falara por cincohoras, comeando, nas palavras de um observador americano, s onze da manh e no sculoXIV.8 Bene ento ocupou a cadeira, comeou um sculo antes e falou uma hora a mais.Como se esforou por deixar claro, a Europa s seria estvel se a Tchecoslovquia possussefronteiras defensveis. Encontrou um pblico receptivo, especialmente entre os franceses, quequeriam criar o mximo de limitaes possveis ao poder alemo. Infelizmente, muitos europeuscentrais vivem no que os cartgrafos constatam serem locais inconvenientes. Assim, quando afronteira sul da nova repblica foi traada ao longo do Danbio, 750 mil hngaros foramincludos na regio eslovaca do pas. Mais para o leste, a Rutnia Subcarptica foi acrescentada,contribuindo com meio milho de ucranianos. Ao norte, um acordo difcil foi obtido em torno doentroncamento ferrovirio rico em carvo de Ten, deixando a Tchecoslovquia com menosterras do que desejava, mas tambm com jurisdio sobre 100 mil poloneses insatisfeitos.

    No final, o incansvel Bene obteve quase tudo que queria: montanhas, florestas e riosseparariam de seus vizinhos os 140 mil quilmetros quadrados da nova e frgil repblica. Mesmoassim, as fronteiras da Tchecoslovquia seriam difceis de defender devido ao formato alongadodo Estado, estendendo-se de oeste para leste: Morvia, Eslovquia e Rutnia. Com umcomprimento de 970 quilmetros, o pas tinha apenas 240 quilmetros de largura na Bomia emenos de metade disso na Eslovquia e Rutnia. Tanques inimigos teriam dificuldade empenetrar pelos morros florestados ao norte, mas, se conseguissem, no teriam depois grandesdificuldades em retalhar o pas em dois. Pior, o pas estava confinado por seus rivais histricos: nonorte e oeste, a Alemanha, e no sul menos protegido a ustria e Hungria. Devido disputa porTen, as relaes com a Polnia tambm seriam tensas.

    A questo mais espinhosa era como incorporar 3 milhes de alemes tnicosconcentrados na regio dos Sudetos (a terra do sul)4 da Bomia e Morvia, totalmente misturadoscom tchecos isso dentre uma populao de uns 13 milhes. As tentativas alems de declarar aregio independente ou parte da ustria no receberam qualquer apoio internacional e foramprontamente e, em um caso, brutalmente suprimidas pelo Exrcito Tcheco. Os lderes da

  • populao dos Sudetos reagiram se recusando a participar da redao de uma Constituio ou daformao de um Parlamento. Masaryk em nada ajudou quando, em seu discurso de posse,caracterizou nossos alemes como pessoas que originalmente entraram no pas comoimigrantes e colonos. Constituiu sem dvida um erro atribuir uma posio de segunda classe auma populao que vivia naquela terra havia sculos. Alvo de crticas, o novo presidenteprometeu respeito aos direitos de todos que demonstrassem lealdade ao Estado. Considerava vitalque as minorias participassem da construo de um pas unido e prspero. Essa viso foicorporificada na Constituio de 1920, que garantiu o sufrgio feminino, liberdade de reunio eexpresso, e a igualdade dos cidados perante a lei.5 Mesmo assim, Masaryk foi realista,avisando aos auxiliares que construir uma verdadeira democracia requereria cinquenta anos depaz ininterrupta. Tudo que podia esperar, no que ainda lhe restava de vida, era fazer um bomcomeo.

    Repblica da Tchecoslovquia, 1919-1938

    Foi o que ele fez. Aquela primeira dcada foi bem promissora. Formaram-se partidospolticos dos quais tchecos, eslovacos e alemes puderam participar. Os alemes tnicos foramincludos no ministrio, tornando a Tchecoslovquia o nico pas na Europa onde uma minoriaera assim representada. Eleies livres e justas se realizaram em cada nvel. Devido independncia da imprensa, os cidados podiam manifestar suas opinies sem temor. No haviaprises polticas, tortura ou desaparecimentos oficialmente patrocinados. O poder legislativo eraexercido pelo Parlamento e orientado pelo Comit dos Cinco, um corpo informal consistindo noslderes dos principais partidos. Com tantas faces, nenhuma conseguiu prevalecer, encorajandoa moderao. Comunistas, fascistas e separatistas eram legalmente reconhecidos, mas operavam margem da vida pblica.

    O novo regime comeou traduzindo para a poltica o esprito igualitrio da tradio

  • tcheca. Sob o antigo imprio, trs famlias abastadas haviam controlado tantas propriedadesquantas as 600 mil mais pobres. Na repblica, aristocratas alemes e hngaros foram destitudosde seus ttulos, as propriedades imperiais foram desmembradas, e o tamanho das propriedadesfoi limitado. As terras nacionalizadas foram vendidas para fazendeiros independentes a um preonominal.

    Enquanto isso, nas reas urbanas, os trabalhadores se beneficiaram da introduo de umalegislao social moderna, incluindo uma jornada de oito horas, pagamento de auxlio-invalidez,seguro-sade e aposentadoria. Masaryk, o velho professor, enfatizou a educao do primeiro ano universidade, especialmente em regies, como a Eslovquia, que antes haviam sido malatendidas. Economicamente, a Tchecoslovquia foi um sucesso. A moeda era estvel, osoramentos eram equilibrados, e as exportaes de txteis e artigos de vidro dispararam. Oesprito inovador que emergira no sculo XIX continuou florescendo. Em 1930, o pas era odcimo entre as potncias industrializadas do mundo. As marcas tchecas conhecidas incluam osautomveis koda, cerveja Pilsener, o presunto de Praga e sapatos Bat cuja sede em Zlin tinha76 metros de altura, dispondo de um elevador refrigerado com uma pia para lavar o rosto.

    Os tchecos tambm eram respeitados nos assuntos mundiais, tendo conquistado umareputao de apoio ao desarmamento, direito internacional e paz. Sobre Masaryk dizia-se que, seexistisse tal cargo, poderia facilmente ser eleito presidente da Europa. Com sua postura ereta,feies elegantes e barba cor de prata, tinha a aparncia certa para aquela funo. Sua energiatambm era espantosa jogava tnis, montava a cavalo e nadava longas distncias. Uma tarde,o presidente convidou o ator fanfarro Douglas Fairbanks para um ch no jardim de sua casa decampo. Masaryk desafiou Fairbanks a demonstrar seus dotes atlticos. Fairbanks examinoubrevemente o cenrio antes de se levantar da cadeira, levantar sua xcara de ch e saltar sobre amesa sem derramar uma gota. Muito bem, disse Masary k. No consigo fazer isso com umaxcara de ch mas quanto a saltar sobre a mesa, veja. E aos 77 anos cumpriu o que disse.

    FOI NAQUELE AMBIENTE EUFRICO de otimismo e orgulho nacional que meus paisatingiram a maioridade.

    Meu pai, Josef Krbel, foi o mais novo dentre trs filhos. Nascera em 20 de setembro de1909 numa comunidade rural de Kyperk (atual Letohrad), uns 145 quilmetros a leste de Praga.No incio de 1997, aps ficar sabendo da descendncia judaica de nossa famlia, minha irm,meu irmo e sua esposa visitaram a aldeia. Em agosto, junto com minha irm e filhas, repetiseus passos. Mostraram-nos a casa geminada em bom estado numa rua ladeada de acerceasem frente estao ferroviria em que meu pai cresceu. A Ky perk de 1909 havia sido umaaldeia de 2 ou 3 mil almas, na maioria tchecas, mas com um punhado de falantes de alemo.Embora antes os vendedores anunciassem suas mercadorias nas duas lnguas, a tendncianaquela poca era favorecer apenas o tcheco. Meu av, Arnot Krbel, possua uma pequenaloja de materiais de construo no primeiro andar de sua casa. Entre seus clientes estava afbrica de fsforos local, que Arnot ajudara a fundar e que empregava muitos moradores daaldeia. Como era tpico dos homens de Krbel, tinha altura mediana, com um rosto redondobonito e queixo fendido. Era atraente e visto pela comunidade como atencioso e gentil. Em 1928,ele e sua mulher, Olga, mudaram-se para mais perto de Praga, onde ele foi gerente de uma

  • firma que construiu alguns dos projetos mais ambiciosos da cidade, incluindo a ponte Jirseksobre o Moldava.

    Em Kyperk, que no tinha sinagoga, os Krbels no compareciam a servios religiosos.Participavam do Dia de So Nicolau, das celebraes da Pscoa e de outras festas dacomunidade. Tal descaso pelas fronteiras culturais era tpico entre muitos judeus no praticantes.Para eles, como para muitos cristos tchecos, aquelas festas com suas canes, desfiles,decoraes e comidas especiais tinham mais importncia social do que religiosa. A Pscoaera um rito da primavera tanto quanto um tributo ressurreio, e as rvores de Natal no eramapenas para os cristos. Quando eu era menina, meu pai muitas vezes contava a histria de comoele e seu irmo quebraram uma pia numa manh de Pscoa durante uma briga. A mensagem dahistria era inteiramente secular: se eu me comportasse mal, seria como eles punida.

    Kyperk no era grande o suficiente para dispor de sua prpria escola secundria, demodo que, aos 12 anos, meu pai passou a frequentar a escola da cidade vizinha de Kostelec nadOrlic. Um excelente aluno, que desempenhava papis importantes nas peas teatrais escolares,aborrecia-se com professores enfadonhos e viu-se em apuros por derrubar o chapu de umestranho com uma espingarda de ar comprimido. De acordo com uma carta que mais tardeescreveria aos membros de sua classe do ensino mdio, adorava percorrer as trilhas queserpenteavam pelas encostas das montanhas Orlick. Tambm passou a frequentar a praaprincipal, com caladas amplas orladas de rosas de todas as cores e densas florestas de cravosvermelhos e brancos.

    Uma das brincadeiras favoritas dos m