A Antropologia de Edith Stein

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 MARIANA BAR KUSANO A ANTROPOLOGIA DE EDITH STEIN : ENTRE DEUS E A FILOSOFIA MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP SÃO PAULO 2009

Transcript of A Antropologia de Edith Stein

  • MARIANA BAR KUSANO

    A ANTROPOLOGIA DE EDITH STEIN:

    ENTRE DEUS E A FILOSOFIA

    MESTRADO EM CINCIAS DA RELIGIO

    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC-SP

    SO PAULO 2009

  • MARIANA BAR KUSANO

    A ANTROPOLOGIA DE EDITH STEIN:

    ENTRE DEUS E A FILOSOFIA

    Dissertao apresentada Banca Examinadora como exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em Cincias da Religio, rea de concentrao: Fundamentos das Cincias da Religio do Programa de Estudos Ps-Graduados em Cincias da Religio da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Orientador: Prof. Dr. Luiz Felipe Pond

    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC-SP SO PAULO

    2009

  • MARIANA BAR KUSANO

    A ANTROPOLOGIA DE EDITH STEIN:

    ENTRE DEUS E A FILOSOFIA

    Dissertao apresentada como parte dos requisitos para obteno do ttulo de Mestre em Cincias da Religio, do Programa de Ps-Graduados em Cincias da Religio da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. rea de Concentrao: Fundamentos das Cincias da Religio.

    Aprovada em: ___/___/2009

    BANCA EXAMINADORA:

    ________________________________________ Prof. Dr. Luiz Felipe Pond Orientador

    Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

    ________________________________________ Prof. Dr. nio Jos da Costa Brito

    Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

    ________________________________________ Prof. Dr. Juvenal Savian Filho

    Universidade Federal de So Paulo

  • A Marilia Esa,

    Uma singela retribuio querida professora. Pela sua paixo pela sala de aula e sua vocao para a formao humana.

    Por sua amizade.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo ao meu orientador Luiz Felipe Pond: pelo voto de confiana e constante

    estmulo a esta pesquisa. Pela sua disponibilidade, abertura e sua presena

    entusiasmada em todas as etapas do meu percurso. Pela coragem de abrir novos

    caminhos e ser um exemplo de sabedoria e seriedade para aqueles que chegam.

    Agradeo ao Professor nio, pela boa vontade, pelos materiais disponibilizados e

    pela valiosa contribuio na minha qualificao.

    Agradeo a Ir. Jacinta Turollo, pela sua receptividade, pelas trocas de idias e de

    materiais essenciais para o meu trabalho.

    Agradeo profundamente aos meus pais. Por serem o meu cho firme, o meu

    referencial, o reservatrio inesgotvel de amor, de fora e de compromisso na

    minha vida.

    Agradeo a minha irm Luciana que, por uma sbia razo, sempre soube me tirar

    dos livros e me levar para o mundo da ao.

    Agradeo a minha irm Renata pela escuta, pela poesia inspiradora de seu mundo

    interior e pelas inesquecveis madrugadas filosficas regadas a cafezinhos e

    cigarrinhos.

    Agradeo ao meu irmo Guilherme, que no est mais por aqui, mas vive em meu

    corao, em meu pensamento, em minha lembrana e em minhas oraes.

    Agradeo ao meu namorado Otvio pelo seu apoio incondicional. Acima de tudo

    pelo seu amor, sua compreenso, sua pacincia e seu carinho. Por me colocar no

    caminho disciplinado quando dele eu queria me esquivar, sempre me estimulando

  • com palavras de perseverana e coragem. Pelo seu verdadeiro interesse pelo meu

    trabalho.

    Agradeo a minha amiga Felcia, por sua presena constante em minha vida, nos

    momentos difceis e alegres que passamos juntas. Obrigada pela sua torcida,

    vibrao, enfim, pela amizade.

    Agradeo aos queridos colegas do NEMES: Rodrigo Menezes, Jacqueline

    Sakamoto, Maria Anglica Santana, Carla e Alejandro Lloret, Alexandre, Gabriela

    Bal, Cris Guarnieri, Helena Moreau, Maria Jos Caldeira do Amaral e aos outros

    colegas que no esto citados aqui. Pelos abraos e palavras que consolam, pelo

    trabalho em grupo, pelo bom-humor e descontrao, pelas trocas de experincia,

    pelas dicas e ajudas.

    Agradeo a Andria do Programa de Cincias da Religio: pela prontido, pelos

    esclarecimentos, pela pacincia e por ajudar a todos com a maior boa vontade,

    simpatia e eficincia.

    Agradeo ao CNPQ Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e

    Tecnolgico.

  • A tendncia para a pessoa se justifica objetivamente e valiosa porque, de fato, a pessoa est acima de todos os valores objetivos. Toda verdade precisa ser

    reconhecida por pessoas, toda beleza precisa ser vista e avaliada por pessoas. Nesse sentido, todos os valores objetivos esto a para as pessoas. Atrs de tudo o que h de valioso no mundo est a pessoa do criador que, como seu prottipo,

    encerra em si todos os valores imaginveis e os excede. Entre as criaturas, o mais elevado aquele que foi criado sua imagem exatamente na personalidade, ou

    seja no mbito de nossa experincia o ser humano.

    Edith Stein

  • RESUMO

    O objeto deste trabalho voltado para o estudo da antropologia filosfica e

    teolgica de Edith Stein (1891-1942) e as suas implicaes com a pedagogia.

    Neste sentido, a antropologia de Stein se apresenta como um largo esforo em

    compreender a estrutura profunda do ser humano, tanto na relao que ele

    estabelece com as coisas, como na relao que ele mantm com outros seres

    humanos e, por fim, na sua relao com Deus. Suas anlises procedem do mtodo

    fenomenolgico de Husserl para serem, posteriormente, submetidas indagao

    metafsica de Toms de Aquino e, neste movimento, que vai da fenomenologia ao

    tomismo, Stein descreve a constituio essencial do ser humano, enquanto

    formado por corpo, alma e esprito, bem como a individuao dessa estrutura

    essencial. A anlise steiniana sobre o homem parte de uma exigncia pedaggica

    e, por esta razo, o presente trabalho apresenta como hiptese a tentativa de

    demonstrar de que maneira a antropologia de cunho filosfico e a antropologia que

    repousa sobre os dados Revelados, constituem o fundamento da prtica e da

    teoria pedaggica. Para isso, foram solicitados diversos textos da autora e alguns

    estudiosos de sua obra, a fim de iluminar, exemplificar e constatar as anlises e

    interpretaes sobre o tema aqui pesquisado.

    Palavras-chave: Edith Stein; antropologia; filosofia; teologia; ser humano;

    fenomenologia; Deus; metafsica; pedagogia.

  • ABSTRACT

    The purpose of this project is the study of Edith Steins (1891-1942) philosophical

    and theological anthropology and its implications on pedagogy. In this sense,

    Steins anthropology presents itself as a great effort to comprehend the human

    beings profound structure, considering the relations established with things, with

    other human beings and, finally , with God. Her analysis start based on Husserls

    phenomenological method and, afterwards, are submitted to Tomas de Aquinos

    metaphisical indagations. On this movement between Husserls phenomenology

    and Tomas de Aquinos metaphisics, Edith Stein describes the essencial

    constitution of the human being as constituent of body, soul and spirit as well as

    this essencial structures individuation. Edith Steins analysis on the human being

    comes from a pedagogical requirement and, for this reason, this project presents as

    a hypothesis the attempt to demonstrate how the anthropology of philosophical

    nature and the anthropology that lies on Revealed data can constitute as the

    fundaments of the pedagogy practice and theory. For that, many writings from the

    author and from scholars of the author have been studied in order to exemplify and

    confirm the analysis and interpretations on the subject-matter.

    Key-words: Edith Stein; anthropology; philosophy; theology; human being;

    phenomenology; God; metaphisics; pedagogy.

  • Edith Stein

    1891-1942

  • SUMRIO

    INTRODUO 13

    CAPTULO I: GNOSIOLOGIA

    1.1 - As Bases Filosficas de Edith Stein 19

    1.2 - O Encontro com a Fenomenologia de Husserl 22

    1.3 - O que a Fenomenologia? 26

    1.3.1 - A Objetividade do Conhecimento 27

    1.3.2 - A Intuio 30

    1.3.3 - O Idealismo 35

    1.4 - De Husserl a So Toms 37

    1.5 - O Projeto Filosfico de Edith Stein 43

    1.5.1 - Entre essncia e existncia: uma abordagem do ser 47

    CAPTULO II ANTROPOLOGIA FILOSFICA

    2.1 - A Antropologia como fundamento da Pedagogia 51

    2.2 - O Que Antropologia Filosfica? 55

    2.3 - A Estrutura da Pessoa Humana 58

    2.3.1 - O Corpo: Corpo Fsico e Corpo Vivo 59

    2.3.2 - Alma e Psique 63

    2.3.3 - O Esprito 72

    2.4 - O Ser Social do Ser Humano 76

    CAPTULO III ANTROPOLOGIA TEOLGICA

    3.1 - Sentido e possibilidade de uma Filosofia Crist 82

    3.2 - A Antropologia Teolgica 88

    3.2.1 - Criaturalidade 89

  • 3.2.2 - Liberdade 94

    3.2.3 - O Mal 104

    3.3 - O Caminho para redeno: a misso do santo 108

    3.4 - As Conseqncias pedaggicas de uma antropologia crist: 111

    a misso do educador

    CONSIDERAES FINAIS 115

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 119

  • 13

    INTRODUO

    O encontro com Edith Stein e a vontade de dedicar-me ao seu pensamento

    teve sua origem a partir de um outro autor e um outro estudo que me absorveu

    durante os anos da minha graduao em Filosofia. Refiro-me aqui a minha paixo

    por Dostoievski e conseqncia imediata desta paixo: um estudo cientfico de

    sua obra Crime e Castigo1. Durante esta pesquisa, mergulhei no universo

    dostoievskiano e me deparei tanto com os aspectos de sua criao literria, cuja

    genialidade tica-esttica fora demonstradas por Bakhtin2, quanto com a

    capacidade intelectual do jornalista, filsofo e grande escritor em fazer uma anlise

    crtica de seu tempo. Ao estudar a obra de Luiz Felipe Ponde3 sobre a crtica de

    Dostoievski modernidade e sua viso proftica do ser humano e da histria, me

    senti fascinada pela dimenso religiosa e mstica presente em sua obra. Este

    fascnio, ento, se estendeu e me lanou diretamente para o estudo da mstica e

    da santidade, porm desta vez atrelados a uma personagem contempornea, que

    por sua histria e seus escritos muito poderia esclarecer sobre os dilemas

    existenciais profundos de nossa era e de nossa condio humana.

    A histria de vida de Edith Stein, na mesma proporo que encanta, espanta

    o leitor, pois ela o testemunho vivo, conforme j dissera uma vez Joo Paulo II,

    da sntese dramtica do nosso sculo. Edith Stein no teve chances de atuao

    na rea acadmica, primeiramente por ser mulher e posteriormente, com a

    ascenso do nacional-socialismo na Alemanha em 1933, por ser uma judia. Mais

    tarde, j convertida ao catolicismo e vivendo entre as carmelitas sob o nome de

    Teresa Benedita da Cruz, Edith Stein, na vontade de seguir o exemplo de Cristo,

    assume a Cruz e o sofrimento que recai sobre seu povo e se oferece em sacrifcio

    por ele. Sua morte, em 1942, no campo de concentrao de Auschwitz retrata o

    exemplo mais forte de resistncia violncia de seu tempo. O encanto e espanto

    ao qual me refiro, ficam evidentes tambm quando nos deparamos com a imensa

    1 DOSTOIEVSKI, F. Crime e Castigo. So Paulo: Editora 34, 2001. 2 BAKHTIN, M. Problemas da Potica de Dostoievski. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitria, 2002. 3 PONDE, L.F. Crtica e profecia: a filosofia da religio em Dostoievski. So Paulo: Editora 34, 2003.

  • 14

    coerncia presente entre a sua vida e seu pensamento, uma harmonia que se

    dilacerou em meio s mais variadas formas de compartimentalizao e

    burocratizao da prpria vida e do conhecimento cientfico disseminado no campo

    acadmico. Stein, por exemplo, diferente de Heidegger, no cai nas armadilhas da

    segmentao e da ruptura entre quilo que ensina e quilo que vive e, desta forma,

    sua filosofia encontra apoio na prpria vida e vice-versa. Sua experincia enquanto

    judia, filsofa e mrtir na Alemanha do sculo XX um exemplo de resistncia s

    potncias violentas, descentralizadoras e alienantes do poder vigente com os quais

    no apenas o senso comum, mas tambm os intelectuais precisam se relacionar

    cotidianamente. Esta unidade afetiva e intelectual de Edith Stein, portanto, diante

    da violncia e injustia de seu tempo, remontam as qualidades sugeridas por

    Plato: aquele que pratica a verdadeira filosofia deixa-se transformar por ela e,

    assim - engendrando uma mudana de atitude diante da vida comum e ordinria

    mistura-se profundamente com aquilo que ensina, tendo como aliado no mais as

    formas do poder vigente, mas uma ardente busca pela verdade. Dessa maneira,

    sua filosofia como um todo, principalmente no que concerne ao aspecto

    pedaggico-antropolgico, converge para uma paidia crtica, visto que para ela, o

    fundamental no o conhecimento enciclopdico baseado em moldes iluministas,

    mas uma educao que tenha por meta a verdadeira formao humana.

    Porm, podemos perguntar, o que diz Edith Stein em suas obras que tanto

    confirmaria esta argumentao? E aqui situo o objetivo da minha pesquisa. Mesmo

    sabendo da importncia da reflexo sobre a vida da autora, uma judia, filsofa,

    carmelita, mrtir e santa, ou seja, uma figura na qual podemos contemplar uma

    existncia completa e complexa, ainda assim senti uma necessidade maior em me

    dedicar s suas contribuies tericas para o campo da filosofia da religio e da

    mstica, mbito este que, desde o incio, fora a mola propulsora para os meus

    estudos. Lendo suas obras me deparei com uma pensadora exigente e rigorosa

    maneira filosfica tradicional e, simultaneamente, cheia de inspirao. Sua filosofia

    bebe nas fontes da fenomenologia de Husserl com quem tivera contato direto

    durante os anos de formao em Gttingen e, mais tarde, depois de sua

    converso em 1922, deixa-se influenciar pelo grande escolstico: Toms de

    Aquino. Desde o primeiro momento, Edith Stein mostra originalidade com relao

    s teorias de Husserl e passa a expor suas idias de um modo autntico. Explico-

  • 15

    me: embora a fenomenologia apresente um jargo que lhe prprio, numa

    linguagem filosfica elaborada e difcil, Edith Stein se apropria dela e consegue,

    com toda a clareza didtica, ajudar o leitor despreparado a trilhar o caminho com

    mais facilidade. Esta terminologia, de acordo com a continuidade de suas

    pesquisas, passa a incorporar tambm a linguagem filosfica de So Toms e, por

    esta razo, a constelao conceitual medieval e tambm do mundo antigo. Neste

    sentido, no entanto, preciso ressaltar que o rigor intelectual de Stein no est

    apenas em sua terminologia rebuscada, mas no prprio esforo que ela faz em

    trilhar os caminhos que a levam ao encontro da verdade.

    No que diz respeito ao contedo de seu trabalho, sua verdadeira

    preocupao sempre fora esta busca e, por isto a sua disponibilidade espiritual em

    conceder seja filosofia moderna, quanto a antiga e medieval, um espao no

    interior de suas pesquisas. A fenomenologia, de certa forma, lhe abriu uma fresta

    para a possibilidade de contemplao desta verdade, ainda que num procedimento

    puramente racional, e, certamente preparou seu esprito para receber uma verdade

    superior, oferecida pela Revelao. Este trajeto que a leva da fenomenologia s

    questes metafsicas de So Toms e, mais tarde, ao ensinamento da mstica

    espanhola de Santa Teresa DAvila e So Joo da Cruz, empreendido sob o

    mbito de uma filosofia da pessoa, ou seja, uma filosofia que se dedica a

    compreender o ser humano enquanto tal. E este fato pode ser comprovado quando

    percorremos os seus escritos e observamos que na maioria deles encontra-se uma

    tentativa de compreenso do fenmeno humano nas suas diversas facetas. Eis o

    objeto deste trabalho: um estudo sobre a concepo de Edith Stein acerca do ser

    humano, na sua estrutura essencial, na sua singularidade ltima, no lao que ele

    estabelece com os objetos, na sua relao com outros seres humanos e, por fim,

    na sua relao com Deus.

    A antropologia o tema que salta aos olhos em suas pesquisas. o fio

    condutor de seus escritos, de onde partem as questes e para onde tudo converge.

    Conhecer o ser humano na sua relao com as coisas da natureza, com outras

    pessoas e com Deus tarefa urgente do filsofo que se prope a pensar sobre a

    existncia e o sentido ltimo que lhe pode ser conferido. No quero dizer que Stein

    pratique uma mera filosofia antropocntrica, mas para ela, o ponto de partida para

    alcanar as realidades mais altas tal como faz Aristteles e depois So Toms -

  • 16

    deve ser aquele que nos est mais prximo, como o conhecimento do mundo que

    nos circunda e a relao que com ele estabelecemos. Isto pressupe, por sua vez,

    o conhecimento daquilo de que somos feitos, nossa grandeza e misria, do ser que

    nos constitui com todas as possibilidades e limitaes. Para Edith Stein, o ser

    humano essencialmente um ser formado por corpo, alma e esprito e que deve,

    no decorrer de sua vida, desenvolver-se e aprimorar-se para, deste modo, se

    converter naquilo pelo que foi chamado a ser. Neste sentido, o entendimento sobre

    o homem deve ser a base do ato pedaggico por excelncia. O educador precisa

    formar e, para Stein, formar significa fazer com que o outro se converta naquilo que

    ele deve ser. Para isto, entretanto, o ato pedaggico precisa de uma slida

    concepo de ser humano, de uma antropologia que d conta de sua

    profundidade, singularidade e mistrio. Sua anlise sobre o homem, ento, parte

    de uma necessidade de fundamentao do ato pedaggico, cuja investigao

    consiste inicialmente numa descrio fenomenolgica da estrutura psicofsica e

    espiritual do ser humano at alcanar a unidade substancial sobre a qual se

    fundamenta a pessoa humana. A antropologia de Stein no se satisfaz apenas com

    o entendimento desta estrutura essencial. Ela quer compreender tambm a

    individuao desta estrutura, ou seja, compreender quilo que garante a

    singularidade peculiar a cada indivduo. A perspectiva de uma antropologia

    filosfica explica estes mecanismos e processos, bem como explica a relao dele

    com outras coisas e outros sujeitos, seja isoladamente como no interior de uma

    comunidade. Porm, para compreender o ser humano como um todo preciso

    investigar tambm a relao que ele mantm com o ser eterno e, desta forma, a

    antropologia de Stein converte-se numa antropologia teolgica. A hiptese deste

    trabalho, portanto, demonstrar que o pensamento steiniano sobre o homem anda

    de mos dadas com a pedagogia, constituindo o seu fundamento e acenando para

    a sua misso, cumprindo a exigncia de que a sua investigao antropolgica

    repouse sobre uma abordagem filosfica que opera exclusivamente com os

    instrumentos da razo natural - mas tambm sobre uma abordagem teolgica,

    fundada numa adeso verdade Revelada sobre o homem.

    Dessa forma, o primeiro captulo deste trabalho traz uma abordagem dos

    pressupostos filosficos de Edith Stein, tais como a sua aproximao da

    fenomenologia de Husserl e, posteriormente, o seu contato com a metafsica de

  • 17

    Toms de Aquino. A nfase deste primeiro captulo no est em aprofundar os

    dados existenciais da autora nem focar em suas motivaes, mas, mostrar como

    que, partindo delas, Stein alcana uma filosofia que dialoga com ambas as

    correntes. Esta necessidade surgiu do prprio processo de pesquisa, pois

    compreender a concepo de Stein sobre o homem, demanda, de antemo, uma

    compreenso do lugar sobre o qual ela traa a sua investigao. As anlises

    sobre o corpo, a alma e o esprito so feitas sob uma perspectiva descritiva

    fenomenolgica para em seguida serem submetidas a um questionamento

    metafsico. Este o enquadramento que Stein d a questo antropolgica e, por

    isto tambm, a necessidade de uma explicitao do modo de tratamento que ela d

    s questes. Decorre disso, um breve panorama dos conceitos chaves da

    fenomenologia e um exerccio de aplicao no qual ela, ao contrrio do que se

    pode pensar, demonstra a possibilidade de dilogo entre a filosofia moderna

    praticada por Husserl e a filosofia escolstica de So Toms. Neste sentido, as

    reas conceituais que abrangem o captulo como um todo, servem para ajudar o

    leitor interessado, a situar-se no esquema geral do seu pensamento e, mais

    especificamente, no tratamento dado por ela sobre o tema da antropologia.

    O segundo captulo dedica-se ao estudo da antropologia filosfica

    propriamente dita e as relaes que esta estabelece com a pedagogia. Para Stein

    a antropologia fundamento da teoria e da prtica pedaggica e, partindo deste

    pressuposto, ela desenvolve, atravs de uma anlise profunda, a sua prpria

    concepo de ser humano. Trata-se de uma pessoa livre e espiritual, formada por

    corpo, alma e esprito que, difere por seu mbito espiritual dos animais e, por sua

    natureza corprea dos anjos. A anlise de Stein engloba o problema dos valores,

    da vontade, das motivaes e do carter e no se atm somente ao indivduo

    isolado, mas tambm em que medida que ele se deixa determinar pelo social. Da

    a necessidade de atrelar a esta discusso tambm o tema da empatia e dos laos

    que unem o indivduo comunidade.

    E, por fim, o terceiro e ltimo captulo discorre sobre a antropologia teolgica

    de Stein e as respectivas conseqncias pedaggicas que esta exerce sobre a

    conduta do educador. O ser humano no pode ser compreendido unicamente pela

    luz da razo natural, pois esta encontra os seus prprios limites e, ento, Stein

    solicita como complemento de sua anlise os contedos da f e da Revelao. No

  • 18

    interior deste estudo, comparece a relao entre o ser finito e o ser eterno, a

    liberdade e o mal na obra de salvao do ser humano, bem como o tema da

    santidade. O tema da mstica no diretamente enfrentado aqui, mas certamente

    paira sobre todas estas questes.

    A metodologia utilizada neste trabalho foi feita basicamente por meio da

    leitura das obras de Stein e complementada com a anlise de seus textos. Muitas

    vezes procurei ajuda na fortuna crtica e busquei costurar suas informaes com a

    interpretao que eu, paulatinamente, alcanava sobre o que ela escrevia. Edith

    Stein uma filsofa rigorosa e seus textos muitas vezes dialogam com o jargo

    medieval e grego e no apenas com a filosofia de seu tempo. Portanto, a leitura do

    seu texto em vrios momentos nos remete a obra de outros filsofos ou a ajuda

    dos comentadores.

    A relevncia de seu pensamento j fora mencionada por Joo Paulo II em

    seu Fides et Ratio como filosofia corajosa e exemplar na sua relao com a palavra

    de Deus4, fundamental para os tempos atuais. Sua filosofia no dialoga com os

    modismos intelectuais ou a ideologia dominante, mas com a verdade, e da a sua

    grandeza e importncia. Edith Stein uma daquelas pensadoras que, na

    contrapartida da filosofia moderna, no elimina do horizonte de suas meditaes a

    possibilidade de um conhecimento do ser e da verdade e, por isso, creio que sua

    obra como um todo possa ser considerada como um verdadeiro elogio a razo

    humana. Elogio este, no entanto, no ao status da razo moderna, a razo

    meramente normativa e instrumental, mas a razo como era entendida pelos

    gregos e medievais. Alm disso, suas contribuies para o campo da filosofia da

    religio so bastante significativos e enriquecem o debate atual em vrias frentes:

    sobre a possibilidade de conciliao entre a f e a razo, sobre o problema entre

    gnero e religio, sobre a possibilidade de dilogo entre judeus e cristos visto

    que Stein morre por ser judia e por esta mesma razo, por aceitar o martrio,

    canonizada sobre a sua concepo antropolgica, que no sujeita o ser humano

    a nenhum tipo de idealizao ou reduo, mas o revela na sua grandeza e misria

    e, sobre as suas inseres no terreno da mstica e santidade.

    4 JOO PAULO II. Fides et Ratio. 10. ed. So Paulo: Ed. Paulinas, 2008, p.99.

  • 19

    CAPTULO I

    GNOSIOLOGIA

    1.1 AS BASES FILOSFICAS DE EDITH STEIN.

    O papel da fenomenologia constitui um dos pilares sobre os quais ela

    assenta a sua filosofia. De um outro lado est o dilogo constante que ela busca

    com o pensamento tomista. no interior desse movimento de aproximao entre

    ambas as correntes - fenomenologia e tomismo - que se encontra o projeto

    filosfico maior de Edith Stein, que se desdobra, inclusive, na sua abordagem

    acerca da estrutura da pessoa humana na sua relao com as coisas, com outros

    seres humanos e com Deus. Segundo a autora Anna Maria Pezzella 5, que possui

    um estudo sobre a antropologia filosfica em Edith Stein, a pergunta pelo ser

    humano invocada por Stein - envolve toda a sua obra e encontra lugar seja na

    fenomenologia, seja na filosofia catlica. Enquanto discpula de Husserl (1859-

    1938), que investigava profundamente o mbito do eu puro, mas tambm o mbito

    do corpo, da psique e do esprito, ela capta o eu enquanto um ser que habita um

    corpo que sente, percebe, se move e se abre ao mundo e a outros sujeitos.

    Enquanto convertida ao catolicismo e s leituras de Toms de Aquino (1225-1274),

    amplia sua reflexo para a relao do homem com Deus, aceitando em suas

    pesquisas os dados da Revelao, bem como o exame da alma, fornecido pela

    mstica espanhola 6.

    5 PEZZELLA, Anna Maria. LAntrologia Filosofica di Edith Stein: indagine fenomenologica della persona umana. Roma: Citt Nuova, 2003, p.9. 6 A mstica espanhola aqui se refere mstica de dois grandes nomes: So Joo da Cruz e Santa Teresa DAvila. Representantes da mstica do sculo XVI na Espanha e representantes da ordem dos carmelitas descalos, segundo Lima Vaz, representam tambm os dois grandes nomes de uma literatura que testemunha toda a plenitude simblica e doutrinal da mstica nupcial presente na tradio crist. Edith Stein, portanto, enquanto carmelita, dedica-se profundamente a vida e a obra dos dois mestres espirituais de sua ordem, principalmente no que concerne a narrao que eles concedem sobre os caminhos que levam a alma ao conhecimento de si mesma e assim, ao encontro com Deus. LIMA VAZ, Henrique C., Experincia Mstica e Filosofia na Tradio Ocidental. So Paulo: Loyola, 2000, p.72.

  • 20

    A respeito do projeto filosfico desenvolvido pela autora ao longo da vida,

    alguns estudiosos costumam dividir sua produo literria em trs perodos, o que

    de certa forma garante uma maior facilidade em compreender a coerncia e a

    continuidade existente entre a vida da autora e a sua produo intelectual. A

    primeira fase pode ser caracterizada como o perodo fenomenolgico, que se

    extende desde sua tese de doutorado em Gttingen (1916) at sua converso ao

    catolicismo em 1922, a segunda fase, que vai de 1922 sua passagem do

    Carmelo de Colnia ao Carmelo de Echt na Holanda (1938) concentra seus

    estudos de carter pedaggico-antropolgico, e por fim, de 1938 a 1942, Edith

    Stein produz os seus escritos eminentemente msticos no prprio Carmelo de

    Echt7.

    Dentre os escritos fenomenolgicos esto, principalmente, a sua tese de

    doutorado, Sobre o Problema da Empatia 8, defendida em 1916 sob a orientao

    de Husserl, os dois ensaios de 1922, conhecidos como Beitrge 9 e, em 1925, Uma

    Pesquisa sobre o Estado. A respeito dessa fase, pretendo, ao longo deste trabalho,

    focar a anlise em sua tese de doutorado, na qual ela j delineia alguns temas

    importantes que iro comparecer em reflexes posteriores como, por exemplo, o

    seu posicionamento frente fenomenologia de Husserl e os diversos aspectos da

    vivncia intersubjetiva. Entre as reflexes do segundo perodo, destaco duas obras

    que sero referidas ao longo deste trabalho. A primeira delas diz respeito a um

    texto, publicado em 1929, no qual ela promove um confronto muito interessante

    entre a fenomenologia de Husserl e a filosofia perene de So Toms 10, buscando

    pontualmente possveis convergncias entre os dois pensadores, demonstrando o

    esprito que permeia a filosofia medieval e a filosofia moderna. O segundo texto, A

    7 STEIN, Edith. Los Caminos del Silencio Interior. Buenos Aires: Bonum, 2006, p.13. 8 Zum Problem der Einfhlung. A verso utilizada neste trabalho a verso em lngua inglesa: STEIN, Edith. On the Problem of Empathy. Traduo direta do alemo por Waltraut Stein. Washington: ICS Publications, 2002. 9 Beitrge zur philosophischen Begrndung der Psychologie und der Geisteswissenschaften, publicado pela primeira vez no Jahrbuch - uma espcie de revista de publicao de pesquisas fenomenolgicas coordenada por Husserl. No presente trabalho, no entanto, utilizo a verso inglesa desta obra: STEIN, Edith. Philosophy of Psychology and the Humanities. Traduo direta do alemo por Mary Catharine Baseheart e Marianne Sawicki. Washington: ICS Publications, 2000. 10 Husserls Phenomenology and the Philosophy of St. Thomas Aquinas: Attempt at a Comparision. Este texto faz referncia a um ensaio publicado por Edith Stein no Jarbuch em 1929 e ser, ao longo deste trabalho, utilizado na sua verso traduzida para o ingls encontrada em: BASEHEART, M. Catharine. Person in the World: introduction to the philosophy of Edith Stein. Traduo direta do alemo por Mary Catharine Baseheart. Netherlands: Kluwer Academic Publishers, 1997.

  • 21

    Estrutura da Pessoa Humana 11, que ser examinado mais adiante e que integra o

    perodo pedaggico-antropolgico, se refere ao livro onde a autora, de maneira

    bastante autntica, lana as bases filosficas para uma Antropologia. Publicado

    postumamente, resultado de um curso de inverno ministrado por ela em 1933

    quando ocupava a ctedra no Instituto Alemo de Pedagogia Cientfica em

    Mnster. Nele, alm de haver uma clara harmonizao entre a aplicao do

    mtodo fenomenolgico sobre as questes metafsicas j levantadas por Toms de

    Aquino, h tambm um duplo aspecto que percorre o pensamento antropolgico da

    autora, qual seja, a tentativa de desvendar a estrutura essencial comum a todos os

    seres humanos e, simultaneamente, descobrir a essncia ltima que garante a

    singularidade do indivduo. Todavia, essa questo referente individuao da

    estrutura essencial o que Anna Maria Pezzella 12 considera como a pergunta

    crucial no pensamento antropolgico de Edith Stein e que ser, realmente

    enfrentada, de forma sistemtica, no seu trabalho maior de ontologia chamado Ser

    Finito e Ser Eterno: uma ascenso ao sentido do ser 13. Este ltimo, por sua vez,

    faz parte do terceiro perodo da autora, em que ela j se encontra vivendo no

    Carmelo sob o nome de Teresa Benedita da Cruz e constitui para alguns

    estudiosos, a grande obra de Edith Stein. Trata-se, em linhas gerais, de uma leitura

    fenomenolgica da tradio filosfica antiga, medieval e contempornea e, de uma

    obra longa e importante para quem quer compreender o seu pensamento, mas

    devido vastido de suas questes e a complexidade dos temas, no ser

    possvel discut-la sistematicamente, mas apenas apontar alguns debates frteis

    para o tema da antropologia.

    preciso sublinhar que a antropologia filosfica de Edith Stein se move para

    alm de si mesma na medida em que adentra ao terreno da f e acolhe os

    contedos da Revelao e da mstica, principalmente na sua ltima fase, na qual

    ela compe profundas meditaes sobre a experincia de f radical dos dois

    11 Der aufbau der menschilichen person. No presente trabalho, utilizo a verso em lngua espanhola: STEIN, Edith. La Estructura de la persona humana. Traduo direta do alemo por Jos Mardomingo. Madrid: BAC, 2002. 12 PEZZELLA, Anna Maria. LAntrologia Filosofica di Edith Stein: indagine fenomenologica della persona umana. Roma: Citt Nuova, 2003, p.9. 13 Endliches und ewiges Sein. Versuch eines Ausftiegs zum Sinn des Seins. No presente trabalho, utilizo a verso mexicana desta obra: STEIN, Edith. Ser Finito e Ser Eterno: ensayo de una ascensin al sentido del ser. Traduo direta do alemo por Alberto Perez Monroy. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1994. Esta obra ser abreviada ao longo do trabalho sob a forma: Ser Finito e Ser Eterno.

  • 22

    grandes msticos de sua ordem: Teresa DAvila (1515-1582) e So Joo da Cruz

    (1542-1591). Isso nos faz crer que a sede de verdade que tanto atormentava a

    autora no decorrer de sua vida, no se deteve diante das fronteiras do

    racionalismo, mas, ao contrrio, buscou super-lo atravs do reconhecimento dos

    limites da prpria razo. Nesse sentido, interessante notar que a autora, antes de

    mergulhar na contemplao dos caminhos da alma at Deus, percorreu um trajeto

    filosfico-fenomenolgico que perpassa todas suas obras e que no pode ser

    ignorado quando se deseja entender a sua doutrina espiritual. Em seu ltimo livro,

    A Cincia da Cruz 14, Edith Stein faz uma meditao profunda sobre a

    personalidade e a obra mstica de So Joo da Cruz e, simultaneamente, revela a

    sua concepo do ser pessoal, levado as ltimas conseqncias do seu

    desenvolvimento. Na realidade, ela no se atm apenas a comentrios, mas

    desenvolve a doutrina dele sobre a Cruz, at atingir o ncleo da filosofia da

    pessoa. 15 Portanto, os escritos de Edith Stein sobre a mstica devem ser levados

    em considerao, na medida em que encerram e iluminam a sua concepo

    acerca da estrutura da alma humana na sua intrnseca busca de sentido.

    1.2 O ENCONTRO COM A FENOMENOLOGIA DE HUSSERL.

    O encontro de Edith Stein com a fenomenologia de Husserl narrado de

    forma bastante interessante no livro de Alasdair MacIntyre, que faz um prlogo

    filosfico, buscando alojar o pensamento da autora na histria da filosofia, mais

    especificamente, na relao que ela mantinha com Husserl e, por conseqncia,

    com a tradio que remonta Kant (1724-1804), Hume (1711-1776) e Descartes

    (1596-1650). Neste livro ele concentra suas anlises no perodo que se extende de

    1913, poca em que ela chega a Gttingen, at 1922, ano de sua converso ao

    catolicismo e, apesar da sua contribuio estar voltada para o pensamento

    fenomenolgico da autora, ele no abdica de explorar as profundas relaes

    existentes entre a vida e a obra, identificando que dessas relaes surgem

    questes que se tornam objetos da prpria filosofia. Portanto, ao falar sobre o

    14 Kreuzeswissenschaft. Esta obra de Edith Stein possui uma traduo para o portugus de fcil acesso: STEIN, Edith. A Cincia da Cruz. Traduo direta do alemo de Beda Kruse. So Paulo: Loyola, 2004. 15 TUROLO, Jacinta. A Formao da Pessoa Humana. 2.ed. So Paulo: Loyola, p.61.

  • 23

    envolvimento de Stein com a fenomenologia, ele primeiramente nos oferece um

    olhar sobre sua vida.

    Segundo o autor, esta aproximao com a corrente fenomenolgica ocorre

    nos anos de formao de Edith Stein na Universidade de Breslau, onde ela

    estudava Histria e Filologia, interessando-se, posteriormente por Filosofia e

    Psicologia Experimental, cujos professores, respectivamente, Richard Hnigswald

    (1875-1947) e Louis William Stern (1871-1938) apresentaram-na aos escritos de

    Husserl. Richard Hnigswald, de descendncia judaica, lecionou em Breslau de

    1906 a 1930, quando fora transferido para Munique. Em 1933, com a ascenso do

    nacional socialismo na Alemanha, expulso da Universidade e enviado para

    Dachau. Com muita sorte liberado e emigra para os Estados Unidos onde

    continua sua pesquisa filosfica at a morte. Sua linha de investigao segue o

    neo-kantismo de seu professor em Halle, Alois Riehl (1844-1924), porm, adquire

    uma verso prpria e inovadora ao tentar encontrar no esquema kantiano um lugar

    para a subjetividade individual16. Edith Stein interessava-se por suas aulas de

    Histria da Filosofia e por seu raciocnio dialtico, enquanto os cursos sobre

    filosofia da natureza, eram, como observado pela prpria Edith Stein, na realidade

    devotados exclusivamente exposio de suas prprias posies neo-kantianas

    e que existiam coisas que ningum ousava nem mesmo pensar durante as aulas

    de Hnigswald. J, fora da sala de aula eu no podia ignor-las 17. MacIntyre, ao

    tentar esclarecer as inquietaes da autora durante este perodo aponta para o fato

    de que suas dvidas, alimentadas pelos estudos de Psicologia, no encontravam

    respostas no neo-kantismo de Hnigswald. Nos cursos de William Stern,

    ministrados no vero e inverno de 1912, ela entra em contato com a psicologia

    emprica desenvolvida pela escola de Wrzburg, cujo fundador Oswald Klpe

    (1862-1915), tinha por objetivo um aprofundamento da pesquisa iniciada por seu

    professor Wilhem Wundt (1832-1920) em Leipzig. Consistia esse projeto em

    experimentos que possibilitassem a apreenso de contedos da conscincia por

    meio de introspeces controladas, mas com enfoques diferenciados. Enquanto

    Wundt levava em considerao o contedo de imagens, sensaes, sentimentos e

    desejos, Klpe e a escola de Wrzburg concentrava os esforos na atividade do

    16 MACINTYRE, Alasdair. Edith Stein: A Philosophical Prologue 1913-1922. Maryland: Rowman and Littlefield Publishers, 2006, p.13. 17 Ibid., p.13.

  • 24

    pensamento, indagando-se a respeito da diferena e da relao existente entre o

    pensamento e os outros tipos de atos mentais e o como eles se tornavam

    individuados uns dos outros. Por meio da literatura dessa escola e os escritos

    relativos a ela, Edith Stein entra em contato com as Investigaes Lgicas de

    Husserl e fica muito interessada pela perspectiva inovadora do autor.

    Nesta mesma poca, recebe de um jovem professor o segundo tomo das

    Pesquisas Lgicas e fica completamente fascinada pela grandeza da filosofia de

    Husserl, convencendo-se por fim de que deveria ir a Gttingen para ter aulas com

    o prprio mestre. Essa deciso de sair de sua terra natal fora incentivada tambm

    por outros eventos paralelos. Edith animara-se ao ver em uma revista, o retrato de

    Conrad-Martius (1888-1966), uma jovem aluna de Husserl que fora laureada com o

    premio de filosofia 18. Alm disso, seu primo, Richard Courant (1888-1972),

    professor de matemtica em Gttingen, oferecera senhora Stein, receber Edith e

    sua irm Erna para que l completassem a formao universitria. A senhora Stein,

    uma judia fervorosa, muito embora tivesse conscincia e orgulho dos dotes

    intelectuais da filha caula, temia pela sua f em meio a cientistas e pensadores

    livres e, portanto, bastante contrariada concedeu a permisso para Edith partir 19.

    Os anos em Gttingen, no entanto, so determinantes na trajetria

    intelectual de Edith Stein. L ela se relaciona com os membros do Crculo de

    Gttingen, cujos integrantes eram jovens estudiosos que vinham de todos os lados

    da Europa, a fim de estudar a fenomenologia, que se mostrava como o novo ponto

    de partida da filosofia, fazendo frente ao neo-kantismo disseminado nas

    Universidades Europias. Entre eles, estavam alguns estudantes de Munich, tais

    como Adolph Reinach (1883-1917) que em 1905 procura Husserl para fazer a sua

    Habilitationsschrift, Theodor Conrad (1881-1969) que em 1907 funda a Sociedade

    Filosfica de Gttingen e outro grande nome da fenomenologia, Max Scheler

    (1874-1928). Tambm se juntaram a eles Alexander Koyr (1892-1964) de Paris,

    Hans Lipps (1889-1941), Jean Hering (1890-1966), Roman Ingarden (1893-1970),

    Hedwig Martius que em breve se casaria com Theodor Conrad e, a partir de 1913,

    Edith Stein.

    18 Conrad-Martius foi laureada com o livro Die erkenntnis-theoretischen Grundlagen des Positivismus. 19 MIRIBEL, Elisabeth. Edith Stein: como ouro purificado pelo fogo. 3.ed. Aparecida, SP: Editora Santurio, 2001, p.42.

  • 25

    Husserl estava em Gttingen desde 1901, um ano aps ter publicado o

    primeiro volume das Investigaes Lgicas e tinha como assistente e responsvel

    pelo curso de iniciao fenomenologia o estudioso Adolph Reinach de Munich,

    com quem Edith Stein fizera a sua primeira entrevista na Universidade. Reinach

    conhecia muito bem a fenomenologia e chegara s teorias de Husserl por meio da

    crtica que este fizera ao seu ex-professor de Munich, Theodor Lipps (1851-1947),

    professor tambm de Alexander Pfnder (1870-1941) e Conrad. As crticas

    direcionadas a Lipps revelam a batalha de Husserl contra o psicologismo. Embora

    ocupando a ctedra de professor de filosofia, o interesse de Lipps, na realidade,

    era voltado para a psicologia e, segundo MacIntyre, o desenvolvimento da sua

    teoria indicava que a lgica deveria estar fundada numa explicao da atividade

    mental proporcionada pela psicologia emprica 20, perspectiva essa que se

    chocava radicalmente com a de Husserl, para quem a submisso da lgica

    psicologia era um equvoco que precisava ser combatido. Dessa forma, Adolph

    Reinach e seus colegas, interessados nas observaes de Husserl acerca da

    teoria de Lipps, descobrem as Investigaes Lgicas e constatam nela um

    trabalho que redefinia a filosofia para eles 21. Tal encantamento pelo novo mtodo

    no era aleatrio, mas fundamentado na redefinio que Husserl propunha para os

    rumos que a filosofia havia assumido depois de Kant. Esse tambm o motivo pelo

    qual Stein se aproxima dessa corrente. No entanto, este fascnio exercido pela

    primeira grande obra de Husserl nos anos de 1900-1901 iria sofrer abalos quando

    ele, em 1913 - ano em que Edith chega a Gttingen - publica sua nova obra: Idias

    para uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomenolgica 22. Com isso, alguns

    membros do crculo de Gttingen rejeitam a mudana de perspectiva elaborada por

    Husserl e terminam se afastando dele, enquanto outros, como por exemplo, Edith

    Stein, permanece se no totalmente fiel a sua teoria, pelo menos considerando tais

    mudanas como as conseqncias do aprofundamento do prprio mtodo.

    Todavia, para compreender plenamente a posio de Edith Stein frente a essas

    20 MACINTYRE, Alasdair. Edith Stein: A Philosophical Prologue 1913-1922. Maryland: Rowman and Littlefield Publishers, 2006, p.17. 21 Ibid., p.17. 22 Quando me referir a esta obra ser sob o nome abreviado de Idias. Esta obra de Husserl est disponvel em lngua portuguesa: HUSSERL, E. Idias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia Fenomenolgica. Traduo direta do alemo de Mrcio Suzuki. Aparecida, SP: Idias e Letras, 2006.

  • 26

    mudanas e tambm as suas contribuies para a nova cincia, preciso que se

    faa um esclarecimento prvio sobre o mtodo de Husserl, ao qual a autora esteve

    to ligada durante os anos de formao.

    1.3 O QUE A FENOMENOLOGIA?

    Conforme acima mencionado, a fenomenologia 23 constitui uma das bases

    sobre as quais Edith Stein formula as suas questes filosficas, tendo como o fio

    condutor de seu pensamento a estrutura ntica do indivduo humano. Isto significa

    que, a maneira de proceder da anlise antropolgica absorve no seu interior os

    ensinamentos da fenomenologia e que, consequentemente, se expressa enquanto

    uma antropologia fenomenolgica 24. Alm disso, um esclarecimento prvio dos

    principais elementos do mtodo criado por Husserl ajudar na compreenso do

    movimento de atrao da autora para essa escola e a relao que ela

    posteriormente ir estabelecer com a filosofia perene de Toms de Aquino.

    Num pequeno texto traduzido para o italiano sob o nome de Che Cos la

    Fenomenologia 25, Edith Stein aborda trs elementos fundamentais do mtodo,

    buscando uma relao entre a fenomenologia e as duas grandes correntes

    filosficas da idade moderna: a filosofia catlica que remonta escolstica

    tradicional e a filosofia kantiana. Os trs elementos so, respectivamente, a

    objetividade do conhecimento, a intuio e o idealismo. Em primeiro lugar, tratarei

    23 A fenomenologia um movimento de ampla difuso dentro da filosofia do sculo XX e tem como seu fundador, Edmund Husserl (1859-1938), na Alemanha. Este movimento se disseminou e influenciou grandes pensadores, tais como Max Scheler e Martin Heidegger (1889-1976) na Alemanha, Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) na Frana. Martin Heidegger assume a ctedra de filosofia de Husserl em Friburg e dedica sua obra mais conhecida Ser e Tempo ao mestre. Seu pensamento assume o mtodo fenomenolgico, ainda que sua filosofia seja muito diferenciada daquela de Husserl, voltando-se para a investigao da existncia e do sentido do ser, sem fazer uso da reduo transcendental. Sartre, por sua vez, absorve o conceito de intencionalidade da conscincia da fenomenologia, mas renega a virada idealista de Husserl e, Merleau-Ponty adere ao teor da fenomenologia, principalmente, no sentido de buscar a essncia da percepo e a essncia da conscincia, mas mantm sua filosofia tambm a certa distncia daquela praticada por Husserl. Existe tambm a corrente conhecida sob o nome de fenomenologia da religio, cujos principais representantes so Rudolf Otto (1869-1937) e Gerardus van der Leeuw (1890-1950) que, em linhas gerais, usam o mtodo fenomenolgico como instrumento para entender a essncia da religio e a essncia da experincia do sagrado. 24 PEZZELLA, Anna Maria. LAntrologia Filosofica di Edith Stein: indagine fenomenologica della persona umana. Roma: Citt Nuova, 2003, p.19. 25 Artigo publicado pela primeira vez em 1924, quando Edith Stein estava em Spira entre as dominicanas. Na traduo para o italiano, o artigo encontra-se numa coletnea de textos: STEIN, Edith. La Ricerca della Verit: dalla fenomenologia alla filosofia cristiana. Ed. Angela Ales Bello. 3.ed. Roma: Citt Nuova, 1999.

  • 27

    de explicitar o que significa cada um dos elementos, para mostrar, mais adiante, o

    que eles mantm em comum com as escolas filosficas mencionadas

    anteriormente.

    1.3.1 A Objetividade do Conhecimento.

    Esta temtica acerca da objetividade do conhecimento nos ajuda a entender,

    por um lado, a polmica de Husserl contra o psicologismo defendido por Theodor

    Lipps, bem como a atrao de seus alunos pela fenomenologia e, por outro,

    ilumina a descoberta feita por Edith Stein sobre o estado incipiente da psicologia de

    sua poca. Amparada no texto acima mencionado, a autora insiste que a idia de

    uma verdade absoluta, aliada ao conhecimento objetivo que lhe corresponde, so

    mritos das Investigaes Lgicas e, evidenciam a convico de Husserl contra as

    vrias tendncias relativistas da filosofia contempornea, tais como o naturalismo,

    o psicologismo e o historicismo. Isto significa dizer, em outras palavras, que a

    verdade, diferente do que pensa uma grande parte da filosofia moderna, no

    produzida pelo esprito humano, mas por ele descoberta. Diz Edith Stein:

    Se a natureza humana, se o organismo psquico, se o esprito do tempo se transformam, ento tambm as opinies dos homens se transformam, mas a verdade no muda. 26

    Tal afirmao, na medida em que coloca a verdade como imutvel e eterna,

    aproxima a fenomenologia da grande tradio filosfica que remonta a Plato,

    Aristteles, a escolstica e, certamente, no por mero acaso.

    Antes de entrar para o campo da filosofia propriamente dita, Husserl era

    treinado em cincias exatas e matemtico de formao, mas sempre com um

    interesse particular pela filosofia. De 1884 a 1886 torna-se aluno de Franz

    Brentano (1838-1917) em Viena e esse encontro no seria privado de

    conseqncias 27. Brentano havia sido padre e bem instrudo sobre os aristotlicos

    medievais o que, segundo MacIntyre, era raro entre os filsofos alemes e

    26 STEIN, Edith. La Ricerca della Verit: dalla fenomenologia alla filosofia cristiana. Ed. Angela Ales Bello. 3.ed. Roma: Citt Nuova, 1999, p.58. 27 BELLO, Angela Ales. LUniverso nella Coscienza: introduzione alla fenomenologia di Edmund Husserl, Edith Stein, Hedwig Conrad-Martius. Pisa: Edizioni ETS, 2007, p.14.

  • 28

    austracos. 28 Alm disso, estudara em Berlim com o maior especialista em

    Aristteles do sculo dezenove, Adolf Trendelenburg (1802-1872), que influenciou

    profundamente a sua maneira de fazer filosofia, formular questes, resolver

    problemas e adotar perspectivas. Segundo MacIntyre, toda essa forma Brentano

    transmitiu Husserl. A pesquisa de Brentano investia na descoberta de uma nova

    cincia da mente e, para isso, investigava os atos mentais que, na sua concepo,

    se diferenciavam entre si pelo que ele denominava intencionalidade. Isso significa

    que, dizer que um ato intencional dizer que ele est direcionado para um

    objeto 29 e faz com que um pensamento ou percepo sejam sempre o

    pensamento sobre algo ou percepo de algo. O conceito de intencionalidade -

    retirado da escolstica da Idade Mdia por Brentano - se faz presente em todos os

    fenmenos mentais e, quando absorvido por Husserl, torna-se central no

    desenvolvimento do seu mtodo, como uma estrutura inerente conscincia, de

    natureza lgico-transcendental 30.

    Husserl recebe a influncia de um outro estudante de Brentano, Casimir

    Twardowski (1866-1938), que prope algumas reformulaes das teses do

    professor, ao sublinhar a necessidade de distino entre o objeto do ato mental -

    como o objeto de um pensamento ou de um desejo - e o contedo desse ato, por

    exemplo, os signos ou imagens de que se faz uso. Isto porque o objeto e o

    contedo existem e, reservam para si, propriedades diferenciadas, sendo o objeto,

    aquele que fornece o material, concreto ou abstrato, para que a mente seja capaz

    de operar enquanto tal e, o contedo, quilo pelo qual a mente pode se referir de

    incontveis maneiras a um mesmo objeto. Por exemplo, quando eu uso a

    expresso pssaros para me referir a todos os pssaros que j existiram 31 ou

    quando penso em Viena, meu pensamento talvez tenha o contedo de uma

    imagem da cidade ou talvez consista nas palavras a capital da ustria 32. O

    problema do psicologismo vizinho desta discusso, na medida em que nele

    ocorre a assimilao dos objetos dos atos mentais aos seus contedos, gerando

    28 MACINTYRE, Alasdair. Edith Stein: A Philosophical Prologue 1913-1922. Maryland: Rowman and Littlefield Publishers, 2006, p.23. 29 Ibid., p.23. 30 HUSSERL, Edmund. A Crise da Humanidade Europia e a Filosofia. 2.ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, p.32. 31 MACINTYRE, Alasdair. Edith Stein: A Philosophical Prologue 1913-1922. Maryland: Rowman and Littlefield Publishers, 2006, p.25. 32 Ibid., p.25.

  • 29

    assim, uma reduo do objeto aspectos da vida mental dos indivduos

    particulares. Segundo MacIntyre:

    Isto confunde a pergunta Quais so as caractersticas do objeto deste pensamento? com a pergunta Quais as caractersticas que o pensamento desse indivduo possui? e assim, reduz a pesquisa dos aspectos dos atos mentais a um estudo dos episdios e estados de nimo que ocorrem na vida mental de pensadores individuais. 33

    Essa polmica , sobretudo, reveladora para a compreenso daquilo que

    Husserl prope de inovador no segundo volume das Investigaes Lgicas e que

    configura o interesse maior dos discpulos, dentre eles Edith Stein, por seu

    pensamento. Tal inovao consiste, principalmente, numa ruptura com a filosofia

    kantiana e com qualquer forma de idealismo, para dar lugar a um realismo que

    assegure o conhecimento objetivo das coisas e do mundo. Na primeira

    Investigao 34, ele analisa a capacidade que possui a linguagem em expressar os

    sentidos ideais e os conceitos ideais fornecidos na experincia e, assim, referir-se

    quilo que independente dos atos mentais e do julgamento que possamos ter a

    respeito deles. Os atos mentais, como a percepo, a imaginao, a vontade, a

    memria e o julgamento, so regidos por uma estrutura intencional que aponta

    para algo que est fora dela mesma e que, no entanto, se relaciona com ela. Essas

    consideraes resultam da reelaborao feita por Husserl sobre o conceito de

    intencionalidade de Brentano que se faz presente, justamente, nessa perspectiva

    de que os atos mentais se dirigem aos objetos e, que os objetos em si, no esto

    na mente, mas so realidades externas a qualquer mente em particular. Em

    contraposio concepo cartesiana, a mente para Husserl permanece

    incompleta se no houver o encontro com esses objetos-independentes dela e, por

    isso, Voltar s coisas mesmas! tornou-se o lema dessa corrente. De um ponto de

    vista mais abrangente, o realismo alcanado por Husserl nesse momento, significa

    o despertar, no interior do cenrio intelectual europeu, de um novo ponto de partida

    na filosofia, uma volta ao mundo do pensamento objetivo e, segundo Miribel, uma

    volta ao estudo da escolstica medieval, da sabedoria antiga e principalmente dos

    33 MACINTYRE, Alasdair. Edith Stein: A Philosophical Prologue 1913-1922. Maryland: Rowman and Littlefield Publishers, 2006, p.25. 34 Ibid., p.41.

  • 30

    trabalhos de Santo Agostinho, de Duns Scot, de Santo Tomas e de Plato 35. O

    que Edith Stein viu no mtodo de Husserl, portanto, era um novo ponto de partida

    para pensar, inclusive, os fundamentos das cincias, na medida em que a

    fenomenologia captura e coloca em questo aquilo que as cincias particulares

    assumem como dado. Isso explica tambm a crise da autora com a psicologia

    emprica e a sua viso de que se tratava de uma cincia que estava ainda

    engatinhando, e que lhe faltavam fundamentos objetivos 36. Segundo Ana Maria

    Pezzella, Edith Stein critica o fato da psicologia da poca se considerar como

    cincia geral do esprito, no sendo ainda capaz de diferenciar o campo do esprito

    e da psique 37. Dessa forma, a sua compreenso do indivduo assume a

    perspectiva fenomenolgica e, atravs da descrio dos atos e das vivncias,

    alcana o que h de essencial e inconfundvel entre as trs dimenses interligadas

    do ser humano: o corpo, a alma e o esprito.

    1.3.2 A Intuio.

    O tema da intuio um assunto bastante complexo, pois envolve alguns

    debates centrais da fenomenologia, tais como, a reivindicao da evidncia da

    essncia enquanto conhecimento no-arbitrrio e a polmica aberta de Husserl

    contra o empirismo e o idealismo. nesse sentido que, em seu texto, Che cos la

    fenomenologia? Edith Stein nos diz que a filosofia no pode ser entendida

    meramente como uma cincia dedutiva, nem como cincia indutiva.

    Respectivamente, a sua forma de proceder no opera segundo as leis da

    matemtica nem sob o registro das cincias naturais, embora a induo e a

    deduo possam ajudar em certo modo 38. A filosofia se serve de uma outra forma

    de conhecimento: a intuio. Esta , por sua vez, o modo de conhecimento que

    Husserl j havia solicitado para o desenvolvimento de seu mtodo, visto que ela se

    direciona ao conhecimento das essncias, ponto central da fenomenologia.

    35 MIRIBEL, Elisabeth. Edith Stein: como ouro purificado pelo fogo. 3.ed. Aparecida, SP: Editora Santurio, 2001, p.58. 36 Ibid., p.43. 37 PEZZELLA, Anna Maria. LAntrologia Filosofica di Edith Stein: indagine fenomenologica della persona umana. Roma: Citt Nuova, 2003, p.38. 38 STEIN, Edith. La Ricerca della Verit: dalla fenomenologia alla filosofia cristiana. Ed. Angela Ales Bello. 3.ed. Roma: Citt Nuova, 1999, p.59.

  • 31

    Quando Husserl lana, em 1900, o primeiro volume das Investigaes

    Lgicas, ele imediatamente aprovado pela intelectualidade neo-kantiana que

    dominava as universidades alems. Nesta obra ele aborda temas relativos lgica

    pura, posiciona-se contra o psicologismo, utiliza uma linguagem prxima de Kant e

    distingue as leis universais das meras generalizaes empricas e, assim, visto

    como um pensador que compartilhava dos princpios hegemnicos 39. Todavia, no

    ano seguinte, com a publicao do segundo volume das Investigaes, nas quais

    ele expe a sua doutrina de fato, recepcionado de forma hostil por este mesmo

    pblico. Pergunta-se: o que havia na teoria de Husserl que o levara to distante do

    credo kantiano e neo-kantiano? MacIntyre nos oferece uma resposta que se d em

    duas etapas. Em primeiro lugar, Husserl identificou que Kant construiu a sua

    epistemologia partindo, principalmente, da questo levantada por Hume acerca da

    experincia sensvel a fim de super-la, porm, uma de suas questes centrais era

    que Hume havia falhado na elaborao da experincia sensvel, acarretando um

    equvoco de avaliao sobre os objetos da percepo. Consequentemente, a

    perspectiva assumida por Husserl era de que o erro de Hume poderia pressupor

    que a resposta de Kant repousasse sobre uma falcia. preciso, portanto,

    investigar a avaliao feita por Kant sobre a teoria de Hume e, ento, o

    entendimento de Husserl sobre essa mesma teoria 40.

    MacIntyre abre o captulo sobre essa histria de fundo, trazendo a teoria

    de Hume sobre a percepo e sobre o contraste existente entre os objetos da

    percepo quando assumidos pelo senso comum ou pelo olhar do filsofo. Para

    Hume as percepes da mente so nada mais do que impresses ou idias,

    adquiridas na experincia, e que podem ser simples ou complexas. Impresses ou

    idias complexas correspondem a um complexo de impresses ou idias simples

    e, isto leva a crer que, para Hume, os objetos da percepo se mostram apenas

    enquanto meras seqncias de impresses sensveis e nada mais. Mas, indaga-se

    ele: de onde provm a noo divulgada entre o senso comum, de que h nas

    coisas uma continuidade e existncia distinta entre um episdio e outro, ou at

    uma relao de causa e efeito? Por exemplo, numa situao em que um objeto se

    39 MACINTYRE, Alasdair. Edith Stein: A Philosophical Prologue 1913-1922. Maryland: Rowman and Littlefield Publishers, 2006, p.41. 40 Ibid., p.27-28.

  • 32

    faz visvel, some de vista e depois reaparece 41. E sua resposta: da imaginao e

    da crena gerada por ela de que causas e efeitos so derivados de nossas

    constantes experincias de conjuno e de fazer inferncias dos fatos de

    conjuno observados 42. Isso significa que, do ponto de vista filosfico, quilo que

    nos apresentado na experincia sensvel bem diferente daquilo que atribumos

    a ela por meio da imaginao como, por exemplo, a conexo necessria, a

    continuidade de corpos e a identidade. As conseqncias epistemolgicas dessa

    viso recaem sobre a incapacidade de se possuir um conhecimento genuno sobre

    as leis necessrias e universais que regem o movimento dos corpos; viso essa

    que nega as descobertas das leis de Newton (1643-1727), colocando-as como

    resultado da imaginao.

    sobre esse conflito que Kant ir se apoiar para elaborar a sua teoria do

    conhecimento, aceitando, por um lado, os dados da experincia sensvel de Hume,

    mas, por outro, reformulando as atribuies que a mente projeta na experincia de

    um jeito que no se identifique com fices ou iluses. Para Kant, sem a

    sensibilidade no seria possvel a apreenso dos objetos da experincia e, sem o

    entendimento, nenhum desses objetos poderiam ser pensados, portanto, preciso

    se reportar a essas duas fontes, a sensibilidade e o entendimento, para neles

    buscar os princpios que fundamentam o prprio conhecimento. A essa pesquisa

    Kant deu o nome de filosofia transcendental, a tarefa da filosofia de encontrar as

    condies de possibilidade em que se d o prprio conhecimento. Na esfera da

    sensibilidade ele encontra dois elementos, o espao e o tempo, as formas puras da

    intuio sensvel que constituem a condio de possibilidade dos fenmenos, ou

    seja, as formas apriorsticas, independentes da experincia sensvel, que impe a

    ela a ordem e a regularidade. As coisas aparecem para ns de maneira ordenada

    e, bem como Hume pensou, a ordem no em si mesma presente nas

    aparncias43, ns mesmos a introduzimos.

    Por meio da distino entre o fenmeno 44 e a coisa-em-si, Kant assegura,

    assim como Hume, que o limite da experincia humana impe o limite do

    conhecimento humano e, diferente dele, afirma que possvel fazer inferncias das 41 MACINTYRE, Alasdair. Edith Stein: A Philosophical Prologue 1913-1922. Maryland: Rowman and Littlefield Publishers, 2006, p.30. 42 Ibid., p.30. 43 Ibid., p.31. 44 Do grego: aquilo que manifesto.

  • 33

    coisas manifestas e questionar no apenas o que elas so, mas tambm como

    deveriam ser. Porm, nada podemos inferir sobre a coisa-em-si e sobre o que

    existe alm da aparncia, se h um Deus, uma ordem csmica por trs dos

    fenmenos, porque o que no est submetido experincia, permanece

    incognoscvel. Isso no significa que, para Kant, o nosso conhecimento se deva

    regular pelos objetos da experincia, mas o contrrio disso. Existem as verdades

    sintticas, por exemplo, encontradas na matemtica e, em parte na fsica, que so

    independentes da experincia e que determinam seus objetos de maneira

    puramente apriorstica. Na concepo de Kant, ento, so os objetos que se

    regulam segundo a nossa faculdade de conhecer e, enquanto tais so

    independentes da mente apenas enquanto coisa-em-si. Essa viso representa, na

    histria da filosofia, uma verdadeira revoluo que aps Kant ser alimentada pelo

    neo-kantismo, um movimento gerado na dcada de 1950 e 1960, quando as

    opinies concordavam que os herdeiros imediatos de Kant, como Fichte (1762-

    1814), Hegel (1770-1831) e Schelling (1775-1854), no tinham dado conta de

    todas as questes levantadas por ele. Essa problemtica permanece atravs de

    muitos debates suscitados entre os estudiosos da obra de Kant e, Husserl se

    posiciona diante dela sustentando que era o contedo que Kant havia emprestado

    de Hume que devia ser questionado.

    A crtica de Husserl teoria da percepo de Hume dirigida,

    principalmente, viso empobrecida que este atribui ao que apresentado na

    experincia. Assim, Hume comete dois erros: o primeiro sustentar que a

    experincia sensvel no oferece nada alm do que uma srie de unidades

    sensoriais, como os sons, cheiros, forma, cores e sensaes tteis, a que Hume

    designa sob o nome de impresses. O segundo erro envolve a diferenciao que

    ele faz entre o objeto dado na percepo, e o contedo perceptivo do prprio ato.

    Com isso, ele levado a considerar que nenhuma unidade corprea, tal como uma

    casa ou uma rvore, podem ser dadas na percepo, mas apenas as partculas

    sensrias que as compem. Outra conseqncia falaciosa que, sendo a idia

    derivada das impresses, ela teoricamente nunca poderia ser de fato a idia de

    uma casa ou a idia de uma rvore, muito embora ele use o termo idia nesse

    ltimo sentido e, isso revela um problema que, segundo MacIntyre, permanece

    obscuro para o prprio Hume. Husserl, no entanto, se d conta desse impasse e

  • 34

    percebe que a confuso de Hume est em no atentar para o fato de que as coisas

    so apresentadas em sua particularidade e generalidade num s e mesmo ato da

    percepo, por exemplo, a idia de uma couve no a idia desta couve, mas

    para perceber alguma couve particular sempre e necessariamente perceber

    ambos, esta couve e a couve 45 ou, quando se ouve uma msica, no so as

    notas que so ouvidas uma a uma, mas a msica como um todo. Ou seja, para

    Husserl, o que nos apresentado na experincia um todo, um todo composto de

    partes que revela na sua individualidade um sentido ideal que tambm algo de

    universal. Em oposio Kant, no existe lugar para a distino entre o fenmeno

    e a coisa-em-si, mas apenas a coisa tal como ela se apresenta na percepo: um

    objeto particular que exemplifica algo universal.

    A intuio , portanto, o modo do conhecimento para a apreenso destas

    propriedades essenciais dos objetos dados na percepo. Trata-se de uma

    percepo sui generis que se diferencia da viso dos fatos do mundo sensvel, na

    medida em que alcana, por meio do olhar espiritual, as verdades ideais, evidentes

    em si mesmas. A esse processo Husserl deu o nome de reduo eidtica, ou seja,

    a reduo essncia, central na fenomenologia e que caracteriza essa nova

    espcie de objeto adquirido na viso. Todavia, neste caso, no se trata de uma

    viso de tipo experiencial, ao contrrio consiste na conscincia de alguma

    coisa46, conscincia essa que ocorre antes que um pensamento seja elaborado e,

    por isso, trata-se de uma viso originariamente oferecida. Acrescenta Ales Bello

    que a essncia no individual, isto , a posio de uma essncia no implica um

    existente individual, nem dados de fato, mas que, inversamente, para o

    conhecimento dos dados de fato, necessria uma viso eidtica47. Essa tese

    fortemente defendida por Husserl, no seu livro Idias, no qual, ao invs de utilizar o

    termo idia, porque carregado de conotaes adversas, prefere a palavra de raiz

    latina essncia ou a grega, eidos, que neste contexto no significa um produto

    gerado pela mente, mas quilo que captado intuitivamente.

    Essa reivindicao da evidncia da essncia enquanto conhecimento no

    arbitrrio central no mtodo de Husserl e est atrelada prpria definio de 45 MACINTYRE, Alasdair. Edith Stein: A Philosophical Prologue 1913-1922. Maryland: Rowman and Littlefield Publishers, 2006, p.39. 46 BELLO, Angela Ales. LUniverso nella Coscienza: introduzione alla fenomenologia di Edmund Husserl, Edith Stein, Hedwig Conrad-Martius. Pisa: Edizioni ETS, 2007, p.18. 47 Ibid., p.19.

  • 35

    fenomenologia, que se traduz como uma cincia que pretende estabelecer

    exclusivamente conhecimentos de essncia e de modo algum fatos48 e, portanto,

    a intuio das verdades ideais, bem como a prpria possibilidade desse

    conhecimento essencial, coloca Husserl em polmica tanto com o empirismo que

    objeta que a experincia pode fornecer somente singularidade e nenhuma

    generalidade quanto com o idealismo que afirma um pensamento puro, a priori,

    que no se fundamenta na experincia.

    1.3.3 O Idealismo.

    A questo do idealismo no esquema filosfico de Husserl um tema

    bastante discutido entre os estudiosos de sua obra, como nos mostra as

    colocaes de Carlos Alberto Ribeiro de Moura, no prefcio das Idias. Nele, h

    uma referncia sobre a forma como foi recepcionada esta obra de Husserl, em

    1913, por seus discpulos, que a consideraram abusiva e delirantemente

    idealista49. Todavia, antes de adentrar no posicionamento de Edith Stein e seus

    colegas frente a essa questo, se faz necessrio um rastreamento das noes que

    teriam levado Husserl ao que ficou conhecido como a virada idealista.

    Uma noo fundamental e que comparece j na introduo de seu livro

    Idias, se dirige distino traada por ele entre os dois tipos, radicalmente

    diferentes, de direcionamentos de pesquisa que podem ser adotados: a orientao

    natural e a orientao fenomenolgica. A primeira delas a orientao

    espontaneamente adotada na vida cotidiana, quando nos reportamos s pessoas,

    s coisas e ao mundo que nos circunda, bem como a perspectiva adotada pela

    cincia, quando esta se envolve com os objetos do seu estudo. A segunda

    orientao, no entanto, aquela pela qual o fenomenlogo se posiciona diante

    daquilo que lhe interessa: os fenmenos em suas diversas formas subjetivas de

    doao. Disso, podemos entender que, enquanto a orientao natural se preocupa

    com as coisas do mundo efetivo, que caracteriza o movimento da conscincia em

    direo aos objetos que a transcendem, a orientao fenomenolgica, ao contrrio,

    a aquela onde se aplica a reduo, o movimento de colocar em perspectiva no

    48 HUSSERL, Edmund. Idias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia Fenomenolgica. Aparecida, SP: Idias e Letras, 2006, p.28. 49 Ibid., p.15.

  • 36

    mais as coisas do mundo, mas os objetos intencionais. A essa operao, Husserl

    denomina reduo, um ponto central da fenomenologia que abre caminho para a

    investigao filosfica.

    Tal investigao parte da constatao de que vivemos imersos no mundo.

    Um mundo constitudo pela natureza, pelas coisas, por pessoas e tambm pelos

    valores e pela cultura. E, assim, vivemos de acordo com a orientao natural e com

    tudo que nos permeia: os estados de nimo, os sentimentos, as tomadas de

    posio, juzos, elaboraes tericas e assim por diante. O movimento exigido pela

    reduo, para assim alcanar uma atitude crtica frente passividade da orientao

    natural, consiste, exatamente, no ato de suspender a tese do mundo, ou seja,

    colocar os fatos e a concretude da existncia entre parnteses para colher a

    essencialidade. Essa suspenso, que Husserl nomeou como epoch, no significa

    nem uma negao da tese da existncia do mundo, nem uma dvida cartesiana

    sobre a realidade de sua existncia, mas significa uma mudana de perspectiva,

    que implica numa suspenso ou num colocar entre parnteses a factualidade, para

    ento alcanar a essencialidade. Tambm no se pode afirmar que a epoch seja

    um ato arbitrrio, pois, ao contrrio, um ato voluntrio que tem sua origem no

    sujeito 50 e, justamente, por isso, Husserl se v diante de um paradoxo. Se a

    epoch a suspenso do mundo e de tudo que nele se encontra e, se quem

    cumpre a epoch um eu que est inserido nele, ento este eu deveria ser

    colocado entre parnteses junto com o mundo. O que Husserl dir sobre esse

    paradoxo que o eu psicolgico, ou seja, o ser humano real como objeto real, este

    sim deve ser colocado entre parnteses, enquanto o que resta dele, a estrutura

    transcendental capaz de colher a essncia, permanece fora.

    A realidade transcendental , portanto, alcanada aps a reduo

    fenomenolgica e quele que a cumpre se v diante de uma realidade na qual se

    abre um novo campo de pesquisa formado pelo eu puro, a conscincia pura e as

    suas vivncias puras. Husserl no est preocupado com a existncia da realidade

    ou com isso que objetivo, mas a sua pesquisa, cada vez mais se dirige para o

    transcendental, ou seja, para o exame de como o objetivo acompanha a

    50 BELLO, Angela Ales. LUniverso nella Coscienza: introduzione alla fenomenologia di Edmund Husserl, Edith Stein, Hedwig Conrad-Martius. Pisa: Edizioni ETS, 2007, p.21.

  • 37

    conscincia e como a objetividade pura pode ser indagada no seu manifestar-se 51

    e, essa postura filosfica, que faz com que os seus discpulos enxerguem um

    abandono da perspectiva realista das Investigaes Lgicas, para um retrocesso

    Kant e ao idealismo transcendental. De fato, Husserl se aproxima de Kant ao tentar

    colher a estrutura da subjetividade, porm, de um ponto de vista radicalmente

    outro; pois Kant busca as estruturas a priori do conhecimento emprico, enquanto

    Husserl, parte dos dados empricos, a fim de entender como as transcendncias se

    relacionam com a subjetividade. A acusao de idealismo est bem prxima desta

    discusso, pois quando Husserl se debrua sobre o estudo da estrutura da

    subjetividade, ele encontra dois elementos fundamentais que constituem a sntese

    do conhecimento, a noesi e o noema. A primeira diz respeito estrutura imanente

    da conscincia com as suas vivncias e, o segundo, o noema, o correlato

    intencional da vivncia. Neste caso, o intencional a que se refere Husserl, significa

    que o objeto, o noema, est na conscincia sem ser parte real dela. Por exemplo, a

    minha vivncia de percepo de uma rvore, a noese, exige um correlato

    intencional que o noema, a rvore-enquanto-percebida. A rvore, simplesmente,

    enquanto um objeto real, dela nada se pode afirmar e, assim, Husserl dir na sua

    obra Idias que, a conscincia no precisa da realidade para existir e que a

    realidade, ao contrrio, depende da conscincia 52, o que significa dizer que o

    mundo existe para ns como produto intencional 53.

    1.4 DE HUSSERL A SO TOMS.

    O pensamento puramente fenomenolgico de Edith Stein est concentrado

    nos escritos da sua primeira fase, de 1916 a 1922, ou seja, respectivamente os

    anos em que ela publica a sua tese de doutorado e o ano de sua converso. A

    tese, defendida em 1916, sob a orientao de Husserl, investiga o tema da

    empatia, ou seja, a vivncia particular que fundamenta a possibilidade da

    percepo de sujeitos alheios a si mesmo. Dessa forma ela constri uma teoria

    51 BELLO, Angela Ales. LUniverso nella Coscienza: introduzione alla fenomenologia di Edmund Husserl, Edith Stein, Hedwig Conrad-Martius. Pisa: Edizioni ETS, 2007, p.26. 52 HUSSERL, Edmund. Idias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia Fenomenolgica. Aparecida, SP: Idias e Letras, 2006, p.15. 53 HUSSERL, Edmund. A Crise da Humanidade Europia e a Filosofia. 2.ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, p.41.

  • 38

    sobre a formao dos laos intersubjetivos que vai alm de uma psicologia

    emprica, pois inclui em suas anlises do indivduo psico-fsico, tambm o mbito

    espiritual. Para ela, o mbito espiritual que determina a pessoa, que abre a

    possibilidade da pessoa de sair de si para se relacionar cognitivamente e

    afetivamente com outras 54. Neste trabalho ela j demonstra a sua postura frente

    s teses fenomenolgicas do mestre, assumindo as premissas e os caminhos do

    mtodo de maneira bastante original. Logo na introduo ela afirma que os

    resultados alcanados eram mritos de seu prprio esforo, enquanto a

    impostao do problema e o mtodo utilizado no decorrer da pesquisa no podiam

    ser reivindicados como uma propriedade espiritual 55 sua, mas de Husserl. Ela

    assume a reduo fenomenolgica e sustenta a necessidade de oper-la quando

    se pretende, por um lado, escapar de conceitos duvidosos e, por outro, de livrar-se

    de teorias pr-estabelecidas que, segundo ela, no podem ser levadas em

    considerao quando tarefa da prpria fenomenologia estabelecer o fundamento

    de todo conhecimento. Aps efetuar a suspenso do indivduo psico-fsico ou do

    sujeito emprico-psicolgico, ela parte para uma descrio essencial da empatia no

    interior da conscincia, afirmando que somente assim, atravs de uma descrio

    transcendental, o fenmeno da empatia poderia ser revelado na sua singularidade

    e ento, estudado por psiclogos, socilogos ou bilogos. Com relao epoch,

    no entanto, ela problematiza de forma perspicaz a dificuldade de suspender a

    positividade da existncia e ainda assim manter o carter da percepo e, resolve

    o problema, respondendo com o exemplo da alucinao, em que se faz possvel

    reter o carter da percepo sem que essa corresponda existncia real do

    mundo.

    No ano de 1916, aps a defesa de sua tese, Edith Stein convidada por

    Husserl para ser sua assistente em Friburg e transcrever os manuscritos do

    segundo volume das Idias, de onde ela, assim como Max Scheler, retiraram o

    material para a elaborao de uma antropologia fenomenolgica. Nesta obra,

    Husserl, ao aprofundar a pesquisa sobre a subjetividade absoluta, o eu

    transcendental, a conscincia pura e seus puros correlatos, alcanou a

    individuao da estrutura do eu, ou seja, quela estrutura da qual partilham todos

    54 BASEHEART, M. Catharine. Person in the World: introduction to the philosophy of Edith Stein. Netherlands: Kluwer Academic Publishers, 1997, p.41. 55 STEIN, Edith. On The Problem of Empathy. 3.ed. Washington: ICS Publication, 1989, p.2.

  • 39

    os seres humanos. Husserl estava interessado no eu transcendental, ou seja,

    esse que consente de compreender a obviedade do corpo humano, da alma, etc56,

    mas ao aprofundar o seu estudo sobre a conscincia, no segundo volume das

    Idias, ele faz uma reflexo sobre a constituio do ser humano. Ana Maria

    Pezzella, no seu livro sobre Edith Stein, narra essa vocao antropolgica da

    fenomenologia57. Ela nos diz que embora no exista uma preocupao

    antropolgica no pensamento de Husserl, paradoxalmente, h uma constante

    reflexo sobre o ser humano. Isto se deve por dois motivos que esto bastante

    atrelados entre si: a oposio de Husserl ao naturalismo e ao psicologismo. A

    crtica ao naturalismo se refere ao modo como a psicologia experimental indagava

    o campo da psique e a reivindicao de Husserl de que este campo no podia ser

    investigado com os mesmos instrumentos com que se indagava o mundo fsico, o

    que o levou a reconsiderar tudo o que se relacionava com o campo psquico, a fim

    de compreend-lo na sua manifestao prpria. Com relao ao psicologismo, a

    crtica de Husserl est associada intuio da essncia como conhecimento

    legtimo e independente das vivncias psquicas particulares, conforme

    demonstrado nos itens acima. Ambas as posturas sero assumidas tambm por

    Edith Stein ao longo de suas pesquisas, tanto no campo da psicologia, quanto da

    antropologia.

    Em 1922, na comemorao do sexagsimo aniversrio de Husserl, ela

    publica dois ensaios no Jarbuch, cuja abordagem sustenta o mtodo

    fenomenolgico e aprofunda o estudo da conscincia como Erlebnisstrom, corrente

    de vivncias, j desenvolvido por ele no segundo volume das Idias. Sua

    indagao inicial j comparece no ttulo do volume, Filosofia da psicologia e

    Humanidades, e envolve o estudo da causalidade psquica e a distino entre o

    mbito psquico e o esprito humano, delineando assim, por um lado, as fronteiras

    entre a psicologia e a cincia do esprito e, por outro, diferenciando a causalidade

    psquica da motivao espiritual. Desse modo, emerge de suas investigaes uma

    viso da constituio do ser humano na sua estrutura psico-fsica. O conceito de

    conscincia como corrente de vivncia, associado viso de que o ser humano

    puro devir condicionado por uma fora vital, permanecer como conceito definidor

    56 PEZZELLA, Anna Maria. LAntrologia Filosofica di Edith Stein: indagine fenomenologica della persona umana. Roma: Citt Nuova, 2003, p.20. 57 Ibid., p.14.

  • 40

    em suas obras posteriores de antropologia e ontologia. Posterior a esta obra e

    tambm como uma extenso sua, encontra-se Uma Pesquisa sobre o Estado,

    publicada em 1925, na qual a anlise do indivduo se amplia para uma anlise

    essencial da comunidade.

    Estes textos aqui apontados encerram a fase eminentemente

    fenomenolgica da autora para dar incio, a partir de 1922, data de sua converso,

    aos escritos de carter antropolgico-pedaggicos ou neo-tomistas. Embora ela

    nunca tenha abandonado a fenomenologia, por outro lado, ao se converter do

    judasmo ao cristianismo ela passa a dedicar-se ao estudo da escolstica e, mais

    especificamente, a So Toms de Aquino, sofrendo influncias determinantes na

    sua forma de encarar a realidade e, consequentemente, de fazer filosofia. Nas

    palavras de Angela Ales Bello, Edith Stein no abandona a sua formao

    fenomenolgica, pelo contrrio a aprofunda e a dilata com as contribuies da nova

    impostao. 58 Portanto, entender a sua converso e o papel do tomismo em seu

    pensamento so cruciais para entender como ela ir delinear, nos anos seguintes,

    a sua abordagem da fenomenologia e, principalmente, das bases da sua

    antropologia filosfica.

    Antecede ao encontro de Edith Stein com a filosofia de Toms de Aquino, o

    seu processo de converso, belamente narrado por Elisabeth de Miribel na sua

    biografia sobre a autora. Este processo tem incio nos anos em que Edith Stein se

    encontra em Gttingen e passa a ter aulas com Max Scheler, aulas que a

    interessavam por tratar da noo de simpatia, um assunto prximo de sua tese

    que, inclusive, Scheler, levaria em considerao no seu livro Wesen und Formen

    der Sympathie. Edith sente-se envolvida por suas aulas e fascinada por sua

    presena e nos relata a retomada de sua f diante do impacto de suas idias:

    Para mim, como para muitos outros, sua influncia ultrapassava o domnio da filosofia. No sei mais em que ano Scheler se converteu Igreja Catlica, mas esse tempo devia estar prximo, pois ele estava impregnado de idias crists, s quais emprestava a fora de sua persuaso e o brilho de seu esprito. Subitamente revelou-se aos meus olhos um universo, at ento totalmente desconhecido. Isto no me conduziu de imediato a f, mas abriu-me um campo novo de fenmenos, que no era mais possvel ignorar. No foi em vo que aprendemos a rejeitar os espantalhos e

    58 STEIN, Edith. La Ricerca della Verit: dalla fenomenologia alla filosofia cristiana. Ed. Angela Ales Bello. 3.ed. Roma: Citt Nuova, 1999, p.19.

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    a receber todas as coisas sem preconceitos. Assim os muros do racionalismo dentro dos quais eu fora educada caram sem que eu o soubesse e de repente vi-me diante do mundo da f no qual viviam pessoas que eu respeitava e com as quais tinha contato dirio. Este fato merecia reflexo. No era ainda um exame sistemtico do problema religioso, pois absorviam-me outras idias. Aceitava, porm, sem resistncia, as idias dos que me rodeavam e recebia sua influncia quase sem perceber. 59

    Em 1914 tem incio a primeira guerra mundial e Edith abandona os estudos

    para cuidar dos feridos em um hospital austraco recebendo, posteriormente, uma

    medalha da Cruz Vermelha. Ao retornar, ela defende sua tese e parte rumo a

    Friburg, a convite de Husserl. L ela conhece Heidegger, l sua obra Ser e Tempo

    e fica bastante intrigada com a abordagem que ele d ao tema do ser. Nesta

    mesma poca ela tenta uma ctedra em Gttingen, com uma carta de

    recomendao do prprio Husserl, mas no aceita por dois motivos: porque

    mulheres no lecionavam na Universidade e porque suas idias sobre psicologia

    no eram compatveis com as posies assumidas pelo departamento de

    Gttingen. Em 1917 morre o seu professor e amigo, Adolph Reinach, e a esposa,

    Ana Reinach, solicita sua ajuda para organizar uma publicao pstuma. Edith

    espera encontrar a amiga devastada pela dor, mas surpreende-se ao v-la

    envolvida pela f e pela fora e serenidade de sua alma. Quando Carmelita ela

    relata que,

    Este fora o meu primeiro encontro com a Cruz, com esta fora divina que ela emana aos que a carregam. Pela primeira vez, a Igreja nascida da Paixo de Cristo, e vitoriosa sobre a morte, me apareceu visivelmente. No mesmo instante minha incredulidade cedeu, o judasmo empalideceu aos meus olhos e a luz de Cristo refulgiu em meu corao. 60

    Durante os anos em Gttingen Edith estabelece uma profunda amizade com

    Hedwige Conrad-Martius e seu marido Conrad e, por vezes, passava as frias com

    o casal numa propriedade rural. Ento, no vero de 1921, Edith l O Livro da Vida

    de Santa Teresa Dvila e ao termin-lo afirma ter encontrado a verdade.

    Imediatamente providencia a sua instruo de catecismo e em 1922 recebe o

    59 MIRIBEL, Elisabeth. Edith Stein: como ouro purificado pelo fogo. 3.ed. Aparecida, SP: Editora Santurio, 2001, p.57. 60 Ibid., p.60.

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    batismo. Sobre esta experincia de converso no se tem muitas informaes,

    alis, segundo Miribel, quase nada se sabe sobre sua vida interior 61, a no ser

    atravs dos relatos de pessoas que conviveram com ela. No ano seguinte, sob os

    conselhos de seu orientador espiritual, ela vai viver entre as dominicanas

    educadoras de Santa Madalena, em Spira, onde ficar por oito anos ministrando

    aulas de alemo e fazendo conferncias para a formao das religiosas. Durante

    essa estadia, Edith se aproxima da filosofia catlica, focando suas leituras,

    principalmente na obra de So Toms de Aquino e, no ano de1928, ela nos

    oferece um relato de sua vida interior quando em contato com os textos do Santo.

    Nas seguintes palavras, nos fala a autora:

    Desde antes de minha converso j era meu desejo entrar para a vida religiosa, isto , esquecer os acontecimentos da terra, ocupar-me para somente das coisas de Deus. Pouco a pouco porm, compreendi que outra coisa nos era pedida no mundo e que mesmo entregue a uma vida contemplativa no se deve cortar toda a ligao com o exterior. Lendo Santo Tomas, pareceu-me possvel pr o conhecimento a servio de Deus e foi ento, e somente ento, que consegui retomar seriamente meus trabalhos. Pareceu-me, com efeito, que quanto mais uma pessoa atrada para Deus, mais obrigada deve sentir-se a sair de si mesma para levar ao mundo o amor divino. 62

    Ainda na poca em que vivia em Mnster, Stein passa a freqentar um pequeno

    grupo de intelectuais catlicos, cujos integrantes eram Dietrich von Hildebrand

    (1889-1977), Daniel Feuling (1882-1947) e o jesuta Erich Przywara (1889-1973). A

    pedido deste ltimo, Edith faz a traduo de alguns volumes da obra do Cardeal

    John Henry Newman (1801-1890) e a traduo do De Veritate de Toms de Aquino

    para o alemo. Esses anos so bastante movimentados para a autora, ela viaja por

    diversos pases da Europa fazendo conferncias sobre o problema da educao e

    da situao da mulher 63; em 1931 tenta novamente uma ctedra, dessa vez em

    Friburg, mas no aceita; em 1932 convidada a dar aulas no Instituto de

    Pedagogia Alem em Mnster e no mesmo ano participa do congresso sobre

    61 MIRIBEL, Elisabeth. Edith Stein: como ouro purificado pelo fogo. 3.ed. Aparecida, SP: Editora Santurio, 2001, p.84. 62 Ibid., p.71. 63 Tais conferncias, proferidas por Edith Stein em diversos pases da Euro